Modernismo e Crise da Cultura nas Revistas Literárias de Nova York (1960-1975)

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MODERNISMO E CRISE DA CULTURA NAS REVISTAS LITERÁRIAS DE NOVA YORK (1960-1975) Iuri Bauler Pereira PPGHIS-UFRJ

A Convenção do Partido Democrata do ano de 1968, realizada em Chicago, é um evento carregado de enorme força simbólica nos anos sessenta dos Estados Unidos. Organizada para definir o candidato do partido do presidente Lyndon Johnson para as eleições presidenciais, a convenção foi realizada sob a duradoura sombra da Guerra do Vietnã e dos assassinatos dos irmãos Kennedy – John, presidente eleito em 1962 e Robert, pré-candidato para 1968 – e Martin Luther King, líder do movimento pelos direitos civis. Os efervescentes movimentos do front de esquerda, como o recém-fundado partido Yippie – Youth International Party – e diversos grupos da New Left, em franco crescimento após o incendiário congresso de Port Huron (1962) da Students for a Democratic Society (SDS) planejavam uma série de manifestações anti-Guerra do Vietnã e críticas aos rumos do governo. O prefeito de Chicago, Richard Daley, conhecido por uma política de tolerância zero com relação a manifestações e desordens, preparou um esquema de segurança repressiva truculento. Os fatos que se seguiram durante o congresso, televisionado para todo o país, foi um dos mais sombrios episódios de violência civil nos Estados Unidos, uma espécie de “dream is over” político1. A confusão era esperada, de certa forma, e o congresso já era antevisto como um momento de tensão, com possibilidades explosivas e potencial histórico palpável. Esta conjuntura curiosamente fez do Congresso Democrata de 1968, além de um momento crítico na história política americana, um evento marcante para a história cultural do período. A rede de publicações da imprensa undergound, articulada nacionalmente pelo projeto de compartilhamento de notícias Liberation News Service (LNS), e algumas das principais revistas literárias do país enviaram correspondentes para a cobertura do Congresso, diversificando de maneira única o panorama tradicional do jornalismo político. Muitos dos correspondentes das revistas literárias eram escritores conhecidos por suas técnicas narrativas experimentais: William S. Burroughs, Norman Mailer, Jean Genet, Terry Southern, entre outros. As revistas Esquire, Ramparts, Evergreen Review, entre outras, enviaram seus “correspondentes de guerra”, orientados e preparados para registrar os mais

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Para um panorama dos conflitos ver Dickstein, Morris. Gates of Eden: American culture in the 1960s. Harvard University Press, 1997. e Katsiaficas, George. The Imagination of the New Left: A Global Analysis of 1968. South End Press, 1999.

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explosivos detalhes em prosa experimental2. A equipe da Esquire, revista cultural que sob a edição de Harold Heyes investia pesado na divulgação dos novos modelos de jornalismo experimental, era composta pelo escritor e guru beat William S. Burroughs, pelo escritor-marginal Jean Genet e pelo jornalista Terry Southern, figura importante na cena literária e que posteriormente se envolveria na adaptação cinematográfica do romance experimental End of the Road (1958) de John Barth, em 1970. A narrativa de Southern sobre os bastidores da cobertura do congresso democrata, “Grooving on Chi”, publicada na edição especial da Esquire em novembro de 1968 - cuja capa consiste nos correspondentes posando em torno de um corpo estirado no chão - é significativa para compreender o “projeto editorial” da equipe: Também por ali, o jovem editor da Esquire John Berendt – seu trabalho: segurar a onda desses loucos e MVV (“Manter Velocidade de Vôo”). Nós nos encontramos no pequenino Downstairs Lounge, um dos diversos bares do nosso hotel, Chicago-Sheraton, e John Berendt foi rápido em encarregar nossas respectivas missões: “Você, Jean Jack Genet, sempre alerta para qualquer tipo de criminalidade e perversão nas altas rodas! Você, Big Bill Burroughs, deixe seu agudo e experiente olhar discernir qualquer sinal de delírio pelo uso de drogas por esses delegados, candidatos e oficiais de cada estação! Agora então, você, T. Southern, alerta dobrado para qualquer forma de Absurdo nessa convenção! 3

A existência de um crescente mercado contracultural, interessado e consumidor desse tipo de experiência narrativa específica, é um indício a ser considerado. Norman Mailer, presente também no Congresso do Partido Republicano no mesmo ano, publica com considerável sucesso e repercussão seu livro Miami and The Siege of Chicago (1968), baseado em suas experiências na cobertura dos dois eventos políticos, cujo subtítulo indica esta relação entre a experiência política e a experimentação narrativa: History as Novel, Novel as History. A diversidade narrativa da cobertura do Congresso Democrata de 1968 e da sombria noite de violência policial que se seguiu articula-se a um debate mais amplo, realizado nas revistas literárias e universidades desde o início dos anos 1960, sobre os limites das formas de representação da realidade. A tradição ensaística americana, já consolidada nas décadas anteriores nas páginas dos periódicos nova-iorquinos, foi tomada de assalto por questionamentos sobre as tradições narrativas e interpretativas nas quais estava baseada. O debate sobre os limites do realismo após a experiência 2

POLSGROVE, Carol. It Wasn't Pretty, Folks, but Didn't We Have Fun?: Esquire in the Sixties. New York: Norton & Co, 1995. HAYES, Harold. Smiling through the Apocalypse: Esquire's History of the Sixties. New York: McCall Pub, 1970.

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“Also on hand, Esky editor young John Berendt - his job: straighten these weirdos, and K.F.S. ("Keep Flying Speed!"). We met in the queer little Downstairs Lounge, one of several bars in our hotel, the Chicago-Sheraton, and John Berendt was quick to charge us with our respective assignments: "You Jean Jack Genet, on the alert for all manner of criminality and perversion in high places! You, Big Bill Burroughs, let your keen and experienced eye discern any sign of sense derangement through the use of drugs by these delegates, the nominees, and officials of every station! Now then, you, T. Southern, on double alert for all manner of absurdity at this convention!" SOUTHERN, Terry. “Grooving on Chi”. Esquire, November 1968.

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histórica do século XX, o diagnóstico da exaustão e empobrecimento das formas culturais nos Estados Unidos, a ruptura com uma tradição baseada no passado e a emergência de uma “nova sensibilidade” marcam o diálogo público dos intelectuais e artistas do período.

“American High Sixties”: debates sobre a modernidade nos anos 1960

Em 1967, o escritor e professor de literatura John Barth publica – na centenária revista cultural norte-americana The Atlantic – um ensaio intitulado The Literature of Exhaustion, baseado em uma reflexão sobre as possibilidades da literatura a partir da aproximação com a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges, que se configuraria como a sua contribuição seminal a um acalorado debate que ocupará a pauta do establishment literário americano durante a década seguinte: o pósmodernismo. O ensaio teve grande repercussão no ambiente literário americano, e Barth assumiu a posição de um dos mais vocais representantes dos escritores experimentais norte-americanos nas décadas subsequentes. Neste ensaio, Barth sugere que a literatura ocidental, sobretudo no caso específico da língua inglesa, assim como a arte em geral, se encontra em uma espécie de “beco sem saída”: no âmbito formal, parece ser impossível alcançar um nível satisfatório de originalidade criativa em face ao peso da história literária e à sombra dos grandes modernistas – aqui as referências são James Joyce e Samuel Beckett em especial – que conduziram a experimentação da linguagem ao extremo. A tradição literária, por sua vez, também parecia, a Barth, incapaz de representar a realidade das transformações vividas no período, onde grassava uma sensação de que a cultura da primeira metade do século já não servia como referência, dada a fissura aberta entre a tradição e o presente, e a literatura parecia exaurida como forma de representação artística da sociedade4 . Em um texto introdutório ao ensaio de 1967, John Barth reconstrói uma narrativa sobre o “espírito da época” da publicação, talvez em uma espécie de justificação pelos excessos retóricos cometidos, sugerindo que consegue sentir “rebelião entre suas linhas, o cheiro de gás lacrimogênio” 4

“what I'm calling 'the literature of exhausted possibility' — or, more chicly, 'the literature of exhaustion'. […] By 'exhaustion' I don't mean anything so tired as the subject of physical, moral, or intellectual decadence, only the usedupness of certain forms or exhaustion of certain possibilities” BARTH, John. “The Literature of Exhaustion”. The Friday Book: Essays and Other Non-Fiction. Boston/Londres: The Johns Hopkins University Press, 1984. Pouco mais de uma década depois, em 1979, Barth publica na The Atlantic um ensaio de “reconsideração”, The Literature of Replenishment, um panorama do campo de debates e debatedores que se debruçaram sobre a chamada “literatura pós-modernista” e uma tentativa de conclusão sobre a função e os limites da literatura na cultura contemporânea. Ambos os ensaios foram reeditados em conjunto em 1982 e posteriormente incluídos na coletânea de ensaios The Friday Book, acompanhados de pequenas introduções do autor, formando um díptico sobre a literatura dos anos 1960-1970 e permitindo reconstruir parcialmente uma história literária do período, chamando a atenção para os temas centrais de Barth: os limites da literatura como representação da realidade e do modernismo como projeto cultural.

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nas margens do ensaio escrito enquanto lecionava na New York State University. Barth fazia parte de um recém-formado Departamento de Letras, composto por jovens acadêmicos de destaque recrutados em instituições de todo o país, entre eles o polêmico teórico da literatura Leslie Fiedler que o descrevia como a “Ellis Island da Literatura” numa referência à ilha de ponto de inspeção e portão de entrada de milhares de imigrantes vindo à América durante os anos de 1892 e 1934. Definida por ele como a “Berkeley do Leste” – referência à universidade símbolo da contracultura e mobilização estudantil californiana nos anos 1960 –, a experiência no ambiente universitário é apontada por Barth como definitiva para o tom programático do ensaio. O texto foi produzido no coração das agitações estudantis e do experimentalismo artístico da Costa Leste: experiências de música eletrônica de Lukas Foss e Lejaren Hiller, exposições de Andy Warhol e outros artistas da Pop Art, sob o impacto das recentes provocações teóricas de Marshall McLuhan, e em um ambiente de assembleias de política radical. O ensaio é delineado nessa reconsideração como uma espécie de libelo sobre o estado da arte nos anos 1960, mas também como um documento de uma época conturbada e específica na sociedade americana e em seus meios literários estabelecidos, que ele define como os “Altos Anos Sessenta” – American High Sixties –, período entre 1965 e 1973. Os American High Sixties de Barth se caracterizariam como um recorte simbólico, de certa maneira condensado, das experiências-chave da virada da década por ocuparem o auge da Guerra do Vietnã e sua brutalidade nos fronts interno e externo, enquanto a economia dos Estados Unidos passava por um momento, nas palavras do autor, “gordo e sangrento” . Mas esse recorte é também baseado em critérios estéticos: é entre a segunda metade da década de sessenta e os primeiros anos da década de setenta que a cultura americana testemunha um explosão febril da produção experimental e “vanguardista”, por vezes subversiva e

psicodélica,

da “contracultura”. Barth

relembra, com certo saudosismo o espírito “make-it-new” dos estudantes da região de Nova York e sua obsessão pelo vanguardismo, e os encontros estudantis radicais cujo público ele compara – em número e espírito – ao de um “sarau de leitura de Allen Ginsberg acompanhado de harmônio e sinos tibetanos”5 . A definição desse período da história norte-americana e mundial é motivo de debate e alvo de uma variedade de interpretações. Sangrentamente marcado pela Guerra do Vietnã, pelos assassinatos do presidente John Fitzgerald Kennedy, do seu irmão Robert Kennedy e do líder negro Martin Luther King; palco da tensão máxima da Guerra Fria, dos múltiplos levantes da chamada 5

BARTH, John. pós-escrito para “The Literature of Exhaustion”. The Friday Book: Essays and Other Non-Fiction. Op.Cit.

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Nova Esquerda, do movimento pelos Direitos Civis e a Revolução Sexual; por outro lado, marcado pela consolidação da televisão como meio de comunicação de massas e pelo enfrentamento geracional dos jovens do período, articulados a uma transformação radical artística e comportamental, esse período é considerado ainda hoje como um dos momentos-chave para a compreensão das tensões políticas e sociais que configuram a pauta da política e cultural dos Estados Unidos6. Entre a ruptura drástica com a experiência do passado imediato e o considerável distanciamento realizado nas décadas seguintes, reside um momento histórico singular constituído por uma aparente continuidade entre o fim da década de sessenta e o início da setenta, momento este que é narrado de forma diversa pela historiografia americana contemporânea. Jeremy Varon, no texto programático que inaugura a revista Sixties, defende a caracterização dos “Longos Anos Sessenta” – The Long Sixties – um momento mais profundo de transformações estruturais na sociedade americana. Esse recorte histórico se estenderia de 1959 até aproximadamente 1975, em uma leitura que valorizaria a genealogia dos movimentos e concepções e seus efeitos de médio e longo prazo, levando em conta uma dinâmica internacionalista da experiências compartilhadas por grupos jovens na Europa e na América Latina7. Em comum entre o debate historiográfico e as impressões dos escritores como John Barth, é a identificação de um momento de ruptura visível, de exaustão da tradição, de crise dos conceitos que definiam as formas de representação da realidade: a sensação de que “algo se quebrou, está se quebrando”. Há um sentido de urgência em diversas manifestações culturais da época, em uma clara relação com a emergência de novos atores políticos e artísticos bem como de novas formas de comunicação, embora seja imprudente sugerir prioridade causal para qualquer uma destas instâncias8. Os textos sessentistas registram profusamente essa necessidade de respostas rápidas, reflexões formais desvinculadas da tradição e, sobretudo, formuladas para o presente visto que a própria noção de futuro parecia estar suspensa. O período foi marcado por uma série de questionamentos e diagnósticos sobre os sentidos, 6

Para um resumo historiográfico do tema ver HEALE, M.J. “The Sixties as History: A Review of the Political Historiography,” Reviews in American History, Vol. 33, No 1, Mar, 2005, pp. 133–52

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VARON, Jeremy, FOLEY, Michael S. & McMILLIAN, John. “Time is an ocean: the past and future of the Sixties”. In: The Sixties: A journal of History, Politics and Culture, 1:1, 2008. para um debate sobre o internacionalismo das experiências ver ROSS, Kristin. May ’68 and its Afterlives. University of Chicago Press, 2004. ; para o caso brasileiro ver LANGLAND, Victoria. Il est Interdit d’Interdire: The Transnational Experience of 1968 in Brazil. Revista Estudios Interdisciplinarios de America Latina y El Caribe. Facultad de Humanidades Lester y Sally Entin. Escuela de História, Instituto de Historia y Cultura de América Latina. Volumen 17:1, 2006-2007. Para um panorama dos conflitos ver DICKSTEIN, Morris. Gates of Eden: American culture in the 1960s. Harvard University Press, 1997. e KATSIAFICAS, George. The Imagination of the New Left: A Global Analysis of 1968. South End Press, 1999.

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limites e uma possível exaustão do conceito de modernidade, suscitado pelas experiências traumáticas do século XX e as então recentes transformações políticas, culturais e tecnológicas do pós-guerra, em especial dos anos 1960. Esse debate apresentou uma diversidade de posições e uma grande variedade de termos: “crise da cultura”, “pós-modernidade”, “hiper-modernidade”, entre outros9. Entre as características apontadas como sintomas dessa crise, estavam os questionamentos sobre o futuro da escrita, dos livros, das grandes narrativas, das teorias das ciências humanas, a dissolução dos cânones e fronteiras da arte, uma nova postura perante o passado e suas referências. Em especial, a discussão sobre os limites da representação narrativa da realidade, articulando interesses e interlocutores literários e historiográficos, em especial no chamado linguistic turn10. Relacionados a essas questões, diversos indivíduos e grupos propunham uma nova forma de entender a realidade, representá-la, interpretá-la e atuar artisticamente nela. Entre eles, vanguardas artísticas e literárias, ensaístas e filósofos, músicos e cineastas, escritores e críticos debatiam esses conceitos ou exploravam suas possibilidades11 . Emerge, nesse período, um “grupo” de autores caracterizados, pela crítica, como os pósmodernistas. O rótulo inclui uma grande diversidade de autores: entre os americanos, Donald Barthelme, John Barth, Robert Coover, Thomas Pynchon, William Gaddis, William H. Gass, Joseph Heller, John Hawkes, Gilbert Sorrentino, Don DeLillo. Estes autores se caracterizariam pelo uso de experimentações linguísticas radicais, exploração de narrativas meta-ficcionais, e grande autoconsciência da história literária e dos modelos tradicionais da literatura. Circulavam amplamente, nesse momento, os debates sobre as diversas mortes: do romance, da literatura, do autor, bem como a exaustão das formas de representação da realidade, a abolição das fronteiras e dos cânones disciplinares e artísticos12 . A cena artística e underground de Nova York passava também por um momento de efervescência e inquietação, forçando os limites e sentidos da arte e questionando a representação

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Não caberia analisar esse amplo debate aqui, contudo, é necessário demarcar que esse debate é normalmente associado a categoria de “pós-modernismo”, alcunha que foi utilizada amplamente no período estudado para identificar teóricos, artistas e mesmo experiências cotidianas ou históricas. É importante ressaltar que esses termos não devem ser tomados como conceitos explicativos ou instrumentos heurísticos, mas como objetos e concepções a serem analisados historicamente como parte de um amplo “momento” de questionamento intelectual sobre os valores e modelos da modernidade.Para um panorama do debate, ver CONNOR, S. Postmodernist Culture. Oxford: Blackwell, 1989.

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Sobre a relação entre historiografia e o debate sobre os limites da modernidade ver: ANKERSMIT, Frank. “Historiografia e pós-modernismo”. In: Topoi, v.2. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ / 7 Letras, 2001.

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Para uma discussão sobre a arte de vanguarda e suas relações com o debate aqui proposto ver HUYSSEN, Andreas. After the Great Divide. Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1986. BÜRGER, Peter. Theory of the Avant-Garde. Minneapolis: University of Minessota, 1984. 12 HUTCHEON, Linda. Poetics of Postmodernism. New York, Routledge, 1988.

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da realidade. A cena, que se desenvolveu sobretudo nos bairros do centro de Manhattan a partir do final da década de sessenta, incluía artistas plásticos, cineastas, poetas, músicos, escritores, curadores e ensaístas que atuavam em uma série de espaços: exposições coletivas, grupos de poesia, vanguardas artísticas, revistas literárias alternativas13 . Muitas dessas produções e artistas receberam espaço ou resenhas nas revistas literárias estabelecidas, muitos deles tornando-se colaboradores ativos das mesmas ou influenciando a produção delas. Ao mesmo tempo, as revistas já adotavam uma posição de destaque no debate sobre a modernidade e os rumos da sociedade americana, em reportagens e ensaios que retratavam as mudanças políticas, culturais e comportamentais da cena nova-iorquina, norte-americana e mundial. Seus editores e críticos partiam em busca de novos talentos e colaboradores, e a variedade de técnicas e estilos do avant-garde passou a ser divulgada pelas publicações estabelecidas no mercado editorial formal. Os ensaios publicados nas revistas literárias nova-iorquinas apresentam algumas abordagens fundamentais para a compreensão desse debate no período, e muitos tiveram considerável fortuna crítica e impacto por suas críticas, argumentos e programas. Dentre eles, os ensaios seminais como “After Joyce” (1963) de Donald Barthelme, “Against Interpretation” (1965) de Susan Sontag, “Literature of Exhaustion” (1967) de John Barth, “The New Mutants” (1968) de Leslie Fiedler. Articulados a estes textos é possível localizar uma série de reflexões sobre os limites do realismo no período, sobretudo por ficcionistas como Philip Roth, Flannery o’Connor e Mary McCarthy. Dentre os ensaios e a ficção destes autores – levando em consideração o período de 1960 até 1975 –, circularam as ideias e conceitos-chave para compreensão do debate sobre a crise da modernidade, e sua relação com a cultura e a sociedade americana. É importante ressaltar que há uma articulação fundamental entre ficção e teoria no período, evidente sobretudo na dupla atuação de autoresensaístas de boa parte dos escritores aqui citados. A presença de múltiplos gêneros de textos nas revistas literárias amplifica essas relações complexas entre literatura experimental, jornalismo cultural e debate teórico, constituindo um terreno fértil para a reflexão sobre as transformações

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Este “momento” específico da cultura nova-iorquina, consolidado no início dos anos 1970, recebeu a alcunha de Downtown Scene, e foi interpretado de diversas maneiras pela crítica, por sua natureza diversificada de referências e influências: política radical, vanguardas artísticas,escritores beats, hippies, movimentos underground, entre outros. TAYLOR, Marvin. Playing the Field. The Downtown Scene and Cultural Production, an Introduction. In: TAYLOR, Marvin (ed.). The Downtown Book – The New York Art Scene 1974-84. New York: Princeton University Press, 2006, p. 20. Sobre a relação entre a Downtown Scene, o movimento punk e a poesia alternativa no período ver ARAÚJO, Marina Correa da silva de. “Os Novos Homens e a adoração do presente : A cena punk/new wave em Nova York- 1967/1977”. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.

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culturais do período14.

Vozes do Village: transformações culturais e as revistas literárias de Nova York

Os periódicos literários fazem parte de uma longa tradição na história da cultura letrada norte-americana, tendo sido um gênero de publicação muito difundido já no século XIX e que perdura até os dias de hoje. Revistas literárias como The Atlantic Monthly, fundada em Boston em 1857, e Harper's, fundada em Nova York em 1850, seguem atuantes após mais de um século de atividade e mudanças nas linhas editoriais. As duas revistas mais antigas do país, The North American Review e Yale Review – a primeira, que se chamava Monthly Anthology, suspendeu temporariamente suas atividades durante a Segunda Guerra Mundial – foram fundadas em 1803 e 1819 respectivamente e são representantes da longevidade do gênero na cultura americana15 . A partir do século XX, as revistas literárias assumem um papel preponderante no debate público e jornalístico, então em franca expansão pelo país e pelo mundo, ao disponibilizar espaço para editoriais abertos, longas reportagens investigativas e artigos teóricos, além de ensaios, textos ficcionais inéditos, resenhas e crítica cultural. Para David Sumner, o século XX pode ser definido como “o século das revistas” – "the magazine century” –, dada a importância do gênero para a cultura americana. Contudo, segundo ele, o papel fundamental das revistas norte-americanas deve

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O caso de Marshall McLuhan é de especial importância para os diagnósticos de emergência e crise da literatura. A história é conhecida: em 1962, o professor de retórica Marshall McLuhan publica o livro “The Gutemberg Galaxy” que gera um grande debate no meio literário e acadêmico ao sugerir a obsolescência da cultura impressa – e escrita – no mundo eletrônico. A articulação de McLuhan com as vanguardas estéticas também é fundamental para entendermos a relação entre fazer teórico e fazer artístico nos anos 1960. Ele foi colaborador da editora de arte impressa e tipográfica nova-iorquina The Something Else Press, que publicava trabalhos experimentais de Gertrude Stein e John Cage, vertente que já havia explorado em seu manifesto-gráfico Counterblast. A atuação de Marshall McLuhan na cena literária pode ser exemplificada na peça crítica sobre o escritor Willam Burroughs publicada na revista Life, entre outras contribuições ensaísticas do autor, e sobretudo em sua influência teórica. O importância das reflexões de McLuhan é patente nas inúmeras citações, em especial da frase-assinatura “medium is message”, por diversos autores do período: John Barth descreve o período que produziu seus ensaios citando, em uma única frase, gás lacrimongênio, bandeiras vermelhas e as ideias de Marshall McLuhan como parte do zeitgeist dos anos 1960. Donald Barthelme publicou em sua revista literária, ainda em Houston, o texto “medium is message” de McLuhan, e cita diretamente o autor canadense em “After Joyce”. O crítico George Steiner, em uma resenha ácida sobre a escrita McLuhan – cujo estilo seria intencionalmente indeterminado, como parte do projeto teórico - assume apesar disso sentir-se desafiado pelas proposições e provocações do autor. A lógica da primeira coletânea de contos de John Barth, Lost in the Funhouse (1968) está articulada, também, a uma reflexão teórica fundamental sobre os limites materiais da literatura e sua relação com as novas mídias e meios de comunicação. A presença de múltiplos gêneros de textos nas revistas literárias amplifica essas relações complexas entre literatura, arte e teoria, um dos traços fundamentais do cenário esboçado nesse capítulo. 15 Para um panorama histórico e bibliográfico desse gênero de publicação nos Estados Unidos ver CHIELENS, Edward E. American literary magazines: the twenthieth century. Westport/New York: Greenwood Press, 1992.

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ser matizado e articulado socialmente16. O autor sugere que a explosão das revistas literárias nos primeiros anos após a Segunda Guerra Mundial está ligada também à efervescência econômica dos Estados Unidos no período, motivando o interesse dos anunciantes na divulgação em larga escala de produtos e serviços, missão para o qual os periódicos serviram de principal veículo durante décadas, além de funcionarem como principais meios de comunicação17 . Os periódicos publicados em Nova York, maior cidade do país e centro financeiro e cultural do pós-guerra, desempenhavam um papel preponderante por sua grande circulação e prestígio editorial. A cidade já contava com uma cena literária estabelecida no século XIX, quando alguns dos periódicos mais importantes do país tiveram sua fundação na cidade, e seu crescimento acelerado durante o século XX contribuiu em grande medida para a constituição da cidade como capital literária dos Estados Unidos. Os jornais e periódicos de maior tiragem do país eram produzidos em prensas na cidade, como no caso dos jornais de escopo nacional The New York Times (1851–) e The Wall Street Journal (1889–), e da revista de notícias Time, fundada em 1923. Os importantes periódicos políticos The Nation (1865–), de tendência progressista, e o liberal The New Republic (1914–) também iniciaram suas atividades na grande cidade da Costa Leste, que funcionava como centro de debates da arena política, por seu peso demográfico e econômico nos destinos do país. Os periódicos literários de maior tiragem e prestígio, embora geograficamente dispersos por sua ligação com universidades e instituições de ensino distribuídas pelo país, também estavam consideravelmente concentradas em Nova York. A presença de editoras tradicionais e portadoras de grande prestígio literário como a Scribner's & Sons, Alfred Knopf , Simon & Schuster, bem como de iniciativas alternativas como a Grove Press, é também decisivo para esse quadro. Uma listagem não-exaustiva desse universo de publicações serve de exemplo para o impacto cultural dos 16

“Magazines mirror American culture. They do not shape it. A few influential magazines may influence small segments of opinion leaders. But magazines emerge and evolve to meet the demand for changing public interests and tastes. […] The 20th century was a colorful, fun-filled century for magazines – complete with public controversies, legal disputes, dismal failures, and spectacular successses. It was the magazine century.” SUMNER, Edward. The Magazine Century: American Magazines since 1900. New York: Peter Lang, 2010 17 Segundo levantamento apresentado por Sumner, o número de revistas nos Estados Unidos partiu de três mil no início do século XX para mais de dezessete mil na véspera do terceiro milênio, um aumento 95% maior que o do índice populacional para o mesmo período. A ampliação dramática das tiragens vem acompanhada de uma crescente onda publicitária nas publicações voltadas ao público com poder aquisitivo, tornando as revistas literárias uma peça fundamental para a subsistência do mercado literário americano, ao financiar premiações e remunerar autores por submissões, e frequentemente se tornarem parte de um empreendimento editoral mais amplo. A relação das revistas com o mercado pode ser exemplificada nas revistas literárias mais populares da primeira metade do século XX como o Reader's Digest (1922–) e o The Saturday Evening Post (1897–), que publicavam ficção voltada para um crescente público médio estadunidense. Neste sentido, segundo Sumner, o equilíbrio nem sempre preciso entre interesses literários e interesses de mercado são parcela intrínseca à dinâmica histórica das revistas americanas. “Magazines became the national medium of communication and the only way to reach America's surging population with a message or a product. Magazines defined popular culture for more than thirty years until radio, motion pictures, television and the internet followed to join in that role.” Id. Ibid, p.14

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periódicos locais: The New Yorker, Esquire, Harper’s, The Partisan Review, The New York Review of Books, The Hudson Review, e, após 1973, The Paris Review. O cenário de publicações menores, especializadas ou alternativas, é também rico e multifacetado, sobretudo a partir dos anos 1960, sendo possível destacar a Village Voice, Dissent, Location, The Evergreen Review, Kulchur, Floating Bear, Yugen, Fiction, East Village Other, entre outros. A constituição de Nova York como capital literária dos Estados Unidos – me valendo aqui do sentido que Pascale Casanova sugere sobre os centros de um mercado literário mundial – está ligada também à consolidação da cidade como um centro urbano cosmopolita e de conexões internacionais. Para Casanova, a posição de capital literária mundial é ainda ocupada por Paris, embora Londres e, especialmente, Nova York controlem grande parte do poder econômico e do modelo comercial de literatura. Paris sustenta-se como espaço de tradução, recepção e consagração internacional, cujo monopólio do prestígio e a definição dos rumos estéticos do mercado literário mundial são especialmente visíveis nos anos 1960: a cena literária de Nova York debate avidamente as últimas tendências francesas – noveau roman, Roland Barthes, desconstrutivismo – e delimita posições a partir de aproximações e distanciamentos com esses autores e tendências18. Thomas Bender sugere que a história de Nova York está marcada por uma relação ambígua entre a cidade e o restante dos Estados Unidos: desempenha a função de cidade que resume a totalidade nacional ao passo que é também um corpo estranho, por sua magnitude e identidade específica. Bender ressalta, durante a primeira metade do século XX, a distinção entre os Estados Unidos, caracterizados como uma nação majoritariamente rural, composta por centros urbanos de dimensões médias e com certa uniformidade étnico-religiosa avessa ao cosmopolitismo, em contraste com a megalópole urbana, de dimensões e economia gigantescas e formada pela diversidade étnica e cultural, advinda da imigração19 . A afirmação de Nova York como espaço literário específico, de certa forma isolado nacionalmente como sistema cultural de cunho cosmopolita, articula-se a esta especificidade histórica da cidade. A chegada de levas de imigrantes, CASANOVA, Pascale. A República Mundial das Letras. São Paulo: estação Liberdade, 2002. pp. 40-41: “ em oposição às fronteiras nacionais que produzem a crença política (e os nacionalismos), o universo literário produz sua georgrafia e seus próprios recortes. Os territórios literários são definidos e delimitados de acordo com sua distância estética do espaço de “fabricação”e consagração da literatura. As cidades onde se concentram e se acumulam os recursos literários tornam-se lugares em que se encarna a crença, em outras palavras, são uma espéie de instituição de crédito, “bancos centrais”específicos. […] A constituição e o reconhecimento universal de uma capital literária, ou seja, de um lugar para onde convergem ao mesmo tempo a maior crença e o maior prestígio literários, resultam dos efeitos reais produzidos e suscitados por essa crença. Ela existe portanto duas vezes: nas representações e na realidade dos efeitos mensuráveis que produz" 18

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BENDER Thomas. The Unfinished City. New York and the Metropolitan Idea. Nova York: New York University Press, 2002; Para um panorama da história literária de Nova York: PATELL, Cyrus e WATERMAN, Bryan (ed.) The Cambridge Companion to New York Writing. New York: Cambridge University Press, 2010, pp. 189-202.

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refugiados e artistas da Europa, em especial durante a Segunda Guerra Mundial, consolidou o caráter cosmopolita da cultura nova-iorquina do pós-guerra. A constituição histórica da cidade como capital literária e espaço cosmopolita específico articula também uma geografia própria do campo cultural. O universo dos periódicos e revistas literárias, os cursos de escrita criativa, a consolidação dos espaços culturais da cidade produzem um ambiente específico da cena nova-iorquina. A profusão de espaços de sociabilidade intelectual e apoio institucional na cidade são uma característica marcante: além da grande quantidade de fundações e mecenas, havia a tradição literária das universidades - o City College of New York abrigava um curso de escrita criativa já nos anos 1960 - bem como do recém-criado Departamento de Letras da State University of New York in Buffalo (NY); os círculos literários e artísticos da New York School of Poets e da St.Mark's Place; e a grande concentração boêmia e intelectual dos bairros do Village e Lower East Side, que contavam com uma imprensa alternativo de grande repercussão, como o mainstream The Village Voice e o underground East Village Other. Nos anos 1960, as mobilizações anti-guerra do Vietnã, organizadas por comitês e grupos politicamente engajados, serviram também como possibilidade de interação entre intelectuais, artistas e escritores20. Entre os anos 1940 e 1950, a vida intelectual da cidade gravitava, especialmente, em torno de um grupo diversificado de intelectuais, escritores e críticos instalados na cidade, ligados ao periódico The Partisan Review, às principais universidades nova-iorquinas e à atuação na política radical. Esse grupo heterogêneo, composto inicialmente por uma segunda geração de imigrantes de ascendência europeia – em especial judaica e polonesa – e articulado em torno de uma corrente antistalinista da esquerda americana, e formado majoritariamente no acessível City College of New York, é definido historiograficamente como os New York Intellectuals. Composto por críticos literários, ensaístas, críticos de arte e escritores como Lionel Trilling, Dwight McDonald, Irving Howe, Philip Rahv, Clement Greenberg, Harold Rosenberg, Mary McCarthy, Norman Pohdoretz, entre outros, este grupo e seus debates intelectuais desempenharam um papel preponderante na cultura americana da segunda metade do século XX21. A revista política e literária The Partisan Review foi um dos espaços principais de reunião e debate da cultura e política americana, em especial no pós-guerra. Fundada na cidade de Nova York

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PATELL & WATERMAN, Op. Cit. BLOOM, Alexander. Prodigal sons: the New York intellectuals and their world. Londres: Oxford University Press, 1986; JUMONVILLE, Neil. Critical crossing: the New York intellectuals in postwar America. Berkeley: University of California Press, 1991; WALD, Alan. The New York intellectuals: the rise and decline of the anti-Stalinist left from the 1930s to the 1980s. Chape Hill: University of North Carolina Press, 1987. COONEY, Terry. The rise of the New York Intellectuals: Partisan Review and its circle. Madison: University of Wisconsin Press, 1986. 21

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por Wiliam Philips, Philip Rahv e Sender Garlin em 1934, como uma alternativa antistalinista ao periódico New Masses (1926-1948) do Partido Comunista Americano, tornou-se uma das principais vozes de ideias de esquerda no país, e, no campo artístico, um dos bastiões da estética modernista. Durante os anos 1940 até meados dos anos 1950 a The Partisan Review centralizou os debates sobre cultura nos Estados Unidos. Neste período, sendo uma defensora ferrenha do expressionismo abstrato de Jackson Pollock e das realizações do modernismo literário, em especial na figura do crítico de arte Clement Greenberg, bem como do ideário de uma esquerda democrática que posteriormente seria definida como a “Old Left”. Nesta época de predominância, teve como colaboradores frequentes George Orwell, Hannah Arendt, Lionel Trilling, Doris Lessing, Philip Roth, Susan Sontag, entre outros. A posição da Partisan Review, porém, observou um declínio a partir do final dos anos 1950 devido a disputas internas do grupo intelectual que servia de base para as colaborações à revista, e pelo surgimento de novos atores políticos e artísticos nos anos 1960. Ainda nos anos cinquenta, dois periódicos fragmentaram a base de apoio intelectual da Partisan Review: a fundação da Dissent (1954) e a consolidação da Commentary (1945). A primeira, um projeto de cunho radical fundado por Irving Howe e outros intelectuais nova-iorquinos, assumia um distanciamento do “conformismo” da vida intelectual americana; a segunda, fundada pelo Comitê Judaico-Americano, assumia uma posição mais conservadora e ligada prioritariamente para assuntos políticos. A essa fragmentação no campo dos intelectuais nova-iorquinos, juntaram-se as transformações e confrontos dos anos 1960. A emergência da New Left e suas bandeiras radicais, ligadas a movimentos minoritários e demandas da juventude dos anos sessenta, a crítica à tradição literária e aos modelos do modernismo, e o boom das revistas alternativas e independentes reconfiguraram a posição da Partisan Review e seus colaboradores: de arautos da vanguarda para defensores da velha tradição. A sintomática compra da revista pela Rutgers University em 1963 não foi apenas um negócio de impacto no meio literário americano, mas também um indício dessa redefinição do campo literário, muito embora alguns textos fundamentais de Susan Sontag sobre as transformações programáticas necessárias para a cultura do período tenham sido publicados ainda na Partisan Review. A relação conflituosa desse grupo de intelectuais, cujas opiniões representavam ainda um grande peso no âmbito cultural, em conjunto com as transformações da arena política e estética que constituem a emergência da contracultura, fazem parte fundamental do universo de debates que delineamos aqui: os intelectuais radicais nova-iorquinos dos anos quarenta, compuseram, durante os anos sessenta, a principal linha de defesa modernista, que seria enfrentada pela contracultura e os 12

ensaios sobre a crise da modernidade. Nesse sentido, é necessário destacar que a recepção crítica aos escritores beats, referências importantes para a contracultura dos anos 1960, já haviam sido duras: Norman Podhoretz, em sua crítica ao livro de Jack Kerouac, definira os escritores beats e seus leitores como "not-knowing-bohemians” – boêmios sem conteúdo, sem capacidades literárias – e Irving Howe, virulento crítico das práticas da New Left, estendeu seu julgamento negativo à “nova sensibilidade” representada pelos escritores surgidos nos anos sessenta22. Acompanhando a biografia de Irving Howe, talvez o mais combativo intelectual novaiorquino no período, é possível entender a ruptura e transformação tanto dentro do grupo quanto no campo de esquerda. O conflito com a New Left nos congressos de esquerda radicalizaram a oposição de Howe com as manifestações artísticas que estavam ligadas ao movimento antiguerra e contracultural. Por outro lado, a trajetória de muitos de seus contemporâneos, em especial Norman Pohdoretz e o grupo ligado à Commentary, apresentava uma crescente transformação da esquerda liberal dos anos 1950, desiludida com os rumos das mobilizações políticas de massa, em um movimento político-cultural que seria chamado nas décadas seguintes de neo-conservador. O próprio Howe, sugere, em um artigo publicado na New York Review of Books sobre uma antologia de ensaios da Partisan Review lançado em 1968, que a crise da revista estaria ligada a uma crise mais geral da cultura americana, sobretudo no campo estético e político. Para Howe, um dos problemas enfrentados pelo periódico e sua relação era a conversão de seus referencias estéticos de vanguarda em parte do establishment da cultura americana, da desilusão de esquerda com as revelações das atrocidades perpetradas no mundo soviético pós-Stalin e de como a revista deixou de ser uma espécie de guia da cultura de vanguarda. O universo da contracultura encontrou também em Nova York um terreno fértil, embora o coração do Verão do Amor de 1968 estar espacialmente localizado nas esquinas das avenidas Height com Ashbury em São Francisco, e na década anterior os personagens de On the Road (1959), de Jack Kerouac, virarem as costas para a cidade de Nova York rumo ao Oeste. A tradição de movimentos de vanguarda e espaços de exposição, a posição da cidade no universo literário americano e as cenas já estabelecidas de círculos literários, clubes de jazz e cantores folk da região do Village formavam um cenários propício para as mais diversas manifestações. A popularização de formas mais acessíveis de publicação, em especial a tecnologia do mimeógrafo, possibilitou a criação de um grande número de revistas literárias alternativas, jornais independentes, panfletos subversivos e publicações de coletivos de arte e literatura. 22

Para um panorama dos debates da Partisan Review e uma coletânea desses textos ver JUMOVILLE, Neil (ed). The New York Intellectuals Reader. Nova York: Routledge, 2007

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Um levantamento sobre a chamada “Revolução do Mimeógrafo”, realizado por Steve Clay e Rodney Philips, indica que os anos de 1966 e 1967 foram o ponto máximo de publicações de novas revistas literárias, em crescimento desde os anos finais da década de 1950. Revistas literárias alternativas como Evergreen Review, Kulchur e Fiction publicaram novos autores e contribuições de ensaístas estabelecidos, literatura experimental e crítica literária, e contaram com contribuições de autores como Allen Ginsberg, William Burroughs, Donald Barthelme e Gilbert Sorrentino. O período também consolidou a expansão da tiragem e distribuição do The Village Voice, decano dos periódicos alternativos fundado por Norman Mailer, Ed Fancher, Dan Wolf e John Wilcock em 1955 e que, no período, contava com colaboradores como o cineasta experimental Jonas Mekas, que assinava um coluna de cinema. A imprensa underground, articulada nacionalmente e compartilhando materiais pelo Underground Press Syndicate e pelo Liberation News Service, também tem seu período máximo de expansão e tem entre seus principais representantes os jornais nova-iorquinos East Village Other, Other Scenes, New York Free Press, RAT Subterranean News, New York Ace, entre outros. As pequenas revistas literárias avant-garde, como C, 0 to 9, Mother, Some/Thing, Fuck You, Aion, entre outras, embora de tiragem pequenas e caseiras, com circulação resumida aos círculos artísticos do sul da ilha de Manhattan, tinham um impacto considerável no universo de publicações norte-americano. 23 O impacto causado por estes novos espaços de publicação e propostas experimentais não deixou de ser sentido nas revistas estabelecidas. A criação de revistas literárias de pequena tiragem e linha editorial atenta ao debate sobre as vanguardas foi realizada também em meios editoriais estabelecidos como a The Noble Savage, editada por Saul Bellow, e a Location, fundada por Harold Rosenberg e editada por Donald Barthelme. A circulação de autores entre as revistas alternativas e as revistas estabelecidas se dava de forma mais fluida que os perfis editorias indicam. Podemos citar o caso de William Burroughs, que publica tanto na revista de poesia experimental Fuck You! - A Magazine for the Arts, quanto na gigante da comunicação Time, e ainda no início dos anos 1970, é contratado para ministrar oficinas de escrita criativa no City College of New York; ou a trajetória editorial de Donald Barthelme, jovem editor de um periódico literário no Texas que se instala em Nova York para um trabalho editorial na efêmera revista de arte e literatura Location, que atinge fama literária com sua literatura experimetal e como colaborador frequente da The New Yorker, convidado para o cargo de professor de escrita criativa no City College of New York, e, por fim,

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CLAY, Steven; PHILLIPS, Rodney. A Secret Location on the Lower East Side: Adventures in Writing, 1960-1980. Nova York: New York Public Library/Granary Books, 1998. McMILLIAN, John. Smoking Typewriters: The Sixties Undergound Press and the Rise of Alternative Media in America. Oxford/New York: Oxford University Press, 2011.

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fundador uma pequena revista em papel jornal voltada para ficção experimental, a Fiction (1971). Gilbert Sorrentino, embora menos conhecido, tem uma trajetória análoga a de Donald Barthelme. Nativo de uma localidade operária do Brooklyn, Sorrentino inicia sua carreira literária como poeta nos anos 1950, período em que edita a revista literária Neon. No início dos anos 1960 passa a atuar como editor de ficção e crítico na revista alternativa Kulchur, e, posteriormente, na editora Grove Press onde participa de empreitadas editoriais polêmicas. Nesse período publica seu primeiro romance, The Sky Changes (1966), e embora mantenha sua produção poética até o fim da vida, sua carreira notabiliza-se por seus romances, contos e ensaios. Suas contribuições a revistas como a The Partisan Review e a aclamação de seu romance Imaginative Qualities of Actual Things (1971), uma sátira da cena artística de vanguarda nova-iorquina, contribuem para sua contratação como professor de escrita criativa na New School for Social Development, passando por outras instituições de ensino nova-iorquinas até abandonar a cidade em 1982 e fixar residência em Stanford, onde passa a lecionar escrita criativa na universidade. A reconfiguração do campo editorial nos anos 1960 pode ser verificada também nas mudanças pelas quais passaram as linhas editorias das grandes revistas literárias do período. A decadência da Partisan Review e do Saturday Evening Post foi acompanhada por uma transformação nas linhas editoriais, sobretudo nas seções de ficção, da The New Yorker e da Esquire. A última – uma revista voltada para o público masculino fundada em 1932 por Arnold Gingrich, David A. Smart e Henry L. Jackson – passou por uma reformulação radical e assumiu a linha de frente do jornalismo literário durante o período que Harold Hayes assumiu o cargo de editor, entre 1961 e 1973. Sob o comando de Hayes, a Esquire se tornou a revista símbolo do Novo Jornalismo, um movimento que buscava novas formas para a linguagem jornalística através de um intenso diálogo com os dispositivos literários da ficção, e um dos grandes veículos de informação mais articulados com as manifestações culturais do período. É também sob a direção de Hayes que Gordon Lish assume o posto de editor de ficção da Esquire, cargo que ocupará entre 1969 e 1976, consolidando a política de divulgação de novos autores e experiências narrativas que o tornarão conhecido como Captain Fiction, alcunha que carregará como editor da consagrada Alfred Knopf. A flexibilização da linha editorial da New Yorker, por sua vez, está relacionada diretamente à atuação do editor de ficção Roger Angell, trabalhando na função desde 1956, alguns anos após William Shawn assumir a revista após a morte de Howard Ross em 1951. A importância que o periódico desempenhava no cenário a partir daí pode ser exemplificada, por exemplo, pelos romances que foram publicados originalmente de forma seriada em suas páginas, como a reportagem literária In Cold Blood (1966) de Truman Capote, demonstrando a força da revista 15

enquanto espaço privilegiado de divulgação e prestígio. A posição da New Yorker se mantém fortalecida durante os anos sessenta, que foi o auge da arrecadação da revista com anúncios publicitários, com um público em expansão e registrando uma circulação de 496 mil exemplares no ano de 1976. O impacto da transformação editorial da The New Yorker – entre outras revistas literárias do período – e sua abertura à ficção experimental dos autores dos anos 1960 pode ser aquilatada pela declaração de Kurt Vonnegut em uma entrevista realizada no ano de 1974, onde o autor reafirma o papel fundamental das revistas literárias na formação de um público leitor para a ficção experimental do período, como um “processo de aprendizado” necessário para compreender os textos, por exemplo, de Barthelme e Perelman, citando o caso específico da revista nova-iorquina:

É um processo de aprendizado, e a The New Yorker tem sido uma ótima instituição do tipo necessário. Eles tem uma audiência cativa, publicam semanalmente, e as pessoas finalmente sacam Barthelme, por exemplo, e são capazes de executar aquele tipo de coisa na cabeça e curtir. Eu penso que o mesmo serve para S.J. Perelman; eu não acho que Perelman seria apreciado se de repente suas obras completas fossem publicadas pela primeira vez. Isso não faria sentido. Um processo de aprendizado é necessário para apreciar Perelman, embora seja muito fácil fazê-lo uma vez que tenha aprendido. Sim, eu acho que os leitores estão acompanhando; isso é um problema; eu acho que escritores sempre tentaram fazer isso e falharam porque não havia audiência para o que que eles fizeram; ninguém executava a música deles. 24

A formação de um público leitor para a ficção experimental nos anos 1970 é necessária, para Vonnegut, pois a literatura é a única arte dependente da performance de seu espectador, em comparação à música e as artes plásticas. A formação de um novo leitor, capaz de acompanhar a “música” que os autores estão buscando executar, é o desafio imposto pelas vanguardas dos anos sessenta através das revistas literárias:

Uma coisa sobre a qual constumávamos falar – quando eu estava em Iowa – era o fator limitante do leitor. Nenhuma outra arte requer que a audiência seja um performer. Você tem que contar com o leitor ser um bom performer, e você poderia escrever música que ele absolutamente não poderia executar – o que no caso é um fracasso. Esses escritores que você mencionou e eu mesmo estamos ensinando uma audiência a tocar esse tipo de música na

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“It's a learning process, and The New Yorker has been a very good institution of the sort needed. They have a captive audience, and they come out every week, and people finally catch on to Barthelme, for instance, and are able to perform that sort of thing in their heads and enjoy it. I think the same is true of S. J. Perelman; I do not think that Perelman would be appreciated if suddenly his collected works were to be published now to be seen for the first time. It would be gibberish. A learning process is required to appreciate Perelman, although it's very easy to do once you learn how to do it. Yeah, I think the readers are coming along; that's a problem; I think writers have tried to do it always and have failed because there's been no audience for what they've done; nobody's performed their music”. VONNEGUT, Kurt. Conversations With Kurt Vonnegut. New York: University Press, 1988

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cabeça.25

O conjunto de transformações culturais radicais que caracterizam os anos sessenta nos Estados Unidos também pode ser explorado sob o ponto de vista da cultura literária, marcada pela emergência de novos agentes, novas práticas e em especial, na construção de uma nova sensibilidade: constituída tanto pelas experiências políticas e sociais experimentadas no período, quanto pela consolidação de um cultura impressa que engendrou novas formas de distribuição, leitura e escrita. Através do exame de três ensaios fundamentais sobre a temática, busco apresentar esse campo de debates nos ensaísmo e nas letras americanas, e examinar os termos que são compartilhados e problematizados nestes textos, que guardam em comum o diagnóstico de uma exaustão nos modelos culturais vigentes no período, a identificação de uma ruptura com a tradição e o passado imediato nas letras americanas, e a necessidade de construir uma nova relação com a forma e a experimentação narrativa e intelectual.

Donald Barthelme, 1963: “escrever após James Joyce”

“The Dead Father's head. The main thing is, his eyes are open.” (Donald Barthelme, The Dead Father, 1975)

Publicado no segundo e derradeiro número da revista nova-iorquina Location em 1964, “After Joyce” é o único ensaio programático de Barthelme nos anos 1960 – um gênero que ele praticamente só retomará em 1985, com “Not-Knowing”26 . O ensaio é publicado antes da primeira coletânea de contos do autor, Come Back, Dr. Caligari (1964), e é praticamente contemporâneo a suas primeiras contribuições à The New Yorker. A revista Location, fundada em Nova York em 1963, era um projeto do intelectual Harold Rosenberg, ligado aos círculos da intelligentsia nova-iorquina e à Partisan Review durante os anos 25

“One thing we used to talk about – when I was out in Iowa – was that the limiting factor is the reader. No other art requires the audience to be a performer. You have to count on the reader's being a good performer, and you may write music which he absolutely can't perform – in which case it's a bust. Those writers you mentioned and myself are teaching an audience how to play this kind of music in their heads.” Idem. Ibidem.

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BARTHELME, Donald. “Not-Knowing” (1985). Not-Knowing: The Essays and Interviews of Donald Barthelme. New York: Random House, 1997. pp.11-24.

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1950. Rosenberg notabilizou-se sobretudo por sua atuação como crítico de arte, na qual defendia os princípios modernistas e a experiência do abstracionismo expressionista, em que disputava espaço e ideias com Clement Greenberg, outra figura de peso no cenário intelectual do período. A linha editorial da revista seguia os gostos deste gigante intelectual do período: voltada para a literatura e as artes plásticas, apresentava obras de cunho modernista. Donald Barthelme, então jornalista, diretor de museu e editor de uma revista em Houston, cumpria as funções práticas da editoria e não tinha controle total dos conteúdos da revista, que durou apenas dois números27 . A localização deste ensaio na revista é fundamental para o entendimento de seus propósitos: no mesma edição foi publicado o ensaio “A Comment on Form and Despair”, de Saul Bellow, ao qual “After Joyce” se interpõe como uma espécie de resposta em defesa da experimentação narrativa. No decorrer da revista, um conto do próprio Barthelme, exemplificando na prática sua proposta estética, e outro conto experimental "The Clarvoyance”, de William H. Gass, são publicados; bem como as colagens de Ray Johnson, artista plástico representativo da nova cena nova-iorquina.28 Esta estratégia editorial está ligada também a um conflito crescente de Barthelme com a linha proposta pelos criadores da revista, em especial Harold Rosenberg, resumida em uma carta que Barthelme envia aos editores criticando a defesa intransigente do modernismo e de vanguardas que já haviam se tornado parte do establishment. Este conflito está exposto no programático prospecto enviado por Barthelme, editor executivo da revista, aos editores e criadores Hess e Rosenberg, defensores de um modernismo cultural tradicional29. A posição de Saul Bellow no debate deve ser destacada: o canadense naturalizado americano era uma das figuras de proa da literatura do pós-guerra, desde Dangling Man (1951) e alcançaria, ainda nos anos 1960, grandes êxitos de público e crítica, como Herzog (1964). Alguns anos antes, Bellow fundara a revista lietarária The Noble Savage, também de curta duração. Esta revista, voltada para a publicação de ficção contemporânea americana e internacional, contava com uma linha editorial ousada e algumas características marcantes: a seção “Ancestors” publicava autores eleitos para o cânone particular da Noble Savage, e as pequenas peças editoriais sobre atualidades e 27 28 29

DAUGHERTY, Tracy. Hiding Man: A Biography of Donald Barthelme. Nova York: Macmillan, 2009 Location. Volume 1, number 2. New York: Summer 1964. Harold Rosenberg, crítico de arte e colaborador de longa data da Partisan Review, tinha uma profunda relação profissional e pessoal com Willem de Kooning e o abstracionismo impressionista norte-americano. Membro dos círculos intelectuais mais influentes do país e representante dos precursores da defesa vocal da vanguarda dos anos 1940-1950, Rosenberg tinha um critério estético bem desenvolvido e fiel aos seus preceitos modernistas. Para uma discussão sobre a arte de vanguarda e suas relações com o debate aqui proposto ver HUYSSEN, Andreas. After the Great Divide. Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1986. BÜRGER, Peter. Theory of the Avant-Garde. Minneapolis: University of Minessota, 1984.

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cultura se chamavam “Arias”30. A figura de Bellow nas letras americanas era a de um escritor e homem-de-letras crítico aos rumos do mundo moderno. Sua relação de longa data com o ambiente universitário – em especial de Chicago – e sua parceria com o filósofo conservador Allan Bloom consolidariam a posição de Bellow como um “conservador” cultural nos anos 1970. Bellow abandonaria Nova York em 1962, mas, no período, estava ativo como editor e debatedor cultural na cidade. É contra essa figura de peso que Barthelme inflige seu ensaio, embora de forma discreta: posicionando seu texto na sequência de Bellow, como um contraponto, e apresentando em seguida seu conto “For I'm the Boy” como exemplo de seu projeto estético. O texto é, de certa forma, um manifesto literário de Donald Barthelme e apresenta claramente a reconstrução do campo de disputas no qual ele se coloca. Ele é também uma resposta, por um lado, aos adversários eleitos por Barthelme e descritos no texto: os realistas “defensores do Fato Soberano”, exemplificados no que o autor chama de “manifestos conservadores” de Mary McCarthy e pelos escritores que ignoram os desafios propostos pelo modernismo; e, por outro, uma crítica – na medida de um distanciamento – aos Novos Romancistas franceses e os "Terroristas”, representantes da literatura marginal da contracultura. Os antepassados eleitos para funcionarem como símbolos da ruptura são James Joyce e Gertrude Stein, e seu exemplo literário contemporâneo seria Samuel Beckett, que transformaria a exaustão da linguagem e comunicação do mundo contemporâneo em humor. A construção desses posicionamentos é sintomática do período, e as escolhas de filiação e questionamento são fundamentais para compreendermos a posição que Barthelme busca ocupar na sua apropriação da história da literatura31 . O texto de Barthelme organiza-se a partir do questionamento, mencionado no título e presente em muitos debates literários do período: quais as possibilidades da literatura após James Joyce? O ensaio constrói, a partir daí, uma defesa da experimentação formal e implica um debate sobre a função da literatura do mundo contemporâneo. Retomando um artigo de Kenneth Burke, “the Calling of the Tune”, publicado na Kenyon Review em 1939, Barthelme sugere que o julgamento da literatura experimental como desconectada do mundo prático é um erro de julgamento e uma incompreensão estética. O artigo de Kenneth Burke, um dos próceres do New Criticism e figura de proa na então 30 31

The Noble Savage. Volume 1, numbers 1-5. New York: 1962-1963. BARTHELME, Donald. After Joyce (1964) . In: Not-Knowing: The Essays and Interviews of Donald Barthelme. New York: Random House, 1997. pp.3 -10

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influente Kenyon Review, apresenta um questionamento da função da literatura experimental no mundo, debate premente durante a II Guerra Mundial. Para Burke,

A completa autonomia da arte não significaria senão sua dissociação de outros aspectos da coletividade social. A liberdade completa de desenvolver seus meios de comunicação resulta em um defeito de comunicabilidade (o dilema da obra produzida na escola de transição de Joyce e Stein). Há um ponto na qual a liberdade para o artista se transforma em um constrangimento dos ricos, já que uma das formas de liberdade é a liberdade de rendimentos. 32

Os limites da liberdade devem ser definidos pela função do artista na sociedade, como agente de comunicação. As obras da “escola de transição”, como Burke define a literatura modernista que avança os limites da experimentação, perderiam o contato com o mundo ao produzirem uma discontinuidade e dissociação. A ruptura excessiva da narrativa experimental os tornaria desertores, artistas dedicados a projetos de “outro-mundo”. Esta afirmação é feita no mesmo ano da publicação de Finnegans Wake (1939) de James Joyce. A acusação de fuga da realidade será mobilizada pelo debate crítico durante boa parte dos anos 1960 e alcançará sua culminância com a peça crítica de Gore Vidal, “The American Plastic: Matters of Fiction” (1973), um libelo destrutivo publicado na New York Review of Books contra os escritores experimentais, Barthelme entre eles, acusados de virarem às costas aos acontecimentos cotidianos e, por consequência, ao leitor. Para Barthelme, o julgamento da literatura experimental como deserção das questões da realidade, como apresentado por Burke, é um erro e será o objeto principal da sua argumentação. Baseado na citação:

quanto maior a dissociação e descontinuidade desenvolvida pelo artista em uma arte de outro-mundo que deixa as coisas de César para cuidarem de si mesmas, maior se torna a dependência artística para com um governante que irá aceitar a responsabilidade de fazer o “trabalho sujo” do mundo. 33

32

“The complete autonomy of art could but mean its dissociation from other aspects of the social collectivity. Complete freedom to develop one's means of communication ends as impairment of communicability (the dilemma of work done in the Joyce-Stein-transition school). There is a point at wich freedom for the artist becomes an embarrassment of riches, since one of the forms of this freedom is freedom for revenues.” BURKE, Kenneth. The Calling of the Tune. Kenyon Review, 1939, pp.272-282.

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“for the greater the dissociation and discontinuity developed by the artist in an otherwordly art that leaves the things of Ceasar to take care of themselves, the greater becomes the artist's dependence upon some ruler who will accept the resposability for doing the world's 'dirty work'”. BURKE, Kenneth. The Calling of the Tune. Apud BARTHELME, Id. Ibid. p.3

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Barthelme critica a posição de Burke, mas utiliza a passagem para encaminhar o argumento de que há uma transformação radical na literatura após Joyce, em especial na forma como ela é concebida em sua produção e recepção: a literatura passa a ser um objeto presente no mundo, não mais um comentário sobre o mundo. Deste modo, a literatura é vista como um ato de realidade, produzindo um mundo em si: A questão pegajosa de sobre o que é a arte e o misterioso deslocamento que acontece quando alguém diz que a arte não é sobre alguma coisa mas é alguma coisa. […] A obra literária torna-se um objeto no mundo em vez de um texto ou comentário sobre o mundo – uma transformação crucial no status que já vem ocorrendo na pintura. Com Joyce, e em menor escala Gertrude Stein, a ficção alterou seu lugar no mundo em um movimento tão radical que suas consequências estão pra ser assimiladas. .34

Essa transformação no lugar da ficção no mundo, operada sobretudo por James Joyce, é considerada por Barthelme tão radical que suas consequências devem ser ainda assimiladas. Para Barthelme, Joyce e Stein modificam o mundo ao adicionar, aos objetos preexistentes, o objeto literário, alterando a questão prioritária da interpretação literária de “o que eles dizem sobre o mundo?” para “qual a natureza desse objeto (um mundo a parte)?”. A transformação operada afeta também a relação entre obra e leitor, tomado como um agente que reconstitui a escrita por sua participação ativa. Contraposto aos exemplos do modernismo realista de Ernst Hemingway e William Faulkner, que apresentariam “comentários especializados” sobre dados da realidade e configuravam os grandes referenciais literários dos Estados Unidos até então, Joyce e Stein engendram a leitura como um projeto com a duração de uma vida, pois o livro sempre estará lá como “parte da paisagem, uma pedra ou um refrigerador”. Desta forma, o livro permanece problemático e imune à exaustão. É importante ressaltar esse uso de Barthelme da ideia de exaustão: Finnegans Wake tem a qualidade da ser inexaurível, projetando sobre o leitor a necessidade de uma leitura “eterna”, pela sua própria estrutura linguística e construção cíclica. É atribuída ao próprio Joyce a afirmação de que seu leitor ideal seria um insone. O leitor reconstitui a obra através de sua participação ativa, aproximando-se do objeto, tocando, sacudindo, aproximando-o de seu ouvido para escutar o seu rugido. É carcaterístico do objeto que ele não se declare de uma vez, em uma corrente de agradável ingenuidade. Joyce impõe a maneira na qual Finnegans Wake deve ser lido. Ele concebe a leitura como um projeto de uma vida inteira, o livro permanecendo sempre ali, como a paisagem 34

“the sticky question of what art is “about” and the mysterious shift that takes place as soon as one says that art is not about something but is something. […] the literary work becomes an object in the world rather than a text or commentary upon the world – a crucial change in status which was also taking place in painting. With Joyce, and to a lesser degree Gertrude Stein, fiction altered its placement in the world in a movement so radical that its consequences have yet to be assimilated”. BARTHELME, Id.Ibid. p. 3-4

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cercando a casa do leitor ou as construções delimitando o apartamento. O livro permanece problemático, inesgotável. 35

A imagem do livro como objeto é cara aos escritores do período, e a semelhança para Barthelme é destacada com um refrigerador. Esta imagem metafórica da literatura como máquina é frequente nas obras do período, representadas como produtos de instrumentos de telecomunicação ou registros gravados, como apresentadas no decorrer da tese. A transformação da relação entre o livro e o leitor, e a consciência de sua existência como objeto literário, também estão presentes na literatura de Barthelme e seus contemporâneos, que exploram as múltiplas relações possíveis entre o leitor, a obra e o autor. Barthelme reconfigura o cânone do modernismo anglo-americano em seu ensaio: E. Hemingway e W. Faulkner, rivais e gigantes literários do modernismo americano, são contrapostos a James Joyce e Gertrude Stein, cujas trajetórias periféricas se entrecruzam na Paris dos anos 1930, em um cenário europeu vanguardista. Essa escolha dos antepassados é uma das marcas dos ensaios dos anos 1960, e a base de “After Joyce” se encontra, de certa forma, na questão de como lidar com o passado literário. Mais de uma década depois, em seu romance The Dead Father (1975), Barthelme retomara a figura de um gigante adormecido, parte da paisagem e personagem das sagas, que ocupa a vida de uma cidade: tanto uma figura paterna, quanto um precursor de proporções titânicas36. Gertrude Stein, por sua vez, é objeto de uma recuperação notável por Barthelme. A obra de Stein recebera pouca atenção e for a pouco compreendida nos Estados Unidos, sendo descrita, segundo Barthelme, como “an intersting eccentric, slightly foolish, who had something to do with the career of Ernest Hemingway and bought a great many valuable pictures at extremely low prices”. A divulgação da obra de Stein ganha força nos anos 1960, com a reedição de The Making of the Americans (1912) pela Something Else Press em 1966. A editora ligada às artes de vanguarda dos anos 1960 ainda publicaria obras de arte impressa, textos de John Cage e Marshall McLuhan, e parte do material do coletivo internacional Fluxus. Ao posicioná-la em conjunto com James Joyce, o autor texano opera uma profunda revalorização da obra de Stein, que, como veremos, será 35

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“The reader reconstitutes the work by his active participation, by approaching the object, tapping it, shaking it, holding it to his ear to hear the roaring within. It is chacteristic of the object that it does not declare itself all at once, in a rush of pleasant naiveté. Joyce enforces the way in which Finnegans Wake is to be read. He conceived the reading to be a lifetime project, the book remaining always there, like the landscape surrounding the reader's home or the buildings bounding the reader's apartment. The book remains problematic, unexhausted” BARTHELME, Id.Ibid. p.4 BARTHELME, Donald. The Dead Father. Nova York: Farrar Stroux, 1975.

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fundamental em sua poética. Barthelme realiza, assim, uma reorganização do legado literário recebido pelos anos sessenta,distanciando-se inicialmente do New Criticism, representado por Kenneth Burke e a Kenyon Review, e reorganizando o cânone modernista em torno da experimentação radical de James Joyce e Gertrude Stein em detrimento de Faulkner e Hemingway, mencionados com algum humor como “relatos de especialistas” sobre o Mississipi e a corrida. Esta eleição de ancestrais implica em um modelo a ser enfrentado e superado, levando em conta a nova natureza do objeto literário. O ensaio prossegue para uma significativa abordagem da literatura contemporânea, desafiada a lidar com essa ruptura modernista e explorar novas potencialidades literárias. Para Barthelme, a ficção após Joyce ainda não havia encontrado um caminho digno de ser considerado novo. Segundo ele: A ficção após Joyce aparenta ter devotado a si mesma à propagando, a romances de relações sociais, a contos construídos como ratoeiras para suprir, ao final, um mpequeno insight tipicamente tendo que ver com a inocência violada, ou por obras escritas como veículos para dizer “no! In thunder”. 37

A impossibilidade de emular Joyce, por um lado, e de ignorar suas contribuições fundamentais, por outro, resultam um impasse literário que Barthelme tem como objetivo examinar e apresentar saídas possíveis. A representação de uma cultura literária exaurida de função e significado será um tema recorrente no ensaísmo dos anos 1960. O impacto das novas mídias e seus efeitos na sensibilidade do indivíduo moderno transformariam, de forma radical, sua relação com a literatura e a palavra escrita. Barthelme evoca, para representar esse universo de exaustão, o testemunho de Paul Valéry:

Valéry escreveu certa vez: “As vezes eu penso que haverá espaço no futuro para uma literatura cuja natureza lembrará singularmente aquela do esporte. Vemos subtrair, das possibilidades literárias, tudo o que hoje, pela expressão direta das coisas e pelo estímulo direto da sensibilidade pelas novas mídias – filmes cinematográficos, música onipresente, etc – está se tornando inútil ou inefetivo para a arte da linguagem. Vamos subtrair toda uma categoria de assuntos – psicológicos, sociológicos, etc – que a crescente precisão das ciências tornarão difíceis de tratar livremente. Restará para as letras um domínio privativo: o da expressão simbólica e valores imaginativos

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“Fiction after Joyce seems to have devoted itself to propaganda, to novels of social relationships, to short stories constructed mousetrap-like to supply, at the finish, a tiny insight typically having to do with innocence violated, or to works written as vehicles for saying no! in thunder” BARTHELME, After Joyce, Id. Ibid. p. 6

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decorrentes da livre combinação dos elementos da linguagem. 38

Os ensaios de Mary McCarthy são escolhidos por Barthelme como contrapontos para a sua visão dos rumos da literatura americana do período. McCarthy, já consagrada como ficcionista e colaboradora frequente dos grandes periódicos literários, desempenhava para parte da crítica o papel de “Grande Dama das Letras Americanas” que será ocupado – em outro tom e estilo – por Susan Sontag nos anos 1970 e 1980. Seus dois ensaios sobre a relação entre fato e ficção, ambos publicados na Partisan Review alguns anos antes – “The Fact in Fiction” (1960) e “The Character in Fiction” (1961)39 – são definidos por Barthelme como um “manifesto conservador”, mas que revelariam contudo um dilema artístico real: o do escritor traído por formas ultrapassadas. Mary McCarthy também havia publicado resenhas de Naked Lunch (1959), de William Burroughs, e Pale Fire (1962), de Vladimir Nabokov, na revista anglo-americana Encounter e assumira um papel de defesa da literatura realista. O debate sobre os limites do realismo na ficção americana estavam em voga no período, como no ensaio “Writing American Fiction” de Philip Roth, e seguirão na pauta durante os anos 196040. Ao “manifesto conservador” de Mary McCarthy, o ensaísta contrapõe duas formas de responder aos limites da ficção: a agressão – representado por autores marginais como Burroughs, Hubert Selby Jr., Norman Mailer e Jean Genet – e o jogo, em que Samuel Beckett e, em certa medida, o Nouveau Roman francês se encaixariam. Embora seu alvo principal seja o realismo tradicionalista, é evidente, no uso dos exemplos, que Barthelme elege o aspecto lúdico, de jogo narrativo, como seu caminho ideal – e Samuel Beckett como a referência literária fundamental. Comecemos pelo modo agressivo, que Barthelme apresenta como mais numeroso. Segundo ele, os escritores que adotam esse modo narrativo buscam amplificar o caráter disruptivo da obra literária, criando o que ele define como um “Objeto Hostil”. William S. Burroughs é apresentado como o principal representante desta vertente de “terroristas”, que ameaçariam a segurança burguesa através da forma literária.

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“Valery once wrote: 'Sometimes I think that there will be place in the future for a literature the nature of which will singularly resemble that of a sport. Let us substract, from literary possibilities, everything which today, by the direct expression of things and the direct stimulation of the sensibility by new means – motion pictures, omnipresent music, etc – is being rendered useless or inefective for the art of language. Let us substract a whole category of subjects – psychological, sociological, etc. - which the growing precision of the sciences will render it difficult to treat freely. That will remais to letters a private domain: tat of symbolic expression and of imaginative values due to the free combination of the elements of language.” BARTHELME, Id.Ibid. p. 4-5

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Publicados respectivamente na The Partisan Review, 1960 & The Partisan Review, 1961. Publicado na revista Commentary, 1961.

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A referência a Burroughs é um dos pontos frequentes do debate literário sessentista, quase sempre mobilizando-o como exemplo extremo da experimentação. A publicação de Naked Lunch em 1959, seguida de grande polêmica e proibição de circulação nos Estados Unidos até 1966, faz dele um personagem polêmico e definidor de posições. Citar Burroughs ou publicar fragmentos de seus textos era uma espécie de carta de intenções de uma revista literária, que por outro lado, foram os únicos veículos de divulgação de sua obra então proibida. O método de colagem do autor sulista, explorado em Naked Lunch e aprofundado na The Nova Trilogy (1961-1964), é um dos pontos fundamentais da estética sessentista e Barthelme – que se notabilizará por colagens menos sombrias, mas igualmente inventivas – não deixa de citá-lo diretamente:

Desde que o trabalho em andamento provisoriamente chamado a mão distante erguida consiste em mensagens de wakie-talkie entre postos remotos de uma guerra interplanetária, o método “cut-up fold-in” é aqui utilizado como uma operação de decodificação. Por exemplo, o agente K9 datilografa uma página de impressões aleatórias de qualquer coisa apresentada a ele naquele momento::sons da rua, frases de jornais e revistas, objetos na sala, etc. Ele então dobra essa página ao meio e e coloca nela outra página de mensagens datilografadas e onde a mudança de um texto para o outro é feita uma marca / no local. O método pode aproximar a imediatez do walkietalkie que o escritor escreve no tempo presente... 41

O método de Burroughs oferece uma dupla via para a interpretação da literatura sessentista americana. A ideia de comunicação fragmentada, de narratividade aleatória, de impressão cotidiana. A metáfora da literatura como máquina aparece aqui na forma de uma descrição do texto como um “comunicador intergalático”, ou, nas palavras de Barthelme, “como uma antena de radio construída para receber a frequência de todos os asilos do mundo”. Assim como Joyce, Burroughs determina a forma da recepção, impede que a leitura flua naturalmente, produz estranhamento e descontinuidade O dramaturgo irlandês Samuel Beckett poderia ser enquadrado nessa definição de “artesão de objetos hostis”, mas Barthelme defende que ele, apesar de pessimista e sombrio, é um comediante puro. A escolha pelo modo cômico, pelo lúdico, transforma a obra de Beckett em um guia para a literatura após-Joyce. Beckett enfrenta a exaustão através do retorno ao mais simples, fundamental do pensamento e joga com as palavras no sentido mais básico. Beckett é eleito pelo 41

“Since work in progress tentatively titled a distant hand lifted consists of walky, talky messages between remote posts of interplanetary war the cut up and fol in method here used as a decoding operation. For example agent K9 types out a page of random impressions from whatever is presented to him at the moment::street sounds, phrases from newspapers or magazine, objects in the room Etc. He then folds this page down the middle and places on it another page of typewriter messages and where the shift from one text to another is made/marks the spot. The method can aproximate walky talky immediacy só that the writer writes in present time...” BURROUGHS, William S. apud BARTHELME, Id. Ibid. p. 8

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americano como a referência estética fundamental para a literatura após-Joyce, através de sua escolha pelo jogo, pelo humor. Entre os autores americanos Barthelme sugere uma aproximação ao romance The Red Robins, do poeta Kenneth Koch, cujos excertos foram publicados na primeira edição da Location. Koch, um poeta ligado a chamada New York School of Poets, apresenta um romance que joga com as tradições da literatura popular americana de aviação, comum após a primeira guerra, e constrói um cenário absurdo. O romance só seria publicado, contudo, em 1975, recebendo também uma adaptação para o teatro cenografada por Roy Lichtenstein. A necessidade do humor e da disposição para o jogo são reforçadas em Barthelme como uma necessidade civilizacional de sobrevivência, bem como para uma aproximação séria da literatura experimental.

O Jogo é uma das grandes possibilidades da arte; e é também, como Norman O. Brown deixa claro em seu “Life Against Death”, o princípio de Eros cuja repressão resulta total calamidade. Os praticantes sem-humor fo noveau roman produzem tais calamidades regularmente, assim como nossos nativos adoradores do Fato Soberano. Isso é o resultado da falta de seriedade. 42

O Novo Romance francês é distanciado por Barthelme em contraponto a Beckett, pela falta de humor, de jogo lúdico. Esse movimento literário parisiense terá grande impacto nos Estados Unidos, e será mobilizado como objeto e exemplo em diversas reflexões nos ensaios analisados neste estudo. O impacto da cena literária francesa na vanguarda americana tem uma longa tradição histórica, e seu capítulo sessentista incluirá, além dos escritores do Nouveau Roman – em especial Nathalie Sarraute e Alain Robbe-Grillet – o crítico Roland Barthes, e as obras teóricas de Michel Foucault e Jacques Derrida. Para Barthelme – e aí encontramos seu principal preceito estético –, “to play” é uma das grandes possibilidades da arte, e é ele que separa o projeto literário contemporâneo dos caminhos trilhados pelo Novo Romance e pelos conservadores “defensores do Fato Soberano”, do realismo saudoso de sua integridade pré-Joyce, como Mary McCarthy.. É o jogo com a forma e o humor iconoclasta que irão definir os rumos da literatura americana depois de James Joyce, ao menos na literatura metanarrativa e irônica de Donald Barthelme, até sua morte em 1989. A exaustão em Barthelme é uma condição da sociedade contemporânea, causada pela 42

Play is one of the great possibilities of art; it is also, as Norman O. Brown makes clear in his Life Against Death, the Eros principle whose repression means a total calamity. The humorless practitioners of le nouveau roman produce such calamities regularly, as do our native worshippers of the Sovereign Fact. It is the result of a lack of seriousness. BARTHELME, Id. Ibid. p. 10.

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irrupção de novas mídias e formas de percepção sensível, mas também é um efeito da história literária: as possibilidades narrativas se exaurem e devem ser superadas. A recepção da obra literária baseada em preceitos interpretativos realistas é mais uma causa da exaustão, visto que a literatura perde sua capacidade de afetar a sensibilidade, de ser um objeto disruptivo no mundo. A qualidade maior do Finnegans Wake, neste sentido, é ser um objeto literário que permanece “unexhausted”.

Susan Sontag, 1964: “o que importa agora é recuperar os sentidos”

“In place of a hermeneutics we need an erotics of art” (Susan Sontag, Against Interpretation, 1964)

Susan Sontag foi uma colaboradora ativa da Partisan Review durante os anos 1960, onde seus diálogos com Harold Rosenberg e Clement Greenberg sobre a arte, o kitsch e as novas formas de sensibilidade ocupam parte frequente das edições da revista na segunda metade da década. Sontag faz parte de uma terceira geração da revista, junto com Norman Pohdoretz – que em breve assumiria a edição da Commentary –, entre outros nascidos na década de 193043. Um exame das edições do período indica sua participação frequente crescente, em conjunto com a presença também frequente de textos de Leslie Fiedler. Ambos se notabilizarão por suas críticas programáticas em favor de uma nova sensibilidade que emergiria nos anos 1960, assumindo por vezes o papel de porta-vozes das transformações comportamentais e estéticas do período. A defesa da destruição da distinção entre alta cultura e cultura de massa, presente em "The New Mutants” (1965), de L. Fiedler, e “Notes on Camp” (1964) de S. Sontag, diferencia-os, de forma marcante, das atitudes da geração anterior com relação ao campo cultural, exemplificadas em “Masscult & Midcult” (1960), de Dwight McDonald44. Com efeito, a transformação da posição política dos membros mais antigos da Partisan Review durante o final dos anos 1960 rumo ao neoconservadorismo distancia radicalmente Sontag e Fiedler dessa geração anterior, e, no decorrer da década, a participação de ambos na Partisan Review será transferida para outras publicações como The New York Review of Books e The New

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BLOOM, Alexander. Prodigal sons: the New York intellectuals and their world. Londres: Oxford University Press, 1986; JUMONVILLE, Neil. Critical crossing: the New York intellectuals in postwar America. Berkeley: University of California Press, 1991; WALD, Alan. The New York intellectuals: the rise and decline of the anti-Stalinist left from the 1930s to the 1980s. Chape Hill: University of North Carolina Press, 1987. 44 Textos reunidos em JUMOVILLE, Neill. The New York Intellectuals Reader. New York: Taylor & Francis, 2007

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Yorker. Sua reputação como ensaísta ganha estabilidade nos anos 1970, embora, no período dos textos aqui analisados, Sontag ainda dividia suas atenções entre a ficção – The Benefactor (1963) e Death Kit (1967) - e a realização cinematográfica. “Against Interpretation”, seu ensaio mais conhecido, que dá nome à sua primeira coletânea de textos, foi publicado na Evergreen Review em 1964. Essa revista foi marcada por uma linha editorial contracultural e de tendência política radical e durou entre 1957 e 1973, abarcando (e encerrando) exatamente o período dos American High Sixties, tendo, inclusive, uma edição censurada pela justiça do Estado de Nova York em 1966 por conter material considerado subversivo. A editora do periódico era a Grove Press, casa editorial que, durante os anos 1960, publicou diversas obras consideradas proibidas e alguns dos livros polêmicos da década, como as edições americanas de Henry Miller, William S. Burroughs e D. H. Lawrence, a autobiografia de Malcolm X, e o polêmico e violento Last Exit to Brooklyn (1964), de Hubert Selby Jr.. Boa parte destes projetos teve o envolvimento de Gilbert Sorrentino, poeta, ficcionista e ex-editor das revistas alternativas Kulchur e Neon, cujas contribuições literárias ao chamado pós-modernismo serão analisadas nesta tese45 . Organizado em 10 seções numeradas, “Against Interpretation” é uma reflexão sobre os limites da interpretação e uma defesa da experiência como critério básico de contato com a obra de arte. O caráter programático, com um tom de manifesto cultural, talvez tenha definido sua publicação na Evergreen, de perfil mais radical. O texto é publicado no mesmo ano que "Notes on Camp”, sua primeira contribuição de fôlego para a Partisan Review, que se dedica a um exame mais formal de produtos da cultura de massa que poderiam ser considerados dotados de um valor estético específico, o camp. O ensaio da Evergreen pode ser visto como uma reflexão radical e ampliada ao campo cultural de um modo mais geral, mantendo um diálogo com o texto da Partisan. Ambos os textos dialogam especialmente com os ensaios do crítico de arte Clement Greenberg, que defendia, desde os anos 1940, a valorização da forma em detrimento da análise do conteúdo nas artes plásticas. Sontag amplifica o escopo desse preceito para as artes, incluindo a literatura e o cinema em especial. É interessante ressaltar que, enquanto Barthelme está profundamente ligado no período a Harold Rosenberg, a autora tem seus laços mais evidentes com Greenberg. Os dois grandes críticos de arte da Partisan Review estavam rompidos após décadas de divergências teóricas e estéticas, mas 45

Clay, Steven and Rodney Phillips. A Secret Location on the Lower East Side: Adventures in Writing, 1960-1980. New York: New York Public Library/Granary Books, 1998.

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dedicavam-se a um campo comum de defesa do expressionismo abstrato de Willem de Kooning, referência constante nos círculos artísticos e culturais da Nova York do início dos anos 1960, citado por Barthelme e utilizado como epígrafe por Sontag46 . Susan Sontag contrói seu ensaio sugerindo um contraponto histórico de longa duração entre experiência e teoria. Para Sontag, o princípio histórico da experiência artística é encantatório, mágico, como instrumento ritual na pré-história, como documentada nas cavernas de Lascaux. A primeira teoria da arte surge com a mímesis grega, da arte como imitação da natureza, fato definidor do valor da arte a partir de então. A posição de Sontag, durante o texto, argumenta uma exaustão de sentido na teorização e interpretação da arte, e defende a experiência mágica de apreensão da arte, como um retorno à pré-história. Observando os termos em destaque no texto original – experience, theory, value –, é possível identificar o universo de debates no qual Sontag busca se inserir: o ensaio assume uma posição forte, de que o realismo e a teoria mimética devem ser derrubados por uma nova sensibilidade, ou uma nova forma de relação com a arte, marcada pela valorização da forma, do vanguardismo e da experiência sensorial e emocional das obras. A mímesis grega é apresentada por Sontag a partir de um diálogo imaginado entre Platão e Aristóteles, e a cultura ocidental segue limitada aos critérios definidos pela tradição clássica. A reorganização do passado, em Sontag, é muito mais radical do que a operada por Barthelme. Para a autora, é toda a tradição ocidental que deve ser posta em questão, da mímesis e desvalorização da forma em Platão e Aristóteles aos projetos de hermenêutica violenta de Freud e Marx47. A crítica de Sontag à tradição ocidental de interpretação da arte não tem por finalidade, contudo, empreender uma viagem de volta à Lascaux e sua arte puramente encantatória. Sontag explicita a impossibilidade de se recuperar o estado de inocência que teria existido antes de toda a teoria, a inescapável necessidade racional de compreender a arte, visto que a mesma perdeu sua eficácia como ato de realidade. Sontag defende, portanto, a obrigação de derrubar de toda e qualquer defesa ou justificativa da arte, vistas como inúteis para a necessidade ou a prática da arte nos dias de hoje.

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SONTAG, Susan. “Against interpretation” (1964). In: JUMOVILLE, Neill. The New York Intellectuals Reader. New York: Taylor & Francis, 2007. pp. 243-252. Sobre a poética de Aristóteles e a Mímesis no mundo contemporâneo ver GAZONI, Fernando Maciel. A Poética de Aristóteles: tradução e comentários. Dissertação de Mestrado em Filosofia. São Paulo: USP, 2006. BLUMENBERG, Hans. “Imitação da natureza”: contribuição à pré-história do homem criador. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Mimesis e reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. pp.37-135 SCHMITT, Arbogast. “Mimesis em Aristóteles e nos comentários da Poética no Renascimento: da mudança do pensamento sobre a imitação da natureza no começo dos tempos modernos”. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Mimesis e reflexão contemporânea. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. pp.157-189.

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A autora menciona a impossibilidade de consumação dos projetos de interpretação, de natureza perene, que produziriam um círculo vicioso da busca pelo conteúdo. É justamente nesse olhar que busca pelo conteúdo, que a própria ideia de que há um conteúdo interpretável na arte se sustentaria. A destruição desse sistema de engessamento da obra de arte é o objetivo do ensaio de Sontag. Não um retorno ao encantatório, mas a emergência de uma nova sensibilidade. Sontag diferencia a interpretação de modo geral, no sentido de Nietzsche de que “tudo é interpretação”, do projeto histórico de interpretação, como uma tradução ou adaptação. A história da interpretação está cindida em dois: a interpretação no modelo antigo, que traduzia e readaptava os textos aos novos sistemas de representação, e a interpretação moderna, que escava o texto em busca de seu significado oculto.. Esses dois momentos representativos da história da construção do projeto de interpretação no mundo ocidental apresentariam as formas divergentes de interpretação antiga e interpretação moderna. A interpretação antiga seria marcada pela transposição da explicação mitológica para a explicação filosófica na Antiguidade, e a interpretação moderna estaria representada nas teorias de Marx e Freud, elaboradas no século XIX e com grande difusão durante o século XX, como sistemas de “hermenêutica radical”. Ao desqualificar o projeto ocidental de interpretação da arte, a autora realiza uma dupla comparação: primeiro entre interpretação e veneno, e depois, a capacidade de envenenamento da interpretação com a realidade industrial da modernidade. Essa visão distópica da modernidade serve de metáfora para a perda do contato sensível com a arte e com a existência. Sontag esboça, assim, um diagnóstico sobre a cultura ocidental, cujo dilema clássico é a hipertrofia do intelecto à custa da energia e da capacidade sensível. O mundo é um mundo empobrecido, destituído. A esta imagem da exaustão da cultura, deve-se abandonar as duplicatas da interpretação e voltar a experimentar mais imediatamente o que se tem: O nosso é um tempo em que o projeto de interpretação é em grande parte reacionário, asfixiante. Como os gases expelidos pelo automóvel e pela indústria pesada que empestam a atmosfera das cidades, a efusão das interpretações da arte hoje envenena nossa sensibilidade. Numa cultura cujo dilema já clássico é a hipertrofia do intelecto em detrimento da energia e da capacidade sensorial, a interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte. […] Mais do que isso. É a vingança do intelecto sobre o mundo. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo – para erguer, edificar um mundo fantasmagórico de “significados”. É transformar o mundo nesse mundo (Esse mundo! Como se houvesse algum outro). O mundo, nosso mundo, já está suficientemente exaurido, empobrecido. Chega de imitaçòes, até que

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voltemos a experimentar de maneira mais imediata aquele que temos. 48

Sontag defende a capacidade da arte de chocar, de enraivecer, sendo a interpretação uma forma de domesticá-la. A literatura é a arte mais afetada pela interpretação, segundo Sontag, e os críticos literários – tratados em um tom difamatório e irônico como medíocres – são dedicados a destituir a obra literária de sua força sensorial. O caso de Franz Kafka é exemplar, pois a obra de Kafka seria alvo de três exércitos de críticos: os que interpretam Kafka como uma alegoria social, psicológica ou religiosa. Beckett, para Sontag, também é vítima desse ataque e suas obras perdem a força formal em virtude da interpretação excessiva do conteúdo. Sontag cita seu pequeno cânone de vítimas da interpretação, que carregariam grandes “camadas incrustadas” de interpretação, que pode ser visto também como um rol de preferências selecionadas de dentro do cânone modernista: além de Kafka e Beckett, Proust, Joyce, Faulkner, Rilke, Lawrence, Gide. Para ela, a literatura é a arte cuja necessidade de libertação da hermenêutica é mais premente:

Esse convencionalismo da interpretação é mais evidente na literatura do que em qualquer outra arte. Há décadas, os críticos literários entendem como sua tarefa específica a tradução dos elementos do poema, peça, romance ou conto em alguma outra coisa. Às vezes, um escritor se sente tão pouco à vontade diante do poder original de sua arte, que introduz na própria obra – embora com um pouco de timidez, um toque do bom gosto da ironia – sua clara e explícita interpretação. 49

O valor da obra literária, no caso exemplar de Tennessee Williams e Jean Cocteau, reside menos no significado de duas histórias e mais na forma como são realizadas. Essa defesa da forma em detrimento do significado – inexistente ou aberto – é exemplificada na lógica da produção cinematográfica de Alain Resnais e Alain Robbe-Grillet, L'Année Dernière à Marienbad (1961), e nos filmes A Streetcar Named Desire (1951) de Elia Kazan, Le Sang d'un poete (1930) e Orphée

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“Today is such a time, when the project of interpretation is largely reactionary, stifling. Like the fumes of the automobile and of heavy industry which befoul the urban atmosphere, the effusion of interpretations of art today poisons our sensibilities. In a culture whose already classical dilemma is the hypertrophy of the intellect at the expense of energy and sensual capability, interpretation is the revenge of the intellect upon art.[...] Even more. It is the revenge of the intellect upon the world. To interpret is to impoverish, to deplete the world – in order to set up a shadow world of “meanings”. It is to turn the world into this world (“This world”! As if there were any other). The world, our world, is depleted, impoverished enough. Away with all duplicates of it, until we again experience more immediately what we have” SONTAG, Id.Ibid. pp. 247-248. 49 “The philistinism of interpretation is more rife in literature than in any other art. For decades now, literary critics have understood it to be their task to translate the elements of the poem or play or novel or story into something eles. Sometimes a writer will be so uneasy before the naked power of his art that he will install within the work itself – albeit with a little shyness, a touch of the good taste of irony – the clear and explicit interpretation of it”. SONTAG, Id. Ibid. p. 248

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(1950) de Jean Cocteau, Tystnaden (The Silence, 1963) de Ingmar Bergman. A interpretação desse gênero de obras experimentais é visto por Sontag como produtos de uma insatisfação com a obra, ou em uma interpretação baseada na teoria duvidosa de que uma obra de arte é composta de variáveis de conteúdo, como formas de uma violência contra a arte. O uso da arte como peça de encaixe em outros formatos de esquemas e categorias, como na crítica marxista e na psicanálise, são vistas por ela como formas de redução violentas do potencial libertador da arte50. Sontag cita exemplos de manifestações artísticas que buscam escapar do esquema interpretativo através do esforço formal. A pintura abstrata estende os limites da forma, enquanto a Pop Art, no extremo oposto, abusaria do conteúdo; a poesia francesa, por sua vez, exploraria a forma poética pelo silêncio e a magia da palavra.

A interpretação, evidentemente, nem sempre predomina. Na realidade, grande parte da arte do nosso tempo pode ser compreendida como algo motivado por uma fuga da interpretação. Para evitar a interpretação, a arte pode se tornar paródia. Ou pode se tornar abstrata. Ou (“meramente”) decorativa. Ou pode se tornar não-arte. 51

Esboçado, portanto, um diagnóstico da situação cultural dos Estados Unidos, em que a ficção e o teatro americanos assemelhavam-se à música comercial por serem – excessivamente passíveis de interpretação, para Sontag – e para Barthelme – somente a experimentação com a forma é um caminho novo e válido para a arte americana. O ensaio assume, dessa maneira, um tom de elogio ao experimentalismo, à virtuose técnica e formal, ao enfrentamento do lugar-comum da ficção realista. Falo principalmente da situação da América, é claro. A interpretação, no caso, é generalizada nas artes que possuem uma vanguarda fraca e negligenciável: ficção e teatro. A maioria dos romancistas e dramaturgos americanos na realidade é composta de jornalistas ou sociólogos e psicólogos diletantes. Eles escrevem o equivalente literário da música comercial. E é tão rudimentar, sem inspiração e estagnado o sentido daquilo que pode ser feito com a forma na ficção e no teatro que mesmo quando o conteúdo não é simplesmente informação, notícia, ainda é peculiarmente visível, mais a mão, mais exposto. Na medida em que os romances e as peças (na América), ao contrário da poesia, da pintura e da música, não refletem nenhuma preocupação interessante para com as modificações da

50

O exemplo do filme realizado em parceira entre Resnais e Robbe-Grillet, por encontrar-se na fronteira exata entre os temas que Sontag busca analisar – entre o cinema e o Novo Romance – e por ser abertamente uma obra que busca a resistência ou abertura total para a interpretação, é considerado uma contribuição fundamental para o entendimento da nova sensibilidade artística: em L'Année Dernière à Marienbad a forma é o que importa.

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“Interpretation does not, of course, always prevail. In fact, a great deal of today's art may be understood as motivated by a flight form interpretation. To avoid interpretation, art may become a parody. Or it may become abstract. Or it may become (“merely”) decorative. Or it may become non-art.” SONTAG, Id.Ibid. pp. 249-250

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forma, estas artes permanecem sujeitas ao ataque da interpretação 52.

O cinema é utilizado por Sontag como principal exemplo para suas hipóteses, por ser a “arte mais nova e mais livre” e são citados filmes do cinema europeu contemporâneo e reavaliados alguns clássicos de Hollywood. A opção pelo cinema como arte exemplar justifica-se, por um lado, pela proximidade de Sontag com o campo, visto que ela havia realizados seus primeiros filmes bem como seu primeiro romance. Por outro lado, para Sontag, o cinema é mais imune às camadas de interpretação por ser uma arte mais nova, e sobretudo, por ser considerada uma técnica – operações de câmera, escolhas de planos, execução formal de propostas – dotada de

um vocabulário de

formas. Após desconstruir os projetos de interpretação, Sontag sugere uma nova maneira de crítica: a valorização da forma como uma defesa contra uma decodificação simbólica da obra de arte, contra a ênfase excessiva do conteúdo. Uma crítica descritiva, baseada na experiência sensível da forma da arte, cujos modelos são: Style and Medium in the Motion Pictures, de Erwin Panofsky; A Conspectus of Dramatic Genres, de Northrop Frye; The Destruction of a Plastic Space, de Pierre Francastel; On Racine de Roland Barthes e seus dois ensaios sobre Robbe-Grillet; Mimesis, de Erich Auerbach, em especial o ensaio sobre a cicatriz de Ulisses; The Story-Teller: Reflections on the works of Nicolai Leskov, de Walter Benjamin; a crítica de cinema de Manny Farber; o ensaio de Dorothy Van Gent, The Dickens World: A View from Todgers; e um ensaio de Randall Jarell sobre Walt Withman. A representação de um mundo cultural exausto também está presente no ensaio de Sontag. A partir do diagnóstico do ocidente como um mundo do excesso de estímulos e de produção, da exaustão das formas e sensações, o papel da crítica seria correlato ao de afiar os sentidos, reensinar a ver, sentir, ouvir. Recuperar os sentidos perdidos na contemporaneidade seria semelhante a fazer a obra de arte produzir mais presença na realidade, tornar-se menos discurso e mais objeto:

Pense na enorme multiplicação de obras de arte disponíveis para cada um de nós, acrescentado aos conflituosos sabores, odores e visões do ambiente urbano que bombardei nossos sentidos. Nossa cultura é baseada no excesso, na superprodução; o resultado é uma constante perda de lucides em nossa experiência sensorial. Todas as condições da vida moderna – sua plenitude material, sua enorme aglomeração – conjugam para obscurecer nossas 52

“I am speaking mainly of the situation in America, of course. Interpretation runs rampant here in those arts with a feeble and negligible avant garde: fiction and the drama. Most American novelists and playwrights are really either journalists or gentlemen sociologists and psychologists. They ar writing the literary equivalent of program music. And só rudimentary, uninspired, and stagnant has been the sense of what might be done with form n fiction and drama that even when the content isn't simply information, news, it is still peculiarly visible, handier, more exposed” SONTAG, Id. Ibid. p. 250

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faculdades sensoriais […] O importante agora é recuperar nossos sentidos 53

O ensaio se encerra com uma célebre frase, isolada no último e décimo tópico, resumindo a proposta elaborada no texto: “In place of a hermeneutics we need an erotics of art”. Erótica, no caso, denota uma experimentação sensível da arte, baseada na descrição de seus atributos e efeitos, em detrimento de seu conteúdo ou significado. A ruptura com uma poética, no sentido de um código prescritivo da produção literária, e com uma hermenêutica, no sentido de uma arte baseada na construção e interpretação de conteúdos, implica em uma nova sensibilidade com relação a arte, e em especial, a literatura: a necessidade de uma experimentação formal, que aguce o estranhamento e a sensibilidade, em detrimento de um realismo sociológico ou familiar. O ensaio de Sontag, embora divergente em diversos pontos dos demais ensaios aqui apresentados, articula-se sobretudo em seu diagnóstico da exaustão da cultura e de sua defesa, comum aos escritores do período, da forma e da experimentação estética como princípios para uma literatura no mundo contemporâneo, ressaltando o papel da crítica – e a missão do crítico – na transformação da cultura.

John Barth, 1967: “seguir adiante através do labirinto”

“One way or another, no matter which theory our journey is correct, it's myself I adress; to whom I rehearse as to a stranger our history and condition, and will disclose my secret hope though I sink for it.” (John Barth, Night-Sea Journey, 1968)

O ensaio “The Literature of Exhaustion” de John Barth é fruto de um texto produzido para uma Peters Rushton Seminar Lecture da Universidade de Virginia, Charlottesville. Contudo, seu grande alcance se dá na publicação posterior na revista The Atlantic, em agosto de 1967, na qual é matéria de destaque na capa54. John Barth, então professor da New York State University Buffallo, havia publicado três romances de sucesso – End of the Road (1958), The Sot-Weed Factor (1960), Giles-Goat Boy (1966) – e preparava o lançamento de uma coletânea de contos, Lost in the Funhouse (1968), que guarda grandes relações com o tema e as reflexões deste ensaio. 53

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“Think of the sheer multiplication of works of art available to every one of us, superadded to the conflicting tastes and odors and sights of the urban environment tha bombard our senses. Ours is a culture based on excess, on overproduction; the result is a steady loss of sharpness in our sensory experience. All the conditions of modern life – its material plenitude, its sheer crowdedness – conjoin to dull our sensory faculties. […] What is important now is to recover our senses” SONTAG, Id. Ibid. p. 252. Barth, John. “The Literature of Exhaustion”. In: The Friday Book: Essays and Other Non-Fiction. Londres: The Johns Hopkins University Press, 1984.

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A coletânea é apresentada como narrativas curtas para serem lidas em diversos meios – oral, escrito e gravado – e baseadas em uma reflexão sobre as origens históricas da narrativa curta, em sua origem como contos orais e sua passagem pelas mídias escrita e estereofônica. O livro terá grande repercussão e se tornará um dos clássicos da metaliteratura norte-americana, preparando terreno para o lançamento seguinte de Barth, Chimera (1973), que ganhará o National Book Awards55. O texto é baseado em um reflexão sobre as possibilidades da literatura a partir da leitura da obra do escritor argentino Jorge Luis Borges. O impacto de Borges na cena literária americana nos anos 1960 acompanha a divulgação mundial de seus contos, publicados e selecionados por ele para uma edição francesa da La Plèiade, e o prêmio Prix International que recebera em 1961 em conjunto com Samuel Beckett. A presença de Borges nos Estados Unidos ganha fôlego, ainda, com a tradução de seus contos para o inglês, e do primeiro estudo da obra de Borges no sistema universitário americano – o livro Borges: The Labyrinth Maker (1965), de Ana Maria Barrenechena –, e de um período como professor convidado na Universidade de Columbia em 1971, posteriormente publicado em inglês como On Writing. O texto de Barth está ligado, portanto, a este momento do chamado boom da literatura latino-americana nos Estados Unidos, em especial à descoberta americana de Jorge Luis Borges. O ensaio de Barth trata de três assuntos articulados: primeiramente as questões suscitadas pelas “intermedia arts”,ou seja, obras de arte que ficam na fronteira entre os gêneros tradicionais, em especial literatura e artes plásticas; em seguida um exame da obra de Borges; e, por fim, a ideia de uma literatura da exaustão, das possibilidades exauridas de inovação literária:

Quero discutir três coisas mais ou menos em conjunt0: primeiro, algumas velhas questões levantadas pelas novas intermedia arts; segundo, alguns aspectos do escritor argentino Jorge Luis Borges, que eu muito adimiro; terceiro, algumas preocupações profissionais pessoais, relacionados para essas outras matérias e tendo a ver com o que tenho denominado “a literatura da possibilidades exaurida” - ou, mais diretamente, “a literatura da exaustão” [...] Por “exaustão” eu não quero dizer nada tão exausto como o sujeito de decadência física, moral ou intelctual, apenas a obsolescência de certas formas ou a exaustão de determinadas possibilidades – de nenhum modo causa necessária para desespero.56 55

McCAFFERY, Larry. The Metafictional Muse: The Works of Robert Coover, Donald Barthelme, and William H. Gass. University of Pittsburgh Press, 1982 56

“I want to discuss three things more or less together: first, some old questions raised by the new intermedia arts; second, some aspects of the Argentine writer Jorge Luis Borges, whom I greatly admire; third, some professional concerns of my own, related to these other matters and having to do with what I'm calling 'the literature of exhausted possibility' — or, more chicly, 'the literature of exhaustion'. [...] By 'exhaustion' I don't mean anything so tired as the subject of physical, moral, or intellectual decadence, only the used-upness of certain forms or exhaustion of certain possibilities — by no means necessarily a cause for despair” BARTH, Id.Ibid. p. 64

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O ensaio é sugerido como uma reflexão cotidiana motivada pelo recebimento pelos correios do catálogo de um editora de arte de Nova York, a Something Else Press, especializado em intermedia arts. O recebimento deste catálogo será o gancho utilizado por Barth para problematizar os movimentos culturais do período, criticar a voga do vanguardismo e sugerir a necessidade de novos rumos para e reflexões para a literatura. O catálogo da Something Else Press apresenta uma série de obras das intermedia arts que Barth, de forma levemente irônica, descreve: a obra Ample Food for Stupid Tought, de Robert Fillou; The Paper Snake, de Ray Johnson; Anectdoted Topography of Chance, de Daniel Spoerri; e o projeto de criação de uma “New York Correspondence School of Literature”, uma referência aos círculos literários conhecidos como New York School of Poetry, que Barth debochadamente compara com a estratégia de enviar catálogos pelos correios chamando-a de “The New York DirectMail Advertising School of Literature”. Um exame do catálogo da Something Else Press permite uma visão mais clara das obras disponíveis e será realizado posteriormente na Tese57. Barth delimita uma distância entre a sua defesa da experimentação formal e a arte de vanguarda e as intermedia arts, vistas por ele mais como reflexões sobre estética em forma de trabalhos inacabados, diferententemente de obras de ficção inovadoras na prática. As vanguardas dos anos 1960 buscariam a eliminação não só da audiência tradicional, mas também da mais tradicional noção de artista, baseada em Aristóteles, como um agente consciente que alcança, com técnica e engenho, o efeito artístico desejado. Este conflito com a tradição, que julgaria inclusive o artista aristotélico como reacionário, ecoa de forma distante o libelo de Sontag contra a tradição grega da mímesis e interpretação. A nova sensibilidade do avant-garde parte de uma transformação na forma de apreensão da história da cultura ocidental:

Uma coisa conspícua, por exemplo, sobre as intermedia arts é a sua tendência (notada até pela revista Life) de eliminar não apensas a audiência tradicional - “aqueles que apreendem a arte do artista (nos 'happenings' a audiência é normalmente o 'elenco', assim como em 'ambientes', e algumas composições da nova música não são pensadas para serem tocadas) – mas também a mais trodicional noção de artista: o agente consciente aristotélico que alcança com técnica e engenho o efeito artístico, em outras palavras, um indivíduo dotado de talento incomum, que tenha além disso desenvolvido e disciplinado esse dom em virtuose. Há uma noção aristocrática na aparência 57

TAYLOR, Marvin. Playing the Field. The Downtown Scene and Cultural Production, an Introduction. In: TAYLOR, Marvin (ed.). The Downtown Book – The New York Art Scene 1974-84. New York: Princeton University Press, 2006, p. 20. Sobre a relação entre a Downtown Scene, o movimento punk e a poesia alternative no período ver ARAÚJO, Marina Correa da silva de. “Os Novos Homens e a adoração do presente : A cena punk/new wave em Nova York- 1967/1977”. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: Programa de Pós Graduação em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.

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disto, que o Ocidente democrático parece ansioso para sepultar; não apenas o autor 'onisciente' da velha ficção, mas a prórpia ideia de um artista controlador, foram condenados como politicamente reacionários, até mesmo fascista58

O autor exemplifica sua avaliação da arte de vanguarda do período lançando mão de uma comparação irônica: ele admira tanto as obras de artes plásticas da Albright-Knox Gallery quanto os malabaristas do Circo de Baltimore, ou seja, tanto o debate estético e experimental quanto a virtuose artesanal59. A defesa de Aristóteles – no caso, da ideia poética de um artista dotado de consciência de seu fazer e dos dispositivos disponíveis para tanto, e da posição do artista como um autor que racionalmente, e virtuosamente, compõe sua obra – é contraposta ao caráter “intermediário” das intermedia arts. O trocadilho de Barth denota sua avaliação crítica de uma vanguarda desprovida de rigor artístico, e a valorização da figura do autor e seus dispositivos poéticos se conjuga com sua produção literária, que explora as possibilidades formais e filosóficas da relação entre autor, leitor e literatura. A história literária seria construída também nesse encontro entre a atualização estética – visto que a arte e suas formas e técnicas vivem na história e são modificadas nela – e o fazer artístico. Neste sentido, Barth explicita sua preferência por escritores com preocupações estéticas contemporâneas, como James Joyce e Franz Kafka, e Jorge Luis Borges e Samuel Beckett, em relação a escritores “tradicionais” que seguiriam modelos do final do século XIX:

Na primeira categoria eu localizaria todos aqueles romancistas que por bem ou por mal escrevem não como se o século XX não existisse, mas como os grandes escritores dos últimos sessenta anos não tivessem existido (nota bene que nosso século já transcorreu mas de dois terços; é desanimador ver quantos dos nossos escritores seguindo Dostoiévski ou Tolstoi ou Flaubert ou Balzac, quem a questões técnicas reais me parecem ser como suceder nem mesmo Joyce ou Kafka, mas aqueles que sucederam Joyce e Kafka e

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“One conspicuous thing, for example, about the 'intermedia' arts is their tendency (noted even by Life magazine) to eliminate not only the traditional audience — 'those who apprehend the artists' art' (in 'happenings' the audience is often the 'cast', as in 'environments', and some of the new music isn't intended to be performed at all) — but also the most traditional notion of the artist: the Aristotelian conscious agent who achieves with technique and cunning the artistic effect; in other words, one endowed with uncommon talent, who has moreover developed and disciplined that endowment into virtuosity. It's an aristocratic notion on the face of it, which the democratic West seems eager to have done with; not only the 'omniscient' author of older fiction, but the very idea of the controlling artist, has been condemned as politically reactionary, even fascist” BARTH, Id.Ibid. p. 69-70 59

Para uma discussão sobre a arte de vanguarda e suas relações com o debate aqui proposto ver HUYSSEN, Andreas. After the Great Divide. Modernism, Mass Culture, Postmodernism. Bloomington e Indianapolis: Indiana University Press, 1986. BÜRGER, Peter. Theory of the Avant-Garde. Minneapolis: University of Minessota, 1984.

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estão agora no final de suas próprias carreiras)

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Assim como em Barthelme, a grande questão é como suceder os grandes modernistas do século XX, e os únicos contemporâneos que merecem ser mencionados entre eles, Jorge Luis Borges e Samuel Beckett. Segundo Barth, vivemos em uma era de soluções finais e limitações, e ambos os escritores lidam e refletem com esses limites, tecnicamente e tematicamente, como por exemplo o Finnegans Wake de Joyce faz de outra maneira. Cada um dos autores irlandeses teria conduzido a língua literária a um extremo da expressão: Joyce conduzira ao ruído, ao conjunto de todas as línguas, e Beckett ao silêncio, ao fim da palavra. Entre o silêncio e o ruído do trovão, a literatura das possibilidades exauridas deveria buscar seu caminho. Samuel Beckett constrói uma trajetória do silêncio, da mímica, e é comparado por Barth às experiências musicais de John Cage, outro artista de profundo impacto para a cena artística do período. Borges, por sua vez, antecipa as vanguardas sessentistas e utiliza-se dos limites da época para produzir arte. A participação de Borges na revista Prisma, publicada em murais e paredes, durante as “grandes décadas do experimentalismo literário” fez dele um vanguardista avant la lettre. Contudo, é sua ficção que explora os limites da cultura letrada e os utiliza para a criação. O exemplo máximo aqui é "Pierre Menard, autor de Quixote”, em que um simbolista francês produz capítulos do romance de Cervantes: Remontando às grandes décadas do experimentalismo literário ele estava associado à Prisma, uma revista muralista que publicava suas páginas nos muros e painéis; seus posteriores Labyrinths e Ficciones não somente antecipam as mais avançadas ideias do grupo da The Something Else Press – não que seja algo difícil de fazer – mas sendo também obras de arte maravilhosas, ilustram de uma forma simples a diferença entre o fato dos limites estéticos e seu uso artístico. O que advém disso é que um artista não exemplifica meramente um limite, ele o emprega. 61

A chave para a sobrevivência literária, como o jogo (ou humor) em Barthelme, está na ironia. O exemplo de Barth é superlativo: se uma Sinfonia de Beethoven ou a Catedral de Chartres fosse produzida em 1968, seria uma obra de arte ridícula; mas, ao produzir a Sinfonia de Beethoven

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“In the first category I'd locate all those novelists who for better or worse write not as if the twentieth century didn't exist, but as if the great writers of the last sixty years or so hadn't existed (nota bene that our century's more than two-thirds done; it's dismaying to see so many of our writers following Dostoevsky or Tolstoy or Flaubert or Balzac, when the real technical question seems to me to be how to succeed not even Joyce and Kafka, but those who've succeeded Joyce and Kafka and are now in the evenings of their own careers)” BARTH, Id.Ibid. p. 68 61 “Back in the great decades of literary experimentalism he was associated with Prisma, a 'muralist' magazine that published its pages on walls and billboards; his later Labyrinths and Ficciones not only anticipate the farthest-out ideas of The Something Else Press crowd — not a difficult thing to do — but being marvellous works of art as well, illustrate in a simple way the difference between the fact of aesthetic ultimacies and their artistic use. What it comes to is that an artist doesn't merely exemplify an ultimacy; he employs it”. BARTH, Id.Ibid. p. 71

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e a Catedral de Chartres em 1968 com uma intenção irônica, como um comentário irônico ao estado da cultura, o efeito artístico seria alcançado. Essa defesa da ironia como modo de relação com a cultura e a arte, baseada numa autoconsciência do gênero, pode ser definido como o projeto estético de Barth. O projeto de Borges é portanto um guia para o enfrentamento da questão da exaustão de possibilidades da literatura contemporânea: Borges escreve uma obra literária original e destacada, cujo tema implícito é a dificuldade ou a não-necessidade, de escrever uma oba literária original. Para Barth, o escritor argentino realiza uma vitória artística ao confrontar um beco sem saída intelectual e utilizar isso a seu favor para produzir um novo trabalho humano. A obra de Borges ilustra a possibilidade de um artista paradoxalmente transformar os limites do nosso tempo em material e meios para sua obra, paradoxalmente, pois ele transcende o que parece ser sua refutação.

Contudo uma coisa importa à observar é que Borges não atribui o Quixote a si mesmo, nem recompõe ele como Pierre Menard; no lugar disso, ele escreve uma notável e original obra de literatura, cujo tema implícito é a dificuldade, talvez a falta de necessidade, de escrever obras de literatura originais. Sua vitória artística, se preferir, é que ele confronta um beco-semsaída intelectual e emprega-o contra ele mesmo para realizar uma nova obra humana. 62

O diagnóstico da época é parte fundamental na reflexão de Barth, que vê nos questionamentos sobre o fim do romance, da literatura ou da cultura escrita – recorrentes no período e defendidos por figuras como Leslie Fiedler e Marshall McLuhan – um ambiente apocalíptico que deve ser enfrentado por qualquer escritor, e que de fato o é em casos como o de Borges e Nabokov em Pale Fire (1962), ou do próprio Barth: descritos por ele como “romances que imitam a forma do romance, por um autor que imita o papel de um autor”. Como resposta a esse momento apocalíptico, Barth realiza uma defesa da imitação como dispositivo literário. O romance como gênero teria começado com imitações – Quixote imitando Amadis de Gaul, Cervantes fingindo ser Cid Hamete Benengeli, Fielding parodiando Richardson – e teria uma longa tradição artística, inclusive nas vanguardas europeias do século XX. A imitação como forma literária é baseada em uma forma de apropriação específica da história literária e articula-se ainda a uma apreensão da experiência histórica do período, com seu ar apocalíptico e sua sensação de exaustão. 62

“But the important thing to observe is that Borges doesn't attribute the Quixote to himself, much less re-compose it like Pierre Menard; instead, he writes a remarkable and original work of literature, the implicit theme of which is the difficulty, perhaps the unnecessity, of writing original works of literature. His artistic victory, if you like, is that he confronts an intellectual dead end and employs it against itself to accomplish new human work”. BARTH, Id.Ibid. p. 73

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A aproximação de Borges com a história literária é destacada por Barth, em comparação a Beckett e Nabokov, por ser atenta às impossibilidades de produzir uma literatura original, visto que a literatura já tem sido feita a muitos séculos e exauriu a possibilidade de novidades. A história intelectual e literária, para Barth, são barrocas e resultam na exaustão contemporânea da novidade. Essa aproximação com a história literária, defendida por Barth em sua leitura de Borges, ressalta que todo escritor define os seus próprios precursores. A "Biblioteca de Babel” de Borges é evocada por Barth como a imagem pertinente para a literatura da exaustão. A biblioteca, infinita por suas combinações, tem sem seu catálogo todas as possibilidades, e neste sentido, possibilidades ainda impensadas. A imagem da biblioteca se articula à imagem de um labirinto, outra imagem cara a Borges. Barth evoca o labirinto, recuperando o mito de Teseu, e apresenta sua hipótese de projeto artístico e moral em face da literatura da exaustão. Um labirinto deve ter todas as suas possibilidades exauridas, para encontrar o caminho correto:

Um labirinto, afinal, é um lugar no qual, idealmente, todas as possibilidades de escolha (ou direção, neste caso) estão incorporadas, e – salvo licença especial de Teseu – deve ser exaurido antes de que alguém alcance o cerne. Onde, lembre-se, o Minotauro aguarda com duas possibilidades finais: derrota e morte, ou vitória e liberdade. Agora, de fato, o legendário Teseu é não-Barroca no sentido do espírito Borgeano, e ilustra uma moralidade artística positiva na literatura da exaustão. 63.

O virtuoso, aquele dotado de capacidade artística e reflexão estética, é o modelo capaz de enfrentar a realidade barroca e a literatura barroca. O projeto estético de John Barth, contudo, não sugere que essa realidade de exaustão deva ser revertida – seria impossível –, mas que fosse sempre lembrada sua existência ou possibilidade, reconhecida como condição existencial e utilizada para a realização de uma obra literária original. É o remanescente eleito, o virtuoso, o herói como Teseu, que, confrontado pela realidade barroca, história barroca e o estado barroco da arte, não precisa ensaiar suas possibilidades à exaustão, assim como Borges não necessita efetivamente escrever a Enciclopédia de Tlön ou os livros na Biblioteca de Babel. Ele precisa apenas estar ciente de suas existências ou possibilidades, reconhecê-las, e com o auxílio de dons muito especiais – tão extraordinários quanto a santidade ou heroísmo e improváveis de ser encontrados na The New York Correspondence School of Literature – seguir

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“A labyrinth, after all, is a place in which, ideally, all the possibilities of choice (of direction, in this case) are embodied, and — barring special dispensation like Theseus's — must be exhausted before one reaches the heart. Where, mind, the Minotaur waits with two final possibilities: defeat and death, or victory and freedom. Now, in fact, the legendary Theseus is non-Baroque in the Borgesian spirit, and illustrates a positive artistic morality in the literature of exhaustion.” BARTH, Id.Ibid. p. 74-75

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adiante através do labirinto para a realização de sua obra. 64

Os ensaios aqui expostos, embora diversos em abordagens e objetos, compartilham de alguns temas comuns, cuja análise torna possível reconstituir um campo de debates e de circulação de ideias sobre o fazer literário, o estado da cultura contemporânea e a experiência histórica sessentista. O diagnóstico comum de uma exaustão das formas de representação da cultura americana e de uma ruptura com o passado histórico do século XX conduz os autores do período a diversos caminhos de análise: Barthelme defende o humor como modo de ação na cultura contemporânea, Sontag na emergência de uma nova sensibilidade, Barth no reconhecimento irônico das impossibilidades. Todos eles, contudo, dedicam-se a analisar esta exaustão e buscar saídas estéticas e artísticas baseadas na valorização da experimentação, do rigor formal, da experiência radical.

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“[…] it's the chosen remnant, the virtuoso, the Thesean hero, who, confronted with Baroque reality, Baroque history, the Baroque state of his art, need not rehearse its possibilities to exhaustion, any more than Borges needs actually to write the Encyclopaedia of Tlön or the books in the Library of Babel. He need only be aware of their existence or possibility, acknowledge them, and with the aid of very special gifts — as extraordinary as saint- or herohood and not likely to be found in The New York Correspondence School of Literature — go straight through the maze to the accomplishment of his work.” BARTH, Id.Ibid.

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