Modesta Retórica

June 9, 2017 | Autor: Luiz Armando Bagolin | Categoria: Fine Arts, Rethoric
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MODESTA RETÓRICA

Modest Rethoric
Modeste réthorique



Resumo: Trata-se de analisar as ideias e opiniões expressas no livro
Retórica dos Pintores, de Modesto Brocos, professor da Escola Nacional de
Belas Artes do Rio de Janeiro, entre finais do século XIX e início do XX,
enfatizando-se a questão da permanência e da exclusão das doutrinas
artísticas antigas em circulação na época em que se apresentavam arruinadas
e alojadas em algum academicismo, as ruínas das academias já extintas.
Palavras-Chaves: Retórica, pintura, literatura, impressionismo, invenção,
disposição, composição, mélange óptico.
Abstract: An analysis of the ideas and opinions conveyed in the book
Retórica dos Pintores, by Modesto Brocos, a teacher at the Escola Nacional
de Belas Artes do Rio de Janeiro (National School of Fine Arts of Rio de
Janeiro) by the end of the 19th and beginning of the 20th centuries,
probing into the continuity or the rejection of stale but widespread
artistic doctrines, in a time when they were presented as worn and
scholastic, ruins of nonextant academies of old.
Key-Words: Rhetoric, painting, literature, impressionism, invention,
arrangement, composition, optical mélange

Résumé: Ce-d'analyser les idées et opinions exprimées dans le livre
rhétorique de peintres de Modesto Brocos, professeur de l'École nationale
de Beaux-Arts de Rio de Janeiro, entre la fin du xixe siècle et le début du
XX, soulignant-si la question de permanence et l'exclusion des doctrines
artistiques anciennes en circulation à l'époque qui ont été ruinées et
logés dans quelques academicisme, les ruines de académies déjà terminé.
Mots-clés: rhétorique, peinture, littérature, l'impressionnisme,
l'invention, disposition, composition, mélange optiques.




A Retórica dos Pintores[1] publicada em 1933 por Modesto Brocos, então
professor da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, não é
propriamente uma retórica no molde das antigas doutrinas produzidas no
gênero epidítico, que se estendiam às diversas formas de discurso e também
à exposição e ao louvor das artes particulares, por exemplo, da pintura.
Mesmo que tenha sido a sua redação motivada pelo achado de uma velha
retórica em alfarrábio de Roma, segundo ele depõe no prólogo (em certa
hora, o nome de Quintiliano é citado [2]), não produz o seu tratado um
arrazoado, cujas partes o articulem em posição doutrinária, ou de algum
discurso de efeito ou estilo retórico, ou que de alguma forma lhe
estabeleça para o momento em que escreve a condição de receptor
privilegiado de alguma jurisprudência discursiva supérstite em relação a
instituições retóricas que lhe sejam precedentes. Compõe-se, antes, como um
manual – a exemplo de outros que circularam na Academia Imperial (e Escola
Nacional) de Belas Artes do Rio de Janeiro – sobre a execução da pintura
com exemplos recolhidos em algumas preceptivas nos restos dos restos
daquela academia e de outras operantes ainda no início do século XX, assim
como nos das ruínas daquelas doutrinas mencionadas, seguidas de excertos de
óptica e de teorias das cores, impressionistas e pós-impressionistas. Mas
segue genericamente, quanto à retórica, algum compêndio, embora não
mencione o título desta obra, nem o seu autor.
Modesta, a retórica de Modesto é apresentada anacronicamente como uma "arte
estética pelos velhos retores" [3], uma vez que acolhe para o seu discurso
posições, às vezes, de viço kantiano, outras, hegeliano, incompatíveis
entre si e também com as doutrinas antigas para as artes, numa mistura de
gêneros discursivos que, ecléticos, assimilam também partes de filosofias
ativas desde o XVIII, assim como as divisões da arte retórica – ou quase
isso, pois ali estas aparecem apenas como posições esfiapadas. Enumeram-se
no primeiro capítulo de seu livro a tópica "invenção"; depois, a
"disposição" e as demais tópicas "elocução", "pronunciação" e "fundo".
Mobilizadas para uma "retórica do pintor", pois adequadas a descobrir os
meios de persuasão aptos para qualquer assunto, conforme o douto
Aristóteles, estas partes são adaptáveis e, ao mesmo tempo, concorrentes de
uma retórica que também sirva à arte literária, segundo o autor, pois tanto
o "pensamento", ou seja, "sua forma interior de concepção", como "sua forma
sensível de expressão realizada pelos personagens e objetos que entram na
composição"[4] podem expressar-se simultaneamente pelo desenho, caso se
trate de pintura, e, pela palavra, se for obra literária. "Pensamento" e
"forma" contemplam os pares de termos "invenção" e "pronunciação", à medida
que o primeiro corresponde à ideia representada no quadro e o segundo, à
maneira como as figuras estão bem desenhadas e proporcionadas dentro dele.
A "disposição" é relativa à composição e refere o arranjo dos personagens e
figuras na cena pintada. A "elocução" diz respeito, no discurso de Brocos,
à execução da pintura, visível na fatura, na pincelada e no colorido.
Falaremos mais dela adiante, porquanto é o tema para o qual parece se
encaminhar principalmente o livro.
A composição aconselhável é aquela que compreende as regras sobre o que se
deve fazer, assim como sobre o que se deve evitar para alcançar a perfeição
da obra. Consoante ainda à imitação aristotélica, essa composição admite "o
estudo do real" a partir da observação do modelo vivo para a fixação de
"debuxos" na memória do estudante, consequentemente, a utilização daquilo
que nesta se gravou a posteriori para composições, sem o auxílio do modelo
referido. Mas, por tratar-se de um manual que a tudo pragmatiza, dividem-se
hierarquicamente as regras compositivas em "permanentes", "variáveis" e
"arbitrárias" [5], segundo Brocos. As primeiras apresentam-se como efeitos
causados – e não causadores – pela "natureza da obra" ou por sua "unidade
de concepção", algo talvez remissivo à universalidade da imitação poética
presente naquelas preceptivas referidas. As segundas derivam de
"circunstâncias passageiras", modismos que generalizam os "ismos" que
preenchem os discursos e práticas de finais do século XIX e início do XX
como "naturalismo", "realismo", "futurismo", "pré-rafaelismo",
"impressionismo"[6], citados pelo autor: a ordenação destes de forma não
cronológica, demonstra a pouca importância que Brocos lhes dá, conferindo
simultaneamente a essas "variáveis" a condição de estilemas, ou, ao seu
conjunto, a de "modernismo", que o conhecimento da pintura na imitação
aristotelizante do universal, tanto quanto das coisas singulares, também
das efêmeras e passageiras, torna regra aplicável quando da eleição feita
pelo pintor, se for esse o caso, porquanto os operam como meros efeitos no
ato de compor a pintura.
Por último, o autor expõe as "regras arbitrárias", pois, caprichosas, são
remissivas não ao gênero baixo de Tiepolo, Piranesi, Goya, muitos outros,
mas ao temperamento – diga-se, à vida subjetiva – de algum artista ou
escritor, que se torna, por isso, exemplo a ser imitado por seguidores. As
regras, contudo, somente ajudam a praticar o que as mesmas preceituam, mas
não fazem o artista, uma vez que, mantendo-se o paralelismo entre as artes,
o domínio das regras gramaticais também não produz o literato, cabendo à
imaginação criadora, dada por graça pelo Divino, a tarefa de moldá-lo.
Considerado igualmente um discurso, a pintura pode ser analisada, segundo
Brocos, seja pelos fundi, os assuntos, seja pela sua forma. Objeta o autor,
no entanto, que a pintura, a exemplo do discurso oratório, sirva para
instruir, agradar e comover, sendo capaz aquela apenas de agradar e
comover[7], pois da mesma forma que não se pode produzir o artista tão-
somente pela instrução, assim também não é possível a utilização da arte
para aprender qualquer assunto: pois a verdadeira arte eleva, a fundo, como
por oximoro, os sentimentos. Porém, objetando novamente, faz da instrução
uma exceção quando do uso da gravura química – leia-se a água-forte, na
qual foi artista exímio –, porquanto a gravura serve para as ilustrações de
livros enxameados por suas figuras.
Pela invenção, primeira parte da retórica, se acha o assunto pela escolha
de muitos exemplos, pois somente a partir de muitos esboços pode-se
determinar aquilo que será posto sob a luz da meditação, da reflexão e do
sentimento, antes de sua transposição final para o plano do quadro. Não
havendo necessidade de ser propriamente nova a ideia, mas sim de apresentá-
la "com novidade", para o pintor, o esforço é servir-se de um repertório
limitado de formas determinadas, embora não originais, para a sua
apresentação num modo ainda indeterminado, ou através de algo "que não
traga à memória nenhum quadro já visto"[8]. Para Brocos, a inspiração não é
senão a excitação e a ativação da imaginação; porém, indolente, deve ser
imediatamente exposta a matérias de conteúdo universal ilustradas
graficamente: a Bíblia de Snord, de Gustave Doré ou de Tissot[9], assim
como à representação da vida real, admitindo-se como certo, porquanto ainda
operante na imitação aristotélica, continuarem as paixões humanas, passados
os tempos, sempre as mesmas. A disposição ordena os planos da composição,
desde os primeiros aos últimos, de modo a amplificar o interesse, conquanto
não se perca a unidade do conjunto. Para o pintor, assim como para o
escritor, os personagens não devem ser espalhados a esmo, mas, ao
contrário, devem estar claramente dispostos, para que o pensamento ou o
sentido da representação também seja claro. Observador agudo, o pintor
contará também com o conhecimento fisionômico, pelo que repropõe Brocos a
tópica quanto à correlação entre os movimentos do corpo e as paixões da
alma disseminada desde o método de Charles Le Brun. Entretanto, reconhece o
autor que resultará em pouca utilidade para o pintor aplicar em seu
trabalho as partes que servem aos retóricos para a composição de um
discurso escrito. Pois a pintura, em outra tópica, limita-se a representar
num instante um determinado assunto ou drama. A sua execução, portanto, faz
concernir à elocução que emula as qualidades do bom discurso, à medida que
pode expressar "com verdade o assunto", primeiramente, graças ao sentido de
unidade e harmonia; depois, pela representação dos movimentos dos
personagens, "variados" e "expressivos", e, finalmente, graças à fatura e a
aplicação das cores. Enfáticos devem ser os desenhos para e com a pintura
que se perfaz em obra, a exemplo da voz do orador, bem acentuada, e suas
respectivas variações na pronunciação, para Brocos, o homólogo do desenho.
Daí a repetição do preceito que figura desde os quatrocentos no centro
tosco-romano e em outros lugares: invenção, composição, cor, tudo mais se
subordina ao desenho que, bem feito, assegura a unidade e a compreensão do
assunto, seguindo o exemplo do que é a pronunciação para a oração "a sua
alma". Semelhantemente, o desenho é a alma da pintura, para Brocos. Afirma
o pintor: "Quanta diferença não existe entre um discurso pronunciado pelo
orador em uma praça ou em um teatro, e lido calmamente num jornal, no dia
seguinte? A pronunciação, com a qual o orador acentua seus conceitos, friza
[sic] as imagens, penetrando no coração dos ouvintes, pode comparar-se
exatamente ao desenho, que, como disse Ingres, era a probidade da
arte"[10]. Inseparável do assunto, no quadro, o desenho também ajuda a
esconder os seus defeitos, dando-lhe a sustentação necessária para a
passagem pelo crivo da crítica ou do juízo, que, no texto de Brocos, se
confundem. Faz ressoar, desta forma, um preceito circulante na academia
francesa dos séculos XVII e XVIII, ou no Idea de Giovan Pietro Bellori[11],
sobre a "correção" concernente à tópica imitação, para o desenho, pelo qual
este elege o que é bom para deixar o que é mal. Quando bem composta, bem
pintada e bem desenhada, a obra de arte permite à ideia ser, do mesmo modo,
"bem encontrada".
O "fundo", de que já se fez menção, é achado pelo espectador como efeito
resultante da boa composição desenhada e pintada, pois de natureza
moralizante, conduz por contingência positiva aquele à comoção e elevação
do sentimento. Mas, para Brocos, diferentemente das antigas preceptivas
retorizadas para as artes, o artista alcança pleno êxito quando consegue
compartilhar os seus sentimentos internos com o público por intermédio de
seus trabalhos artísticos.
Mais propícia à argumentação propalada pelo romantismo, segundo a qual os
sentimentos subjetivos podem ser expressos organicamente pela obra de arte,
a opinião de Brocos desliza neste momento, como em muitos outros, quanto ao
gênero epidítico, trazendo para as partes por ele coligidas de alguma
retórica, o expressivismo subjetivante, porém impensado nas exposições das
referidas preceptivas. O "fundo" diz respeito também à "originalidade do
assunto", e dele deve emanar a beleza. Para Brocos, três finalidades podem
constituí-la: "a arte da imitação servil da natureza", "a arte pela arte",
"a arte dos idealistas"[12]. Explicitando a sua predileção por esta última
fórmula, subdivide o autor a beleza em duas espécies: a "objetiva",
inseparável da própria obra, estátua, quadro ou poesia; a "subjetiva",
pelas sensações que as obras permitem suscitar nos espectadores. Brocos
ainda diferencia entre "o belo" e "o formoso", ambos sinônimos de beleza,
mas o primeiro conceito, segundo os "autores de retórica", "subministrado
pela razão"; o segundo, pela experiência. Discordando daqueles retores,
Brocos apoia a educação dos artistas a partir do "estudo do antigo", que
refina o gosto amplificando gradualmente o gozo à medida da sensibilidade.
Por isso, despreza os artistas "realistas" que figuram fielmente tanto "o
belo" como "o disforme" no plano da obra, bem como os "racionalistas",
porquanto inteiramente alheios à imitação do modelo natural. Mas toma o
partido daquilo que denomina de "idealistas" ou "seletistas"[13], uma vez
que operam a imitação a partir da seleção de partes com vistas à unidade do
todo. A imitação, tal como ele a propõe, é critério relativo à correção do
modelo natural mediante a seleção ou inscrição de similitudes com vistas à
construção da semelhança. Tenha-se, por exemplo, essa mesma tópica na
história narrada por Plínio, o Velho, sobre as "virgens de Crótona",
inscritas por Zêuxis durante a composição da imagem encomendada da deusa
Afrodite. O belo, para Brocos, é ao mesmo tempo "aspiração da alma" e
elevação espiritual às "coisas divinas". Auxilia-o nesta definição a
"estética" ou "ciência do belo" surgida na Alemanha que, para ele vem a
ser: "a sensação que produz em nosso eu, ou seja, no íntimo de nossa alma,
as obras da natureza, de uma parte, e as dos homens e do artista, do
outro"[14]. Entretanto, concernido muito mais à percepção da beleza na
representação plástica do que na da beleza de eventos em geral, Brocos
discorre sobre a necessidade que o artista tem, "diante do natural", de
interpretá-lo, a fim de exprimir, de modo condensado, a "grandeza da alma",
assim como o caráter dos personagens representados, e com isso, ao mesmo
tempo, o do próprio artista. Torna-a, a imitação, portanto, um procedimento
hermenêutico que antecipa a expressão; esta, por sua vez, é valorizada pela
invenção do assunto, sendo invenção e interpretação as qualidades que
melhor contribuem para o encarecimento da obra. A beleza, segundo o autor,
manifesta-se, sobretudo, a partir de duas formas: uma "física", outra,
"moral". A "beleza física", à luz provavelmente do louvor winckelmanniano,
ou de alguma súmula hegeliana, é exemplificada na arte estatuária grega,
assim como em sua arquitetura. A "beleza moral", por sua vez, tem como
exemplar a caridade budista ou o seu altruísmo, fazendo de Cristo quanto a
Buda, o seu imitador, aproximação que é possível também de se achar na
filosofia de Schopenhauer, muito disseminada no final do século XIX. Mas
tanto o pintor como o escritor, implicados nesta beleza como sentimento
"inextinguível", contam com faculdades com as quais facultam concepções e
cenas – as primeiras, abstratas e sociais; as segundas, campestres e
naturais. Para alguém que tenha dificuldade em representar alguma cena,
serve o livro de Brocos[15], tal como ele mesmo propõe, como aconselhamento
sobre o fato de uma composição complexa tão-somente proceder à sucessão de
elementos que ocorrem naquela simples. Vista como natural, a capacidade de
compor, a exemplo de falar e escrever, é desenvolvida, segundo o autor,
mediante o exercício simples da descrição em desenho ou pintura ou de
outros exercícios compositivos propostos pelo professor, embora o
verdadeiro "gênio" prescinda de conselhos. Este conceito de gênio exposto
por Brocos é o kantiano, como "disposição natural inata" que recebe a
regra, necessária à arte, da natureza, mas não precisa de quem lhe ensine,
pois é potência produtiva subjetiva.
Afasta-se, em todo o caso, do gênio como conceito exposto pelas doutrinas
aristotélicas – por exemplo, na de Charles Batteux [16] –, na qual se expõe
como aptidão eletiva e corretiva na contrafação do modelo natural. Em todo
caso, não dispensam os pintores, conselheiros que possam demonstrar-lhes os
erros: Cáceres para Villegas, muitos artistas para Querol, Pezieux para
Rodin, a quem Brocos conheceu durante a execução dos moldes para a Porta
Infernal. À saída de outra obra, Os Burgueses de Calais, não hesitou em
dirigir uma galhofa contra o célebre escultor francês: "Il frise la
caricature"[17]. Outra estratégia para excitar o ânimo e adquirir ideias,
segundo Brocos, é "ver revistas de museus, galerias, ilustrações"[18], o
que também é útil para assegurar que não se repitam as composições de
outrem. Ainda melhor seria esgotar o fundo da biblioteca com o fito de
"retemperar" o espírito e reativar as forças imaginativas. Nesse sentido,
vem em auxílio do pintor experimentado a coleção de gravuras como também de
fotografias que serve àquele como depósito de ideias capazes de fazer
operar a inspiração, ou seja, a invenção. Deve-se ainda frequentar os
mestres, não todos, mas somente aqueles que permitem que se veja o processo
que foi empregado: Giotto, Mantegna, Botticelli, Carpaccio, Velázquez, van
Dyck, Ribera, além de David e Puvis de Chavannes. Há que se evitar, no
entanto, os pintores edulcorados da escola francesa à época de Luís XV,
porquanto estes apenas seduzem os nossos sentidos. "Tirar partido do que se
vê"[19], seja um quadro ou uma fotografia, é o que se prescreve para aquele
que queira aprender pintura, devendo o mesmo estar preparado para rascunhar
rapidamente a lápis esses assuntos. O caderno de esboços do pintor como o
de notas do escritor, qual "livro que não se tem lido"[20], apresenta-se
nas homologias entre pintura e literatura, como composição inacabada
sujeita a sucessivas revisões. Como também as notas do escritor nas quais
sobrevêm outras ideias na revisão, que é crítica, prestando assim muita
utilidade ao escritor tanto como ao pintor (invertida, dessa feita, a
tópica horaciana). Em ambos os campos, a melhor instrução seria aquela que
principiaria pela obra de um mestre para que se fizesse dela, depois, uma
versão compositiva diversa. Dessa forma, o aluno procederia à descrição do
"mesmo assunto com outras ideias, outras imagens e outros sentimentos"[21].

Brocos define a arte hegelianamente como algo que se desenvolve pari passu
à religião, estando a serviço dos ideais mais altos de um povo. Consoante à
emoção, que efetua a ligação entre o espectador leitor e a obra, a arte não
tem por missão a mera representação da figura humana, mas, de modo
ampliado, a vida humana corrente em seus múltiplos e variados aspectos.
Lembremos a máxima exposta na estética de Hegel: "Nihil humani a me alienum
puto" ("nada do que é humano me pode ser alheio"). A imaginação é
responsável por alargar este campo, o campo da vida, e a inspiração a
alimenta na medida em que a impressão sobre nós acerca de algo,
particularmente quanto aos espetáculos da natureza, é intensamente vívida.
Tal vividez não concerne, contudo, no texto de Brocos, às figuras
elocutivas da clareza, retóricas, metáfora e evidência. Pois se trata de
uma evidência outra, sentida subjetivamente, avessa ao alegórico operante
nas retóricas de outrora, e disposta num único lance ou apresentada num só
golpe nas estéticas que ora a impelem a tornar-se visível.
Para Brocos, "a inspiração é filha da espontânea impressionabilidade
produzida pelos objetos que nos rodeiam"[22], sendo a arte elevação do
sentimento às coisas divinas. Apta a comunicar universalmente as ideias,
pela palavra, a arte expressa o pensamento, e pela imagem, os sentimentos
capazes de fazer partilhar presente e futuro. O homem é composto de corpo e
alma. A alma subdivide-se em "razão", "entendimento" e "inteligência", e da
"razão" advêm ideias ou pensamentos que são subministrados pelo
"entendimento" como "raciocínios"[23]. Entretanto, se o poder de conhecer
está com a razão, ideias, como propõe Brocos, são representações deste
conhecimento. Na condição de representação, a ideia não serve bem à
invenção quando provém dos assuntos que deleitam facilmente o público,
ocasião em que a razão é vulgar. Porém, quando a escolha do assunto for
incomum, elevando a razão como capacidade de conhecer coisas dignas e
notáveis, capaz será o artista assuntor de conferir ao assunto uma forma
sensível adequada, civilizando-o.
A imaginação, reflexiva, é comparada a um espelho "onde se refletem os
nossos gostos e nossas ideias"[24], sendo as mais nobres percebidas
primeiramente pelo artista. Semelhantemente à direção tomada pelas
estéticas românticas, Brocos propõe o artista como o único a estar ativo na
visionarização superior, ou como sujeito especialmente dotado, o puro do
conhecimento, em oposição ao homem vulgar. E isso em razão de sua "educação
da imaginação artística", o que supõe a reproposição do rico baú de "ideias
estéticas" presentes no artista genial da filosofia kantiana. Assim, propõe
o autor: "os gênios, tanto na arte como nas letras, são raríssimos e podem
reunir os significados de potência criadora, servindo este significado,
também, para os homens de ciência, homens de governo, militares e
inventores"[25]. O artista, contudo, deverá relacionar o mundo em que vive
em chave aristotélica, pois neste se "diz como as coisas são", bem a
propósito da história, com aquele que imagina relativo à poesia, pois
expressa como "elas deveriam ser".
Para Brocos, o "gosto", que é a contrapartida apreciativa para o "gênio",
amplifica-se proporcionalmente à instrução. Mas permanece enquanto
capacidade julgadora contingente entre a boa e a má recepção, variando de
indivíduo para indivíduo. A crítica, no entanto, demanda conhecimentos
superiores e a convivência com o ambiente artístico assim como com o
político. Em todo o caso, o melhor seria seguir o conselho de Puvis de
Chavannes, a quem o autor cita: "para julgar uma pintura é preciso ser
pintor"[26]. Resultado de grande talento e instrução, o gosto do crítico,
justo, pois impessoal, é pensado como uma espécie de antevisão ou visão
profética, cujos juízos devem ser emitidos com justeza e sabedoria.
Do ponto de vista produtivo, é necessário aos artistas o "esforço",
contanto que suas marcas não sejam depois visíveis nas obras, o que denota
uma qualidade remissiva à tópica imitação: "a arte é o resultado do
esforço, mas esse esforço ninguém o deve perceber"[27]. Em Chavannes, tido
por exemplar, a ingenuidade construída assegura o efeito de simplicidade
para toda a pintura, tornando plausível a imitação do verossímil, estando
ausentes as marcas da indústria ou esforço.
A verossimilhança, em especial, relaciona-se a uma das espécies de "verdade
do pensamento", entendido este último como a forma interior da vida
subjetiva ou do sentimento que desta sobrevém. Uma dessas verdades, a
"científica", segundo Brocos, indicia as coisas que existem, enquanto a
outra, "poética", as "coisas que nunca existiram, mas que podem existir".
No entanto, o autor, em estranheza à retórica que declara seguir, qualquer
que seja, considera extravagantes as figuras ou qualidades que os retóricos
associam à verossimilhança, sendo eles a "naturalidade', a "delicadeza", a
"energia", o "apaixonamento" [sic], a "originalidade", o "sentimento", a
"ingenuidade"[28], porquanto pouca serventia assevera que teriam à
representação plástica. Contradiz-se, assim, com o que expressara no início
de seu livro, no qual pensamento e forma correspondentes ao conceito
inteligível e à imagem sensível poderiam habitar homologamente tanto a arte
escrita quanto a plástica. Brocos admite maior restrição para a arte
plástica quanto aos pensamentos possíveis de serem por ela expressos. A
eleição destes apontaria, portanto, para a difícil, porém necessária,
construção de um elo entre o sentimento do artista, ou seja, seu pensamento
interior, e a natureza das coisas com as quais deve estar em conformidade,
posição que novamente imita, naturalizando-o, o preceito imitação. Mas não
é apenas quanto aos pensamentos que o artista, elegendo os melhores
pensamentos, diferencia-se dos não artistas. A visão, fisiologicamente
idêntica para todas as pessoas, não o é para o artista em vista da educação
do órgão visual, que deve ser iniciada desde muito cedo. Certo positivismo
grassa nesta apresentação sobre a óptica, pois acredita o autor que após os
vinte e cinco anos de idade, caso não se tenha aprimorado a visão
gradualmente desde os tempos da escola primária, "não vale mais a pena
tentar este estudo"[29].
Ver, neste caso, implica em exercícios de desenho, como mecanicismos que se
dissimulam de academias, primeiramente com o intuito de fixar a
distribuição das luzes e das sombras em objetos sólidos usuais; depois, a
observação de gessos como etapa preparatória para a "cópia do antigo", pela
qual poderá distinguir a vista as "diversas intensidades". A visão
binocular, para os físicos, produz um campo de visão elíptico, enquanto a
monocular, para o pintor, um campo de visão circular. Concorda, no entanto,
Brocos, com os tratados antigos que inferem sobre a formação da pirâmide ou
do cone visual formado a partir de um vértice que está no centro do olho de
onde saem os raios tocando o campo visível, concernido ao ditame da óptica
geométrica, invisível, no infinito. Dirigida concentricamente neste campo,
a vista só pode perceber com nitidez os objetos sob os quais se concentra o
olhar, o que na pintura se traduz pelo "golpe de vista" sobre o assunto a
ser figurado. A unidade da visão, contudo, desaparece, segundo Brocos, caso
passeie o olhar indistintamente por todo o campo, e assim também aquela da
pintura. Ao paragonar a formação da imagem visual em correspondência com a
da pintura, o autor apresenta um discurso na direção da chave modelar de
doutrina sistematizadora, embora retórico-poética, para a arte, como na que
se acha em Leon Battista Alberti do De Pictura, onde se declara, embora não
diretamente, ut pictura poesis, ut pictura visum. Em Alberti, produz-se uma
homologia entre uma teoria da visão, brevemente apresentada, que admite a
formação da referida pirâmide visual composta de três espécies de raios
visuais, os "extrínsecos", os "médios", o "cêntrico", em correspondência às
partes da pintura, interdependentes entre si, "circunscrição", "composição"
e "recepção de luzes", e, como efetuação destas, a articulação desenho,
claro-escuro e cor. Embora concernida à ordenação das superfícies, ficando
as suas demais partes subordinadas às prescrições da retórica, porquanto o
escopo da pintura é a istoria, a perspectiva de que trata o De Pictura não
a exclui, sendo o plano discursivo explicitado como "fala de pintor e não
de retor", pois justamente a tem como pressuposto de ambos os discursos, o
que é apresentado e o que o apresenta.
Destacado, como espécie de apêndice científico incorporado ao corpo do
texto, a parte que trata da visão, na retórica de Brocos, é física, pois
descreve brevemente o fenômeno visivo à luz de alguns experimentos que
demonstram a impressionabilidade do olho, possivelmente reditando a
Doutrina das Cores de Goethe, entre outras teorias. Exemplifica, por
exemplo, a impressão que se produz no fundo da retina, quando se apaga uma
luz elétrica para a qual anteriormente se olhara: vê-se aquela luz com os
olhos abertos ou fechados, rodeada de um círculo azulado, que se avermelha
enquanto aprofunda aquele azul gradualmente rodeado por um anel violáceo,
e, depois, move-se para o centro, tornando-se "violeta intenso quase
negro"[30].
O olho é um instrumento regulador, quanto ao claro-escuro, pois, ao se
fechar, regula as intensidades luminosas que inundam a retina. Operando por
ondulações, a visão é ainda expressa, a exemplo das antigas doutrinas que
descendem de Al-Hazem, a partir da figura do "raio principal que sai do
olho e vai ferir o centro do campo visual". Correspondendo este raio ao
centro da visão, ensina a física ao pintor focar o assunto principal,
deixando o que está em torno daquele centro gradativamente sem detalhes.
Menos preocupado, no entanto, com a descrição anatômica do olho, Brocos
endereça os tratados de perspectiva ao leitor, onde aquela é descrita, para
se ocupar ainda do comportamento das ondas luminosas ou dos raios. As ondas
entram pela pupila, cuja íris pode se dilatar ou contrair dosando as
quantidades de luz que entram no olho. Ao cristalino, posicionado atrás da
pupila, é conferida a função de acomodamento da visão em relação às
diferentes distâncias no campo visual. No fundo do olho, acha-se a retina
e, por dentro, o globo é preenchido por um humor vítreo e por uma tela
aracnídea ou "teias-aranha", que têm a função de diminuir a luminosidade
advinda do exterior para não impressionar demasiadamente aquela. Na
imobilidade, o cristalino produz uma visão vaga, vagamente figural, ou,
como diz Brocos, uma "visão inconsciente"; diferentemente de quando se
move, ajustando-se, concentrando-se, numa "visão normal". Como as máquinas
fotográficas – e a comparação é de todo curiosa –, o nosso olho, segundo o
autor, tem a facilidade de "pôr em foco" devido à adaptação móvel do
cristalino, a que os físicos denominam "acomodação" [31].
Esta visão que se produz por feixes de raios, contudo, não é exatamente a
de Leon Battista Alberti, onde ele a retém como dirigida à base de uma
pirâmide radiosa, se dirige a de Brocos, no entanto, a uma base cônica como
figuração do campo visual. Produzida pelas duas vistas, a visão binocular
gera uma área elipsoide com extensão de 180º, permitindo-nos uma percepção
mais verdadeira quanto à profundidade do campo. No entanto, mais útil é ao
pintor a visão monocular, pois dá às formas um aspecto mais delgado,
passando os raios visuais por detrás das mesmas. Ao entrefechar os olhos, o
pintor de olho-felino, pois como um gato que espreita, trata de modo
adequado, sob a luz intensíssima, tanto as coisas distantes como as
próximas. A irradiação luminosa dos objetos pode, assim, ser contida ou
controlada, também pelo uso do cartão recortado, a emoldurar o campo visual
a ser pintado; o cartão abranda a violência da luz, para fazer perceber
melhor os claro-escuros, e, simultaneamente, ajuda o pintor a "cortar o
quadro"[32]. A visão depende de corpos luminosos, sol, estrelas,
incandescentes, para se produzir. Sua luz, propagada por ondas, como as do
mar – porquanto física –, propaga-se também geometricamente, segundo
Brocos, para os físicos, numa trajetória retilínea que a carrega em todas
as direções, conforme propuseram os "antigos", assim citados,
genericamente, e também Al-Hazem, não citado. Distanciando-se deles, o
autor aproxima-se das ondas, que entende a partir da vibração atômica no
âmago da incandescência a excitar as moléculas que partem, também em todas
as direções, qual pedra atirada "sobre a água tranquila". Não se quebrando
nalguma praia, mas contra a retina, vemos a imagem da chama da lâmpada.
Algumas vezes, porém, a chama lança suas ondas contra o ambiente, a
"habitação", de onde algumas se refletem para o olho. Todos os corpos
refletem luz, embora não na mesma intensidade; as superfícies polidas
refletem mais, as opacas, menos. A reflexão, entretanto, altera a
tonalidade das coisas vizinhas, produzindo o verde os esverdeados, o azul
os azulados etc., como na luz que um vitral, sendo azul, filtra, inundando
todo o recinto com tom azulado. O pintor, então, aprenderá a perceber a
coisa de acordo com as intensidades de luz que pode emitir ou, disposta
para alguma refração tonal local, com a posição em que esteja situada.
Como, entre outros, em Leonardo não autógrafo, recolhido no Codex
Trivulziano, no qual a cor é pensada alterada pelo meio que se acha entre o
olho e a coisa vista. A percepção da cor obtém-se a partir de longo
exercício e de muitos estudos, assim como da prática da pintura ao ar livre
e também da feita em interiores: a delicadeza da cor deve-se ao apuro
visual em consonância com a prática e o labor. A "fineza" da vista,
conquistada tão-somente pelo pintor experiente, segundo Brocos, nos jovens
é rudeza que mistura sem critérios as cores puras, sujando-as.
Dos critérios, o critério fundamental é o reconhecimento imediato, para
quem quer ser pintor, de cinco variedades de cor ou de tonalidades: branco
misturado, pouquíssimo, ao azul, ao vermelho, ao amarelo, ao verde, além do
branco puro. Os "tons levíssimos" só serão percebidos e obtidos pelo olhar
apurado, treinado e, assim como o desenho auxilia o pintor a exercitar as
direções, as distâncias e as quantidades, a cor – entendida agora
metonimicamente como pintura – ensinará sobre as qualidades, intensidades
luminosas e tonalidades naturais. Não dispensando a emoção, o sentimento ou
a sensibilidade para a cor, que ninguém pode ensinar, Brocos apresenta a
teoria de Chevreul, secundada pelas de Alsenne, no Manual de Peintre et du
Esculpteur, com seu círculo cromático de seis cores, e de Blanc, em
Grammaire des Arts du Dessin, da estrela cromática [33]. Citando Chevreul,
o autor diz: "na natureza não há um só corpo em cuja tonalidade não se
encontre as cores fundamentais ou primárias: o amarelo, o encarnado e o
azul". Complementares das binárias que lhes são correspondentes, estas três
cores restituem, reunidas, a luz branca. Binária, por exemplo, é a cor
verde, pois resultante da mistura de amarelo e azul, intensifica-se
maximamente ao se aproximar de sua cor complementar, o vermelho. Misturadas
na palheta, binárias e complementares se anulam, "negando" a cor. Mas
esticar a cor, pô-la sobre a tela, não é tudo, pois a pintura só se fará em
vista dos contrastes simultâneos e sucessivos, circunscrevendo a referida
cor com uma auréola de sua complementar, segundo Chevreul. Eis porque
Brocos, ao repropô-lo, também repropõe tábua sinóptica de Charles Blanc,
numa estrela que, como figura, inverte dois triângulos equiláteros: um
indicando as cores primárias, e o outro, as binárias[34]. Blanc elogia
Delacroix, em elogio retraçado por Brocos, tendo aquele iluminado a cúpula
do Palácio de Luxemburgo, desprovida de luz, mediante um jogo de cores
individualmente cruas, lamas mais que cores, mas que agenciadas em
complementaridade foram capazes de produzir o mélange óptico, a mistura boa
que faz resplender a luz, ou estratégia que também seria a "base do
impressionismo"[35].
A complementaridade quanto à cor ensina ao pintor que a boa vibração se
produz com tons mais sóbrios e calmos, porque, caso se aproxime uma
primária de uma binária, perdem ambas as cores, matizadas, alguma parcela
de sua potencialidade, rebaixando uma a outra. A prova disto é o
experimento ou ensaio feito por Emile Bayard, que seria atroz hoje,
mandando uma mulher a mercearia comprar fitas de várias cores: são
escolhidas as de cores mais berrantes, e fita com espanto o pintor a fita
de "cor espantada", atroce, segundo diz Bayard[36]. Som e luz, segundo os
físicos, mantém entre si relação, pois assim como graves e agudos vibram
sobre o ouvido, também as cores sobre o órgão da visão. Pensa sobre isso
Brocos, com Euler, entendendo a cor como vibração luminosa: ut pictura
musica; mas porque opina como pintor, não considera que vibre a cor
separadamente, mas sim em interdependência ou com sobreposições de dois
tons, um mais escuro e outro mais claro, este sobre o mais escuro, ou vice-
versa, feito "com pontinhos". Por isso o mesmo Delacroix, em vez de fazer
a cor pelo pincel, a esparge a seco com brocha sobre uma camada já pintada
com o mesmo tom, a fim de obter o mélange. As misturas, contudo, não
refazem as indicadas por Helmholz, pois os pintores fazem uso de
combinações cromáticas com cores opacas, não com as do espectro, que a
tábua do alemão traça.
Entendendo as belas-artes idealisticamente como universais, principia a
pintura, para além de algum exemplo indígena e pré-histórico, com os
egípcios, segundo Brocos, que a entende ali "estacionária" na demanda
religiosa e sacerdotal. Por isso, propõe como primeiros artistas somente os
primeiros pintores da Toscana, pois estes "fundaram as artes sobre o estudo
da natureza". Elogiando os etruscos que Plínio, o Velho, elogia, não
entende Brocos que, sob efeito do epidítico, a écfrase investida no louvor
torna ainda vívidas aos nossos sentidos as pinturas "mais antigas do que
Roma"[37], como também, frescos, os nus de Helena e Atalante, perfeitos,
embora nunca vistos. Mas como emula Plínio, o frescor dessas pinturas de
Lúdio ainda vigora, graças à evidência elocutiva que o texto recolhido por
Brocos torna visível também para o leitor moderno.
A exposição da história da arte grega segue assim positivada, uma vez que é
apresentada numa sucessão de efeitos evolutivos quanto às técnicas da
pintura. Primeiramente eram imperfeitos porque pintavam apenas com uma cor,
depois, com duas; depois, com escorços e em atitudes variadas, como em
Címon etc. Não entende Brocos, no entanto, o critério histórico exposto em
Plínio, contributivo, que a tópica fortuna faz mover incessantemente, com
lances alternados, em olimpíadas, de altos e baixos, de aparições,
desaparições, revivescências. Deixando para trás a pintura anotada do
romano descrita em um de muitos seus apogeus com Pânfilo, mestre da pintura
com quatro cores, Brocos intenta descobrir algum indício dela nas ruínas de
Pompeia e Herculano, tomando-as, pompeianas, romanas, por gregas.
Seguindo a história como linha em que se enfileiram sucessivamente os
estilos, Brocos cita uma Idade Média sucedida por um Renascimento[38]
tornado possível graças ao movimento centrípeto que faz migrarem de volta
as artes das bordas europeias para a Itália e Alemanha, pois tedesco e
trasmontano, termos circulantes nos textos antigos e genericamente
designando quaisquer regiões localizadas geograficamente acima da
Lombardia, o primeiro, e depois dos Alpes, o segundo, são, por ele,
especificados nacionalmente. Como em Vasari, nas Vidas, Michelangelo é
situado no alto, e também Rafael, conquanto fossem exemplo de perfeição de
arte para as academias que vicejaram até o início do XVIII. Entretanto,
segundo o autor, faltou- lhes o conhecimento da "perspectiva aérea" ou
atmosférica, opinião que ignora outra, a intensamente pesquisada,
experimentada e comentada por Leonardo, como se lê no Manuscrito
Ashburnham, mas finalmente obtida por Velázquez nas Meninas e nas
Fiandeiras, conforme Brocos[39].
Declinante nos séculos XVII e XVIII, por ter só a luz artificial, a pintura
acadêmica de atelier, ressurge em novos termos com David, embora ainda seja
de interior de gabinete, "por advento" de Napoleão e a renovação por ele
desencadeada nas artes na França. Contra a pintura de "sala fechada",
insurgem-se, no "pleneirismo", Constable e Bonington, na Inglaterra,
Rousseau, Daubigny, Dupré, Díaz e Corot, na França[40], seguidos um pouco
depois pelos impressionistas, Manet, Monet, Courbet, que são generalizados
pelo autor, pois genérica é toda a pintura en plein air, especializando-se
somente com o "isocromatismo" da pontilhista, passo conclusivo, pois
científico, para os pintores. O pontilhismo dá à luz "um novo processo" de
pintar[41], decompondo-se os tons em duplos lado a lado, um frio e um
quente, sempre, para fazer vibrar no olho a cor. Difundido entre os
pintores modernos, o impressionismo apresenta-se em exemplos longevos na
história, segundo Brocos; por exemplo, do alto do século VI, nos mosaicos
de S. Vital em Ravena, onde as tessaras envolvendo "o peitilho branco de
Justiniano"[42] brincam nas cores grises que as esmaltam, fazendo todo o
plano da representação vibrar, com o referido peitilho cintilando. Mas
Brocos não se contenta apenas com este exemplo. Acolhe, portanto, em defesa
do novo procedimento pictórico, a definição de pontilhismo feita por
Salomon Reinach, no Apollo: "o pontilhismo é a consequência lógica da
doutrina dos impressionistas"[43]. Rivalizando-se as nações entre si, pelo
primado das artes no século XIX, e afora os esforços consideráveis feitos
na França e na Espanha, o futuro para aquelas, segundo o autor, estaria nos
Estados Unidos, contra os quais, já no desfecho do capítulo VII desta
modesta retórica, rivalizavam fortemente os europeus, por exemplo, os
franceses quanto à defesa, animal, de sua escultura animalista, sobre a
qual os norte-americanos avançaram[44]. Sobre o ensino, Brocos, técnico,
defende uma sistematização que leve os jovens de doze a quinze anos a
prepararem-se, primeiramente, nos estudos secundários e escolas
profissionais. Depois, esses jovens aprenderiam geometria descritiva,
perspectiva, anatomia, história das artes, escultura e modelo vivo, dos
dezesseis aos dezessete, na escola de belas-artes. Ao ingressar na aula de
pintura, matéria superior, o aluno teria composição e ornamento que
concluiriam com claros-escuros, atiçando as suas "faculdades
imaginativas"[45], já um pouco excitadas pelas aulas iniciais, nas quais
copiaram estátuas. Considerada indispensável para quem está começando, a
pintura decorativa, embora sem "partido de interpretação", é a preceituada,
para que este jovem não se possa desviar do bom caminho reto e, assim, a
individualidade apressadamente formada, disforme, não o acometa.
Determinados internamente por vocação, não serão todos os alunos, contudo,
dos inumeráveis que se dirigem para as escolas de belas-artes todos os
anos, os artistas ou os pensionados, desempenhando aqueles que não
desistirem as funções de professores ou de artífices em artes menores. Por
isso, um curso voltado à arte decorativa não seria sem utilidade, segundo
Brocos, que declara tê-lo comprovado nas aplicações das manufaturas de
Gobelins[46].
A pintura decorativa é, para o hispano-brasileiro, sapato e passo, pois
ajuda a prover a subsistência do artista e, ao mesmo tempo, apura o métier
no preparo do pintor para a pintura regular das belas-artes, o que é
reiterado neste livro, porque já exposto n'A Questão do Ensino das Belas-
Artes, também de sua autoria. Quanto ao ensino das regras para uma boa
composição, muito resumida é sua exortação exigindo que o personagem
central ocupe o centro do quadro, para o qual conduzem as outras linhas de
outras figuras sempre variadas. As alternâncias destas se produzem como num
teatro, ficando a cargo de sua disposição e distribuição a carga expressiva
do assunto: linhas verticais indiciando a estabilidade; horizontais, a
calma, o repouso e a melancolia que se rebatem nas posições ou figuras
oblíquas, estas no que erguem os ambientes, alegres, contra as inclinadas,
que os abaixam, tristonhas[47].
Tristoreto (corruptela de Tintoreto) é exemplo para Brocos, pois tinha por
método, usual para muitos pintores antigos, o modelar figurinhas para ajudá-
lo a compor, iluminando-as como num teatro, como em tópica muito
disseminada apresentada por Plínio, quando faz menção das proplasmatas de
Arcesilau, entre outros exemplos. Em Veronese acha-se método semelhante,
com modelagem de figurinhas de cera; em Rafael, com modelos desenhados e em
Michelangelo, com baixos-relevos, antecipando a composição definitiva. O
resto é conversa vazia, como a propalada pelos "fintores franceses"[48], do
século XVIII, porquanto o lugar comum pictura est fictura, neles, é pura
falsidade com a sua "pintura açucarada", segundo Brocos. É citado Diderot,
não pintor, que rediz o óbvio quanto à necessidade da unidade na pintura,
supondo a subordinação de suas partes ao todo, o que na época poderia
impressionar, mas já não impressiona mais. O pintor não deve confundir "seu
entusiasmo de letrado com a inspiração", porquanto para saber representar
uma cena, a erudição nas letras não servirá. Ação, gesto e movimento ajudam
a compreender e expressar o assunto, não palavras. Da poesia, o pintor não
tirará o que tiver lido, mas o que tiver visto e sobre que o tiver
pensado[49]. Repropõe, assim, a tópica atribuída a Simônides: "a pintura é
poesia muda; a poesia, pintura que fala". Quanto à distribuição da luz na
execução da pintura, Rembrandt é exemplo, pois foca sempre o grupo central,
deixando o restante na sombra que deve degradar suavemente, antes, como
numa esfera da esfera teorizada, por meias-tintas[50]. Também Carolus-Duran
é exemplo, pois reservava à maior parte das luzes, as massas de meias-
tintas, investindo em efeitos de luz secundários, rappels, que se
distribuem em apenas alguns lugares. Rubens, excelente quanto ao colorido,
estende os claros-escuros sobre a folha de papel branco, indo das sombras
às meias-tintas e deixando algumas nesgas do papel intacto, o que confirma
a referida teoria da esfera.
A distribuição da luz é ação coordenada, implicando o cuidado com os
primeiros planos para os quais são levados, muita vez, ornamentos que,
enquanto ornatos, são atributos da inventio, como em Veronese e Ticiano
encarecendo-os com ouro e prata. Espargindo-se gradativamente e em
gradações, os claros-escuros devem se descurar nas bordas e ângulos do
quadro para que a unidade se produza[51].
A natureza ensina, pois, sobre o princípio combinatório quanto às cores,
pelo que se realiza a imitação, perfeita, ainda mais quando o efeito for
imprevisto. Dá-se pela observação, por exemplo, de conchas marinhas[52], um
dos lugares do multicolorido que a palheta do pintor recolhe apreendendo as
suas combinações, ela própria signo de valor e ornato, também deleitável,
portanto. Como exemplo daqueles citados, o jovem pintor também deve eleger
entre os seus cadernos de desenhos e coleções de croquis e esboços de
quadros o mais interessante a produzir a pintura final, sua conclusão.
Fixado o assunto, a eleição recai sobre os modelos que devem ser desenhados
nus, primeiramente, vestindo-os depois, o que também é tópica para a
pintura, com as roupas convenientes, pois deve seguir o decoroso.
Amadurecida a composição, porquanto pautada pela escolha, deve o pintor
determinar as dimensões da pintura apropriadas a cada caso, a pequena ou a
grande tela. Depois, transportam-se os desenhos pelo uso de quadrículas ou
de frotagem de plumbagina ou sanguínea[53]. Mais breve, porém, é o
procedimento misto, a um só tempo desenho e pintura, que se dá pelo
decalque da cor frotando-a, a óleo, e tamponando os seus excessos. Mas não
se deve partir ao pintar, sobre a imprimadura, de cor escura verde ou de
terra assombrados. O melhor é o gris claro, que se obtém pelo esfregaço da
terra de Veneza misturada com um pouco de negro de marfim e de branco,
sobre o qual se pintará à cola, pois assim rapidamente se demonstram os
seus efeitos, como em Rubens[54]. Dos efeitos, o melhor, relativo novamente
à composição, à elocução, é a observância do caráter de cada personagem
representado no quadro. Como em Alberti, Brocos rediz a tópica relativa à
conveniência, pois não se deve "dar a um personagem grave os ares de um
criado, nem a um velho os ares e gestos de um moço". A cor, assim como a
direção das linhas, deverá corresponder ao assunto, expressando a tristeza
com sobriedade e colorido rebaixado, mas o patético, com movimentos
veementes e "colorido agrio"[55].
A impressão transmitida pelo pintor ao quadro deve ser imediatamente
percebida pelo espectador diante dele, e seu deleite em muito depende
também da variedade, porquanto a simples simplicidade, segundo pensa, não é
suficiente para produzir aquele efeito. A vista precisa ser seduzida, eis a
regra! O que supõe o refazimento de outro efeito, também retórico, o
muovere, a comoção. Por isso, a composição, nunca improvisada, é fruto de
uma interpretação da natureza, princípio relativo à imitação aristotélica,
como já referida, não se comportando ou devendo se comportar o pintor como
o fotógrafo, homógrafo do real. Diz Brocos, então: "o desenho e o colorido
são para o pintor a linguagem que lhe servirá durante toda a sua vida a
expressar suas ideias"[56]. Como para o escritor, a linguagem escrita, a
pintura para o pintor colhe a natureza apenas como modelo no qual ele
deverá insuflar vida, alma e expressão. O modelo humano natural, arranjado
quanto ao movimento e fisionomia, para a produção do representável, não
sendo jamais suficiente por si só, pois dista quanto ao sentimento julgado
mais adequado a ser transmitido, deve contar com o reflexo do próprio
artista num espelho, sempre, que os refaz, movimento e fisionomia, para
compreendê-los verdadeiramente, a fim de expressar pelo mais particular o
genérico que se dá a muitos[57].
O livro passa ao manual com "conselhos práticos para pintar a óleo" e,
destes, o primeiro ou o mais importante: dividir os tons por três na
pintura do mélange óptico, conforme já exposto, impressionista ou
divisionista, que lhe fora ensinada, faz questão de assim o declarar, pelo
seu companheiro de Belas Artes de Paris, Seurat. A cor compõe por si só os
personagens, ou, antes, a composição os colore convenientemente. Síntese de
todas as partes, a composição colorística, contanto que se apresente pela
regra divisionista, é símile da pintura, ou é a pintura enquanto tal,
anulando-se as demais partes do discurso nessa elocução coordenativa dos
pontos de tinta ou dos tons que aureolam a cor escolhida. Para os "planos
flotantes"[58], Brocos recomenda a modelagem prévia em barro, recoberto
depois com musselina para a fixação das roupagens em seus movimentos de
todo abandonados pelos pintores que lhes são contemporâneos. Portanto,
remete a sua arte aos gregos e renascentistas, como também as técnicas
tradicionais de pintura; encáustica, têmpera, afresco, a ovo, a óleo, esta
última a quem credita a invenção a "João Van Eyck ou João de Encina"[59].
Quanto aos gêneros, Brocos é breve, e os divide em seis: "pintura
histórica, de retrato, religiosa, mural, de alegoria, da ilustração". Seja
como for, para Brocos, é prematuro, num país de pouca tradição, como o
Brasil, falar-se em arte nacional, excetuando-se a marajoara, pobre, e os
introitos promovidos pela "missão artística francesa de 1816". Entremeando-
as, estas experiências contrafazem outra arte, a colonial barroca, que tem
interesse arqueológico, particularmente quanto à arquitetura. Mas têm
interesse, assim, como as "línguas do Esopo", pois "é o melhor e o pior que
se pode encontrar no mercado"[60], conforme afirma. Por fim, como apêndice
de sua retórica, o autor, modestamente rediz o que tratou em seu opúsculo A
Questão do Ensino das Belas-Artes, publicado em 1915, quase vinte anos
antes. Prega, em apêndice, aos artistas que queiram se tornar professores,
provas de desenho, de composição, de anatomia e de correção de desenhos
perante um júri[61]. Também é necessário que se altere o formato da aula
com modelo vivo, preferencialmente ministrada em sala semicircular. Para os
desenhos, deve-se observar o uso de traços simples marcando as atitudes,
movimentos e proporções que o professor corrigirá, um a um, expeditamente,
durante a pose ou sessão[62]. Apressando o passo, exorta, contudo, para que
não se inove nesta matéria, e repropõe modelos e experiências que foram
conhecidas em sua estadia na França. Como a da "Escola Comunal de
Montparnasse", aproximada a do liceu brasileiro, onde Brocos se preparara
para o concurso de professor, pouco antes de vir a sê-lo, efetivamente
aqui[63].
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[1] Brocos, Modesto. Retórica dos Pintores. Edição do Autor, Rio de
Janeiro, 1933, p. 146.
[2] Op. cit., p. 12.
[3] Idem, p. 9.
[4] Op. cit., p. 10.
[5] Idem, p. 11.
[6] Idem, ibidem.
[7] Op. cit., p. 12.
[8] Op. cit., p. 13
[9] Idem, p. 14.
[10] Op. cit., p. 18.
[11] Bellori, Gioven Pietro. Vite de' Pittori, Scultori ed Architetti
Moderni. Roma, 1672, in: Fuentes y Documentos para la Historia del Arte,
vol. V, Barcelona, 1983, J. F. Arenas e B. B. I. Hugas (Ed.), p. 62:
"Sucede que los corpos sublunares estan sujetos a las alteraciones y a la
fealdad y, a pesar de que la naturaleza intenta siempre obtener objetos
excelentes por la irreguralidad de la matéria se alteran las formas, y en
particular la belleza humana se confunde como vemos en las infinitas
deformidades y desproporciones que hay en nosotros. Por esto os buenos
pintores y escultores que imitan esse primer artesano tambiém se forman en
la mente un ejemplo de belleza superior y contemplándolo corrigen la
naturaleza sin errar en el colorido y en los contornos.
[12] Brocos, Modesto. Op. cit., p. 21.
[13] Idem, p. 24.
[14] Idem, p. 25.
[15] Op. Cit. p. 30.
[16] Batteux, Charles. As Belas-Artes Reduzidas a um Mesmo Princípio.
Trad. Natalia Maruyama. Trad. de trechos em latim Adriano Riberio. Revisão
técnica Victor Knoll. Apresentação e notas Marco Aurélio Werle. São Paulo,
Humanitas, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. (168 p).
[17] Brocos, Modesto. Op. cit., p. 32
[18] Idem, ibidem.
[19] Idem, p. 33.
[20] Idem, p. 34.
[21] Idem, ibidem.
[22] Op. cit., p. 37.
[23] Idem, p. 39.
[24] Idem, ibidem.
[25] Idem, pp. 40-41.
[26] Idem, p. 42.
[27] Idem, p. 45.
[28] Idem, pp. 46-47.
[29] Op. cit., p. 48.
[30] Op. cit., p. 51.
[31] Idem, p. 53.
[32] Idem, p. 55.
[33] Op. cit., p. 60.
[34] Idem, p. 63.
[35] Idem, p. 64.
[36] Idem, p. 65.
[37] Idem, p. 69.
[38] Idem, p. 72.
[39] Idem, p. 73.
[40] Idem, ibidem.
[41] Idem, p. 75.
[42] Idem, p. 76.
[43] Idem, p. 78.
[44] Idem, p. 79.
[45] Idem, p. 81.
[46] Idem, p. 84.
[47] Idem, p. 87.
[48] Idem, p. 88.
[49] Idem, p. 91.
[50] Idem, p. 93.
[51] Idem, p. 96.
[52] Idem, ibidem.
[53] Idem, p. 98.
[54] Idem, p.99.
[55] Idem, ibidem.
[56] Idem, p. 102
[57] Idem, ibidem.
[58] Idem, p. 107.
[59] Idem, p. 121.
[60] Idem, p. 138.
[61] Idem, p. 140.
[62] Idem, p. 142.
[63] Idem, p. 144.
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