Modificações dentárias em três indivíduos provenientes do “Quintal da limpeza dos cárceres” da Inquisição de Évora

July 23, 2017 | Autor: Bruno M. Magalhães | Categoria: Antropología Física, Arqueologia y antropologia forense y fisica, Antropologia dentaria
Share Embed


Descrição do Produto

Departamento de Ciências da Vida e CIAS (Centro de Investigação em Antropologia e Saúde), Universidade de Coimbra

Introdução

Indivíduos e métodos

A dentição, ao interagir diretamente com o ambiente, retém evidências tanto do seu uso mastigatório (atrito), como da abrasão causada por materiais exógenos ou da erosão, isto é, a perda de esmalte e dentina resultante da ação de ácidos (Cruwys e Duhig, 1993; Alt e Pichler, 1998; Ogden, 2008). O desgaste extramastigatório artificial pode fornecer pistas sobre condições patológicas e/ou atividades realizadas pelo indivíduo. Objetivos deste estudo: descrever as alterações dentárias observadas em três indivíduos e interpretá-las à luz da literatura clínica e paleopatológica.

Resultados e discussão

Na escavação realizada (2007/2008) no edifício da Inquisição de Évora (1536-1821) foi recuperado, do “Quintal da limpeza dos cárceres”, um mínimo de 16 indivíduos adultos, 12 em articulação (3 homens, 9 mulheres). Estes indivíduos terão morrido durante o encarceramento e os seus corpos descartados na lixeira em uso entre 1569 e 1634 (ver Magalhães, 2013). A dentição foi observada com lupa e boa iluminação e registado o grau de desgaste oclusal dos dentes existentes (Smith, 1984), e a presença/ausência de potenciais modificações dentárias.

Preservaram-se 126 dentes: 58 maxilares – 36 (62,1%) com graus 1 a 4 de desgaste e 22 (37,9%) com graus 5 a 8 – e 68 mandibulares – 41 (60,3%) com graus 1 a 4 e 27 (39,7%) com graus 5 a 8. Três indivíduos adultos maduros (2 femininos – Ind. 5 e Ind. 8 – e 1 masculino – Ind. 2) apresentam modificações dentárias atípicas à função mastigatória (tabela). Modificação 1 (M1). “Espiculado” ou Modificação 3 (M3). As superfícies oclusais dos dentes Tabela. Indivíduos e respetivas modificações dentárias. “serrilha” nos incisivos e caninos anteriores presentes nos Ind. 2, 5 e 8 possuem uma Indivíduo Modificação Diagnóstico diferencial presentes no Ind. 2 (mais vincada nos depressão bastante pronunciada; . Abrasão mandibulares); Modificação 4 (M4). Perda ‘em forma de cunha’ (Alt e . Atividade ocupacional I2 1, 2, 3 e 4 . Condições de vida Modificação 2 (M2). Perda atípica e Pichler, 1998) junto à linha de junção cimento/esmalte na . Hipercloridria total do esmalte dentário, com dentição anterior e posterior dos Ind. 2 e 8. Identificada de . Alotriofagia . Condições de vida exposição da dentina na face mesial forma mais ou menos evidente nas quatro faces de cada I5 3, 4 . Hipercloridria dos incisivos centrais superiores (Ind. dente. No Ind. 5 apresenta-se de forma ténue nos incisivos . Condições de vida I8 3, 4 2); de ambos os lados, pré-molares, caninos e molares direitos, . Hipercloridria apenas na dentição mandibular. M2 Ind. 2 - Maxilar Ind. 8 – M3 Maxilar M4 M3

Ind. 2 Maxilar

M1 Diagnóstico diferencial: Abrasão. Poderá ter causado M1 por contaminantes M1 e M3 Ind. 8 - Mandíbula arenosos de moléculas de colagénio e celulose na comida ou através do uso dos dentes como instrumento/3ª mão (Cruwys, 1989; Mair et al., 1996; Kieser et al., 2001), pode ocasionar a M2. Atividades ocupacionais. As M1 e M2 poderão estar associadas às exigências mecânicas durante tarefas M4 diárias. Não se encontraram paralelos para as Ind.2 - Mandíbula alterações visíveis no Ind. 2, embora Cruwys et al. Condições de vida e/ou hipercloridria. As M1, M3 e M4 podem ter origem (1992) refiram que em populações ocidentais podem ser observadas entre na dissolução química do esmalte e da dentina, devido à acidez de vómitos costureiras (devido a linhas e alfinetes), cabeleireiras (ganchos), sapateiros crónicos (Cruwys, 1989; Alt e Pichler, 1998; Moynihan, 2005; Vreven et al., e carpinteiros (pregos), carniceiros (cordas) sopradores de vidro, músicos, 2008). Cruwys e Duhig (1993) referem ainda como causas a ingestão de entre outros (Cruwys et al., 1992; Alt e Pichler, 1998). comida estragada por débeis condições de higiene, doenças como a febre Os processos da Inquisição de Évora revelam as profissões de 41,4% (36 em tifóide, disenteria, cólera entre outras inespecíficas do sistema gástrico ou 87) dos indivíduos que morreram entre 1568 e 1634. Entre os prisioneiros intestinal (Cruwys e Duhig, 1993). As etiologias relacionadas com a erosão, encontravam-se um alfaiate e um sapateiro, falecidos respetivamente a 8 ou seja, provocadas pela ação química extrabacteriana, são uma hipótese de dezembro de 1585 (ANTT, proc. 8509) e a 23 de novembro de 1626 plausível atendendo às parcas condições higiénicas dos cárceres. (ANTT, proc. 7450). Outras etiologias. A M4 poderá dever-se também à recessão da gengiva, Alotriofagia. Ou 'pica’, é um transtorno alimentar definido como a mineralização defeituosa da coroa cervical, stresse oclusal ou oclusão mastigação persistente e/ou consumo de substâncias não nutritivas como deficiente (Alt e Pichler, 1998). barro ou pedras (Piazza et al., 1998; Swift et al., 1999; Barker, 2005). É mais frequente em grávidas, crianças na 1ª infância ou em pessoas com Conclusões e perpetivas futuras deficiências de desenvolvimento (Piazza et al., 1998; Swift et al., 1999). As As características das dentições dos três indivíduos apontam para a ação de alterações que advêm deste transtorno parecem enquadrar-se na M1, atividades ocupacionais e/ou hipercloridria. embora o sexo e a idade do I2 o tornem menos provável. Referências Este estudo acrescenta, assim, conhecimento sobre modificações dentárias Alt KW, Pichler SL. 1998. Artificial modifications of human teeth. In: Alt et al. (eds.) Dental […] Wien, Springer-Verlag:387-415. ANTT, Arq Nac Torre do Tombo. Proc nº 8509 e 7450. pouco conhecidas na literatura paleopatológica Portuguesa. Barker D. 2005.Tooth wear as a result of pica. Brit Dental J, 199(5): 271-273. Cruwys E. 1989. Tooth wear and the archaeologist: […]. In: Roberts et al. (eds.) Burial archaeology […]. Oxford, Bar series, 211: 151-166. Cruwys E, Duhig C. 1993. A possible case of dental erosion in a skull from the French Congo […]. Journal of Paleopathology, 5(1): 47-52. Cruwys E, Robb ND, Smith BGN. 1992. Anterior tooth notches: an Anglo-Saxon case study. Journal of Paleopathology, 4(3): 211-220. Kieser JA, Dennison KJ, Kaidonis JA; Huang D. et al. 2001. Patterns of dental wear in the Early Maori dentition. Int J Osteoarc, 11: 206-217. Magalhães BMS. 2013. Os irreconciliados da fé da Inquisição de Évora […]. Tese Mestrado em Evolução e Biologia Humanas. DCV-FCTUC. Mair LH, Stolarski TA, Vowles RW, Lloyd CH. 1996. Wear: mechanisms, manifestations and measurement. […]. J Dentistry, 24(1-2): 141-148. Moynihan PJ. 2005. The role of diet and nutrition in the etiology and prevention of oral diseases. Bulletin of the WHO, 83: 694-699. Ogden A. 2008. Advances in the palaeopathology of teeth and jaws […]. In: Pinhasi R, Mays S. (eds.) Advances […]. San Franc, Wiley: 282-307. Piazza CC, et al. 1998. Treatment of pica through multiple analyses of its reinforcing functions. J Applied Behavior Analysis, 31: 165-189. Smith BH. 1984. Patterns of molar wear in hunter-gathers and agriculturalists. American Journal of Physical Anthrop, 63: 39-56. Swift I, et al. 1999. Pica and trace metal deficiencies in adults with developmental disabilities.The British JDevelop Disabilities, 45(89): 111-117. Vreven J, et al. 2008. Lésions dentaires associées aux acides d’origine exogène et endogène. Acta Endoscopica, 3: 263-281.

Agradecimentos A Ângela Araújo, Hugo Magalhães (http://www.pretoebranco.net/), Crivarque, Lda., Teresa Matos Fernandes e CIAS (PEst-OE/SADG/UI0283/2011).

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.