Modos de habitabilidade: disperssão e dinâmica dunar na praia de Flecheiras, em Trairi, no Ceará

June 3, 2017 | Autor: Everaldo Dourado | Categoria: Arqueología, Etnohistoria, Geomorfologia Costeira
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA

MODOS DE HABITABILIDADE DOS GRUPOS CERAMISTAS: DISPERSÃO E DINÂMICA DUNAR NA PRAIA DE FLECHEIRAS, EM TRAIRI, NO CEARÁ

EVERALDO GOMES DOURADO

Laranjeiras (Se) 2015

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA

MODOS DE HABITABILIDADE DOS GRUPOS CERAMISTAS: DISPERSÃO E DINÂMICA DUNAR NA PRAIA DE FLECHEIRAS, EM TRAIRI, NO CEARÁ

EVERALDO GOMES DOURADO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em ARQUEOLOGIA como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Arqueologia.

Orientador: Prof. Dr. Jenilton Ferreira Santos Co-orientadora: Profa. Dra. Suely Gleyde Amancio Martinelli Agência financiadora: FAPITEC; CNPQ; CAPES

Laranjeiras (Se) 2015

Dedico essa pesquisa a minha avó Ana Gomes da Costa (in memoriam) que além dos primeiros passos me ensinou o gosto pela história.

AGRADECIMENTOS

Muitas pessoas colaboraram com essa pesquisa, direta ou indiretamente e foi graças a cada um delas que essa pesquisa amadureceu, ganhou formas e atingiu os objetivos. Ligia Holanda, o teu apoio tem sido fundamental dentro e fora dessa pesquisa. Do “empurrão” para inscrição na seleção do mestrado, passando pelas idas ao campo para prospecção e desenho de croquis, do carinho nos momentos mais difíceis frente à pesquisa ... Muito obrigado pela paciência, pois teu companheirismo e amor foram fundamentais para a pesquisa e para o pesquisador. Aos meus pais, D. Maria e ao S. Geraldo, que desde o princípio acreditaram nessa empreitada e sempre me apoiaram em todos os momentos, fossem bons ou ruins. Pela orientação do Prof. Dr. Jenilton Ferreira e a sua paciência frente as minhas limitações e angústias com essa pesquisa. Ao acolhimento da Profa. Dra. Suely Amancio Martineli durante esse trabalho, com as suas sugestões e entusiasmo. A Profa. Dra. Marcélia Marques pelo apoio desde o início da pesquisa, pelas sugestões e a vibração durante todo esse processo. Obrigado a todo o PROARQ – UFS pelo meu amadurecimento como arqueólogo, com as discussões acadêmicas em sala com o Prof. Dr. Paulo Jobim, Profa. Dra. Márcia Barbosa, Dra. Profa. Olívia Carvalho e ao auxílio e paciência da ‘Leli’ no dia a dia do campus. Aos amigos de turma: Carlos Eduardo (Kadu), Janaina Coutinho, Bruno Barreto, Daiane Pereira, Luiz Rocha, Luiz Pacheco, Vani Piaia e Fernanda Libório, assim como as demais amizades que fizeram a minha estadia em Sergipe ter mais brilho, petiscos e muitas risadas. Aos amigos Railson Cotias, Jeanne Dias, Michel Platini e Luiz Angélico (Luizinho), fica um muito obrigado por tudo que vocês fizeram e que representam em minha vida. Não poderia deixar de agradecer aos amigos de longa data e que também me apoiaram: Dudé e Nenzinha, sem os meus padrinhos de casamento até a logística de campo dessa pesquisa não teria tido êxito, obrigado pela força e pelas boas risadas; ao Rafael Ricarte pelo companheirismo desde a faculdade de História e pela ajuda com a rara documentação

enviada da Europa; ao João Correia pelos textos, a ida a campo e as dicas em Geomorfologia litorânea; Rafael Agostinho grato pela ajuda com a Biologia Marinha e o entusiasmo; ao Dr. Jefferson Lima, pelos mapas, as dicas em Geologia e pela amizade sincera; ao amigo Pedro Manoel Lima pela ajuda com a tradução e o companheirismo; à Uiara Garcia pela ajuda com as correções e a formatação; aos camaradas Agnelo Queiroz, Vitor Rafael Sousa e o Dr. Paulo Tadeu Albuquerque pelas sugestões bibliográficas e a identificação do material arqueológico. Agradeço ainda à Fundação de Apoio à Pesquisa e à Inovação Tecnológica do Estado de Sergipe – FAPITEC, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq, e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES, pela Bolsa concedida durante grande parte dessa pesquisa e em momentos distintos.

RESUMO Na praia de Flecheiras, Ceará, foram identificados quatro assentamentos, resultantes das atividades de Arqueologia Preventiva na região. Esses assentamentos possuem características bastante similares quanto à implantação na paisagem e sua cultura material. Nos sítios arqueológicos Trairi I, II, III e IV, ocorre a predominância de cerâmicas filiadas à Tradição Tupiguarani e outra denominada de Cabocla, restos de lascamento, núcleos pouco utilizados e percutores na maioria em quartzo, além de malacológicos. Nesse contexto, todas as concentrações arqueológicas estão inseridas em meio a dunas móveis de origem holocênica. Nosso objetivo é realizar uma abordagem sobre o padrão de assentamento nesses sítios, com estudos em uma macroescala, abrangendo a relação dessas comunidades com o bioma em que estão inseridas, e em uma escala semi-micro, compreendendo os aspectos tecnológicos e os fatores pós-deposicionais ocorridos nos sítios, de modo a perceber como podem influenciar na análise arqueológica. As variáveis ambientais que compõem a área de estudo, tais como os corais, as lagoas interdunares, nascentes e foz de rios, a Formação Barreiras e as dunas permitem, a priori, inferir que haja uma possível exploração sistemática desses biomas para a manutenção desses grupos. Dessa forma, essa pesquisa visa contribuir para a compreensão dos processos de ocupação que ocorreram no litoral cearense em épocas pretéritas.

PALAVRAS-CHAVE: Padrão de assentamento, Arqueologia Espacial, dunas holocênicas, praia de Flecheiras.

ABSTRACT

In Flecheiras Beach, Ceará, four settlements were identified, which they had resulted from the activities of Preventive Archaeology in that region. Those settlements have very similar characteristics as the implementation in the landscape and its material culture. Ceramic affiliated Tradition TupiGuarani and another called Cabocla, chipping remains, underutilized cores and strikers, mostly of quartz and malacologicals, are prevalent in archaeological sites Trairi I, II, III and IV. In this context, all archaeological concentrations are inserted among mobile dunes of Holocene origin. Our objective is to make an approach to the settlement pattern in these sites, with macro scale studies, that covers the relationship between these communities and the biome where they are inserted, and in a semi micro scale, including technological aspects and post-depositional factors which occurred at the sites in order to understand how they can influence the archaeological analysis. The environmental variables that compose the study area, like corals, interdune ponds, springs and river mouths, the “Formação Barreiras” and the dunes, they allow, in principle, to infer that there is a possible systematic exploration of these biomes to maintain these groups. Therefore, this research aims to contribute to understand the occupation processes that had occurred in Ceará in past times.

KEYWORDS: settlement pattern, spacial archaeology, holocene dunes, Flecheiras beach.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................

17

CAPÍTULO 1 – UM HORIZONTE SOBRE O HISTÓRICO DAS PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS EM ASSENTAMENTOS DE GRUPOS CERAMISTAS NA COSTA NORDESTINA....................................................................................

22

CAPÍTULO 2 – O APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO................................

30

2.1 UMA ARQUEOLOGIA DE ASSENTAMENTOS...................................

30

2.2. SOBRE OS PADRÕES DE ASSENTAMENTO E A IMPORTÂNCIA DA PAISAGEM EM SUA ANÁLISE.................................................................

33

2.3 SISTEMATIZANDO A PESQUISA: OS MÉTODOS DE ANÁLISE PARA OS SÍTIOS NA PRAIA DE FLECHEIRAS............................................

36

CAPÍTULO 3 – PRAIA DE FLECHEIRAS: A CONSTRUÇÃO DE UMA PAISAGEM....................................................................................................................

43

3.1 UM AMBIENTE EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO......................

44

3.1.1 Da evolução paleoambiental do litoral noroeste do Ceará até a 44

atualidade........................................................................................... 3.2 O PANORAMA ARQUEOLÓGICO NO LITORAL DE TRAIRI..............

57

3.2.1 Bloco Boa Esperança.............................................................................

58

3.2.2 Bloco Mundaú.........................................................................................

60

3.2.3 Sítio Guajiru II.......................................................................................

65

3.3 A CONTRIBUIÇÃO DA ETNOHISTÓRIA................................................

68

CAPÍTULO

4



REFLEXÕES

ARQUEOLÓGICAS

SOBRE

A

HABITABILIDADE E OS EFEITOS DA DINÂMICA DUNAR NA PRAIA DE FLECHEIRAS...............................................................................................................

77

4.1. SÍTIO TRAIRI I.........................................................................................

79

4.2. SÍTIO TRAIRI II........................................................................................

86

4.3. SÍTIO TRAIRI III.......................................................................................

95

4.4. SÍTIO TRAIRI IV......................................................................................

99

CAPÍTULO 5 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................................................

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................

111

ANEXOS.........................................................................................................................

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figuras 1 e 2 - Fotografias da elaboração de croquis para análise da distribuição espacial dos sítios..........................................................................................................

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Figuras 3 e 4 - Fotografias da prospecção da superfície dos sítios ..............................

41

Figuras 5 e 6 - Fotografias da área de escavação para retirada de sedimento em Flecheiras – Ce. A. Vista ampla da Formação barreiras; B. Detalhe para o perfil estratigráfico..................................................................................................................

48

Figuras 7 e 8 - Fotografias dos eolianitos registrados em Flecheiras – Ce. A. Vista ampla da estrutura; B. Imagem com detalhe para abrasão eólica.................................

51

Figuras 9 e 10 - Fotografias dos detalhes das dunas. A. Dunas barcana e depressão interdunar na porção frontal (sotavento) onde afloram sedimentos da Formação Barreiras; B. Dunas barcanas compostas formando crista barcanóide transversal à direção dominante dos ventos.......................................................................................

53

Figuras 11 e 12 – Fotografias: A. Detalhe de estratificação observada em duna longitudinal, sobreposta por ondulações atuais transversais a direção do vento dominante. B. Dunas barcanas compostas sobrepondo uma longitudinal....................

53

Figura 13 - Fotografias da lagoa interdunar e ao fundo, na vegetação, encontra-se o sítio Trairi III.................................................................................................................

53

Figura 14 - Fotografias do pastoreio de bovinos dentro do perímetro do sítio Trairi III..................................................................................................................................

54

Figuras 15 e 16 – Fotografias: A. Detalhe do córrego, em Emboaca, onde moradores costumavam retirar argila. B. Vista da implantação do abrigo em meio à duna em processo de edafização..................................................................................................

56

Figura 17- Fotografias dos Corais da praia de Flecheiras.............................................

57

Figuras 18 e 19 – Fotografias: A. Bordas de um recipiente globular, engobo branco e resquício de pintura vermelha (MD-III). B. Borda de vaso reforçado e com alça em botão (MD-IV)........................................................................................................

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Figuras 20 e 21 – Fotografias: A. Borda com entalhes (MD-III). B. Bojo alisado e engobo vermelho (MD-IV)...........................................................................................

63

Figuras 22 e 23 – Fotografias: A. Bojo com queima reduzida. B. Bojo com queima oxidada..........................................................................................................................

63

Figuras 24 e 25 – Fotografias: A. Lascas em quartzo (MD-V). B. Lascas unipolares

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em silexito (MD-III)..................................................................................................... Figuras 26 e 27 – Fotografia: A. Núcleos esgotados em silexito (MD- II). B. Seixo “Chopper” em quartzo (MD-IV)..................................................................................

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Figura 28 – Fotografia de raspador nucleiforme em silexito (MDIV)................................................................................................................................

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Figuras 29 e 30 – Fotografias: A. Ação pluvial na Formação Barreiras em GJ-II. B. Barranco com líticos no perfil indicando a origem deposicional de GJII...................................................................................................................................

66

Figura 31 – Fotografia da cultura material lixiviada dentro de ravina em GJ-II..........

66

Figuras 32 e 33 – Fotografias: A. Lascas com superfície natural e cortical em GJ-II B. Núcleos esgotados em GJ-II....................................................................................

67

Figura 34 - Fotografia de Percutor-batedor em GJ-II...................................................

68

Figura 35 – Fotografia da vista do sítio TR- I, detalhe para o córrego e duna estabilizada....................................................................................................................

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Figuras 36 a 39 – Fotografias da cultura material verificada no sítio Trairi I. A. Lasca em silexito; B. Lasca em quartzo; C. cerâmica arqueológica; D. Malacológico.................................................................................................................

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Figuras 40 e 41 – Fotografias de alguns fatores de inteperismo em TR-I. A. Trânsito de pessoas nas proximidades do sítio; B. Ação pluviométrica escoando um fragmento cerâmico para dentro do córrego.................................................................

82

Figura 42 – Fotografia da pesca artesanal realizada em lagoa nas proximidades de TR-I...............................................................................................................................

82

Figuras 43 e 44 - Fotografias do mesmo cenário em TR-I, em épocas diferentes. A. Ano de 2012. B. Ano de 2015.......................................................................................

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Figuras 45 e 46 – Fotografias: A. Cerâmica arqueológica. B. Lasca em quartzo...........................................................................................................................

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Figuras 47 e 48 – Fotografias: A. Percutor em quartzo de grande porte. B. Percutor com fraturas...................................................................................................................

84

Figuras 49 e 50 – Fotografias: A. Fragmento de coral. B. “Agulha” de pesca.........

84

Figura 51 - Fotografia de Vidro e telhas...............................................................

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Figuras 52 e 53 – Fotografias: A. Zona de proveniência para os artefatos líticos da região. B. Bloco de quartzo...........................................................................................

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Figura 54 - Fotografia: “Montículo testemunho” na concentração I, no sítio Trairi II....................................................................................................................................

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Figuras 55 e 56 - Fotografias da Concentração I, no sítio Trairi II, avanço da duna

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barcana sobre o sítio, seta indica vegetação de referência. A. Espaço no de 2012. B. Espaço no de 2015........................................................................................................ Figura 57 - Fotografia da Sedimentação eólica com até 5 cm de profundidade, no sítio Trairi II .................................................................................................................

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Figuras 58 a 61 - Fotografias de Líticos no sítio Trairi II, concentração I. A. Percutor em quartzo; B. Bigorna em quartzo; C. Núcleo; D. Dispersão de microlascas na quadra 14........................................................................................................

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Figuras 62 a 65- Fotografias: A. Dispersão cerâmica na quadra 10; B. Malacológico; C. Alça cerâmica na quadra 9; D. Fragmento com engobo vermelho na quadra 15.................................................................................................................. Figura 66 - Fotografia da vista geral da concentração II, no sítio Trairi II...................

89 90

Figuras 67 e 68 - Fotografia do intemperismo provocado por ação animal em TRII....................................................................................................................................

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Figuras 69 e 70 - Fotografias das cerâmicas do grupo I, na concentração II. A. Borda reforçada externamente, na quadra 23; B. Decoração interna com motivos pontilhados interligados por linhas curvas, na quadra 21.............................................

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Figuras 71 e 72 - Fotografias das cerâmicas do grupo II, na concentração II. A. Tempero com quartzo moído e areia fina, na quadra 60; B. Decoração com engobo vermelho em superfície alisada externa, na quadra 237...............................................

92

Figuras 73 a 76 - Fotografias de líticos na concentração II. A. detritos de matériaprima silicosa, na quadra 48; B. Fragmento de machadinha, na quadra 53; C. Núcleo com córtex não esgotado; D. Fogueira com cerâmica do grupo II e micro-lascas no seu interior.....................................................................................................................

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Figuras 77 e 78 - Fotografias de resina encontrada na concentração II. A. Fragmento com retirada, na quadra 254; B. Fragmento associado à bigorna, na quadra 229.................................................................................................................................

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Figuras 79 a 81 - Fotografias de valva de molusco na concentração II. A. Artefato na quadra; B. Fragmento com possível marca de perfuração por atrito, na quadra 157; C. Amostra de coral deteriorado...........................................................................

95

Figura 82 - Fotografias da vista geral do sítio Trairi III. A. Planície de deflação na concentração 1, destaque amarelo; B. Blowout na concentração 2, destaque em azul................................................................................................................................

96

Figura 83 - Fotografia da ação de erosão eólica na concentração II, quadra 75, sítio TR-III............................................................................................................................

96

Figuras 84 a 87 - Fotografias de cerâmicas verificadas em TR- III. A. Acentuado grau de inteperismo expõe o tempero composto por quartzo moído e areia fina na quadra 7; B. “Apêndice” na quadra 8; C. Engobo vermelho na quadra 75; D. Borda extrovertida com lábio arredondado na quadra 84........................................................

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Figuras 88 a 91 – Fotografias da tralha doméstica em TR- III. A. Fragmento de malga com motivos florais na quadra 54; B. Fragmento de prato com motivos florais na quadra 84; C. Fundo de garrafa de vidro; D. Fundo de garrafa de grés na quadra 74.......................................................................................................................

98

Figura 92 - Fotografia de resquício de resina solidificada na quadra 85......................

99

Figura 93 – Fotografia da vista geral do sítio TR-IV, seta laranja identifica concentração 1 e seta amarela a concentração 2..........................................................

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Figuras 94 e 95 - Fotografias de líticos encontrados no sítio TR-IV. A. Núcleo em quartzo. B. micro-lascas e detritos de matérias variadas..............................................

100

Figuras 96 e 97 – Fotografias de cerâmica encontrada no sítio TR-IV. A. Fragmento com marcas de alisamento em superfície externa. B. Fragmento com inteperismo expondo o antiplástico.................................................................................................

101

Figura 98 - Fotografia de sondagem no cordão de duna que separa as concentrações 1 e 2, no sítio TR-IV.....................................................................................................

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LISTA DE MAPAS Mapa 1 - Localização do município de Trairi, no Ceará....................................

45

Mapa 2 - Geologia do município de Trairi em relação ao contexto geológico cearense................................................................................................................. Mapa 3 - Distribuição dos Sítios Arqueológicos no Município de Trairi.........

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Mapa 4 - Detalhe para a distribuição espacial nível macro no bloco arqueológico Mundaú........................................................................................... Mapa 5 - Evolução das dunas na praia de Flecheiras entre 2004 e 2011........... Mapa 6 - Distribuição dos sítios na área de estudo............................................. Mapa 7 – Sítio Trairi I.......................................................................................... Mapa 8- Sítio Trairi II concentração I.................................................................. Mapa 9 - Sítio Trairi II concentração II...............................................................

61 78 121 122 123 124

Mapa 10 - Sítio Trairi III concentração I............................................................

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Mapa 11- Sítio Trairi III concentração II..........................................................

126

Mapa 12 - Sítio Trairi IV.....................................................................................

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Morfologia comparativa entre os recipientes de BE e ATr............................

59

Quadro 2 - Decoração comparada entre os recipientes de BE e Atr................................

60

Quadro 3 - Decoração comparada entre os recipientes do bloco Boa Esperança, Mundaú e Trairi................................................................................................................

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi I.................................................

128

Tabela 2 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi II – Concentração I...................

129

Tabela 3 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi II – Concentração II............

130

Tabela 4 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi III – Concentração I.............

131

Tabela 5 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi III – Concentração II...........

132

Tabela 6 - Artefatos no sítio Arqueológico Trairi IV ...........................................

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LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS

A.P.

Antes do Presente

CPRM

Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais

EIA

Estudo de Impacto Ambiental

E-W

Leste – Oeste

NEEA

Núcleo de Estudos de Etnologia e Arqueologia

NRM

Nível Relativo do Mar

NW

Noroeste

PRONAPA

Programa Nacional de Pesquisa em Arqueologia

RIMA

Relatório de Impacto Ambiental

SE

Sudeste

UTM

Universal Transverse Mercator

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INTRODUÇÃO

Na primeira vez em que estivemos nos sítios Trairi I, II, III e IV, na praia de Flecheiras – CE, em agosto de 2011, atravessamos um enorme campo de dunas em busca das coordenadas UTM de sítios previamente identificados pela Arqueologia Preventiva naquela região. A principio nos causou espanto a possibilidade de qualquer humano ter habitado ali. Nossa impressão se desfez ao avistarmos vários fragmentos cerâmicos e líticos. Apesar de nossa experiência, a ideia de habitar um ambiente como as dunas nos parecia improvável, em virtude da ação eólica, dos sedimentos, da inexistência de abrigos naturais, etc. Imaginamos que viver em meio a esse ambiente parecia demasiadamente difícil, pensamento esse contrariado frente à tamanha quantidade de vestígios encontrados. Foram essas indagações que nos motivaram a compreender como se deu a ocupação dessa região. Por que ocupar as dunas? Sempre nos pareceu a grande questão. Pensamos inicialmente numa abordagem direcionada para a cerâmica arqueológica e de como essa poderia fornecer informações sobre a cultura do(s) grupo(s) que ocuparam a praia de Flecheiras, tendo em vista que a decoração identificada pode apresentar características das quais é possível inferir sobre o papel simbólico dessa comunidade (LUNA, 2003). Porém ocorreram alguns problemas institucionais durante o desenvolvimento da pesquisa, o que impossibilitou escavar e remontar os utensílios, diminuindo as possibilidades de compreensão de sua funcionalidade. Frente a essas dificuldades resolvemos então nos deter a compreensão das estratégias utilizadas pelo(s) grupo(s) no aproveitamento do espaço e as suas formas de sobrevivência, compreendendo a relação do homem com o meio ambiente. Essa mudança de perspectiva, também oriunda do amadurecimento teórico que nos fez entender que a cultura material, por si só, não atenderia a todas as nossas expectativas. Há que se considerar, no estudo sobre a cultura material, que esta só existe pela ação das pessoas no passado que as utilizavam de diversas formas, além da importância do ambiente nas escolhas humanas. Apenas após essa conclusão tivemos maior clareza sobre a importância do papel que o ambiente teve para o equilíbrio do sistema e, para propiciar condições para que o(s) grupo(s) ocupassem aquela faixa do litoral cearense. A literatura arqueológica brasileira tem dedicado atenção aos povos que habitaram o litoral brasileiro, neste sentido, Tenório (2000), afirma que os caçadores-coletores-pescadores holocênicos surgiram em meados da última grande mudança climática que ao tornar o planeta quente e úmido favoreceu a formação de novos ambientes. Diante de uma maior diversidade de recursos esses grupos assentaram-se próximo a lagoas e rios, onde promoviam a caça e a

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pesca de pequenos animais, coleta de frutos e também de moluscos que habitavam esses corpos d’água. Os estudos sobre grupos Pré-coloniais no litoral brasileiro iniciaram há muitos anos e destacam-se nessa linha as pesquisa sobre os sambaquis, estruturas formadas a partir de montes de conchas, moluscos e restos faunísticos, verifica-se a ocorrência de sepultamentos, marcas de estacas, líticos, cerâmicas e fogueiras (GASPAR, 1994, 1996, 2004; DE BLASIS; KNEIP, 2007). Esses são também os tipos de sítios que primeiro motivaram ações de preservação, já na década de 60, tendo em vista sua depredação por ação do fabrico de cal e para rações animais. A destruição dos sambaquis e de outros sítios litorâneos já remonta ao processo de colonização portuguesa, cujas facilidades de acesso e defesa contra os ataques indígenas motivaram esses núcleos urbanos a permanecerem no litoral. Os sambaquis foram alvo de pesquisas no Brasil ainda no séc. XIX (BARBOSAGUIMARÃES, 2003), onde eram consideradas formações naturais de amontoados de conchas, e foram tratados pela Geologia como marcadores naturais do Nível Relativo do Mar (NRM), mesmo sendo verificados sepultamentos humanos esses eram atribuídos a naufrágios. Essa concepção tinha por finalidade negar o direito do índio a terra, desacreditando qualquer possibilidade dele produzir algo tão monumental. A partir do início do séc. XX essas estruturas passam a ser consideradas construções antropogênicas, mais ainda na perspectiva de que poderiam ser relacionadas a oscilações marinhas, pois a partir disso os grupos se deslocariam constantemente. Soma-se a essa perspectiva o fato de que os amontoados de moluscos seriam provenientes do lixo daquela cultura, o que mais uma vez se caracterizava como racismo contra os silvícolas, pois seriam sujos, não havendo assepsia em seus locais de morada, comprovando sua selvageria. É com Bigarella (1962 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2003) que se inicia a desconstrução da ideia de sambaqui como marco geológico, pois a perspectiva de que os sambaquieiros buscavam ambientes mais propícios para sua sobrevivência, como as paleolagoas, começa a ganhar força. Para além do pensamento de intencionalidade na escolha do assentamento, Hurt & Blasi (1960 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2003) defenderam o pensamento de que os grupos pré-coloniais buscavam erguer uma edificação planejada. É com Gaspar (1996) que se inova a abordagem a esses sítios tratando de territorialidade, onde cada estrutura edificada com moluscos e seus ocupantes teriam acesso a áreas de captação de recursos específicos para a manutenção da comunidade. Ela também levanta a possibilidade dos sambaquis centrais e maiores serem espaços ritualísticos pela presença de sepultamentos,

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enquanto que os menores e periféricos teriam função de sociabilidade, oficinas e cozinha (1999 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2011). Atualmente pesquisas sobre os povos sambaquieiros, apontam para a realização de festins funerários (KLOKLER, 2012), pois é evidenciado o fato da vasta presença de vestígios faunísticos de peixe junto a covas, buracos de estaca e fogueiras em detrimento da ausência de habitações e outras atividades cotidianas. A própria prática desse tipo de festividade apontaria para produção de excedente na agricultura que seria usado no festim, logo é possível a existência de elites privilegiadas e que também usariam o evento para legitimar seu poder na hierarquia. Tradicionalmente considera-se que no Nordeste existem três pontos de destaque em assentamentos Pré-Coloniais costeiros, são os sambaquis no Maranhão e no Recôncavo Baiano, além das ocupações em dunas no Rio Grande do Norte (MARTÍN, 2008, p. 137), todos estudados inicialmente pelo PRONAPA, nas décadas de 60 e 70. Os sambaquis nordestinos se caracterizam principalmente pela pouca estatura e farta presença de cerâmica em suas camadas arqueológicas. A partir de novos dados obtidos em pesquisas recentes vem se confirmando essa informação, destaque para o estudo de Bandeira (2008) no Maranhão, Amancio (2006, 2007) na Bahia e Silva (2009) em Alagoas. No caso dos sítios sobre dunas, como mencionado anteriormente, é no Rio Grande do Norte que se realizaram as primeiras pesquisas, sendo seguidas tardiamente por outros estados como Piauí, Ceará, Sergipe e Bahia. Na costa do Ceará são identificados inúmeros sítios arqueológicos pré-coloniais e históricos, resultantes da densa ocupação ocorrida na região em tempos pretéritos, por grupos ligados a pesca, coleta e agricultura, perpassando pelos colonizadores europeus até a atualidade. Ainda há poucas produções acadêmicas, no que diz respeito aos estudos arqueológicos sobre as ocupações no litoral cearense (VIANA et al, 2007; SOUSA, 2011; NOBRE, 2013; MORALES, 2012), apesar da vasta quantidade de sítios já registrados por conta de achados fortuitos e em decorrência do uso da costa para a construção de empreendimentos diversos. É por meio das intervenções arqueológicas, relacionadas a essas obras, que se tem buscado o entendimento sobre esses grupos e a sua presença nessa região. Os assentamentos litorâneos se configuram como marca incontestável da presença e valorização que essas áreas possuíam para alguns povos. Nos sítios arqueológicos Trairi I, Trairi II, Trairi III e Trairi IV, localizados na praia de Flecheiras, em Trairi, são identificados inúmeros fragmentos cerâmicos da Tradição arqueológica Tupiguarani e da Fase Papeba,

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além de lascas, micro-lascas, amoladores, percutores e bigornas, bem como um vasto material malacológico como conchas de espécies e tamanhos diversos (LEITE, 2010; MARQUES, 2012a). Os atuais geoelementos caracterizadores da área tais como o mar, as lagoas e lagunas interdunares, os eolianitos e as dunas permitiram inferir uma possível exploração de recursos hídricos e alimentares possibilitando as ocupações pretéritas nessa região. Tais elementos naturais foram evidenciados nessa pesquisa, devido a sua importância quanto ao entendimento sobre a escolha e utilização da paisagem como ferramenta essencial na compreensão sobre os modos de habitabilidade desse(s) grupo(s). Dessa forma, os estudos arqueológicos contribuem para o conhecimento das peculiaridades dos grupos que ocuparam a área, podendo agregar dados aos estudos já existentes sobre ocupações pretéritas em outros ambientes dunares. Como objetivo geral dessa pesquisa propõe estabelecer um padrão de assentamento arqueológico na praia de Flecheiras, através de uma análise espacial em uma macroescala, abrangendo um estudo sobre os sítios e o bioma em que estão inseridos, com dados ambientais, espaciais, arqueológicos e etnológicos a fim de compreender as razões para a implantação desses sítios em dunas. Entre os objetivos específicos propomos compreender a distribuição espacial dos sítios e buscar possíveis correlações entre eles e os elementos naturais da paisagem que estão disponíveis para a exploração do ecossistema marinho e fluviomarinho em Flecheiras; e com base na análise da cultura material dos sítios Trairi I, Trairi II, Trairi III e Trairi IV, essa pesquisa teve a possibilidade de abordar as variabilidades e estudar as especificidades locais, buscando entender as relações com processos regionais (tecnologia e implantação na paisagem) e os fatores globais no que tange a evolução do ambiente. Dessa forma o trabalho foi dividido em cinco capítulos abordando questões diversificadas, porém inter-relacionadas de modo a facilitar a compreensão sobre o sistema. O capítulo um traça um panorama sobre as pesquisas desenvolvidas no Nordeste brasileiro em estudos direcionados a ocupação do litoral. Após uma extensa consulta bibliográfica, privilegiamos trabalhos relacionados não apenas aos assentamentos sob dunas, mas também sobre grupos sambaquieiros, pois através desse levantamento bibliográfico nos foi possível compreender a gama de enfoques teóricos e metodológicos utilizados para as interpretações de dados relacionados à tecnologia e ao ambiente de inserção dessas culturas. O capítulo dois trata dos aspectos teórico-metodológicos aplicados em nosso estudo, tendo por referência o enfoque processual. Entendemos que para se inferir sobre as formas de habitabilidade dos grupos que ocuparam a praia de Flecheiras é necessário compreender a

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relação do homem com o litoral, onde traços culturais se manifestam em respostas adaptativas ao meio. A abordagem da Arqueologia da Paisagem foi utilizada em alguns momentos, pois forneceu o aporte necessário para a compreensão das estratégias de sobrevivência do(s) grupo(s), com suas práticas de uso do espaço e de dados sobre processos formativos e pósdeposicionais. Através da Arqueologia Espacial buscamos no nível semi-micro as estruturas internas nos sítios de onde pudermos inferir os fatores funcionais, assim como também averiguamos possíveis relações entre os assentamentos da região e com o ambiente, numa perspectiva macro. Boa parte dos dados referentes à natureza contexto arqueológico e etnohistórico foram através de levantamentos bibliográficos e em análises em campo. O capítulo três aborda o contexto ambiental, arqueológico e etnohistórico da região noroeste do estado do Ceará, onde o município de Trairi se encontra. Não tendo sido possível uma análise da tecnologia dos sítios, utilizamos dados de outros sítios do litoral trairiense como referência para nossa comparação e para traçar possíveis perfis para Trairi I, II, III e IV. Através de levantamento bibliográfico foi possível compreender a evolução da paisagem costeira da região, desde a transição do Pleistocêno para o Holocêno e assim estimar o potencial ambiental que havia na região para a sobrevivência do(s) grupo(s) e o impacto nos sítios que possam ter havido frente à dinâmica costeira. Também utilizamos referências etnológicas sobre comunidades indígenas que habitam a costa noroeste cearense, e foram registradas desde o séc. XVI por missionários, exploradores e viajantes, descrevendo comportamentos sociais, seus territórios e relações com o meio ambiente. O capítulo quatro trata das análises semi-micro e macro entre os sítios Trairi I, II, III e IV. Com base em analogias com a cultura material apresentada no capítulo 3 e dos dados referentes à distribuição espacial dos sítios, processos pós-deposicionais e áreas de captação de recursos, traçamos um perfil sobre aspectos relacionados à função dos sítios estudados. O capítulo cinco aborda as considerações finais sobre a pesquisa, que após a apresentação dos dados referenciais (ambiente, distribuição espacial, contexto arqueológico e etnológico) visou explanar as relações entre esses subsistemas de modo a explicar como se deu o processo de habitabilidade do(s) grupo(s) na praia de Flecheiras e compreender os efeitos da dinâmica dunar nesse processo. Compreendemos que esse trabalho teve como foco discutir uma das inúmeras possibilidades sobre a ocupação do litoral brasileiro, já que a nossa escolha foi por seguir em uma análise processual, porém outros enfoques poderiam ter nos levado a outros resultados frente à parcialidade da coleta de dados e a sua interpretação, logo acreditamos ser aqui apenas a construção de um dos discursos possíveis.

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CAPÍTULO 1 – UM HORIZONTE SOBRE O HISTÓRICO DAS PESQUISAS ARQUEOLÓGICAS EM ASSENTAMENTOS DE GRUPOS CERAMISTAS NA COSTA NORDESTINA

Segundo Martín (2008) existe no Nordeste três pontos de destaque em assentamentos Pré-Coloniais costeiros, são os sambaquis no Maranhão e Recôncavo Baiano e as ocupações em dunas no Rio Grande do Norte. Porém novas pesquisas apontam para uma enorme diversidade nesse tipo de ocupação e estados que antes não dispunham de dados concretos sobre os grupos que habitaram o seu litoral passaram a investir nesse tipo de estudo, em alguns casos, mesmo havendo resultados ainda incipientes em várias áreas, foi possível traçar um panorama superficial sobre a Arqueologia no litoral nordestino. Destacamos aqui alguns trabalhos dos quais consideramos importantes para uma compreensão sobre a ocupação humana no litoral nordestino, são os sambaquis e os assentamentos sob dunas. O primeiro modelo, apesar de não se enquadrar nos sítios identificados em Trairi, nos oferece a oportunidade de comparar dados ambientais e sobre a cultura material, revelando as diferenças e similaridades entre esses modelos de ocupação. Em ambos os casos verifica-se a presença da cerâmica como fator aglutinador sobre as pesquisas, fato compreendido, pois nesse vestígio é possível entender comportamentos sociais, dieta, ritos, economia, contatos interculturais, além da tecnologia (LUNA, 2003, 2006). Porém a maioria dos pesquisadores tem-se detido a realizarem apenas perfis técnicos, sem buscar respostas para a presença desses vestígios em campo. No Nordeste verificamos a presença de inúmeras filiações ceramistas, muito estudadas na porção do semi-árido, tendo em vista que as ocupações mais antigas no país são oriundas desse bioma, porém novos estudos apontam para datações cada vez mais recuadas quanto aos vestígios cerâmicos, sobretudo no litoral. No Maranhão as pesquisas iniciaram com Mario Simões, pelo Projeto São Luiz, sendo identificados oito sambaquis, dos quais cinco já foram destruídos por ação da exploração de cal. Anos depois pesquisadores do Museu Paraense Emílio Goeldi puderam perceber que esses apresentam características semelhantes aos sítios paraenses, pelos mesmos vestígios malacológicos e da cerâmica pertencente à fase Mina (MARTÍN, 2008) comum da região Amazônica. Essa se caracteriza por uma manufatura acordelada, temperada com conchas e areia, pequenas, base aplainada e de formas arredondadas. Nesse estado as mais antigas datações são provenientes de carvão no sítio Maiobinha, ficando em torno de 2.090 e 1245 AP (BANDEIRA, 2008), e apesar de em boa parte do Nordeste os sambaquis apresentarem

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poucas amostras de restos ictiológicos, nessa região eles se caracterizam pela farta presença da espécie e também de moluscos (GASPAR; IMAZIO, 2000, p. 248). As primeiras publicações sobre a região costeira do Piauí tem início com Joina Borges que se utilizando de uma abordagem historiográfica sobre o sítio Seu Bode, aborda a paisagem em Arqueologia não apenas pelos objetos e o espaço do sítio, mais também pelos discursos que se constroem a partir das narrativas dos moradores do entorno e também dos descendentes indígenas que ali habitaram há tempos atrás aquela região. A autora, com base na documentação de cronistas dos séculos XVI a XVIII, e da correlação com as narrativas de grupos indígenas ainda viventes, defende a proveniência da ocupação litorânea piauiense como sendo da etnia Tremembé e entre os resultados de sua pesquisa foi concluído que a estratégia de ocupação nas dunas se deu como forma de resistência, já que nesse ambiente os indígenas teriam mais chances de resistir à perseguição promovida pelos invasores europeus. Esses assentamentos teriam em seu favor o acesso a vários recursos alimentares e para a produção de utensílios, além do fator de ocultação de suas aldeias entre as depressões dunares. Nesse estudo também foram adquiridas datações cerâmicas que revelaram ter o sítio do Seu Bode entre 2700 e 710 A.P (2006). Quaresma (2012) fala do sítio conhecido como Sambaqui da Baía ou Ponta do Socó, em Cajueiro da Praia, esse assentamento está implantado em uma duna fixa sobre tabuleiro litorâneo e se localiza próximo aos afloramentos rochosos na desembocadura do rio Timonha (divisa entre Piauí e Ceará), ali é possível verificar a presença de material cerâmico, ósseo e de restos faunísticos nos arrecifes. Porém nenhum trabalho arqueológico foi realizado no local para a confirmação da presença sambaquieira, além do fato da área receber forte impacto da ação das marés. Ainda no Piauí percebemos que os estudos mais recentes se direcionam para análises técnicas dos artefatos (SANTOS, 2013) e para os processos deposicionais que ocorrem em ambiente dunar (QUARESMA, 2012), relacionando esses dados aos assentamentos numa perspectiva da Arqueologia da Paisagem. Dessa forma os sítios Dunas I, Dunas II, Lagoa do Portinho e Seu Bode apresentam similaridades quanto a sua implantação em corredores eólicos ou planícies de deflação, e entre os seus vestígios a cerâmica da Tradição Tupiguarani e a da Fase arqueológica Papeba se encontram em vasta quantidade. Um detalhe chama atenção para a cerâmica, da qual o sítio Dunas II apresentou em seu antiplástico Cariapé, restos de uma espécie vegetal nativa da Amazônia onde também foi encontrado em sítios no Pará e Maranhão e que também estão associados à Tradição Mina, apontando para uma possível relação com os grupos dessa região (SANTOS, 2013).

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No Ceará as investigações sobre o ambiente costeiro foram principiadas pelo NEEA da Universidade Estadual do Ceará, com o Projeto Litoral que iniciou em 1995 e se deu até 1997. Tinha como objetivo localizar, identificar e estudar os vestígios de ocupações pretéritas ao longo da costa cearense (CAZZETTA, 1996), porém com o seu término estagnaram as pesquisas, sendo retomada há alguns anos, já relacionadas à arqueologia preventiva. Outro projeto arqueológico que ganhou bastante visibilidade devido a sua aproximação com etnias indígenas ainda existentes foi o Projeto Arqueológico Tremembé (NASCIMENTO et al, 2000), sendo uma ramificação do primeiro. Foram identificados em Itarema, na costa noroeste, seis sítios arqueológicos, onde um deles é o antigo aldeamento do grupo e os outros se caracterizam por ocupações Pré-coloniais, neles foi possível verificar a presença de cerâmicas Papeba e Tupiguarani, malacológicos e ossos de pequenos animais, além de carvões provenientes de fogueiras. Infelizmente os estudos sobre esses sítios nunca avançaram. Ainda no Ceará, precisamente em Jericoacoara, litoral noroeste do estado, foram identificados dois sítios pré-históricos, Malhada e Serrote, esses possuem vasta indústria lítica de pequenos instrumentos lascados e algumas ferramentas polidas maiores, sítios cerâmicos com fragmentos de paredes finas e de possível filiação a Fase Papeba e de paredes grossas, ligadas à tradição Tupiguarani, além de estarem junto à concheiros (VIANA et al, 2007). Em ambos os sítios foram encontradas várias estruturas de fogueira, com predominância para o sítio Serrote, onde estavam diretamente associadas àcerâmica e lítico. Correlacionando elementos etnohistóricos, ambientais e arqueológicos na região, estima-se que a ocupação foi de longa duração, por apresentar solo arqueológico de até 20 cm de profundidade, e por ser um grupo bem familiarizado com a captação de recursos naquela área. Na praia de Sabiaguaba, em Fortaleza-CE, foram identificados três sítios sob o mesmo contexto geomorfológico, corredores eólicos e planícies de deflação. A cultura material encontrada possui inúmeras microlascas e estilhas, além de batedores, cerâmicas e malacológicos (MARTÍN, 2003). Na continuação dos estudos dessa área por Sousa (2011) foi possível traçar um perfil técnico dos artefatos e os correlacionar a fatores ambientais, onde os resultados apontam para uma farta presença de lagoas inter-dunares e um expressivo mangue que abasteceriam o grupo quanto à alimentação e a presença do rio Cocó que entre outras coisas forneceria matéria-prima para a fabricação de utensílios lito-cerâmicos. Optou-se por não haver análises inter-sítio já que a dinâmica eólica poderia ter mobilizado os artefatos, dessa forma os resultados da pesquisa apontaram para um assentamento ligado a Fase

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ceramista Papeba. No sítio Sabiaguaba II houve datação de conchas associadas à cerâmica e que aponta para uma ocupação de 4.600 +- 30 A.P, até então a mais antiga para o estado. Morales et al (2012), após anos de pesquisa ao longo do litoral cearense e atrelada a Arqueologia Preventiva, realizou uma análise sobre o padrão de assentamento em sítios localizados sob dunas. Com base em dados peleoambientais sobre alterações do nível relativo do mar, formação de dunas e extinção de espécies da flora típica de mangue, além do perfil técnico da cultura material verificada foi possível inferir que havia uma alta mobilidade de grupos entre o sertão e o litoral através dos grandes rios, também havendo grande deslocamento ao longo da costa e que era na foz desses corpos d’água que era realizado a captação de recursos alimentares e de matéria-prima. Datações realizadas para o litoral leste1 assim como o perfil tecnológico encontrado nos sítios confirmam as hipóteses de ocupação por algumas culturas, tais como a Papeba e Tupiguarani, além da presença do colonizador europeu. Porém em vários desses sítios, estando os vestígios configurados como um palimpsesto diacrônico, por ação da dinâmica eólica, compreende-se que podem ter sido ocupados em momentos diferentes. O estado do Rio Grande do Norte tem destaque na região Nordeste, por ter sido um dos primeiros no país a receber pesquisas arqueológicas já na década de 60, durante o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA). Nássaro Násser pesquisou na região vários sítios cerâmicos e definiu a Fase Papeba, sendo essa classificável como da Tradição Aratu, e também definiu outro tipo cerâmico como sendo da Fase Curimataú, da subtradição Pintada, pertencente à tradição Tupiguarani. A primeira fase foi mais bem definida durante as atividades realizadas no município de Senador Georgino Avelino, em um sítio localizado as margens da lagoa denominada Papeba, sua antiguidade em relação à outra fase é inferida pela sua posição estratigráfica ser mais profunda (NÁSSER, 1974). A cerâmica da fase Papeba está dividida em várias categorias, dos quais o mais recorrente, até mesmo fora desse estado, é o Vermelho, possuindo decoração com banho que pode estar em ambas as superfícies alisadas, a espessura tem no máximo 1,2 cm e seu tempero é constituído de areia grossa variando de 1 a 0,5 mm bem distribuídos na pasta. Sua forma possui boca circular, lábio apontado, borda com inclinação externa e bojo em meia-calota, base arredondada, constituindo principalmente tigelas. Porém sua principal característica se dá pela presença de dois possíveis apêndices vazados ou dois furos circulares nas paredes 1

Sítio de ocupação Tupiguarani Cumbe 10, possui datação de carvão entre 500-420 A.P; sítio de ocupação Papeba Cumbe 11, possui datação de conchas de 1240 +- 30 A.P; sítio de ocupação Papeba Cumbe 12, possui datação de carvão de 970 +- 30 A.P. Todos os artefatos aqui datados estavam associadas a filiação ceramista indicada e estão localizados no município de Aracati – CE.

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opostas do vasilhame indicando a passagem de um cordel para sustentação (IBIDEM). Associado a essa cerâmica ainda encontra-se amplo uso do sílex para lascas com ou sem retoque e também para furadores, machados polidos de forma trapezoidal ou apresentando depressões semi-esféricas nas faces em quartzo verde e xisto, além de seixos em quartzo com marcas de uso como batedores e alisadores. Alguns malacológicos de médio porte (Strombus goliath) podem apresentar indícios de uso como raspadores e furadores. Posteriormente, Miller (2009) ligou o material Papeba ao povo Tarairiu de Janduí, fato pouco esclarecido. A cerâmica da fase Curimataú viria como posterior a Papeba e é caracterizada por apresentar tempero de cacos triturados, grânulos de argila e grãos de quartzo angulosos e subangulosos; o método de manufatura mais comum é o acordelado, também apresenta o modelado; o tratamento de superfície, tanto externa como internamente é irregular; a técnica decorativa diagnosticada é a pintura em vermelho e preto sobre o engobo branco, o vermelho sobre o branco, o banho vermelho e preto. A decoração mais frequente é a borda entalhada, acanalada, escovada, corrugada, escovada-acanalada e a escovada-corrugada. Entre as formas da vasilha estão à meia-calota, elipesóide e carenada. As bordas apresentam-se diretas, extrovertidas, verticais e inclinadas interna e externamente. Esses dados permitiram identificar a Fase Curimataú como integrante da subtradição Pintada, sendo essa parte da Tradição Tupiguarani (SIMÕES, 1969; NÁSSER, 1974). Brochado considera que essa fase teria seu início simultaneamente à Fase Itapicuru, essa é definida na Bahia e datada de 1270 +- 130 A.D. por Brochado (1969 apud LUNA, 2006). Para o final da Fase Curimataú considera-se dados etnohistóricos, datando que esta coincidiria com a época da fixação do elemento europeu no Rio Grande do Norte. Também no Rio Grande do Norte se deu o “Projeto Homem das Dunas”, que identificou e resgatou inúmeros sítios por toda a costa potiguar. As principais características dos vestígios encontrados eram de inúmeras lascas, microlascas, estilhas em sílex, calcedônia e quartzo, além de alguns poucos almofarizes, mãos-de-pilão, machados, e duas unidades cerâmicas

distintas,

das

quais

uma

delas

seria

Tupiguarani

(MARTÍN,

2008;

ALBUQUERQUE; SPENCER, 1994). Outros pesquisadores da região se detiveram sobre os processos de formação dos sítios nesse ambiente, Silva (2003) sistematizou uma série de métodos e aportes que podem ajudar na interpretação arqueológica dos vestígios, como o deslocamento de microlascas por ação eólica, atividades de pisoteio e aragem na atualidade realocando o posicionamento de peças, sem mencionar o fato de que os próprios grupos indígenas poderiam “limpar” os assentamentos empurrando para fora das áreas de atividade os vestígios maiores. Nessa

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mesma linha Medeiros (2005) traça outras possibilidades para os processos formativos de sítios do litoral setentrional do estado, incluindo o desgaste das faces no material cerâmico e o ocultamento das estígmatas de lascamento em líticos devido à ação eólica; do intemperismo antrópico sobre esses sítios ser maior sob o ponto de vista horizontal (estratigrafia) e não vertical, indicando que a dispersão espacial de vestígios sobre dunas deve ser por agentes culturais; a presença de vestígios ósseos pode indicar baixo índice de modificação pósdeposicional, já que esses são muito sensíveis ao inteperismo natural; sobre elevações sedimentares contendo material arqueológico em superfície indicando uma preservação da deposição cultural dos objetos, etc. Em Alagoas, os primeiros indícios sobre sítios litorâneos foram rumores sobre sambaquis, ao norte, por Brandão (1937 apud MARTÌNS, 2008) e não foram confirmados, porém o registro de sítios costeiros ligados a Tradição cerâmica Aratu já fora relatado durante ações do PRONAPA (SIMÕES, 1969; NÁSSER, 1974). As pesquisas sistemáticas sobre assentamentos litorâneos iniciaram há poucos anos, com Silva (2009) de onde temos os primeiros resultados sobre o modo de vida dos habitantes da costa alagoana. Essa pesquisa propõe a identificação da área de captação de recursos do sambaqui Saco da Pedra, em Marechal Deodoro, no sul do estado, tendo como base as análises espaciais do sítio e dos vestígios malacológicos, assim foi possível identificar o território de exploração da comunidade sambaquieira, o perfil tecnológico dos vestígios lito-cerâmicos e a identificação de zonas de proveniência para a argila. O sítio Saco da Pedra está implantado nas margens de uma laguna, cuja autora conclui ser um ambiente propício para a habitação já que oferecia todos os recursos necessários para o sustento do grupo em termos de alimentação e da oferta de matéria-prima argilosa, utilizada para a fabricação de utensílios cerâmicos. Em Sergipe, pesquisas direcionadas a identificação de áreas potenciais para a presença de sítios do tipo sambaqui tiveram resultados negativos para a ocupação desse grupo, tendo em vista que a costa desse estado não possuía condições geológicas favoráveis à formação de grandes ambientes lagunares nos últimos 5.000 anos A.P. (AMANCIO, 2001; 2002). Em outra perspectiva a proposta de Simões (2014) foi a de compreender a ocupação da costa sergipana após a Última Transgressão, em 5.200 A.P, a partir da análise no sítio Cardoso. Tendo como aporte teórico a Arqueologia da Paisagem, sua reflexão foi construída com base na união de dados geomorfológicos atuais e paleoambientais, perfil técnico da cultura material, análises espaciais intra e inter-sítios e a aplicação de conceitos ligados à visibilidade. Com base nos resultados aferidos a autora conclui que o grupo responsável pela ocupação do sítio possuía um bom domínio de seu território onde possivelmente escolhiam as

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áreas de assentamento com base em estratégias de ocultação contra inimigos, percebe-se também uma alta mobilidade do grupo, pois alguns traços encontrados nos vestígios apontam para matéria-prima fora da área dunar e a própria cultura material aponta para utensílios de pequeno porte. Na Bahia, Valentin Calderon introduz a pesquisa arqueológica pelo PRONAPA a partir de estudos realizados nos sambaquis do Recôncavo Baiano, principalmente no sítio Pedra Oca, em Salvador. Esse possuía farto material lítico como moedores e quebra-cocos; pontas de osso e conchas perfuradas; sepultamentos, buracos de estaca e uma baixa densidade cerâmica identificada como a Tradição Periperi, dos quais se caracteriza pelo tempero com areia, coloração marrom-escura e uma decoração simples cuja borda não tinha os roletes obliterados (SIMÕES, 1969). Estudos posteriores nesse sambaqui concluíram que a ocupação inicial é datada em 5.200 AP e no seu processo de formação antropogênico identificam-se moluscos e ossos de peixes pequenos e de médio porte, porém havendo uma maior concentração de sedimentos nesse processo levando a crer que houve pouca mão de obra na construção do sambaqui e havendo uma ocupação sazonal (AMANCIO, 2006, 2007). Foi também no litoral onde se identificou os primeiros e mais antigos registros da Tradição ceramista Aratu, cuja às datações apontam para o séc. IX, suas feições são em forma de jambo invertido, alisamento externo e apresentando tampa para vedação da estrutura, tendo em vista que todas as urnas contêm sepultamentos (ETCHERVARNE, 1999/2000), ressalta-se que Luna (2006) contesta o uso do termo Tradição, já que os dados obtidos são duvidosos e imprecisos pelo método pronapiano, o mesmo realizado por Calderón, esse também identificou na ilha de Itaparica a tradição lítica que carrega o nome da localidade, usada por caçadores-coletores que fabricavam pontas com pendúculo. Os principais sítios da Tradição ceramista Tupiguarani, de forma geral para a região Nordeste, estão no litoral e com datações que remontam a época colonial (LUNA, 2006), porém ela também é encontrada em outros pontos do interior e divide com a tradição Aratu o título de mais abrangente em termos espaciais para o Brasil. Esses dados relativos ao registro arqueológico corroboram para validar a discussão sobre a presença de grupos que dominavam a técnica da agricultura, os quais muitos foram filiados à tradição Tupiguarani. A cultura material dessa tradição assemelha-se aos dados etnohistóricos dos grupos Tupi-Guaranis, os quais dominavam boa parte da costa durante o período de colonização. Esses teriam ocupado a costa em período recente, por volta de 2.000 AP e seu domínio inicia provavelmente após as culturas que eram essencialmente adaptadas à exploração de recursos marinhos, pois o ambiente litorâneo favorecia uma sedentarização

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devido à alta disponibilidade de recursos (SCATAMACCHIA, 1991, 1993-1995 apud SOUSA, 2011). Com base na contextualização aqui traçada procedemos com a incorporação de algumas informações, tais como perfis técnicos, dados paleoambientais e etnohistóricos, processos formativos em sítio e datações que puderam elucidar nossas análises realizadas junto aos sítios Trairi I, Trairi II, Trairi III e Trairi IV, na praia de Flecheiras, no Ceará.

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CAPÍTULO 2 – O APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO 2.1 UMA ARQUEOLOGIA DE ASSENTAMENTOS

Sendo essa pesquisa direcionada para a compreensão de grupos que desenvolveram assentamentos que hoje estão localizados sob dunas holocênicas, consideramos a análise na perspectiva dos padrões de assentamento como a melhor abordagem para atingirmos o nosso objetivo, já que a dinâmica cultural e natural nesse ambiente é um fator de difícil acesso para a identificação e análise do material arqueológico, devido à ação eólica e antrópica na atualidade que são consideradas como destruidoras para os vestígios arqueológicos (SILVA, 2003). Estudos direcionados para a compreensão de assentamentos humanos são desenvolvidos há bastante tempo e seguiram ao longo do histórico das pesquisas os mais diversos pressupostos teóricos. O determinismo ecológico foi o primeiro deles, e se utilizava de uma análise fragmentada da história, onde o objeto de estudo se dava apenas pela cultura material, descontextualizando-o do espaço onde não era possível atingir os fatores culturais (SENA, 2007). Dispostos a superar essas limitações alguns arqueólogos perceberam que ao se tratar do estudo de populações das quais não há dados concretos sobre sua estrutura social, econômica e do seu contato com outros grupos, é necessário, inicialmente, uma compreensão de como se dava a relação dessas comunidades com o meio ambiente. Barbosa-Guimarães (2011) apontou duas tradições arqueológicas para os estudos em Arqueologia de assentamentos, a britânica e a norte-americana. Na primeira escola as pesquisas iniciaram na década de vinte, porém pouco avançou até meados de cinquenta, pois David Clarck passou a incorporar nas análises um aspecto mais econômico, onde os seus seguidores direcionaram o foco para as áreas de captação de recursos (site catchments analysis). Nos EUA, apenas em fins da década de trinta tiveram inicio os estudos voltados ao padrão de assentamento, despontando o trabalho desenvolvido no vale do rio Virú, no Perú, por Willey, em 1953. Foi dessa forma que os fenômenos não culturais se tornam um aspecto importante para entender as mudanças na sociedade, e um novo modelo de interpretação se dedicou a esse entendimento, o Ecológico-Cultural, que para Steward, (1974 apud FRANCH, 1989) se definiu como o estudo dos processos pelos quais uma sociedade se adapta ao seu ambiente. Essa definição pouco se diferencia da proposta de Hole e Heizer (1973 apud FRANCH, 1989)

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que a entendiam como um subcampo da Antropologia que buscava compreender o funcionamento da cultura no meio ecológico. Nesse enfoque, intrinsecamente relacionado a questões oriundas das Geociências a Ecologia passou a ser entendida como uma ciência que busca sintetizar os conhecimentos oriundos das ciências naturais e as condições das ciências sociais sobre o caráter das inter-relações entre a Natureza e a Sociedade (RODRIGUEZ et al, 2007). A partir disso vários pesquisadores passaram a considerar a temática sobre a relação homem-ambiente como fundamental para o desenvolvimento humano no passado (BINFORD, 2007; BUTZER, 1989), mesmo que em alguns casos o aspecto não cultural ainda fosse entendido como o mais importante para essa análise como defendido por Flannery (1967 apud RENFREW & BAHN, 1998). Em resumo, a Ecologia Cultural defendia uma evolução multilinear das culturas frente a uma pressão do meio (adaptação), ocasionando assim diferentes estruturas culturais e essas mudanças poderiam ocorrer nos sistemas de produção ou na tecnologia das comunidades. No enfoque Ecológico a cultura foi vista como um sistema, onde ocorrem trocas de energia, informações e matéria entre todos os seus componentes. Assim foi possível entender como fatores externos à cultura puderam influenciar em seus processos (JOHNSON, 2000). Dessa forma, os sistemas competem entre si pelo tempo e energia do indivíduo, no qual o sustento de seu modo de vida depende deles. A mudança cultural surge justamente nas pequenas alterações que podem ocorrer em um ou mais desses sistemas que assim buscam o equilíbrio. Dentro de cada um existem subsistemas que se retroalimentam e dessa forma mantém o equilíbrio do sistema, esse ao longo do tempo passa por uma série de estados diferenciados (RENFREW & BAHN, 1998). A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) considerou importantes duas esferas: a ambiental e a sociocultural. Na primeira, se destacam os subsistemas geomorfológicos, da fauna, flora e o clima; enquanto que no meio social encontramos a cultura material, a economia, a religião, a psicologia e a sociedade (FRANCH, 1989; RENFREW & BAHN, 1998). Nessa teoria os sistemas culturais humanos estão inter-relacionados com o seu entorno e passam por mudanças contínuas, pois estão em processo evolutivo (SANJUÁN, 2005, p.189). Johnson (2000) destaca na Teoria dos Sistemas, que o seu funcionamento ocorre em função dos grupos humanos estarem minimamente adaptados ao ambiente externo. Nesse tipo de abordagem pode-se apenas observar os sistemas socioculturais, sem realmente compreendê-los, já que as normativas regenciais dos sistemas culturais são inalcançáveis.

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Tomamos como referência para a Arqueologia observar as semelhanças e diferenças culturais nos grupos e identificar quais as relações existentes entre a sociedade e o ambiente. Essas características são triviais para a análise processual e estão no aspecto generalizante, já que traços comuns e recorrentes em sociedades podem ser descritos como semelhantes mesmo independentes de seu contexto ambiental, assim como ambientes semelhantes também podem gerar diferentes culturas, nota-se que o meio é o fator crucial para o entendimento das mudanças, ou seja, o homem e sua cultura são adaptáveis ao meio (BINFORD, 2007; BUTZER, 1989). Os sistemas são passíveis de uma modelagem voluntária, o que pode lhes render generalizações. Comparando os sistemas culturais com o meio ambiente é possível pensar que mudanças positivas ocorridas num dado subsistema o afetam como um todo, e para o retorno da homeostase é necessário uma adaptação à mudança ocorrida, caso essa seja negativa, isso pode significar o declínio do sistema. Os subsistemas estão relacionados, reconhecendo a funcionalidade uns dos outros e, a análise da relação entre os subsistemas deve ser feita por correlação, excluindo-se causas simples. Sobre as generalizações no enfoque processual, fica clara a sua postura homogeneizante, onde busca superar as explicações particularistas sobre cada fenômeno quando se demonstra a articulação entre as variáveis do sistema, dessa forma podendo-se criar leis generalizantes (MARTINÉZ, 1990). No entendimento da Nova Arqueologia, a partir do momento em que as sociedades precisam se moldar às alterações do ambiente, logo uma série de leis generalizantes podem ser aplicadas a qualquer população (BINFORD, 2007). O funcionalismo se relaciona com a ideia de que as culturas são parecidas a organismos, de modo que as partes se explicam segundo a função que realizam com relação ao conjunto. Logo a Arqueologia de assentamentos está inserida numa perspectiva funcional, onde as culturas são compreendidas como sistemas sociais (BARBOSA-GUIMARÃES, 2011). Lewis Binford (1962, 1964 apud MILLER, 2012) considerou que a pesquisa arqueológica devia ser o panorama sobre grupos que tenham desempenhado atividades organizadas de captação de energias e matérias do ambiente, ou que tenha transformado tais matérias para produzir instrumentos ou energias utilizáveis. Franch (1989) descreve que um dos aspectos dos quais se deve considerar nas relações entre sociedade e meio-ambiente é, em parte o potencial natural e a outra, a capacidade tecnológica da cultura para explorar esse potencial. Sobre a tecnologia, Miller (2012) a

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considera de forma que os artefatos usados para lidar com o ambiente são fontes de energias para sistemas socioculturais humanos. A adaptação funciona como reposta ao desequilíbrio no sistema, influenciando a tecnologia, a sociologia e a ideologia nos grupos. Para White (1959 apud BINFORD, 2007) a cultura é um meio extrassomático pelo qual o corpo humano se adapta. A New Archeology costuma explicitar esse tipo de desequilíbrio por meio de teorias cataclísmicas, como por exemplo, o aumento exacerbado da densidade demográfica, secas climáticas, terremotos, etc. Martinéz (1990) descreve que essas transformações, no caso dos artefatos, podem ser constituídas dentro da sociedade, podendo ser oriundas de pressões demográficas ou de relações intergrupais, porém, é a mudança ecológica a chave da causalidade, a tecnologia atinge a organização social e esta a sua ideologia. As estratégias adaptativas são respostas de um sistema às alterações internas e/ou externas que influem no padrão de assentamento dos grupos que habitaram uma determinada área que pode ser analisada a partir da percepção das alterações dos componentes fisiogênicos, biogênicos e antropogênicos (BUTZER, 1989). Porém, mesmo havendo semelhanças e diferenças nos registros arqueológicos, as explicações para tal devem ser feitas com base nos conhecimentos atuais sobre as características estruturais e funcionais dos sistemas culturais (BINFORD, 2007). A variabilidade é um aspecto importante para a análise, já que não se busca apenas por grandes e monumentais sítios, mas também por locais onde a amostra registrada seja capaz de representar as mudanças na cultura (JOHNSON, 2000).

2.2. SOBRE OS PADRÕES DE ASSENTAMENTO E A IMPORTÂNCIA DA PAISAGEM EM SUA ANÁLISE

Após nossa contextualização sobre a formação do pensamento a respeito dos estudos arqueológicos em assentamentos, destacamos o modelo inaugurado por Gordon Willey, em 1953, com a sua pesquisa no Vale do Virú. Partindo de uma perspectiva funcional, ele analisou vários fatores ambientais, estruturas sociais e as manifestações culturais de um grupo e percebeu que para compreendê-los é preciso analisar todos os dados dando-lhes a mesma relevância e que essas variáveis funcionam como redes conectadas, onde cada sítio possui atribuições distintas e complementares, com níveis hierárquicos de importância em sua composição (TRIGGER, 2004).

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Trigger (1968 apud FRANCH, 1989) destaca as possibilidades de abordagens nesse tipo de estudo, pelo aspecto ecológico, buscando a distribuição de assentamentos e as interrelações existentes, estratégias de sobrevivência, a tecnologia e o geoambiente; no fator espacial, se entende por todas as evidências no sítio como parte da organização social do grupo residente. Beber (2004 apud LIMA, 2006) percebe o padrão de assentamento como uma sucessão de ocupações em um determinado espaço, resultantes da ocupação por diversos grupos que apresentavam distintas culturas ou por uma mesma sociedade que passou por transformações culturais ao longo do tempo de ocupação. Dessa forma quanto maior a permanência em um dado local, mais expressivo e complexo de compreender seriam essas ocupações. Dentro desse período de estabelecimento da comunidade é possível acontecer algumas mudanças de cunho social e ambiental que podem resultar em transformações na tecnologia dos grupos. Dois enfoques se destacaram nos estudos sobre Padrão de Assentamento em meados da década de sessenta: o determinista ecológico que percebe esse estudo como o resultado da interação entre ambiente e tecnologia numa análise inter-sítios ou macro-estrutural; enquanto que o outro enfoque se detém aos aspectos ideológicos e sociais que são percebidos na forma de ocupação e cuja análise é a intra-sítio (DIAS, 2003). O desenvolvimento das pesquisas nesse último resultou na criação de uma abordagem mais ampla: o sistema de assentamento. Trigger (1967 apud BARBOSA-GUIMARÃES, 2011) o compreendia numa relação entre vários níveis de análise, tais como a estrutura individual, o assentamento local e a distribuição dos assentamentos numa região. Nesse quadro é possível que grupos semelhantes tenham desenvolvimentos diversos, já que estão submetidas a ambientes diferenciados e apenas com as condições naturais e socioculturais bem determinadas é possível entender as relações entre ambas (FRANCH, 1989). Corteletti (2009) observa que na abordagem para o padrão e do sistema de assentamento regional é necessário um complexo exercício teórico de inter-relações entre muitas variáveis de cunho ecológico, espacial, etnográfico e arqueológico. Com o conhecimento desses fatores será possível identificar padrões de organização, distribuição e implantação dos sítios na paisagem. Tendo a paisagem arqueológica papel importante para a análise dos padrões, é nesse tipo de Arqueologia, que para Lima

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os sítios contextualizados no ambiente passam a ser elementos de uma rede onde o ambiente e sua mobilidade é representativa e pode reconstruir os diversos momentos da paisagem. O estabelecimento do padrão de assentamento de um conjunto de sítios além de contribuir para a identificação de um ou mais traços culturais, numa espacialidade e temporalidade determinada, favorece na montagem de um modelo de ocupação e exploração deste espaço em momentos de estabilidade ou de alteração climática (2006: 57).

Concebendo a paisagem como um sistema é necessário perceber a sua existência como um todo, compreendendo as inter-relações entre as várias partes que existem dentro do sistema. Na concepção da Geografia a paisagem natural se apresenta dinâmica, o que não implica afirmar que seus elementos estão caoticamente mesclados, mais sim como conexões em harmonia entre a estrutura e a função, logo esse é um espaço físico e um sistema de recursos naturais aos quais se integram as sociedades em um binômio inseparável Sociedade/Natureza (RODRIGUEZ et al, 2007). No contexto de nossa pesquisa a Arqueologia da Paisagem colabora no sentido de que impulsiona estudos direcionados para a compreensão das estruturas internas de um sítio, sendo esses o resultado da ação de fatores naturais e antrópicos que indicam as transformações ocorridas ao longo do tempo e fazendo parte da evolução da paisagem (DIAS, 2003). Para a análise da paisagem em Arqueologia, Anschuetz et al. (2001 apud SANTOS, 2013, p.21), ressalta alguns pontos dos quais devem ser considerados para esse procedimento: a) A paisagem não pode ser entendida apenas como meio ambiente e sim como as interações entre o homem e o meio que o envolve. b) A paisagem é uma produção cultural, uma vez que os espaços físicos são construídos a partir de atividades diárias, crenças e valores, sendo assim uma composição do mundo. c) A paisagem é o palco das atividades comunitárias, sendo a construção das populações que a habitaram e o meio no qual vivem e tiram sua subsistência. d) A paisagem é uma construção dinâmica e as comunidades introduzem seu mapa cognitivo de mundo. Para Fagundes (2009 apud QUARESMA, 2012) pensar a paisagem sob o ponto de vista da sobrevivência humana não é uma visão errônea, já que é por meio da captação dos recursos presentes num dado ambiente que qualquer grupo busca a sua sobrevivência, logo essa questão deve ocupar uma importante posição de destaque nas estruturas intergrupais. Vale ressaltar que é a partir desses recursos naturais, compreendidos aqui como os corpos e

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forças da Natureza, que em um dado nível de desenvolvimento das forças produtivas pode-se utilizar para satisfazer as necessidades da sociedade humana, através de sua participação direta nas atividades materiais (RODRIGUEZ et al, 2007) que o homem possui meios para a fabricação de artefatos e para a sua dieta. Entre os processos que também possibilitam um melhor entendimento sobre a relação do homem e o meio ambiente é a perspectiva que trata dos processos de formação do registro arqueológico que muito podem colaborar para o entendimento da paisagem. Shiffer (1976 apud SILVA, 2003) apontou duas variáveis importantes para a compreensão dos processos formativos, o aspecto cultural (C-Transforms) e o natural (NTransforms), no primeiro estão inseridos características de deposição de itens materiais como operações cotidianas de um sistema cultural, incluem-se aqui as ações humanas pósdeposicionais. No segundo contexto é possível determinar as interações entre os vestígios e os aspectos do meio ambiente, onde foram recuperados. Indubitavelmente o registro arqueológico passa pelos mesmos processos que moldam a paisagem (BUTZER, 1989), sendo possível identificar, através de estudos geomorfológicos, a dinâmica formativa local e possíveis perturbações do registro. Binford (1992 apud FAGUNDES; PIUZANA, 2010) também vê nos processos formativos do registro arqueológico a chave para a compreensão das relações no passado. Concepção essa que norteia a Arqueologia da paisagem, no sentido de que pode intervir no entendimento das relações sociais que se deram nos sítios arqueológicos e que estão manifestadas no seu registro.

2.3 SISTEMATIZANDO A PESQUISA: OS MÉTODOS DE ANÁLISE PARA OS SÍTIOS NA PRAIA DE FLECHEIRAS

Com base nos estudos sobre padrão de assentamento traçamos a abordagem utilizada para compreendermos a ocupação da praia de Flecheiras, em Trairi. Tendo o meio ambiente um papel preponderante nessa análise, optamos por considerar os fundamentos da Arqueologia da Paisagem como ferramenta para compreender as transformações do meio natural e os impactos na ocupação da região. Essa escolha se deu, pois a Arqueologia da Paisagem também tem por objetivo, buscar informações relativas às formas de exploração dos recursos e das tecnologias pelas sociedades, além de relacioná-las aos processos geomorfológicos, edafológicos, das dinâmicas climáticas, da evolução do ecossistema natural e antrópico, não visando apenas o estudo arqueológico tradicional dos vestígios relacionados a

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atividades pretéritas (DEL VALLE, 2008 apud QUARESMA, 2012). Esses dados também visam à compreensão do processo formativo e pós-deposicional nos sítios. Dessa forma alguns postulados podem ser traçados para o estudo sobre a paisagem arqueológica (FAGUNDES; PIUZANA, 2010, p. 215) e que contribuíram na compreensão sobre os processos formativos dos sítios analisados no município de Trairi – CE, são eles: a) Partiria dos estudos sobre a Geologia, a geomorfologia, o microclima, dos processos e índices de erosão e deposição, e a distribuição de recursos, ou seja, inicialmente em uma dimensão geoecológica ou biogeográfica. b) Um segundo momento é marcado pelo estudo da estratificação (ou paleoníveis no solo) dos sítios escavados, ou seja, do processo de formação dos depósitos culturais de modo que indicassem hipóteses sobre períodos de ocupação, abandono e reocupação. Atendendo ao primeiro postulado foi realizado um levantamento bibliográfico a respeito do paleoambiente, indicando sua dinâmica formativa e os elementos que compunham aquela paisagem, considerando também sua evolução para o quadro atual onde visamos compreender a ação natural nos processos pós-deposicionais (SILVA, 2003). Considerando que alguns sítios receberam intervenções em subsuperfície assim como nas suas proximidades, os sítios Mundaú I, Trairi IV, Boa Esperança, nos serviram de referência para a compreensão da estratigrafia e leitura da deposição vestigial, logo conseguiremos abordar também o segundo postulado. A documentação utilizada para a análise em Arqueologia da Paisagem foi referenciada em Relatórios de Impacto Ambiental para o município, artigos acadêmicos relacionados às áreas de Geografia e Geologia, além dos relatórios de resgate em sítios da região trabalhados pela Arqueologia Preventiva. Além da bibliografia também foram realizadas prospecções cujo intuito foi de verificar a microdinâmica ambiental nos sítios, para isso observamos o espaço mediante estados climáticos diversos, tais como o período chuvoso e também sob alta exposição solar/eólica. Essa averiguação teve por intuito identificar os processos pós-deposicionais que pudessem intervir na dispersão e conservação da cultura material, tendo em vista que a implantação dos sítios, como será descrita mais adiante, se encontra em áreas que estão expostas, em alguns casos, parcialmente ao alagamento como a planície fluvial e as lagoas do entorno no córrego Estrela (Trairi I) e as depressões dunares (Trairi II, Trairi III e Trairi IV) que podem se tornar alagáveis mediante atividade chuvosa. Durante o tempo de pesquisa, que se deu entre 2013 e 2015, foi possível perceber também a ação de animais nas áreas vestigiais

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e de como se dava a interferência dos mesmos em alguns sítios. Essas considerações serão melhor abordadas no capítulo 3. Tomando o padrão de assentamento como o foco principal de nossa pesquisa, as questões relativas à Arqueologia Espacial tiveram bastante importância. Clarke (1977) a define como um estudo do fluxo e integração de atividades que ocorrem dentro e entre as estruturas dos sítios e espaços de captação de recursos, nas escalas que vão de micro, semimicro e macro. Esse fluxo das atividades que ocorrem nas estruturas foi muito importante para a compreensão dos arranjos espaciais e das relações Homem-Ambiente. O nível micro abrangeu o interior das estruturas, onde os fatores individuais e culturais sobrepujam amplamente aos econômicos. A localização desse ponto recebeu intencionalidade cultural por parte de seus construtores, assim como os artefatos aqui encontrados. O nível semi-micro abrangeu o interior de um sítio, também conhecido como intra-sítio, o espaço comunal, fatores sociais e culturais podem prevalecer sobre a maioria dos fatores econômicos, mas essa possui maior relevância que no nível anterior. A estrutura locacional é também de intencionalidade cultural, espaços de recursos, estruturas e atividades relativas a um local particular dentro do sítio. Esses podem ser assentamentos domésticos, centros cerimoniais, cemitérios, complexos industriais ou locais de campos temporários. O nível macro está situado entre os sítios. Os modelos geográficos e econômicos são extremamente relevantes neste ponto e por causa do tamanho da escala aqui envolvida, os fatores econômicos dominam a maioria dos aspectos sociais existentes. A estrutura locacional não foi aleatória e os espaços de recursos, as estruturas e os sítios estão em um local particular, relativo ao sistema integrado de sítios e através das paisagens. A premissa de que ao longo do tempo os grupos humanos tendem a diminuir os seus gastos de energia para adquirirem mais benefícios, foi o pressuposto referencial para a compreensão desse esquema (Clarke, 1977). Esse trabalho realizou uma análise espacial dos sítios existentes no litoral de Trairi, numa macroescala, bastante comum para a abordagem em padrões de assentamento (LIMA, 2006; SENA, 2007; CORTELETTI, 2009), indicando como pode ter se dado a relação entre os sítios e as diversas variáveis ambientais, tais como o relevo, a topografia, a sedimentologia, a hidrografia, a cobertura vegetal, a pluviosidade e o clima, a fim de identificar um padrão espacial da distribuição dos sítios em dunas. Como resultado da análise espacial foi elaborado mapas com a localização dos sítios onde podemos identificar possíveis áreas de captação de recursos, a saber, as lagoas interdunares, nascentes, mar, redes de drenagem, vegetação, cascalheiras em afloramentos da

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Formação Barreiras, eolianitos, etc. Para a delimitação dessas áreas no entorno dos assentamentos foi considerada a distância entre os dois polos: área de captação e sítios, tendo em vista a proposta de Clarke (1977) sobre a redução de gastos energéticos visando o aumento de benefícios. Com base nisso foi organizado ainda o mapa “Distribuição dos Sítios Arqueológicos no Município de Trairi” (Mapa 3) documentando os sítios existentes, constando a distribuição dos assentamentos e sua implantação no espaço onde foi possível avaliar essas informações e proceder com a compreensão do padrão de ocupação. A análise integrada dos mapas possibilitou verificar esses fatores inter-relacionados de dados que podem elucidar padrões de comportamento humano, inclusive sobre as áreas de exploração, pois é “na Paisagem que são desenroladas as relações humanas, e nelas são estudadas as inter-relações entre as comunidades e o ambiente, através de possíveis alterações realizadas por elas na área, como por exemplo, a exploração de recursos naturais” (VITAFINZI, 1978 apud SIMÕES, 2014, p. 27). Partindo de uma análise regional (macro) sobre o padrão de assentamento em Trairi, seguimos para uma conjuntura local, precisamente na praia de Flecheiras. Pensando nisso foram realizados mapas de distribuição espacial nos sítios Trairi I, II, III e IV, pois os padrões de assentamento integram diferentes níveis de análise espacial, podendo ser tanto em termos microestruturais, diretamente relacionados ao assentamento propriamente dito, como também em nível macroestrutural, através do estudo comparativo entre assentamentos distribuídos na paisagem (Chang, 1968 apud DIAS, 2003). Para uma análise semi-micro dos sítios em Flecheiras, foi necessária a confecção de mapas de distribuição espacial em cada um deles. Foi criada uma malha, cujos quadrantes possuíam 5 x 5 m, em cada concentração de vestígios e a partir das medidas cartesianas de x e y em cada quadrante (Figuras 1 e 2), a representação foi feita numa escala de 1:200, essa foi escolhida já que privilegiava alguns detalhes em nossa análise que serão explanados nos capítulos seguintes. Os croquis foram transformados em mapas digitais, após o seu georeferenciamento e vetorização no software Arcgis 10.1, dos quais utilizamos como fontes para a base da confecção dos mapas, dados do IBGE e CPRM de 2015, além de imagens Digital Globe (Google Earth) .

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Figura 1 e 2 – Fotografia da elaboração de croquis para análise da distribuição espacial nos sítios

Fonte: Acervo particular do autor, janeiro de 2015.

Ainda sobre a análise semi-micro, optamos pelos seguintes critérios tipológicos para classificar a tecnologia nos sítios Trairi I, II e III, de acordo com modelos já utilizados em outros sítios sob dunas no litoral do município (MARQUES, 2012b, 2012c, 2013). Para o material lítico temos: a) Quanto à forma: núcleo, o que sobra da matéria-prima após o lascamento; lasca, fragmento de rocha debitado por percussão em um ponto na extremidade do núcleo; b) Matéria-prima: arenito que é uma rocha sedimentar com camadas solidificadas de areia; quartzo leitoso – hialino – quartzito, são cristais comumente prismáticos com faces estriadas horizontais; silexito é uma variedade cripto cristalina fibrosa do quartzo; c) Atributos das lascas: unipolar, foi a primeira a ser retirada e apresenta córtex; microlascas, resultado do retoque e por isso são muito pequenas; d) Tipos de artefato bruto: percutor que podem ser seixos de formas arredondadas e superfície alisada com uso para bater, lascar e moer; a bigorna que tem forma natural e marcas impressas na sua face plana; machado polido que são peças com polimento na extremidade distal. Enquanto para análises na cerâmica os critérios trabalhados para a caracterização tecnológica foram: a) Morfologia do fragmento: borda, bojo e/ou base; b) Tratamento de superfície inter/externa: alisado, polido, escovado, pintado com engobo;

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c) O tipo de queima: oxidada e reduzida; d) Antiplástico: areia fina, areia fina e fragmentos de quartzo moído, areia grossa e fragmentos de quartzo moído e, cacos moídos; e) Classificação quanto à cultura arqueológica: Tupiguarani, Papeba e/ou Cabocla. Escolhemos esses atributos com base na facilidade para sua identificação em campo e por também serem relevantes para as análises que foram realizadas em Trairi IV, na praia de Flecheiras; Mundaú I, II, III, IV e IV, na praia de Mundaú; Guajiru II, na praia de Cana Brava; Boa Esperança e Aldeia do Trairi, na sede do município, onde apresentaremos no capítulo 3 o resultado das análises tecno-funcionais obtidas por esses arqueólogos que também abordaram os mesmos elementos por nós destacados para esse estudo. Através dessa perspectiva comparativa entre os dados foi possível perceber similaridades e disparidades entre os sítios da praia de Flecheiras (Trairi I, Trairi II e Trairi III), com os outros sítios localizados sob dunas (praia de Mundaú e Cana Brava) no litoral do município de Trairi. Figuras 3 e 4 – Fotografia da prospecção na superfície dos sítios

Fonte: Acervo particular do autor, maio de 2013 e janeiro de 2015, respectivamente.

Outra fonte de pesquisa para a caracterização da relação entre essas comunidades e o ambiente litorâneo está nas fontes etnohistóricas, aqui foram utilizadas para subsidiar a interpretação arqueológica e que puderam fornecer informações referentes ao padrão de ocupação desses grupos em meio às dunas. Alguns autores apontam como positiva a contribuição desse tipo de informação para pesquisas em padrões de assentamento (SENA, 2007; CORTELETTI, 2009; SOUSA, 2011; NOBRE, 2013). Com esse intuito foi realizado um levantamento com base em informações retratadas por exploradores e religiosos em passagem pela região noroeste cearense, assim como

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historiadores e entusiastas (POMPEU SOBRINHO, 1951; STUDART FILHO, 1962; 1963) que desde o início do séc. XX vem se detendo a compreender o modo de vida de algumas etnias que ocuparam, entre os sécs. XVI e XIX, a costa oeste cearense. Nesses relatos foi possível identificar algumas práticas cotidianas desses grupos, tornado-se dados essenciais para o conhecimento das estratégias para a obtenção de recursos como alimentos e para produção de utensílios, de como se dava os critérios de escolha para a implantação de assentamentos, as relações entre silvícolas e o colonizador europeu, etc. As relações entre esses relatos e os elementos da cultura material e da paisagem colaboraram para a percepção do modo como o homem interferiu no ambiente através do desenvolvimento tecnológico.

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CAPÍTULO 3 – PRAIA DE FLECHEIRAS: A CONSTRUÇÃO DE UMA PAISAGEM Nesse capítulo abordamos questões relativas ao meio ambiente do litoral cearense e a alguns aspectos sociais relativos ao(s) grupo(s) que povoaram a costa do atual município de Trairi, mais precisamente na praia de Flecheiras, no Ceará. Privilegiando informações advindas da Geografia, Geologia, Antropologia, Arqueologia e História, foi possível construir a relação entre as comunidades humanas e o meio ambiente litorâneo da região. No primeiro tópico iniciamos com um panorama sobre a evolução do litoral no Ceará, mostrando como se deu esse processo transformativo a partir da passagem do Pleistoceno para o Holoceno, e os prováveis impactos que essa dinâmica gerou para esse espaço, caracterizando dessa forma o paleoambiente costeiro do qual os grupos viveram. No seguimento dos estudos ambientais apresentamos o atual cenário natural da região e os impactos que alguns elementos da paisagem têm provocado aos sítios e que se mostram de grande importância para a compreensão dos processos pós-deposicionais nos sítios Trairi I, II, III e IV. No segundo tópico, de modo a contextualizar nossa pesquisa, são apresentados dados arqueológicos referentes ao município de Trairi que corroboram com a definição de um padrão de assentamento para o litoral da região, apresentando alguns sítios já identificados durante outras pesquisas sistemáticas assim como os resultados de análise sobre a implantação desses assentamentos, a tecnologia utilizada e os fatores pós-deposicionais que pudessem interferir na análise. Nosso intuito, através dessa contextualização regional dos sítios Mundaú I ao V, Guajirú I e II, Boa Esperança e Aldeia do Trairi, foi comparar os dados já produzidos em pesquisas anteriores e relacioná-los aos sítios ora estudados, de modo a verificar a existência de um padrão de assentamento entre eles. No terceiro tópico tratamos especificamente dos sítios identificados na praia de Flecheiras, objetivo maior de nossos estudos. Após inúmeras observações in situ, nos sítios Trairi I, II, III e IV, onde foram realizados mapas da distribuição espacial a nível semi-micro, observações sobre a tecnologia, fatores pós-deposicionais e identificação de possíveis áreas para a captação dos recursos com base nos vestígios encontrados, foi feita uma nova comparação com os dados relatados em busca de verificar se os sítios da praia de Flecheiras também possuem características similares aos outros sítios da região. No último tópico abordamos informações sobre asmetnias indígenas e a ação do colonizador europeu no oeste cearense. Nossa pesquisa teve como fonte, estudos oriundos nas

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áreas de História e Antropologia, assim como consulta direta a fontes documentais que tratavam sobre a construção de uma paisagem por esses povos e os seus modos de vida. Esse capítulo teve por intuito aplicar os preceitos relativos ao padrão de assentamento, explicitados no capítulo 2, onde todos os aspectos aqui abordados, tais como a Ecologia, espacialidade, Arqueologia e Etnografia foram compreendidas em bloco (SENA, 2007; CORTELETTI, 2009; SOUSA, 2011; NOBRE, 2013), demonstrando assim as relações existentes dentro do sistema.

3.1 UM AMBIENTE EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO

Tendo em vista que as análises previstas para se estabelecer um padrão de assentamento nos sítios identificados em Trairi – CE, além de incorporar estudos sobre a cultura material arqueológica, também requerem um entendimento sobre o espaço, ou seja o meio ambiente de inserção cultural do grupo, dessa forma apresentamos o processo evolutivo da geomorfologia e geologia do litoral cearense. Trazendo então dados importantes para a compreensão das relações existentes dentro do sistema: homem-natureza. Nossas referências para essa compreensão do meio ambiente foram a partir de bibliografia especializada, oriunda de pesquisas acadêmicas advindas das áreas de Geografia e Geologia, além de Estudos de Impacto Ambiental direcionados para nossa área de estudo: o atual município de Trairi.

3.1.1 Da evolução paleoambiental do litoral noroeste do Ceará até a atualidade

O município de Trairi tem por limites ao norte o oceano Atlântico, ao sul o município de São Luís do Curú e Tururu, a leste o município de Paraipaba e o rio Trairi e a oeste o município de Itapipoca e o rio Mundaú. Suas coordenadas são 3°16’40” latitude S e 39°16”08” longitude W (Mapa 1).

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Mapa 1- localização do município de Trairi, no Ceará

Fonte: Elaborado por Jefferson Lima, 2015.

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Assim como no estudo conduzido por Simões (2014) para o Sítio Cardoso, no litoral de Sergipe, não temos por intuito estabelecer com precisão o ambiente vivenciado pelos grupos e nem definir cronologias determinadas para as ocupações em Trairi, tendo em vista as dificuldades até mesmo para a obtenção de datações absolutas. Porém objetivamos nesse subtópico apresentar o processo de construção desse ambiente ao longo do tempo e dessa forma analisar como se dariam as estratégias de habitabilidade desses grupos. Apesar de, num primeiro momento, o ambiente dunar nos parecer adverso para a sobrevivência, devemos levar em conta que houve ao longo dos anos inúmeras modificações geomorfológicas das quais podem ter alterado o ambiente do passado (MARTÍN, 2008). É com base nessa premissa que iniciamos nossos estudos direcionados a compreender o meio ambiente litorâneo cearense, onde vários assentamentos foram identificados e buscamos as possíveis relações existentes entre o homem e esse habitat. Em termos geológicos Trairi apresenta associações litológicas do Pré-Cambriano ao recente. Seu embasamento cristalino, com rochas mais antigas, está localizado apenas ao sul/sudeste do município e é pertencente ao Complexo Nordestino, segundo o projeto RADAMBRASIL,

nessa

porção

verificam-se

gnaisses

paraderivados

de

idade

neoproterozóica (migmatitos, xistos e calcissilicáticas). O restante do território é composto por terrenos cenozóicos da Formação Barreiras e sedimentos holocênicos de origem marinha, tais como as dunas móveis, fixas e os eolianitos (Mapa 2).

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Mapa 2- Geologia do município de Trairi em relação ao contexto geológico cearense

Fonte: CPRM, 1999.

Inúmeras transformações de caráter ambiental são registradas ao longo das eras geológicas, elementos dessa paisagem litorânea, como no caso da Formação Barreiras, são bastante anteriores ao Holoceno. Sendo importante para essa pesquisa, já que compõem o cenário evolutivo do ambiente e estão presentes na paisagem arqueológica do Trairi até hoje, pois segundo indicação de moradores, na vila de Flecheiras, é realizada a retirada de sedimento dessa formação para a construção de habitações como apontado na coordenada UTM 24M 469974 9643344 (Datum: WGS 84) e indicado nas fotografias 05 e 06. A localização será apresentada mais adiante.

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Figuras 05 e 06 – Fotografias da área de escavação para retirada de sedimento em Flecheiras – Ce. A. Vista ampla da Formação barreiras; B. Detalhe para o perfil estratigráfico.

A

B

Fonte: Acervo particular do autor, abril de 2015.

Essa formação resulta, a nível global, de um processo de sedimentação ocorrido através do escoamento de detritos e sedimentos pelos rios e outros corpos fluviais a partir da erosão ocorrida nas rochas do interior do continente, provavelmente ocorrida entre o Terciário Superior e o Quaternário Inferior, ou seja, entre 5 - 4 ma (ARAI, 2006), recobrindo as depressões litorâneas (rochas cristalinas). A Formação Barreiras é encontrada na faixa litorânea do Amapá até o Rio de Janeiro, podendo estender-se desde a faixa de praia por dezenas de quilômetros em direção ao interior, no caso cearense podem chegar até 60 km. No geral possuem uma coloração alaranjada e, estando em contato direto com o mar, podem dar origem às falésias, caso não registrado para o município de Trairi. Sua composição apresenta sedimentos areno-argilosos e silto-argilosos com leitos arenosos conglomeráticos e seixos, sendo constituída por grãos de quartzo que variam de finos a grossos, estão sob os campos dunares e podem aflorar localmente caso haja intensa erosão eólica, e podem bem como ocorrer nas depressões interdunares. Para o Ceará, que tem a fachada marítima subdividida em cinco domínios morfoestruturais, dos quais Trairi pertence ao Jaibaras, estando localizado entre a praia de Lagoinha (Paraipaba) e a praia de Jericoacoara (Jijoca de Jericoacoara), os sedimentos da Formação Barreiras são originários do maciço da Meruoca e do planalto da Ibiapaba que hoje distam aproximadamente 100 km da costa. O fenômeno da flexura marginal acabou por depositar sedimentos areno-argilosos que variam de espessura entre poucos metros até 100m ao longo da costa. Essa camada regular foi

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depositada de forma contínua e razoavelmente plana até a zona costeira e por essa razão recebe o nome de tabuleiros pré-litorâneos ou tabuleiros costeiros. Além da Formação Barreiras, outros elementos também caracterizam nossa área de estudo, em sua maioria, as transformações mais marcantes no meio ambiente costeiro são aquelas ocorridas a partir da transição entre o Pleistoceno e o Holoceno, período no qual se inicia a formação de um habitat litorâneo bastante próximo das feições que conhecemos hoje, incluindo a formação das dunas. O mar, como elemento natural da paisagem, teve grande influência nas transformações mencionadas, pois a partir das alterações ocorridas no Nível Relativo do Mar (NRM) outras mudanças foram desencadeadas no sistema ambiental. Os períodos de glaciação influenciaram diretamente as alterações no NRM a nível global, pois durante a sua ocorrência houve as regressões marinhas, episódios de redução do volume do mar por conta da formação de calotas polares. Já durante os interglaciais, episódios de aumento do volume do mar por conta do descongelamento dessas calotas, havia as transgressões. Inúmeras variações no nível relativo do mar aconteceram durante o fim do Terciário e início do Quaternário, onde apenas no Pleistoceno houve dezoito fases glaciais (TEIXEIRA et al, 2000). Com base em dados obtidos em estudos ambientais globais, compreende-se que as mudanças climáticas ocorridas na transição Pleistoceno-Holoceno, geraram forte impacto no nível do mar, fato verificado no último glacial que ocorrera entre 22.000 e 14.000 A.P. Dessa forma locais onde a plataforma litorânea era muito extensa e de pouca declividade junto ao continente, como no caso da plataforma costeira do Ceará, houve recuos de aproximadamente 120m em relação ao nível atual (MEIRELES; SERRA, 2002; CLAUDINO-SALES, 2007). Portanto, enormes extensões de planície costeira se formaram como estuários, terraços marinhos, mangues e lagoas. O fim desse período, por volta de 11.000 A.P., marca o início do Holoceno, onde passam a ocorrer novas mudanças climáticas que afetam o sistema. O clima era seco, apresentando uma baixa umidade e fortes ventos, condição ideal para a formação de dunas (GIANNINNI et al, 2005). Logo elas se formam e por ação eólica seguem rumo ao interior do continente. Simultaneamente um dos episódios mais marcantes da evolução geológica litorânea de nível global ocorre, em 5.100 A.P. acontece à máxima transgressão, levando o nível do mar 5m acima do atual (SHACKLETON, 1987 apud CLAUDINO-SALES, 2007) e reconfigurando os terraços holocênicos. Durante esse período a formação dos campos de dunas perdura com oscilações de intensidade, essas formações ainda podem ser encontradas

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atualmente como dunas fixas, sem formas definidas e localizadas, genericamente, numa faixa a partir de 10 km da praia. No perímetro do oceano Atlântico, a “subida” do mar provocou um evento conhecido como “flexura marginal”, onde o peso da água sobre a plataforma continental acabou por afundá-la, soerguendo a área adjacente da zona costeira. Esse fenômeno ocorreu por volta de três a dois mil anos após a maior transgressão holocênica e como consequência houve uma pequena regressão marinha, de aproximadamente três metros em relação à posição anterior (CLAUDINO-SALES; PEULVAST, 2002). Outras oscilações ocorreram até que atingisse o nível atual, porém considera-se que não trouxeram transformações tão significativas do ponto de vista macro para a costa cearense. Algumas dunas oriundas dessa regressão marinha atualmente se encontram vegetalizadas e se localizam, genericamente, entre 06 e 10 km a partir da faixa de praia, enquanto a faixa anterior está coberta por dunas mais recentes (CLAUDINO-SALES, 2007). Porém como o clima não se manteve estável por muito tempo logo os ventos se tornaram amenos, com uma menor umidade e insolação, acompanhado de fortes chuvas que proporcionaram a estabilização dos sedimentos (edafização) de algumas dunas pela dissolução de materiais carbonáticos que ali se encontravam em virtude do recuo do NRM (MORALES et al, 2012), desse processo resultaram os eolianitos, também conhecidos popularmente como cascudos (Fotografias 07 e 08). Os eolianitos são definidos como “toda forma sedimentar cuja deposição foi controlada pela ação do vento” (SAYLES, 1931 apud CARVALHO et al, 2008). Em regiões costeiras, essa rocha é composta por grande quantidade de carbonato biogênico retrabalhado de sedimentos marinhos rasos. No Ceará, os eolianitos estão verificados de forma irregular entre os municípios de Acaraú, passando por Trairi e seguindo até Pecém, ou seja, tal ocorrência se dá pela presença de carbonatos na plataforma interna adjacente, a poucas dezenas de metros da faixa de praia. Podem ser friáveis ou fortemente litificados, formados por areias quartzosas de granulometria média a fina, consolidados pelo carbonato de cálcio, estando acima da planície marinha holocênica, porém abaixo do sistema de dunas móveis atual. Essas estruturas dunares podem ter sua origem durante o baixo nível marinho do Holoceno superior (inferior ao nível marinho atual), dessa forma, os cascudos representam um pacote de dunas móveis que, estabilizadas, foram posteriormente litificadas pela cimentação carbonática (CARVALHO et al, 2008).

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Figuras 07 e 08 – Fotografias dos eolianitos registrados em Flecheiras – Ce. A. Vista ampla da estrutura; B. Imagem com detalhe para abrasão eólica.

A

B

Fonte: Acervo particular do autor, maio de 2013.

Datações por 14C do cimento carbonático dos eolianitos indicam que a época de cimentação desses depósitos eólicos foi por volta de 736 a 1481 anos A.P (CASTRO et al, 2006 apud CARVALHO et al, 2008), dado que não aponta para a formação da duna que precedeu o eolianitos propriamente dito. A importância dos cascudos para esse estudo se deu pelo fato de que através deles foi possível inferir a respeito de vários aspectos do meio ambiente, tais como a direção dos ventos que participaram do processo de formação dos mesmos, pois teriam influenciado em sua estratificação. Na costa cearense é possível apontar que os ventos sopravam na direção SE – NW, a mesma que ainda ocorre na atualidade. Outro fator que contribuiu para uma reconstituição do paleoambiente da região foi haver evidências da formação de fogueiras antigas sobre o material litificado, havendo no entorno desses, antigos artefatos humanos, demonstrando que essas estruturas naturais eram alvo de utilização por parte de populações pretéritas (CARVALHO et al, 2008). O autor ainda defende que seu uso se daria para refeições durante paradas, pois deveriam servir de abrigo para proteção contra os fortes ventos, entre translados na zona costeira. Após o fim desse período chuvoso e de ventos amenos, um novo clima de aridez e fortes ventos se instalou resultando na formação de novos campos de dunas por volta de 1.200 A.P. (CLAUDINO-SALES; PEULVAST, 2002). Essa geração de dunas, assim como uma mais recente, de aproximadamente 400 A.P. atua numa faixa de extensão em até 2,5 km para o litoral de Trairi (CLAUDINO-SALES, 2007), são móveis e estão capeando gerações de dunas mais antigas e terrenos dos tabuleiros, obstruindo as drenagens costeiras e

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desembocaduras fluviais. Para Morais et al (2006) este processo favorece, sobretudo, a evolução de ambientes estuarinos para estuarinos-lagunares e em muitos casos para lacustre. Pesquisas indicam que a taxa de migração dunar na praia de Flecheiras pode chegar a 17m/ano (CARVALHO et al, 2006), o que indica não só uma intensa variação geomorfológica como também da paisagem arqueológica, pois a grande maioria dos sítios trabalhados nessa pesquisa foram impactados em maior ou menor grau pela dinâmica dunar. As dunas são mineralógicamente constituídas por areias quartzosas de textura fina a média e coloração esbranquiçada, apresentando minerais pesados, exibindo estratificações plano-paralelas e cruzadas. Predominam amplamente, dunas ativas simples (formas individuais) e compostas (duas ou mais superimpostas ou coalescentes) do tipo barcanas com formato de lua crescente cujas terminações laterais se alongam a favor do vento (Fotografias 09 e 10). Figuras 09 e 10 – Fotografias dos detalhes das dunas - A - Dunas barcana e depressão interdunar na porção frontal (sotavento) onde afloram sedimentos da Formação Barreiras; B - Dunas barcanas compostas formando crista barcanóide transversal à direção dominante dos ventos.

A

B

Fonte: Ambiental Consultoria, 2011.

As dunas longitudinais ocorrem com maior frequência nas porções marginais do campo de dunas móveis, dispondo-se em espigões paralelos e alinhados E-W (Fotografia 11). As observações de campo mostraram a existência de gerações mais antigas de dunas longitudinais sobrepostas por dunas barcanóides e, dunas longitudinais atualmente ativas no interior do bloco de dunas barcanas (Fotografia 12).

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Figuras 11 e 12- Fotografias: A - Detalhe de estratificação observada em duna longitudinal, sobreposta por ondulações atuais transversais a direção do vento dominante. B - Dunas barcanas compostas sobrepondo uma longitudinal.

B

A Fonte: Ambiental Consultoria, 2011.

Percebemos que ocorrem depressões interdunares no interior dos campos de dunas móveis, e durante os meses mais chuvosos, em alguns casos, podem ser cobertas por água, formando lagoas interdunares (Fotografia 13). As depressões desenvolvem-se na interface entre o topo da Formação Barreiras e das dunas, facilitando a acumulação de seixos e sedimentos de maior granulometria. Ressaltamos que foi nesse segmento geomorfológico que encontramos grande parte dos sítios sob dunas em Trairi, sobre isso daremos mais detalhes adiante. Figura 13 – Fotografia da lagoa interdunar e ao fundo, na vegetação, encontra-se o sítio Trairi III.

Fonte: Acervo particular do autor, janeiro de 2015.

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Nessas depressões interdunares verificamos uma vegetação do tipo Pioneira Psamófila (graminídeas), enquanto que na retaguarda dos campos de dunas móveis encontram-se as dunas edafizadas ou em processo de edafização, ocasionadas pelo desenvolvimento incipiente de uma camada de solo permitindo a fixação da cobertura vegetal que se estende até o limite dos Tabuleiros. Nessa vegetação predomina o porte arbóreo-arbustivo com espécies, como o murici (Byrsonima crassifolia), carrasco (Coccoloba sp), erva de rato (Eugenia sp), cascagrossa (Maytenus rígida), cajueiro (Anacardium occidentale), pau d’arco roxo (Tabebuia impetiginosa) e o juazeiro (Ziziphus joazeiro). Foi possível verificar na proximidade dos estuários mandacarus (Cereus jamacaru), espécies típicas do semiárido, mas, que podem se inserir em outros ambientes (MORAIS et al, 2006). É comum, atualmente, a presença de animais (jumento e gado) tanto em dunas costeiras quanto em dunas interiores. Os moradores dessas regiões colocam intencionalmente os animais para pastar nesses locais, o que danifica a cobertura vegetal rasteira e obriga os animais a percorrerem áreas extensas para suprir a sua dieta. Com isso há destruição da vegetação nativa das dunas através do pisoteio intensivo, com formação de trilhas, que causam danos não somente à flora, mas também à fauna. Como consequência pode haver a reativação de dunas que voltam a migrar e invadir as áreas adjacentes naturais (tais como campos, mangues, lagoas etc.), bem como áreas antropizadas pela urbanização (ALMEIDA; SUGUIO, 2012). Foi nesse contexto que também observamos os sítios de Trairi, onde parte dos assentamentos analisados possuía impactação provocada por esses e outros animais de menor porte, que explicitaremos mais adiante (Fotografia 14). Figura 14 – Fotografia do pastoreio de bovinos dentro do perímetro do sítio Trairi III.

Fonte: Acervo particular do autor, abril de 2015.

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O Estudo de Impacto Ambiental (EIA) que foi realizado no município de Trairi (AMBIENTAL, 2011) aponta para uma fauna pouco diversificada do ponto de vista da caça, com aves de pequeno porte e pouco valor energético, conhecidas como sariemas (Cariama cristata), com exceção do carcará (Caracara plancus) que possui um porte mediano e se utiliza da Mata de Retaguarda das dunas. Os répteis podem variar de pequenos, como o calango (Tropidurus hispidus), verificados por todo o habitat, às espécies medianas, como o tejo (Tupinambis merianae) com nichos encontrados em grande quantidade entre os eolianitos e afloramentos da Formação Barreiras. Entre a mastofauna identificada à espécie que mais se destaca é o Gato-pintado (Leopardus tigrinus). Atualmente o clima nessa faixa costeira é definido, segundo a classificação de Köppen, como Equatorial Úmido e Semiúmido, com chuvas no verão e até 6 meses de estiagem. As temperaturas médias estão entre 25º e 27º. O regime pluviométrico, assim como em todo o semiárido, tem atividade intensa entre os meses de fevereiro a maio, e com pluviosidade em média de 1.137,5 mm (Ambiental Consultoria, 2011). Essas alterações climáticas são explicadas em função das alterações na Zona de Convergência Intertropical – ZCIT no Ceará, as massas de ar úmido se concentram principalmente apenas no primeiro semestre do ano. Enquanto que no período seguinte, com o deslocamento de ZCIT para o Hemisfério Norte, por ação do fenômeno El Niño, o último passa a agir no litoral cearense (CLAUDINO-SALES, 2007). Finalizamos nossa análise da evolução ambiental do litoral trairiense com foco na hidrografia local. Tendo em vista que o município possui, como divisores naturais, nos limites leste e oeste, uma destacada rede de drenagem, a região insere-se no domínio hidrográfico dos rios Trairi e Mundaú, sendo classificada como a Bacia do Litoral. Considerando a importância que essas bacias de drenagem possuem sobre os processos costeiros, a Secretária de Recursos Hídricos – CE dividiu a zona costeira em seis compartimentos que são representados pelas seguintes bacias hidrográficas: Bacias do Coreaú, Acaraú, Curú, Litoral, Metropolitana e do Baixo Jaguaribe. O sistema de drenagem na costa cearense é constituído por rios exorréicos de regime com escoamento intermitente e sazonal. As planícies fluviomarinhas e ecossistemas de manguezais são pouco desenvolvidos, já que o médio e o alto curso desses rios estão inseridos em ambientes de semiaridez (MORAIS et al, 2006). Além dos rios Trairi e Mundaú, entre esses, existe a presença de nascentes implantadas dentro da faixa de dunas fixas e alimentadas pelo lençol freático de água doce que existe sob elas. Essas drenagens podem variar de extensão e volume durante o período chuvoso e apenas algumas se mantêm perene mesmo no

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período de estiagem. Exemplo disso é o córrego Estrela, que desemboca na praia de Flecheiras, e sempre possui água, segundo os moradores do entorno, essa drenagem, em especial recebeu maior atenção por ter em sua margem o sítio Trairi I, assim como a proximidade aos demais sítios da praia de Flecheiras. Outro exemplo de drenagem é a que se localizada na praia de Emboca e está a 6 km de Flecheiras na coordenada UTM 24 M 464979 9645556 (Datum: WGS 84), ali encontramos uma fonte da qual a comunidade se utilizava há tempos atrás para coleta de argila e assim construir telhas e tijolos (Fotografias 15 e 16). A localização será apresentada mais adiante. Figuras 15 e 16 – Fotografias: A - Detalhe do córrego, em Emboaca, onde moradores costumavam retirar argila. B – Vista da implantação do abrigo em meio à duna em processo de edafização.

A

B

Fonte: Acervo particular do autor, abril de 2015.

Ainda relacionado à rede de drenagens existe um elemento ambiental muito importante no ecossistema marinho, os corais. Identificamos na foz do rio Mundaú, no município homônimo, e também no córrego Estrela, na praia de Flecheiras, a presença desse componente do sistema marinho, no qual inúmeras famílias ainda praticam a mariscagem (Fotografia 17). Em Flecheiras, essa formação se estende da foz do córrego até a vila e está na coordenada UTM 24 M 466684 9644546 (Datum: WGS 84). A localização será apresentada mais adiante.

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Figura 17 – Fotografia dos corais da praia de Flecheiras.

Fonte:www.panoramio.com/photo/40660548?source=wapi &referrer=kh.google.com

3.2 O PANORAMA ARQUEOLÓGICO NO LITORAL DE TRAIRI

Apresentamos aqui um panorama arqueológico do litoral trairiense que nos serviu de base para construção de um padrão de assentamento para a região. Os sítios, Aldeia do Trairi e Boa Esperança, foram identificados e estudados, dentro de uma perspectiva academicista (NOBRE, 2013). Enquanto que a grande maioria dos outros sítios que serão apresentados, são oriundos de pesquisas relacionadas à Arqueologia Preventiva, tais como os sítios Mundaú I ao V, e Guajiru II. (MARQUES, 2012c, 2013). Provavelmente esse cenário relacionado à grande quantidade de sítios tratados pela Arqueologia de Contrato remete ao aumento no uso da faixa dunas por vários empreendimentos, tais como parques eólicos, resorts, a exemplo, ao invés de representar uma super-ocupação desse ambiente dunar. Tendo em vista a possibilidade de haver outros sítios na mesma região, da qual não tivemos notícia ou não há registro, privilegiamos esses oito sítios, pois representam uma boa amostragem sobre a ocupação da área e apresentam dados dos quais privilegiamos em nossa análise comparativa para os sítios Trairi I, II, III e IV. De forma a facilitar nossa explanação e tendo em vista que a disposição desses sítios, em alguns casos, se encontra espacialmente próximo, com a mesma implantação na paisagem e apresenta uma similaridade tecnológica, consideraremos uma abordagem em blocos, a exemplo, bloco Boa Esperança (sítios Boa Esperança e Aldeia do Trairi) e bloco Mundaú (sítios Mundaú I a V), apenas o sítio Guajiru II não foi enquadrado dessa forma por não apresentar similaridades com outros sítios aqui trabalhados. Quanto à disposição dos sítios

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estudados no âmbito dessa pesquisa ver o Mapa 3: Distribuição dos Sítios Arqueológicos no Município de Trairi.

3.2.1 Bloco Boa Esperança

Iniciamos nossa pesquisa com os estudos sobre o sítio Boa Esperança (BE) e Aldeia do Trairi (ATr) os quais apresentaram farta amostragem cerâmica. Os dois sítios mostraram similaridades tecnológicas, além de estarem a aproximadamente 500m um do outro e implantados sobre dunas fixas retrabalhadas por ação antrópica, pois o local se encontra em zona de expansão da cidade de Trairi. No primeiro sítio havia uma grande dispersão vestigial cerâmica, em área cultivável, enquanto que o segundo foi um achado fortuito de vários vasilhames inteiros ou semi-intactos enterrados de forma intencional uns sobre os outros, formando um bloco. Em ambos os sítios, na análise cerâmica, foi percebido que a pasta predominante apresenta em sua composição cacos moídos e bolos de argila, e apenas em alguns casos ocorria o uso de areia. Nesse caso o antiplástico pode indicar uma ocupação mais duradoura já que os vasilhames eram reutilizados, além disso, como as técnicas de manufatura mais recorrentes foram o anelado e roletado, onde a última era utilizada em utensílios maiores o que levaria mais dias para a produção, isso reforçaria a ideia de permanência no local. Outro aspecto considerado foi à similaridade na morfologia dos vasilhames, apresentando principalmente bordas reforçadas externamente e diretas, além de incisas, presença de alisamento interno e externo, nesse último um banho recobre o corrugado, utensílios classificados em sua maioria como panelas e em menor quantidade assadores e tigelas, de bases planas e semiplanas como exemplificado no quadro 01. Os aspectos decorativos também foram considerados entre os atributos tecnológicos analisados, havendo presença de banho no engobo em branco, além de pinturas geométricas em vermelho e que também possuem uma similaridade entre os sítios, como consta no quadro 02. Através do uso da Arqueologia Espacial e de dados etnohistóricos Nobre (2013) analisou a distribuição vestigial em ambas as áreas arqueológicas. O sítio Boa Esperança possui grandes dimensões (mais de 500 m de diâmetro), pela dispersão superficial concentrada nas periferias indicando que a área de convivência central passava por limpezas enquanto nas extremidades ocorreria a produção de utensílios; a presença de pequenas manchas orgânicas em subsuperfície foi relacionada a atividades de preparo e consumo de

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alimentos em habitações. Esses dados configuram Bom Sucesso como o centro habitacional de uma aldeia filiada aos grupos tupis. Enquanto em Aldeia do Trairi seria um espaço de atividade específica dessa comunidade, provavelmente para armazenamento de utensílios relacionados ao preparo e consumo da mandioca e de peixes (armazenar, assar e servir). Vale salientar que apesar desse bloco se encontrar a menos de 5 km do mar, foram raros os vestígios que ligassem a dieta realizada nos assentamentos ao consumo de malacológicos, podendo estar relacionada ao consumo de peixes em decorrência de BE está localizado a 500m do rio Trairi. Algumas variações tipológicas verificadas nesses sítios foram tratadas a partir do conceito de Habitus e que atribui essa dinâmica tecnológica a intrusões individuais que se consolidaram ao longo do tempo, frente à cultura tradicional pré-existente. Mesmo Nobre (2013) não categorizando a cultura material verificada como pertencente à Tradição ceramista Tupiguarani, podemos inferir essa informação com base nos de pesquisa do próprio pesquisador. Quadro 01 – Morfologia comparativa entre os recipientes de BE e ATr

Fonte: NOBRE, 2013, p.101

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Quadro 02 – Decoração comparada entre os recipientes de BE e ATr

Fonte: NOBRE, 2013 p. 102

3.2.2 Bloco Mundaú

Esse bloco refere-se aos sítios Mundaú I (MD-I), Mundaú II (MD-II), Mundaú III (MD-III), Mundaú IV (MD-IV) e Mundaú V (MD-V), localizados no distrito homônimo. A implantação topográfica de todos se encontra em depressões dunares, ocorrendo em alguns casos o escoamento de fragmentos pequenos para a depressão a partir do perfil da duna. Nesse bloco arqueológico, os sítios margeiam várias lagoas interdunares da região, e no caso de MD-III e IV as lagoas se encontram a sotavento de dunas barcanas e barcanóides,

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respectivamente. O principal elemento na paisagem é o rio Mundaú, do qual os sítios se distanciam variando entre 500 e 1.500m (Mapa 03). A cultura material identificada nesse bloco é bastante similar em vários aspectos, tais como na manufatura e morfologia das peças. Apresentamos os resultados referentes ao lítico e a cerâmica, por serem elementos de maior densidade quantitativa registrada. Havendo também a vestígios malacológicos associados à dieta alimentar. Mapa 4 – Detalhe para a distribuição espacial nível macro no bloco arqueológico Mundaú

Fonte: MARQUES, 2013. Elaborado por Jefferson Lima.

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De forma geral a cerâmica arqueológica analisada apontou para a presença de alguns conjuntos tecnológicos e culturais: a) Os que estão relacionados à Tradição arqueológica Tupiguarani apresentam uma manufatura acordelada, queima oxidada (fogueira) ou reduzida (forno), utensílios com forma globular, borda dobrada para fora (presença de furo) e engobo branco (resquício de pintura vermelha) cuja função pode está ligada a armazenar líquidos. b) Os que estão relacionados à Tradição arqueológica Neobrasileira, denominadas de Cabocla (MARQUES, 2013) apresentam manufatura acordelada e em alguns casos o uso de torno, queima reduzida (forno), predomina a borda inclinada externamente e direta, podendo estar relacionada ao ato de cozinhar, também havendo bordas de inclinação interna, a forma que prepondera é a semiglobular, quando pequenas possuem bordas com entalhes ou nas formas maiores a borda é reforçada e apresenta alças ou botões para segurar, em ambos os casos indicam o uso para cozimentos. Também foram encontradas bases planas como pratos, e bojos cuja forma do vasilhame é semiglobular, em ambos o engobo pode ser vermelho. Algumas características foram identificadas independentes do conjunto tecnológico relacionado, tais como o alisamento interno e externo, uso como antiplástico de cacos moídos, areia fina (componentes principais) e quartzo triturado, manufatura acordelada e torneada o que pode indicar uma ocupação prolongada (reutilização de vasilhames e uso de manufatura que exige torno ou dias para confecção de cordéis e sua junção) reforçando a ideia de permanência no local do bloco Mundaú. O conjunto ligado a Tradição Tupiguarani foi identificado em quantidade bastante reduzida frente ao conjunto relacionado à Tradição Cabocla.

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Figuras 18 e 19 – Fotografias: A – Bordas de um recipiente globular, engobo branco e resquício de pintura vermelha (MD-III). B – Borda de vaso reforçado e com alça em apêndice (MD-IV).

A

B

Figuras 20 e 21 - Fotografias: A – Borda com entalhes (MD-III). B – Bojo alisado e engobo vermelho (MD-IV)

A

B

Figuras 22 e 23 - Fotografias:A – Bojo com queima reduzida. B – Bojo com queima oxidada

A Fonte: MARQUES, 2013.

B

64

Os artefatos líticos verificados nesse bloco apresentam o uso predominante do quartzo, matéria-prima abundante na região e recorrente em leitos fluviais, o silexito pode ser encontrado em menor escala, e mais raro ainda o quartzo hialino e quartzito, porém os últimos são materiais atípicos para essa área. Essa predominância por substâncias silicosas e quartzosas, é devido “a esses materiais oferecerem uma fácil manipulação e cujas formas básicas apresentam gumes suficientemente ativos com uma eficiência de corte e de raspagem satisfatória” (op cit). Talvez pela abundância do quartzo vários núcleos foram descartados mesmo com a possibilidade de continuidade do facionamento, em detrimento do esgotamentos de silexitos. As principais formas básicas de artefatos encontrados foram lascas e microlascas (unipolares, secundárias, com córtex) em grande quantidade, podendo ser o resultado do preparo de núcleos (baixa densidade no bloco Mundaú), o reavivamento de outros instrumentos ou até mesmo relacionados ao preparo de alimentos onde a atividade de macerar e bater pode ter resultado em fraturas. Detritos também foram verificados nesse contexto. Os poucos instrumentos com dimensões maiores, além de núcleos pouco utilizados, foram raspadores unilaterais, percutores e lascas com retoques. A alta densidade de artefatos pequenos relacionados a atividades de lascamento em MD-II e MD- III remonta ao fato de que ali seria o principal ponto de produção desses artefatos, enquanto que em MD-IV e MD-V, apresentando instrumentos multifuncionais (percutir, talhar, macerar, bater, raspar) seriam espaços destinados ao uso prioritário dessas ferramentas, a exemplo, carpintaria, preparo de alimentos, etc. Figuras 24 e 25 – Fotografias: A – Lascas em quartzo (MD-V). B – Lascas unipolares em silexito (MD-III)

A Fonte: MARQUES, 2013

B

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Figuras 26 e 27 – Fotografias: A – Núcleos esgotados em silexito (MD- II). B – Seixo “Chopper” em quartzo (MD-IV).

B

A Fonte: MARQUES, 2013

Figura 28 – Fotografia de raspador nucleiforme em silexito (MD-IV).

Fonte: MARQUES, 2013.

3.2.3 Sítio Guajiru II

O sítio Guajiru II (GJ-II) se difere dos demais identificados na região, pois apresenta apenas líticos em meio à cultura material. Está a aproximadamente 1,5 km do rio Trairi e sua implantação atual se dá sobre ravinas localizadas na Formação Barreiras. Através de prospecções em superfície percebeu-se que o material arqueológico estava implantado em uma duna fixa da qual, por ação eólica e principalmente pluvial, teve parte dos sedimentos e material arqueológico lixiviado para o Barreiras (cota mais alta para a mais baixa). Esse dado foi percebido, em meio ao barranco formado pelo corte natural ocorrido na duna apontando que alguns artefatos estariam encravados nesse perfil estratigráfico. As ravinas, criadas a

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partir da ação pluvial e orientadas de oeste para leste (desnível altimétrico) deslocam o material arqueológico e expõem seixos e grãos maiores provenientes da própria Formação Barreiras (Fotografias 29 a 31). Figuras 29 e 30 - Fotografias: A – Ação pluvial na Formação Barreiras em GJ-II. B – Barranco com líticos no perfil indicando a origem deposicional de GJ-II.

A

B

Fonte: MARQUES, 2012c.

Figura 31 – Fotografia da cultura material lixiviada dentro de ravina em GJ-II.

Fonte: MARQUES, 2012c.

A cultura material, como dito anteriormente, trata-se exclusivamente da presença de líticos dos quais a análise técno-tipológica indica que: a) A matéria-prima mais utilizada, com ampla vantagem, é o quartzo, seguido de silexito, quartzo hialino e quartzito, respectivamente;

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b) A tipologia dos artefatos indica uma grande densidade de detritos, lascas e microlascas (peças pequenas), em detrimento de núcleos, seixos e instrumentos; c) Predominância de técnica de lascamento unipolar sobre seixo e apresentando superfície natural (córtex); d) Poucos artefatos sofreram alterações por ação pluvial; e) Presença de poucos núcleos e explorados exaustivamente de forma diferenciada; f) Falta de padrão na técnica e multifuncionalidade dos instrumentos. A partir disso podemos inferir que a farta utilização do quartzo se deu pela grande oferta dessa matéria-prima (leito de rio), além disso, o silexito, apesar de não ser natural da região litorânea foi amplamente utilizado, pois oferece uma fácil manipulação e resultados satisfatórios quanto ao uso de suas formas básicas. Na maior parte dos artefatos observa-se o lascamento unipolar sobre a forma básica de seixo e ter ocorrido por percussão direta, a enorme presença de lascas e microlascas corticais e a redução primária apontam para a atividade de façonagem ter ocorrido no próprio local do sítio através de percutores pesados, porém os instrumentos confeccionados com isso devem ter sido transportados pelo grupo. Essas características analisadas em conjunto nos levaram a crer que GJ-II foi uma ocupação de curta duração (acampamento), fato corroborado pela escassa presença de núcleos. Figuras 32 e 33 – Fotografias: A – Lascas com superfície natural e cortical em GJ-II. B – Núcleos esgotados em GJ-II.

A Fonte: MARQUES, 2012c.

B

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Figura 34 – Fotografia de percutor-batedor em GJ-II

Fonte: MARQUES, 2012c.

3.3 A CONTRIBUIÇÃO DA ETNOHISTÓRIA

É necessária uma visão analítica para uso dessas informações [etnohistórico] sem perder de vista que as possíveis particularidades dos grupos em discursos documentais tendem a ser omitidos por haver uma homogeneização dos colonizadores em relação à cultura indígena que desconsideraram a dinâmica cultural de trocas entre os mesmos (OLIVEIRA, 2006). Segundo Medeiros (2002), os relatos dos cronistas são quase sempre fragmentados e distorcidos. Aqueles oriundos de religiosos possuíam o intuito de desqualificar a cultura dos nativos a fim de justificar a imposição dos preceitos cristãos, enquanto os viajantes e invasores estrangeiros tratavam a cultura indígena como exótica, ou mesmo, viam o conhecimento sobre o outro como uma possibilidade de conseguir benefícios. Essas fontes etnológicas necessitam de uma leitura crítica tendo em vista que se trata de narrações feitas, principalmente por pessoas que, em muitos dos casos, não possuíam interesse em compreender a cultura indígena. Muitos possuíam apenas contatos superficiais com as etnias, e vários se debruçaram em descrever apenas os grupos que já haviam tido contato com os colonizadores. Tal situação pode ser verificada inclusive nos primeiros sistemas de classificação dessas etnias, disseminadas principalmente pelos Jesuítas, no qual a língua era o principal critério de classificação dos grupos, que a princípio eram divididos em Tupis e Tapuias, o primeiro referia-se aos índios que falavam língua de origem Tupiguarani com os quais os colonizadores haviam estabelecido relações e dominavam a língua e, o segundo grupo, a todos os povos de “língua travada”, ou seja, não tupi. Ainda assim, uma análise mais

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acurada desses documentos permite visualizar que os cronistas percebiam haver uma diversidade linguística e cultural do grupo Tapuia. No Ceará, uma segunda fase da produção historiográfica que abordasse a questão dos índios tem início no século XIX e teve como expoente a criação em 1887 do Instituto Histórico Geográfico e Antropológico do Ceará que a partir da publicação de revistas constituiu um vasto acervo sobre a história do estado. Já nesse período afirmava-se que os povos encontrados aqui não teriam sido os primeiros habitantes da região, pois havia indícios de ocupação de grupos com “padrões antropológicos inteiramente diversos e ali chegados havia séculos ou talvez milênios” (STUDART FILHO, 1963, p. 07). Thomas Pompeu Sobrinho e Carlos Studart Filho empreenderam grandes esforços em levantar dados sobre os povos indígenas, tentando agrupá-los e traçar um mapeamento de suas dinâmicas territoriais. Studart Filho (1963) reafirma a dificuldade de tal empreendimento tendo em vista a escassez de fontes e/ou a existência de informações contraditórias. Em relação à dinâmica territorial ele aponta que, esses grupos em geral circundavam por um vasto território sem contudo, serem totalmente nômades. Para ele, esses povos estavam divididos em seis grupos, os Tupis, Cariris, Tremebés, Tarairiús, Jês e, um sexto de filiação duvidosa, havendo ainda um sétimo grupo composto por índios citados em textos dos antigos cronistas e em documentos, cuja existência é incerta. Percebendo o espaço como tendo uma relação intrínseca com a sociedade de cada momento histórico, é precípuo o confronto de informações referentes à cultura como dados referentes à subsistência, de controle e apropriação do entorno pelo homem bem como as relações entre as comunidades presentes na área de estudo. Esses grupos passam por transformações culturais decorrentes da acomodação ao meio recente ou já modificado, pela troca cultural com outros grupos e/ou mesmo pela dinâmica da cultura interna (MEDEIROS, 2002). Partimos da classificação elaborada por Studart Filho para tentar compreender a dinâmica destes povos na área estudada, que pode ser delimitado pelos rios Mundaú e Trairi, havendo ainda o córrego estrela que é o acidente geográfico mais próximo dos sítios arqueológicos em questão, cuja localização coincide com o que foi descrito por Pompeu Sobrinho com nomenclatura de Tatajuba que designava “uma ponta bordada de recifes no distrito de Trairi (…) É fácil identificar a antiga ponta da Tatajuba com a atual ponta das flecheiras. J. Blaeu fá-la figurar no mapa que organizou (1649) entre o Rio Mondahug (Mundaú) e o Taraira (Trairi)” (1945, p.204). Quanto ao topônimo, uma das explicações apontadas pelo autor é de que ela se referia a um vegetal (Maclosia tinctoria) da qual se

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produzia uma tinta vivamente amarela. Paulino Nogueira também fez referência a esse vegetal, apontando que seu comércio foi tão intenso que no ano de 1835 a lei provincial n 6 de 17 de maio, instituiu o imposto de “50 réis por arroba deste páu no acto da exportação” (1887, p.413). Existem ainda referências sobre a comercialização de uma resina que produz tinta amarela, conhecida como âmbar gris. O Pe. Ivo D' Evreux (1929) elucida que era bastante comum encontrar grandes blocos desta resina nas praias e que os tupis a chamavam de piraputy que significava “excremento de peixe”, pois eles acreditavam que a resina era originada a partir dos excrementos de baleias, explicação contestada pelos franceses que acreditavam ser ela de origem vegetal. Ela era comumente empregada no fabrico de tintura amarela e por isso atraiu comerciantes que “já ao declinar do século XVI, ousavam perlustrar, acompanhados de pequenas escoltas de nativos mansos, as nossas praias, à cata do precioso âmbar gris, producto intensamente procurado dos mercados de além -mar”2 (STUDART FILHO, 1937, p. 15). No mesmo texto o autor buscou reconstituir as vias de comunicação do Ceará colonial e, nesse trajeto, demonstrou o quanto já em início do século XVI havia uma intensa movimentação na faixa litorânea que ligava o Ceará ao Maranhão, ali incursionavam tanto grupos indígenas diversos, quanto padres Jesuítas em missão e expedições oficiais da coroa portuguesa, piratas franceses e aventureiros portugueses que costumavam comercializar com os índios3. Este percurso, nomeado “Estrada Velha” foi, portanto, desde cedo estratégico para o avanço da empresa colonial (STUDART FILHO, 1937). A partir do quadro esboçado por Studart Filho (1962;1963), podemos elencar na região do litoral oeste cearense incluindo a área em que hoje está situado o município do Trairí, a presença de índios de filiação Tupi, Tremembé, Tarairiú e outros de filiação duvidosa, dentre eles os Jaguaribaras, Jaguaruanas e Anacés. Sem perder de vista que muitos desses povos empreenderam longos percursos até se consolidarem em um determinado espaço, estabelecendo relações conflitivas ou não com outros povos, o que poderia justificar a presença de vestígios materiais de grupos diversos em um mesmo espaço. Além disso, as informações consideradas pelo autor ao esboçar tal quadro remontam a uma dinâmica territorial mais recente, datada do período colonial.

2 A coleta do âmbar-gris também foi registrado pelo Pe. Figueira na “Relação do Maranhão” (1903, p.100). 3 Um dos itens de comercialização era o já citado âmbar gris.

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Os Jaguaribaras4 foram citados em vários documentos coloniais como aliados dos portugueses no combate a outras etnias, estes foram aldeados em 1694 por Fernão Carrilho no Parnamirim5 e as fontes dão a entender que mesmo sendo aliados, mantinham uma relação tensa com os portugueses que temiam a sua belicosidade e grande população. Os Jaguaribaras se distribuíam pelas terras que iam da margem esquerda do rio Choró, ao rio Mundaú até a serra de Baturité. Já os Jaguaruanas habitavam os territórios demarcados pelos rios Curu e Acaraú. A este grupo pertenciam ainda os Anacés que viviam entre as fragas da serra da Uruburetama e faixas litorâneas próximas. Este grupo também é citado nas crônicas como avesso à colonização constituindo “uma das mais poderosas tribos do Ceará” (STUDART FILHO, 1963). Além de viverem em guerra com outras etnias, são citadas nos confrontos aos portugueses, merecendo destaque o ataque à vila de Aquiraz em 17136. Os registros apontam que este povo, como outras nações indígenas realizaram deslocamentos forçosos, pelas imediações de Jericoacoara, nas proximidades da Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção e na serra da Ibiapaba. No último local, estes são citados já em 1695 na carta ânua do padre Ascenso Gago e Manuel Pedroso, que dão notícias sobre o andamento da missão jesuítica. Os padres relatam que suas atividades se direcionavam também ao apaziguamento dos conflitos entre grupos indígenas, o que era essencial para o avanço da missão. Por esta época viviam em guerra os Tabajaras, Reriús, Aconguaçus e, Guanacés7 e os padres trataram de estabelecer as pazes entre estes: Voltei para a Serra da Ibiapaba, etanto que cheguei tratei logo de estabelecer a paz entre a nação sobredita [os Reriús] e o Tapuia Guanacé, o que me não custou muito, por haver já o Padre Manuel Pedroso praticado esta nação o ano antecedente, antes de me mandarem os Superiores para esta missão e haver descido o dito Padre 50 casais de Guanacés para o Ceará (GAGO; PEDROSA, 1605 apud, PINHEIRO 2011, p. 38-39).

O referido documento, além de nos ajudar a visualizar a dinâmica de apaziguamento dos conflitos entre os grupos, remete a dinâmica de deslocamentos, ou descimentos, comuns

4 Há uma confusão sobre a filiação dos índios Jaguaribara, o Pe. Figueira, na relação do Maranhão, refere-se a eles como sendo parentes dos Tupis (1903), mas Studart Filho (1963) esclarece que se tratava de um grupo específico. 5 Thomaz Pompeu Sobrinho, afirma que o Paramirim chamado posteriormente de Parazinho é a região situada entre as embocaduras dos rios Curu (também chamado de Pará) e São Gonçalo (Siúpe) (2010, p. 181). 6 A Revolta de 1713, foi empreendida por índios já aldeados e, foi provavelmente uma resposta aos abusos a que estes eram submetidos. Ela agregou várias etnias, inclusive os Anacés, e foram realizadas investidas contra os colonos, sendo a maior delas o ataque a vila de Aquiraz, quando foram mortos aproximadamente 200 colonos e os sobreviventes tiveram que buscar refúgio na Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Cf. Studart Filho, 1963. 7 Anacés.

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aos aldeamentos, no qual os grupos eram transferidos de territórios como uma estratégia de desarticulação política. Os povos tupis, aqui estavam representados pelos grupos Potiguares e Tabajaras e, segundo a historiografia, a sua presença em territórios cearenses remonta a meados do século XVI, provavelmente impulsionados pela expansão do processo colonizador. Os Potiguaras se distribuíam na região do Jaguaribe e, mais recentemente na faixa litorânea que se estende no sentido Oeste do rio Ceará. Já os Tabajaras, ocupavam a serra da Ibiapaba, com incursões pelas faixas litorâneas próximas. Studart (1962) afirma que os Potiguaras chegaram ao Ceará vindos das capitanias do Rio Grande e da Paraíba, onde o grupo se dividiu e parte se aliou aos portugueses e outra parte veio ao Ceará relutando em subjugar-se. Seu movimento de expansão pelo território cearense foi impulsionado pelo acirramento dos conflitos com os colonizadores. Os registros documentais apontam que os Potiguaras estavam nas imediações do rio Jaguaribe e, em 1603 tiveram contato com os portugueses da expedição comandada por Pero Coelho que foi marcada pela violência contra os indígenas, onde vários foram mortos ou aprisionados para fazer escravos. Deste conflito, no qual os índios foram brutalmente acometidos, resultou em um movimento de dispersão pela faixa litorânea a oeste. O Pe. Luís Figueira, na “relação do maranhão” de 16038 registra que os índios que os acompanhavam, no decorrer do percurso foram encontrando seus parentes “q' andavão escondidos assi dos portugueses p. não virarem presos como escravos, como muitos seus parentes. Como tãbem por medo dos tapuyas (…) (FIGUEIRA, 1903, p.99), e segue relatando em outro trecho da carta que ao chegarem à enseada do Pará9 “achamos aposentados os índios q' proximamente tinhão fogido aos portugueses cujo principal se chama acajuy, hum sobrinho do qual traziamos em nossa comp.ª e outros parentes dos seus” (FIGUEIRA, 1903, p.101). O documento cita ainda outras aldeias como a do Algodão nas proximidades do rio Curu e a do Cobra azul entre este e o rio Aracatiaçu, ou seja, nas imediações do Trairi. Foi na aldeia de Cobra Azul que o pe. Figueira buscou abrigo após terem sofrido o ataque dos índios Tocarijus, no qual foi morto o padre Francisco Pinto. O relato deste período é revelador de vários aspectos da vida naquela aldeia, que estava distante do mar cerce de uma 8

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O documento foi publicado na íntegra na revista do instituto histórico do Ceará no ano de 1903. Tal documento é o registro da viajem ao Maranhão empreendida pelos padres jesuítas Francisco Pinto e Luis Figueira, acompanhados por cerca de 60 índios tupis, no ano de 1608. Chegando ao Ceará estes incursionaram por terra do Jaguaribe até a serra da Ibiapaba, passando pela faixa litorânea nas imediações da área de abrangência deste estudo. A expedição dos padres tinha o objetivo de verificar a presença dos franceses na Ibiapaba e reverter o quadro de desconfiança deixado pela expedição do Pero Coelho anos antes, um aldeamento na região. Buscando viabilizar a instalação de um aldeamento na região. Provavelmente no rio Curu

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légua. Estes índios mantinham roças de milho e mandioca, mas sofriam constantemente os efeitos das estiagens e do ataque de insetos e outras pragas que comprometiam a produtividade. Além desses gêneros, sua alimentação também era composta por frutos colhidos na região, pela caça de pequenos animais e pela pesca. A última atividade é citada pelo padre em diversas situações, o que denota ser bastante presente no cotidiano da aldeia. O próprio padre relata que passou vinte e um dias morando com outros índios em uma “chossa” construída próximo ao mar, no qual podiam com maior comodidade se dedicar a pesca. Além dos aspectos já elucidados, a Relação do Maranhão nos possibilita a percepção do quanto o território em questão era densamente povoado por etnias diversas 10, que estabeleciam contatos, conflitantes ou não, entre si, e o quanto esses grupos realizaram deslocamentos a fim de fugir do julgo colonizador, havendo um acirramento dos conflitos entre etnias a partir desses deslocamentos e as consequentes disputas pelo território. Com a chegada de Martim Soares Moreno11 foi possível estabelecer relações de pazes com os Potiguares o que, contudo, não foi duradouro, pois existiu uma série de sobressaltos na qual este grupo ora estava aliado aos portugueses, ora aos holandeses, o que denota que estes construíam estratégias diversas diante do avanço da empresa colonial. Deste contexto resultam as suas dispersões pelo território cearense, pois além dos fatos já citados, a expulsão dos holandeses provocou um novo ciclo de deslocamentos, no qual os Potiguares temerosos de serem castigados pelos portugueses se refugiaram mais a oeste. Os Potiguares foram aldeados em 1665 em Bom Jesus da Aldeia de Parangaba e, em seguida distribuídos entre os aldeamentos da Paupina, Caucaia e Aldeia Nova do Pitaguary (STUDART FILHO, 1962). Os Tarairius, grupo que pode ser dividido entre Canindés, Paiacus12, Panatis, Jenipapos, Aperiús, Reriús13, Camaçus, Janduíns14, Javós, Quitariús, Quixêlos, Quixerariús, Tocariús15 e, Jenipapoacus16, foram apontados por vários cronistas como sendo nômades, vivendo a vagar por vastas áreas sem levar consigo muitos objetos, entretanto há que se considerar que eles empreenderam grandes resistências aos colonizadores e aos grupos que se aliaram a empresa colonial vivendo, portanto, em constante guerra, fator que certamente

10 Seguindo a tendência da documentação da época, quase sempre se refere a estes grupos com a denominação genérica de tapuia. Ainda assim é possível perceber que se tratam de vários grupos diversos. 11 Martim Soares Moreno acompanhou a expedição de Pero Coelho em 1603, estabelecendo relações com os índios Potiguares, em especial o principal Jacaúna. Em 1611 retorna ao Ceará e com o apoio dos índios Potiguares consegue fundar o forte de São Sebastião. 12 Também aparecem na literatura grafados como Pacajus ou Baiacus. 13 Da mesma forma, aparecem na literatura como Arariús, Irareús, Arearus, Irarijus e Areurus. 14 Ou Nhanduís ou Txocaianas. 15 Ou Tocarijús 16 Ou Jenipaboacus.

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influenciaria o seu modo de vida e cultura material (STUDART FILHO, 1962). Possuíam cerâmicas e redes e em seus territórios, segundo Studart, foram encontrados vasos polidos em diadoríto. Os Tarairiús se espalhavam pelos sertões do Ceará, no entanto existem registros de que esse grupo costumava incursionar pelas terras litorâneas formando manchas demográficas em territórios ocupados por outras etnias. Assim como os Tremembés, eram bons pescadores e também, costumavam coletar caju, fruto típico da mata de tabuleiro comum nas faixas litorâneas. Realizavam ainda a caça de pequenos animais. De todos os povos que ocuparam a área em questão, os Tremembés são apontados como os povos cuja presença foi mais contundente. A delimitação do território de ocupação Tremembé é bastante discutida entre os pesquisadores, pois alguns acreditam que ela se estendia por uma vasta área litorânea que ia do atual estado do Maranhão ao Rio Grande do Norte. Sobre isso, Thomas Pompeu Sobrinho afirma que Habitavam os Tremembés as práias e estuários cobertos de mangues dos rios do nordeste do Brasil, desde a foz do rio Gurupí a foz do rio Apodi, isto é, toda a costa dos atuais estados do Maranhão, Piauí e Ceará. Quando os primeiros exploradores europeus perlongaram estas costas, ainda os Tremembés as percorriam na indicada extensão; mas no correr do XVI século essa área de dispersão experimentou um notável retraimento. Os colonizadores na primeira metade do século seguinte sómente encontraram estes indígenas nas praias da baía de S. José no Maranhão à foz do rio Curu, no Ceará (1951, p. 258).

Para Studart Filho (1962), quando da chegada dos colonizadores, os Tremembés encontravam-se entre as praias do meio norte entre lençóis e Almofala e regiões de manguezais entre os rios Timonha, Camocim e Acaraú, e concorda com Sobrinho ao afirmar que esse território provavelmente já havia sido mais dilatado. Esses povos empreenderam grande resistência ao processo colonizador e ficaram conhecidos pelo seu caráter belicoso. Eram exímios pescadores, atividade que realizavam tanto com anzol, quanto com arco e flecha, destacando-se a pesca de tubarão que foi descrita por Th. Pompeu Sobrinho e que deixa transparecer a destreza com que realizavam as atividades pesqueiras. Nas pequenas canôas ou jangadas aventuravam-se mar a dentro, como ainda hoje o fazem os seus descendentes semi-civilizados (…) Ao pressentirem a fera arrojavam-se ao mar com um pau biapontado, de tamanho adequado, presa ao meio com uma corda comprida, cuja extremidade era fixada á frágil embarcação. Quando o tubarão investia esperava-o o pescador calmamente e, logo que abria a larga boca lhe ajustava convenientemente o pau entre as mandibulas, de modo que, ao fechar a boca violentamente para segurar o braço do índio o pau cravava fortemente numa e noutra mandíbula. Isto feito restava rebocar a fera para terra, depois de morta a pauladas (1951, p. 261).

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A pesca de curral é apontada pelos grupos Tremembés contemporâneos como uma de suas principais técnicas de pescaria oriunda supostamente dos seus ancestrais. Tal fato também foi registrado por Florival Seraine que se dedicou ao estudo da prática do ritual do torém17 na região de Almofala com os povos que seriam descendentes dos Tremembés 18 e que observou que, em meados da década de 1950 ainda era comum a pesca com arco e flecha e que “em setembro começam a armar-se currais, postos a funcionar ordinariamente até o mês de junho, os quais constituem o principal sistema de pescaria da região” (1955, p.72), o período de instalação dos currais também coincide com a época de colheita do caju, fruto que até hoje é empregado no preparo do mocororó, bebida fermentada que é servida no transcorrer da dança do torém. Além disso, os Tremembés se alimentavam de tartarugas marinhas e da coleta de seus ovos, abundantes nas praias cearenses em determinados períodos do ano. Em menor proporção praticavam a caça de animais de pequeno porte, coletavam frutos e, mantinham pequenas plantações, hábito que aparentemente não lhes era muito cativo, visto que alguns cronistas destacam que eles costumavam vagar por vastas áreas. Em relação à cultura material desses povos, Studart (1962) e Sobrinho (1951) destacam que produziam uma cerâmica grosseira, usavam cabaças para transportar água, e produziam machados semilunares polidos e encabados, flechas cujas pontas eram feitas de ossos e dentes e tubarão; possuíam ainda fusos de fiar algodão, arpões; cestos e esteiras tecidas com palha da carnaúba e construíam suas habitações (rústicas) com ramos ou folhas de palmeira e dormiam sob a areia da praia. Sobre os seus machados, o Pe. Ivo D' Evreux registra que estes tinham o ...costume mensal de vellar toda a noite fazendo seos machados até ficarem perfeitos, em virtude da superstição, que nutriam, de que indo para guerra armados com taes instrumentos nunca seriam vencidos e sim, sempre vencedores. (...) Em quanto os homens e as mulheres se entregavam a este trabalho, dançavam as moças e os meninos em frente das choupanas ao luar do crescente (1929, p. 180).

Também era seu costume deixar este machado sobre o corpo daqueles que fossem por eles vitimados.

17 Dança ritual dos índios Tremembés e de outras etnias. Sobre o assunto cf. OLIVEIRA JÚNIOR. Gerson Augusto de. Torém: brincadeira dos índios velhos. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1998. 18 A partir da década de 1980 ocorreu no Ceará um movimento de emergência étnica indígena cujos Tremembés foram pioneiros. Até então eles eram reconhecidos como descendentes dos índios ou como caboclos, como trata-os Seraine. Atualmente existem comunidades Tremembés nos municípios de Itarema, Itapipoca e Acaraú, todas em regiões próximas ao mar e/ou aos manguezais.

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Os Tremembés foram aldeados no Ceará e no Maranhão na primeira metade do século XVIII. Aqui foram aldeados em Almofala, hoje distrito do município de Itarema, e, distribuídos em outros aldeamentos junto a outras etnias. Com o avanço do processo de colonização foram sendo distribuídas cartas de sesmarias, que seguindo um padrão, se estendiam a partir do curso dos rios. Além disso, a paisagem litorânea comportava pequenos conglomerados de pescadores, formados principalmente por uma população mestiça. Nesta região floresceram os núcleos populacionais que originaram os atuais municípios de Paraipaba, Paracuru, São Gonçalo do Amarante19 e Trairi20. Há que se considerar ainda que outros fatores, além da presença do rio, que facilitava os deslocamentos entre litoral e sertão e garantia o acesso à água, influenciaram na consolidação dessas povoações. Na região estudada, a documentação nos permite visualizar que o movimento das dunas, impulsionada pelas constantes correntes eólicas, em várias situações provocou o deslocamento de grandes populações. O caso mais emblemático foi o da povoação de Almofala, cuja igreja de Nossa Senhora da Conceição21 e as habitações do entorno foram soterradas nos últimos anos do século XIX, reaparecendo apenas na década de 1940. Caso parecido também teria ocorrido em Paraipaba, a leste do Trairi (GOMES, 2012) Ainda hoje a região litorânea possui uma densa população de marisqueiras e pescadores tradicionais e a área do entorno do Trairi possui forte presença indígena de grupos Tremembés, distribuídos nos municípios de Itarema, Itapipoca e Acaraú; Anacés em Caucaia e São Gonçalo do Amarante e dos Tapebas22 em Caucaia.

19 Que por muito tempo foi chamada de Anacetaba em referência a influência dos Anacés. Desde a década de 1970 o Ceará vive um processo de emergência étnica no qual, vários povos passaram a reivindicar a sua identidade enquanto povos indígenas. Os Anacés também vivenciaram este processo, que esteve diretamente ligado a instalação do porto do Pecém. Atualmente existem comunidades Anacés nos municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante, ambas na região metropolitana de Fortaleza. Sobre o assunto cf. 20 Estas localidades passaram por uma série de disputas que influenciaram a sua situação políticoadministrativa. Sobre o assunto ver dados do IBGE Cidades. 21 A igreja de Nossa senhora da Conceição foi construída em 1712, no local em que foram aldeados, no início do século XVIII, os índios Tremembés pelo padre José Borges de Novais. Com o soterramento da igreja os índios realizaram novos deslocamentos, retornando à região quando a igreja reapareceu, no entanto a área havia sido apropriada por outros, o que desembocou em conflitos territoriais que se estendem até o período atual. 22 Os Tapebas são fruto de um processo de inter-relacionamento e individuação étnica entre os povos que viveram no Aldeamento Nossa Senhora dos Prazeres em Caucaia: os Tremebés, Potiguaras, Kariris e Jucás, somando-se, ainda, a negros libertos ou fugindo da escravidão. Cf. FILHO, Henyo Trinade Barreto, 2002.

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CAPÍTULO 4 – REFLEXÕES ARQUEOLÓGICAS SOBRE A HABITABILIDADE E OS EFEITOS DA DINÂMICA DUNAR NA PRAIA DE FLECHEIRAS

Nesse capítulo, analisamos os assentamentos na praia de Flecheiras, com vista a entender como se deu o processo de apropriação do espaço litorâneo pelo(s) grupo(s) que habitaram a área, bem como os processos de formação e transformação ocorridos nos sítios Trairi I (TR-I), Trairi II (TR-II), Trairi III (TR-III) e Trairi IV (TR-IV), já que a dinâmica dunar, como foi demonstrada no capítulo 03, pode gerar inúmeras alterações na paisagem e no registro arqueológico. Considerando as transformações ocorridas ao longo do Pleistoceno e Holoceno, apresentadas no capítulo 03, que acarretaram na grande diversidade ambiental da região atualmente, e de modo a deixar mais claro algumas dessas mudanças, abordamos inicialmente essa questão com o uso de imagens de satélite (2004 e 2011) e fotografias dos sítios realizadas desde 2013. Essas imagens e fotos analisadas pela perspectiva da Arqueologia da Paisagem nos ajudaram a compreender como se deu a formação do ambiente e do registro arqueológico, além de fornecer dados referentes a alguns dos processos pós-deposicionais que acontecem constantemente na paisagem arqueológica. Apresentamos imagens de satélite da praia de Flecheiras, nos anos de 2004 e 2011, onde foram plotadas as concentrações vestigiais de cada sítio, no intuito de percebermos o comportamento desses frente à dinâmica dunar, o resultado de nossa análise indicou mudanças consideráveis na paisagem, já que na imagem mais antiga vemos que os sítios TRII e TR-III estão completamente soterrados por grandes corpos dunares, enquanto que TR-IV está coberto apenas parcialmente e TR-I está distante aproximadamente 100m do córrego Estrela (Mapa 5: Evolução das dunas na praia de Flecheiras entre 2004 e 2011) Iniciamos as nossas discussões desse capítulo com a seguinte reflexão: Se em oito anos a paisagem de Flecheiras sofreu consideráveis alterações e, por conseguinte, a cultura material dos sítios, como seria a paisagem durante a ocupação e como isso poderia colaborar na interpretação do modo de vida desse(s) grupo(s)?

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Mapa 5 – Evolução das dunas na praia de Flecheiras entre 2004 e 2011.

Fonte: elaborado por Jefferson Lima, 2015.

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Entendendo a espacialidade como um aspecto importante na compreensão do modo de vida do(s) grupo(s) que ocuparam Flecheiras, foi realizado também uma análise, a nível semimicro de modo a buscar as estruturas que indicassem a funcionabilidade do sítio, para isso foram coletados dados in locu sobre a tecnologia tendo por base os estudos de Marques (2012a, 2012b, 2012c, 2013) a fim de referenciar nossa pesquisa. Através da Arqueologia da Paisagem verificamos os processos pós-deposicionais dos sítios, onde foi possível explicar a atual configuração da distribuição vestigial, para isso utilizamos de mapas com a localização de cada peça dentro das quadrículas de 5 x 5 m (quando possível) que compõem as concentrações arqueológicas, de modo a inferir, junto com análise tecnológica da cultura material (salvo as suas restrições devido a análise ser realizada in lócus) possíveis áreas funcionais. Destacamos que a metodologia das quadrículas não pode ser aplicada a todos os sítios, já que constatamos algumas dificuldades de aplicação em alguns desses, tais como em Trairi I, devido à baixa densidade artefatual verificada (apenas 10 peças) não seria necessário o seu uso frente à nossa proposta analítica; o assentamento Trairi IV teve sua cultura material salvaguardada por ação da Arqueologia Preventiva, já que o mesmo foi impactado pela construção de um empreendimento, dessa forma utilizamos os resultados de sua análise tecnofuncional e o seu mapa de distribuição espacial em nossa análise. Ainda sobre a perspectiva teórica de Clark (1977), relacionamos os dados ambientais, tais como a Formação Barreiras, rios e córregos, lagoas interdunares, corais e as dunas em um nível macro, de modo a demonstrar a relação desses elementos com os sítios na perspectiva de que os grupos humanos tendem a diminuir os seus gastos de energia para adquirirem mais benefícios (ver o mapa 6: Distribuição dos sítios na área de estudo). Frente aos resultados apontados no contexto arqueológico pra o litoral do município de Trairi, fizemos um estudo comparado entre dados obtidos sobre a cultura material e da implantação na paisagem verificada nos blocos Mundaú e Boa Esperança, além do sítio Guajiru II, de modo a identificarmos o padrão de assentamento que possa existir entre esses e os sítios na praia de Flecheiras.

4.1. SÍTIO TRAIRI I

Esse assentamento, ao qual chamamos de TR-I, foi identificado no contexto da Arqueologia Preventiva e tem por ponto central a coordenada UTM 466479/ 9644323 (DATUM WGS 84) cujos vestígios estão distribuídos às margens do córrego Estrela (Tabela

80

1). Além da drenagem destaca-se também uma duna do tipo barcana que foi estabilizada por ação humana recente (Mapa 7: Sítio Arqueológico Trairi I – Anexo C). Figura 35 – Fotografia da vista ao sítio TR- I, detalhe para o córrego e duna estabilizada.

Fonte: acervo do autor, maio de 2013.

Entre as descrições feitas sobre o sítio, identificam-se lascas e microlascas, cuja matéria-prima é calcedônia, arenito silicificado e quartzo, além de cerâmica e restos malacológicos. A distância do sítio para o mar é de aproximadamente 700m (LEITE, 2010; MARQUES, 2012b). Porém, ao iniciar nossas prospecções, em 2013, visando à identificação e mapeamento dos vestígios para essa pesquisa, não nos deparamos com a cultura material apresentada nessas imagens (Fotografias 36 a 39). De modo a compreender o ocorrido, passamos a acompanhar semestralmente, possíveis fatores que estivessem afetando o registro arqueológico, além de consultar os relatórios sobre o assentamento. Ao longo de dois anos de estudos chegamos aos seguintes fatores que geraram impactos sobre os vestígios: a) Rodovia CE – 163, margeia o sítio no sentido N – S e E – W; b) Atividade agrícola relacionada ao plantio de capim dentro e fora dos limites arqueológicos e seguindo o curso do córrego; c) Atividades de laser e pesca artesanal junto à drenagem; d) Deposição sedimentar eólica; e) Ampliação da área de arbustos e vegetação Pioneira; f) Erosão pluviométrica e fluvial;

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g) Assoreamento de origem natural e antrópica. Todos esses fatores estão interligados e por vezes ocorrem simultaneamente, acelerando o processo de destruição do sítio. Figuras 36 a 39 – Fotografias da cultura material verificada no sítio Trairi I. A. Lasca em silexito; B. Lasca em quartzo; C. cerâmica arqueológica; D. Malacológico.

A

B

C

D

Fonte: MARQUES, 2012b.

Provavelmente o fator que mais vem interferindo no registro arqueológico é o natural, já que há tempos o avanço das dunas sobre o córrego tem resultado na alteração de seu percurso acabando por projetá-lo sobre a área arqueológica, ao mesmo tempo em que ocorre um barramento parcial de sua desembocadura resultando na formação de lagoas naquelas proximidades, fato comum na dinâmica costeira (BRANDÃO, 2008). São nessas lagoas onde ocorrem atividades de lazer e pesca pelas comunidades do entorno, Estrela e Flecheiras. Espécies como o peixe Cará e Tilápia são muito comuns nessas águas, segundo os pescadores.

82

Figuras 40 e 41 - Fotografias de alguns fatores de inteperismo em TR-I. A. Trânsito de pessoas nas proximidades do sítio; B. Ação pluviométrica escoando um fragmento cerâmico para dentro do córrego.

A

B

Fonte: acervo do autor, 2014.

Figuras 42- Fotografia da pesca artesanal realizada em lagoa nas proximidades de TR-I.

Fonte: acervo do autor, maio de 2015.

As alterações ocorridas no córrego Estrela também puderam ser percebidas através dessas imagens (Fotografias 43 e 44) realizadas em épocas distintas (2012 e 2015) e sobre o mesmo enquadramento espacial, demonstrando como o assoreamento vem modificando a planície fluvial, criando curvas e provocando novas erosões. Além disso, a vegetação experimentou um aumento considerável podendo ocultar parte dos artefatos. Sobre a cultura material desse sítio, como mencionado anteriormente, foram identificados espacialmente apenas dez pontos (ver o mapa7 do Sítio Arqueológico Trairi I).

83

Figuras 43 e 44 – Fotografias do mesmo cenário de TR-I, em épocas diferentes. A. Ano de 2012. B. Ano de 2015.

A

B

Fonte: A. MARQUES, 2012A; B. acervo do autor, 2015.

De modo geral, a partir de uma análise espacial apenas da superfície, TR-I apresenta uma ocupação bastante incipiente, já que a cerâmica, diante de uma amostra tão pequena (2 fragmentos in locu), pouco nos revelou, a não ser sobre a queima reduzida e uso de areia no tempero, características apontadas como da Tradição Cabocla (MARQUES, 2012a). Enquanto que o lítico se caracteriza por uso predominante da matéria-prima em quartzo e, em menor escala de silexito, sendo o primeiro abundante na região, como demonstrado nos estudos sobre o bloco Mundaú e o sítio Guajiru II e verificado na foz do córrego Estrela, como demonstraremos adiante. Os instrumentos são percutores em seixo bastante deteriorados pelo uso e apenas um de maior porte, podendo indicar que as atividades de lascamento ou preparo de alimentos (macerar e triturar) foi feita naquele local. Considerando a única lasca com córtex encontrada na prospecção e os dados sobre microlascas em relatório da Arqueologia Preventiva (op. cit), ponderamos a possibilidade de haver mais desses pequenos vestígios em subsuperfície ou até mesmo ocultados em superfície pela vegetação. Alguns vestígios chamaram a nossa atenção, tais como o fragmento de coral do qual não nos foi possível inferir seu uso, porém essa formação se localiza entre a foz do córrego e a vila de Flecheiras (aproximadamente 1km de extensão); instrumentos de pesca recente, como os restos de uma rede de pesca em nylon e um instrumentos em madeira conhecido como “agulha” utilizado na confecção e remendo dessas redes, indicando que o córrego apesar de muito raso atualmente, já possuiu profundidade suficiente para esse tipo de atividade e, por fim fragmentos de telha e vidro, o último apresenta marca de fabricante, porém se encontra em péssimo estado, indicando a possibilidade de já ter havido um abrigo coberto próximo a drenagem.

84

Figuras 45 e 46 – Fotografias: A. Cerâmica arqueológica. B. Lasca em quartzo.

A

B

Fonte: acervo do autor, 2015

Figuras 47 e 48 – Fotografias: A. Percutor em quartzo de grande porte. B. Percutor com fraturas.

A

B

Fonte: acervo do autor, 2014.

Figuras 49 e 50 – Fotografias: A. Fragmento de coral. B. “Agulha” de pesca.

A Fonte: Acervo do autor, 2015.

B

85

Figura 51 - Fotografia de vidro e telhas.

Fonte: acervo do autor, 2014.

Com base na hipótese levantada por Marques (2012a, 2012b, 2012c, 2013) e Morales (et al, 2012) sobre a área de captação do quartzo para a fabricação de instrumentos advir do leito de drenagens, resolvemos ampliar a área de prospecção até a foz do córrego onde identificamos sob cordões de dunas móveis, que estão em processo de edafização e as margens da drenagem, vários seixos, bem como, blocos dessa matéria-prima, demonstrando assim que o sítio funcionaria como provedor e produtor de utensílios. Mais pesquisas na região também poderiam indicar se o córrego Estrela seria uma área propícia para captação de argila. Figuras 52 e 53 – Fotografia: A. Zona de proveniência para os artefatos líticos da região. B. Bloco de quartzo

A Fonte: acervo do autor, 2015.

B

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4.2. SÍTIO TRAIRI II

O sítio denominado de TR-II, segundo as suas descrições preliminares possui duas concentrações que distam 230m entre si e estão a 1000m do mar, cujas dimensões, no total, podem chegar a 350m x 250m (MARQUES, 2012a). A concentração I, cujo ponto central está na coordenada UTM 466989 9643562 (DATUM: WGS 84) está inserida numa depressão interdunar cujos limites norte e leste são parte de uma mesma duna barcana, enquanto os limites oeste e sul possuem dunas descontínuas de baixa estatura. Em meio à área vestigial, encontram-se o que acreditamos ser “montículos testemunhos” recobertos por uma fina camada de deposição sedimentar recente, isso só poderá ser confirmado mediante escavações nessas áreas, mas ao compararmos com outras concentrações vestigiais na mesma região e tendo em vista a rapidez com que se forma essa fina camada, acreditamos que novos artefatos possam surgir, assim como nos limites oeste e sul que apresentam a mesma feição. Figura 54: Fotografia de “Montículo testemunho” na concentração I, no sítio Trairi II

Fonte: A. MARQUES, 2012a

Com base no mapa 7, de Evolução das dunas, vemos que entre os anos de 2004 e 2011 profundas mudanças na paisagem ocorreram, entre elas a de que a duna semifixas onde a concentração estava implantada foi erodida pela ação eólica, motivo do qual acreditamos ocorrer o fenômeno dos “montículos testemunhos”. Ao mesmo tempo em que parte do sítio vem sofrendo erosão, a cultura material vem se deslocando horizontalmente, ocorrendo simultaneamente a movimentação da duna barcana sobre o local, como demonstrado pelas fotografias 55 e 56.

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Figuras 55 e 56 - Fotografia da concentração I, no sítio Trairi II, avanço da duna barcana sobre o sítio, seta indica vegetação de referência. A. Espaço ano de 2012. B. Espaço ano de 2015.

A

B

Fonte: A. MARQUES, 2012a; B. acervo do autor, 2015

Assim como em TR-I, visando compreender os efeitos dessa deposição sedimentar eólica no registro arqueológico, passamos a acompanhar as possíveis mudanças na configuração do sítio e dessa forma realizamos o seu mapeamento da distribuição espacial (ver o mapa 8: Sítio Arqueológico Trairi II concentração I). Ao retornar no semestre seguinte observamos que as mesmas peças sofreram um recobrimento de até 5 cm de espessura, como demonstrado na fotografia 57.

Figura 57: Fotografia de sedimentação eólica com até 5 cm de profundidade, no sítio Trairi II

Fonte: acervo do autor, 2015

Com base nessas observações pós-deposicionais percebemos que parte dos pequenos fragmentos, tais como lascas, microlascas, detritos e até artefatos maiores como batedores

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foram soterrados completamente, reforçando a ideia de que intervenções em subsuperfície podem trazer mais dados sobre o sítio. De acordo com o que foi analisado in locu percebemos que a cultura material desse sítio é de baixa densidade quantitativa e está concentrada nas quadras 6, 10, 14, 15 e 19 (Tabela 2). Nas demais quadras, houveram ocorrências bastante pontuais (Mapa8: Sítio Arqueológico Trairi II, concentração I). O lítico se caracteriza pelo predominante uso de quartzo como matéria-prima, podendo ser verificado em menor quantidade silexitos. Seixos de até 6cm e de origem fluvial foram utilizados como percutores para lascamento e estavam associados a detritos e microlascas que ainda apresentavam o córtex, poderiam também ser usados no maceramento de sementes, porém próximo a esses também foram encontrados percutores com marcas de abrasão como suporte o que pode indicar atividades de moer cerâmicas para uso como antiplástico ou em grãos de quartzo para o mesmo fim. Apenas um núcleo foi encontrado (quadra 1), e pouco esgotado talvez pela grande oferta de acesso na região. Figuras 58 a 61 – Fotografias de líticos no sítio Trairi II, concentração I. A. Percutor em quartzo; B. Bigorna em quartzo; C. Núcleo; D. Dispersão de microlascas na quadra 14.

A

B

C

D

Fonte: Acervo do autor. 2014 e 2015.

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A cerâmica, de modo geral, possui características tais como a Tradição Cabocla (MARQUES, 2012a) apontada nos estudos sobre o bloco arqueológico Mundaú. Vasilhames apresentando queima redutora, todos com alisamento interno e externo, presença de fragmentos com engobo vermelho e algumas alças, o tempero possui areia fina e grãos de quartzo. Como não encontramos nenhum fragmento do tipo base e poucas bordas, a análise funcional desses utensílios ficou comprometida. Em menor quantidade verificamos a presença de malacológicos nessa concentração.

Figuras 62 a 65- Fotografias: A. Dispersão cerâmica na quadra 10; B. Malacológico; C. Alça cerâmica na quadra 9; D. Fragmento com engobo vermelho na quadra 15.

A

B

C

D

Fonte: Acervo do autor. 2014 e 2015.

A concentração II, cujo ponto central é a coordenada UTM 467287 9643468 (DATUM: WGS 84) se localizada numa planície de deflação, com a presença de vegetação do tipo Pioneira. Seus limites são configurados por cordões de dunas longitudinais semifixas ao norte e sul, a leste por um conjunto de dunas barcanóides.

90

Figura 66 – Fotografia da vista geral da concentração II, no sítio Trairi II.

Fonte: Acervo do autor, maio de 2013.

Assim como na concentração I, tendo por referência o mapa 5 (Evolução das dunas na praia de Flecheiras entre 2004 e 2011), onde a paisagem nesse ponto também sofreu grandes alterações, entre elas apontamos o deslocamento da duna sobre o sítio. Outro fator natural importante foi uma possível erosão nas dunas semifixas em que essa concentração estava implantada, onde ocorre a presença dos “montículos testemunhos”, já explicados anteriormente. A dinâmica dunar não é o único fator que gera processos pós-deposicionais nessa concentração, após inúmeras observações em campo foi registrado a presença da atividade de bovinos e até mesmo de um tatu peba (Euphractus sexcinctus (L.)) (Fotografia 67 e 68). Figura 67 e 68 - Fotografia do intemperismo provocado por ação animal em TR-II.

Fonte: Acervo do autor, 2015.

91

Entre a cultura material identificada (Tabela 3) encontram-se cerâmicas, líticos, fogueira, malacológicos e resquícios de uma resina que podem ser conferidas no Mapa 9: Sítio Arqueológico Trairi II concentração II. A cerâmica arqueológica, vestígio mais abundante no local, pode ser caracterizada da seguinte forma: a) Grupo I: fragmentos espessos, tempero predominantemente composto por quartzo moído e areia fina, podendo também haver no antiplástico cacos cerâmicos moídos, queima oxidante, engobo pintado de branco e apresentando na face interna alisada pontilhados interligados por linhas curvas, a face externa também é alisada, a borda é reforçada externamente e o lábio pode ser arredondado ou plano; b) Grupo II: fragmentos onde sobressaem pouca espessura, também havendo cacos raramente mais grossos, predomina o tempero de quartzo moído e areia em qualquer recipiente, tendo a queima redutora na maioria dos casos (coloração escura) e oxidante ocasionalmente, a decoração pode apresentar sucos paralelos horizontais ou engobo pintado de vermelho. Estudos realizados por Marques (2013), no bloco arqueológico Mundaú, apontaram a presença de uma cerâmica similar como a encontrada em Flecheiras. De acordo com sua classificação, grosso modo, o grupo I tem características da Tradição ceramista Tupiguarani, enquanto que o grupo II compreende a cerâmica Cabocla. A mesma autora, com base em suas análises para os sítios de Mundaú, inferiu que o uso de materiais grosseiros no tempero, como cacos e rochas moídas, indicam utensílios para cozinhar, assim como a presença de cerâmicas com engobo vermelho remetem a tigelas ou vasos semiglobulares. Vale ressaltar que o padrão cerâmico do grupo I também se assemelha com os encontrados no bloco arqueológico Boa Esperança. O conjunto lítico verificado nessa concentração tem por predominância o quartzo, como matéria-prima e, em bem menor escala, silexito, granito, quartzito e arenito, isso em decorrência da facilidade de oferta dessa rocha na região. Inúmeras microlascas e detritos compõem a cultura material desse local e em alguns casos estão associadas à percutores, núcleos e bigornas, todos num mesmo contexto deposicional, levando a crer que não sofreram interferências pós-deposicionais caracterizando esse local como ideal para o lascamento. Os dois primeiros são compostos, exclusivamente, por quartzos, enquanto o último teve por preferência o uso de granito. Seixos sem marcas de percussão associados à cerâmica podem indicar uso como alisadores na fabricação dessa. Esses dados podem nos fazer inferir que boa parte da concentração II estava destinada a

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produção e consumo desses artefatos. Também foi encontrada a porção distal de um pequeno machado cuja matéria-prima é de origem vulcânica. Figuras 69 e 70 – Fotografias das Cerâmicas do grupo I, na concentração II. A. Borda reforçada externamente, na quadra 23; B. Decoração interna com motivos pontilhados interligados por linhas curvas, na quadra 21.

B

A Fonte: Acervo do autor, 2015.

Figuras 71 e 72 – Fotografias das cerâmicas do grupo II, na concentração II. A. Tempero com quartzo moído e areia fina, na quadra 60; B. Decoração com engobo vermelho em superfície externa e alisada, na quadra 23.

B

A Fonte: Acervo do autor, 2015.

Uma fogueira foi verificada na porção norte da concentração (fato a ser confirmado através de escavações), nessa havia poucas microlascas e um único fragmento cerâmico filiado ao grupo II. Corroborando nossa inferência a respeito da estrutura, existe uma irradiação de pequenos fragmentos de carvão transportados na direção do vento (SW – NW). A literatura arqueológica de assentamentos sob dunas no Nordeste brasileiro indica ser essa uma prática bastante comum entre os povos pretéritos que ocupavam esse tipo de ambiente,

93

podendo ser verificado alguns casos no Ceará e Piauí (VIANA et al, 2007; MORALES et al, 2012; QUARESMA, 2012). Figuras 73 a 76 – Fotografias dos líticos na concentração II. A. detritos de matériaprima silicosa, na quadra 48; B. Fragmento de machadinha, na quadra 53; C. Núcleo com córtex não esgotado; D. Fogueira com cerâmica do grupo II e microlascas no seu interior.

A

B

C

D

Fonte: Acervo do autor, 2015.

Um dos vestígios que mais nos chamou a atenção foram fragmentos de uma resina amarelada e solidificada. Entre a atual vegetação da região, nenhuma delas produz qualquer substância que tenha tais estruturas, segundo o catálogo Floras do Ceará23. Segundo os dados etnológicos, isso pode se tratar de resquícios de âmbar gris, produto de origem marinha e largamente utilizado pelos grupos Tupis para produção de corantes amarelos e que durante a colonização europeia fora bastante explorado pelos portugueses e franceses (STUDART FILHO, 1937). Há também a possibilidade de tratar-se de restos de uma vegetação que já fora bastante comum na região e foi por muito tempo foi o nome do córrego Estrela, a tatajuba ou

23

(disponível em , consulta 08/05/15)

94

taiúva (Maclosia tinctoria), da qual era necessário cortar o tronco dessa arbórea e ferver-lhe para assim extrair a tinta amarela (POMPEU SOBRINHO, 1945). Esse corante também era bastante valorizado no mercado europeu e brasileiro durante o primeiro cartel do séc. XIX (NOGUEIRA, 1887). Ambos os casos se enquadram em nosso contexto arqueológico, pois um dos fragmentos encontrados apresenta retiradas antrópicas em espiral, indicando que essa intervenção foi realizada com o vestígio já solidificado e em outro ponto restos dessa resina estão associados com percutores e bigorna apontando para o uso de sua exploração no caso de ser âmbar gris. Porém esse dado só poderá ser esclarecido após análises especializadas. Figuras 77 e 78 – Fotografias da resina encontrada na concentração II. A. Fragmento com retirada, na quadra 254; B. Fragmento associado à bigorna, na quadra 229.

A

B

Fonte: Acervo do autor, 2015.

Em escala considerável, encontramos vários vestígios malacológicos indicando uma considerável parte da dieta desse(s) grupo(s), porém como não dispomos de análises em Malacologia sobre esses, realizamos apenas um levantamento sobre áreas potenciais, em Trairi, para sua coleta e chegamos a praia de Flecheiras e o estuário do rio Mundaú como grandes provedores de espécies como Pugilina morio, Turbinella laevigata, Mulinia cleryana e Tagelus plebeius24, bastante semelhantes aos vestígios arqueológicos verificados em todos os sítios pesquisados em nosso levantamento. Em um dos casos encontramos um artefato apresentando um orifício bastante semelhante a uma ação antrópica. Prous (1986-1990) descreve a utilização de várias valvas como ferramentas e adornos no contexto de sambaquis, revelando o quanto é comum essa prática em meio a povos que habitaram o litoral em tempos pretéritos.

24

(disponível em: , consultada em 24/06/15)

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Figuras 79 a 81 – Fotografia de valvas de moluscos na concentração II. A. Artefato na quadra; B. Fragmento com possível marca de perfuração por atrito, na quadra 157; C. Amostra de coral deteriorado.

A

B

C Fonte: Acervo do autor, 2015.

4.3. SÍTIO TRAIRI III

O sítio ao qual chamamos de TR-III tem por feições geomorfológicas parte implantada sobre uma planície de deflação com vegetação pioneira (Mapa 10: Sítio Arqueológico Trairi III concentração I) e a outra se encontrando sobre um blowout que evolui para um corredor eólico (Mapa 11: Sítio Arqueológico Trairi III concentração II), ambas tem como limite a oeste uma duna do tipo barcana e ao sul uma duna semifixa longitudinal, distantes 800m da pancada do mar. Essa divisão entre concentrações foi tomada apenas para facilitar a compreensão sobre os diversos fatores ambientais que podem ocorrer num mesmo local e são de grande importância para os estudos em padrão de assentamento. A coordenada UTM 467351 9643686 (DATUM: WGS 84) pode ser considerada como seu ponto central e suas dimensões alcançam aproximadamente 100m x 100 m.

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Figuras 82 - Fotografia da vista geral do sítio Trairi III. A. Planície de deflação na concentração 1, destaque amarelo; B. Blowout na concentração 2, destaque em azul.

Fonte: Acervo do autor, maio de 2013

Como demonstrado na imagem logo acima (Fotografia 82), a concentração 1 desse sítio, sofre impacto da atividade de pastoreio bovino podendo resultar em deslocamento horizontal e vertical dos artefatos, assim como em TR-II. Enquanto na concentração 2 os vestígios sofrem ação vertical a partir da erosão sedimentar provocada pelos ventos, sendo essa apontada a principal característica pós-deposicional para o contexto arqueológico em blowout (SILVA, 2003; SIMÕES, 2014; VIANA et al, 2007). Acrescenta-se ainda o fato que, entre os anos de 2004 e 2011 houve um deslocamento da duna sobre o sítio (ver Mapa 5 de Evolução das dunas). Figura 83 – Fotografia da ação de erosão eólica na concentração II, quadra 75, sítio TRIII.

Fonte: acervo do autor, 2015

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Predomina, em Trairi III, vestígios cerâmicos, e em menor proporção estão moluscos, louças decoradas, vidros e grês. (LEITE, 2010; MARQUES, 2012a). Entre o material também foi verificado o mesmo tipo de resina existente em TR-II (Tabelas 4 e 5). A cerâmica em TR-III tem como características um acentuado grau de intemperismo, tempero de quartzo moído e areia fina, predominância de queima redutora (forno), alisamento interno e externo, em alguns casos percebe-se uma decoração com uso de “apêndices” e o engobo vermelho, foi identificado um fragmento de borda extrovertida com lábio arredondado. Esses atributos também são encontrados em TR-I, TR-II e no bloco arqueológico Mundaú, filiados à tradição ceramista Cabocla (MARQUES, 2012a).

Figuras 84 a 87- Fotografia das cerâmicas verificadas em TR- III. A. Acentuado grau de intemperismo expõe o tempero composto por quartzo moído e areia fina na quadra 7; B. “Apêndice” na quadra 8; C. Engobo vermelho na quadra 75; D. Borda extrovertida com lábio arredondado na quadra 84.

A

B

C

D

Fonte: acervo do autor, 2015

Fragmentos de louças com e sem decoração, relacionados provavelmente a uma malga e um prato, também foram identificadas junto às duas concentrações do sítio, que segundo

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Lima et al (1989) e Zanettini (1986) constam ter origem entre fins do séc. XIX e início do séc. XX. Outros utensílios da tralha doméstica também constam, tais como vidros e fragmentos de grês. A presença desses artefatos históricos que estão ligados ao processo civilizador europeu, como discutido no levantamento etnohistórico da região, podem indicar que o sítio pode ter sofrido mais processos pós-deposicionais por conta do modelo de atuação e implantação colonizadora junto às comunidades que já habitavam Flecheiras (SILVA, 2003).

Figura 88 a 91- Fotografia da tralha doméstica em TR- III. A. Fragmento de malga com motivos florais na quadra 54; B. Fragmento de prato com motivos florais na quadra 84; C. Fundo de garrafa de vidro; D. Fundo de garrafa de grés na quadra 74.

A

B

C

D

Fonte: acervo do autor, 2014 e 2015.

Foi encontrado mais um fragmento de resina solidificada, assim como em TR-II, porém sem marcas de manuseio, podendo indicar que fora depositada no local ainda no estado bruto. No contexto em que foi identificado o vestígio orgânico estavam associados, cerâmica e louça, porém como demonstrado, a erosão pode ter colocado esses vestígios em proximidade.

99

Figura 92 – Fotografia de resquício de resina solidificada na quadra 85

Fonte: acervo do autor, 2015.

4.4. SÍTIO TRAIRI IV

O sítio que chamamos de TR-IV localiza-se em uma lagoa interdunar, no front de uma crista barcanóide que está a leste, essa é formada pela justaposição lateral de dunas barcanas. Esta feição geomorfológica está evoluindo para formar um sistema de dunas que são separadas por depressões interdunares (Ver Mapa 12: sítio Arqueológico Trairi IV). Os limites de TR-IV são uma interseção de um cordão de dunas longitudinais ao norte, assim como no sul, além de no centro existir um cordão de dunas recobrindo parte do sítio, dessa forma esse é dividido em duas concentrações e uma ocorrência isolada. Esse assentamento está há aproximadamente 1,5km do mar e tem como ponto central a coordenada UTM 467629 9643289 (DATUM: WGS 84). TR-IV foi o único na praia de Flecheiras a passar por uma coleta e análise sistemática de sua cultura material, pois foi impactado pela construção de um empreendimento, por essa razão não utilizamos aqui a metodologia da malha por quadrículas. Como demonstrado no mapa 5 (Evolução das dunas na praia de Flecheiras entre 2004 e 2011), a área do sítio, entre os anos de 2004 e 2011 sofreu sérias alterações, a começar pelo fato de que a duna atravessou sobre as áreas vestigiais. Após esse evento, como consta na descrição do local, verifica-se a presença de lagoa interdunar em uma das concentrações, resultado do alto índice de erosão que a planície sofreu até atingir a Formação Barreiras. A cultura material nesse sítio teve em sua maioria o lítico, seguido de algumas amostras de restos malacológicos e cerâmicas (Tabela 6).

100

Entre os líticos analisados predominaram o quartzo como matéria-prima utilizada e seguida do silexito, as formas mais comuns são detritos, lascas e microlascas de tamanho bastante reduzido e apresentando córtex, um modelo comum para lascamento por debitagem, poucos núcleos foram encontrados e apenas os seixos de silexito foram totalmente esgotados. Figura 93 – Fotografia da vista geral do sítio TR-IV, seta laranja identifica concentração 1 e seta amarela a concentração 2.

Fonte: MARQUES, 2012b, p. 38.

A presença de quartzo na foz do córrego Estrela pode explicar a predileção por essa matéria-prima e também o abandono do núcleo sem esgotá-lo, fato inverso ao silexito que é raro na região e apresenta melhores condições de lascamento justificando-se seu uso excessivo. Figura 94 e 95 – Fotografia dos líticos encontrados no sítio TR-IV. A. Núcleo em quartzo. B. microlascas e detritos de matérias variadas.

A Fonte: MARQUES, 2012b.

B

101

A cerâmica arqueológica foi encontrada em quantidade bastante reduzida e parte da amostra sofreu alto grau de intemperização eólica, apenas em alguns fragmentos foi possível identificar uma manufatura acordelada e o tratamento por alisamento da superfície interna e externa, a queima é reduzida e o antiplástico predominante foi de areia fina e quartzo moído. Essas características, segundo Marques (2012b) apontam para a tradição ceramista Cabocla. Figura 96 e 97 – Fotografia da cerâmica encontrada no sítio TR-IV. A. Fragmento com marcas de alisamento em superfície externa. B. Fragmento com inteperismo expondo o antiplástico.

Fonte: MARQUES, 2012b.

Sondagens realizadas junto ao cordão de duna que separa as concentrações, e em outros dois pontos da planície de deflação que não apresentavam vestígios em superfície se mostraram negativas do ponto de vista arqueológico, porém forneceram dados referentes à estratificação geológica do terreno, tais como: até a profundidade de 30cm apresentou sedimentos grosseiros, associados a matéria-orgânica (raízes), além disso percebe-se a oscilação hidrostática de uma paleolagoa em tempos passados (MARQUES, 2012b). A

B

102

Figura 98 – Fotografia da sondagem no cordão de duna que separa as concentrações 1 e 2, no sítio TR-IV.

Fonte: MARQUES, 2012b, p. 42.

Tendo em vista as características tecnológicas e a reduzida variação artefatual acreditamos se tratar de um assentamento de curta duração. A tecnologia usada é bastante comum em outros sítios da praia de Flecheiras, no bloco arqueológico Mundaú e no sítio Guajiru II, todos localizados em ambiente dunar.

103

CAPÍTULO 5 – DISCUSSÃO DOS RESULTADOS E CONSIDERAÇÕES FINAIS Sítios sob dunas são bastante comuns no litoral cearense, porém grande parte das pesquisas realizadas não integra os dados locais a escalas maiores, dando a entender que os processos ocorridos em cada sítio são específicos e descontextualizados. Frente a essa situação e visando compreender as razões que motivaram grupos a se estabelecer no litoral do Trairi, no Ceará, numa área sujeita a diversas intempéries naturais, optamos pelos estudos em padrão de assentamento. Nessa abordagem foi possível identificar a forma como os grupos humanos se utilizavam da área onde estavam inseridos, focando na distribuição, adequação e localização dos sítios no seu contexto ambiental-paisagístico, estando essa abordagem na perspectiva da escala regional (BARBOSA-GUIMARÃES, 2011). A análise dos padrões de assentamento também agrega outras variáveis que foram consideradas nesta pesquisa, dentre elas os estudos sobre o meio ambiente, o contexto arqueológico da região, as informações de cunho etnohistóricas e a distribuição espacial desses sítios na paisagem (CORTELLETTI, 2009; SENA, 2007; SOUSA, 2011; LIMA, 2006), com essas informações integradas nos foi possível construir um panorama sobre a ocupação de Flecheiras. Para tal, optamos por um recorte espacial entre os rios Mundaú e Trairi, bacias hidrográficas importantes e compostas de diversos riachos e córregos. Todo o levantamento de dados foi direcionado para essa região, pesquisas de relatórios de Arqueologia Preventiva, documentações históricas, mapas cartográficos, literatura sobre o meio ambiente litorâneo, prospecções em superfície, imagens de satélite e fotografias da região para assim compormos as informações necessárias para a nossa interpretação. A investigação sobre o processo de evolução do ambiente costeiro aponta para o grande potencial de recursos naturais existentes para a sustentabilidade das comunidades que ali se instalaram. Claudino-Sales (2007) revela que grandes mudanças na paisagem ocorreram a partir da Última Grande Transgressão, em 5.100 A.P., porém somente após a “flexura marginal” (entre 3100 a 2100 A.P) que esse ambiente passa a desenvolver aspectos bastante semelhantes com o que verificamos atualmente na região de Trairi, tais como as dunas fixas e móveis, eolianitos, a paleovegetação, corais e a configuração atual da formação barreiras. No que diz respeito à Arqueologia, alguns sítios pesquisados na região nos serviram de referência para análise de implantação e da cultura material. Os sítios do bloco Mundaú e o

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sítio Guajiru II, analisados por Marques (2012c; 2013) se localizam em meio a dunas móveis, onde estão sujeitos a vários intemperismos naturais e que dificultam a análise arqueológica, ainda possuem em comum uma proximidade a rios e lagoas interdunares. Já os assentamentos do bloco Boa Esperança pesquisados por Nobre (2013) estão localizados em uma área sobre antigas dunas estabilizadas. A tecnologia é um fator importante para a nossa proposta, pois remete ao fato de como as comunidades transformaram o espaço. Dessa forma realizamos análises in lócus sobre o material em superfície no qual detivemos a nossa observação. Em relação à cerâmica, observamos fatores como o antiplástico, a queima, o tratamento na superfície interna e externa, assim como na decoração, já que Luna (2003) afirma que é nesse atributo que os grupos deixam transparecer traços culturais dos quais podem colaborar na classificação cultural do vestígio. Em relação ao material lítico analisamos a forma, a matéria prima, as técnicas de preparo e marcas de uso. Os elementos identificados foram cruzados com informações de outros sítios do litoral de Trairi onde foi possível realizar inferências sobre o modo de vida dos habitantes de Flecheiras. Outro elemento recorrente nos sítios analisados foram os restos malacológicos associados ao material cerâmico e lítico. Várias análises sobre a tecnologia, etnologia e implantação na paisagem foram utilizadas para o entendimento sobre os sítios TR-I, TR-II e TR-III e TR-IV e, grosso modo, percebe-se algumas similaridades entre esses assentamentos. Em todos os casos ocorrem vestígios malacológicos de espécies comuns na costa do município (campos de mangue e recifes de corais na foz do rio Mundaú, assim como os recifes de corais no córrego Estrela) e líticos como lascas, micro-lascas e detritos, por vezes associadas à percutores, bigornas e núcleos, sendo a debitagem a técnica de lascamento mais frequente, a permanência do córtex e ausência de retoque em grande parte das amostras, atesta uma atividade pouco elaborada. O quartzo se configura como a matéria-prima mais utilizada provavelmente pela grande oferta junto à foz de drenagens como o córrego Estrela. Essa produção pouco especializada e incipiente também é averiguada no sítio Guajiru II, cuja cultura material é apenas de líticos (MARQUES, 2012a). Os instrumentos de maior porte, como as bigornas e percutores podem estar atrelados ao processamento de sementes e grãos, como também ao ato de moer quartzo e cacos cerâmicos para servir de antiplástico na confecção de novos utensílios em barro. Apenas no

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TR-II verificamos um contexto de diversificação tecnológica em relação aos demais sítios, pois este possui dimensões maiores e além de uma grande densidade vestigial. Nos sítios em Flecheiras, quanto à cerâmica, podemos dividi-la em dois grupos: a) Grupo I: fragmentos espessos, o tempero predominantemente composto por quartzo moído e areia fina, podendo também haver no antiplástico cacos cerâmicos moídos, queima oxidante, engobo pintado de branco e apresentando na face interna uma decoração com motivos de associações entre linhas verticais e oblíquas, a face externa também é alisada, a borda é reforçada externamente e o lábio pode ser arredondado ou plano; b) Grupo II: fragmentos onde predominam pouca espessura, também havendo cacos raramente mais grossos, prevalecem o tempero de quartzo moído e areia em qualquer recipiente, tendo a queima redutora na maioria dos casos (coloração escura) e oxidante ocasionalmente, a decoração pode apresentar sucos paralelos horizontais ou engobo pintado de vermelho. Apenas TR-II apresentou essa diversidade (os dois grupos cerâmicos) em associação, enquanto que nos demais sítios a amostra só apresentava os fragmentos ligados ao Grupo II. Essa divisão, segundo Marques (2012b, 2013) remete a duas tradições arqueológicas cerâmicas, no primeiro caso a Tupiguarani e no segundo a Cabocla (Neobrasileira). Pouco se sabe a respeito dessa última classificação, apenas que apresenta características mais contemporâneas e, em alguns casos o uso de torno e forno em sua produção. Ambas as tradições também são recorrentes em outros sítios sob dunas holocênicas do litoral de Trairi, porém a tradição Cabocla é a predominante. As análises espaciais a nível semi-micro nos sítios de Flecheiras não nos ofereceram o resultado esperado, quanto a indicar no interior desses sítios os locais de produção e consumo artefatual, pois como indicado no capítulo 4 em todas as concentrações vestigiais, vários fatores pós-deposicionais afetavam simultaneamente o registro arqueológico em maior ou menor grau, tais como o pisoteio do gado, bioturbações provocadas por espécies como o tatu – peba (Euphractus sexcintus), assoreamento de drenagem, etc. Porém o fator mais impactante na área estudada é a própria dinâmica dunar que além de soterrar os sítios em alguns momentos, pode erodir o terreno deslocando as peças para um nível estratigráfico inferior. Sobre isso, nossa pesquisa pode identificar os “montículos testemunho”, estratigrafias preservadas dentro da área dos sítios, pois foram estabilizadas devido a presença

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de vegetação nesses, esse fato precisa ser melhor abordado quanto a realização de decapagens nesses pontos. Morales et al (2012) alerta para a situação e destaca que apenas a partir de estudos relacionados à dinâmica dunar seria possível compreender como culturas distintas, representadas pela cultura material, podem ser identificadas no mesmo horizonte. Os materiais depositados na superfície das dunas, em períodos mais recentes, são deslocados para baixo quando ocorre a retirada de sedimento por ação eólica, além da ação gravitacional e das chuvas, resultando numa nova deposição junto a uma camada arqueológica de época mais recuada. A mesma ação eólica também proporciona um soterramento da cultura material, podendo paralisar o movimento vertical das peças no momento da nova deposição arqueológica, mesmo com a presença da vegetação Pioneira, que pode interromper temporariamente o movimento eólico, não resistiria ao ciclo de deposição devido à estiagem das chuvas e a ação perduraria até que todos os vestígios sejam depositados no nível base, a Formação Barreiras. O mapa 5, sobre a Evolução das Dunas aponta através de imagens de satélite as diversas mudanças na paisagem ocorridas entre 2004 e 2011, onde massas de dunas atravessaram por sobre os sítios, e foi também através de fotografias in situ que nos foi possível acompanhar esses deslocamentos. Acreditamos que esse fenômeno natural deve ter motivado pequenas mudanças de implantação espacial por parte dos grupos, justificando, por exemplo, a densa quantidade de material entre os sítios TR-II e TR-III (separados atualmente por um cordão de duna semi-fixa e distando aproximadamente 150 m um do outro). Como demonstrado anteriormente, a praia de Flecheiras oferece excelentes condições de habitabilidade, tanto para obtenção de recursos alimentares junto aos recifes de corais, lagoas interdunares, córrego e o mar (malacológicos e peixes) como para adquirir matériaprima para confecção de instrumentos líticos e utensílios cerâmicos (Mapa 6: Distribuição dos sítios na área de estudo). Os assentamentos implantados na praia de Flecheiras numa análise a nível macro apontam para um território de exploração bastante diversificado do qual não seria necessário afastar-se por longas distâncias a fim de buscar suprimentos e matériaprima. Com base nas informações colhidas junto as comunidades que ainda vivem na região de estudo, a área da Formação Barreiras, em Flecheiras (Fotografias 5 e 6), a nascente localizada no povoado de Emboaca (Fotografia 17 e 16) e o córrego Estrela, podem indicar locais de captação de matéria-prima destinada a fabricação de utensílios cerâmicos, pois

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nesses espaços era comum a prática de coleta pela população hoje residente, podendo indicar lugares de uma memória ancestral. Apesar de não possuirmos dados que corroborem essa informação devemos levar em conta a proximidade quanto aos sítios de Flecheiras (raio de no máximo 4 km dos assentamentos), partindo da premissa de que ao longo do tempo os grupos humanos tendem a diminuir os seus gastos de energia para adquirirem mais benefícios (CLARCK, 1977). As fontes de captação para o lítico podem ter ocorrido na foz do córrego Estrela, a 200m do sítio Trairi I, local que contém seixos de quartzo e que estão semirecobertos pela movimentação eólica das dunas. A hipótese de exploração para esses fins é corroborada por outros autores (MORALES et al, 2012; MARQUES, 2012a) que pesquisaram assentamentos sob dunas no litoral de Trairi. Assentamentos ligados ao grupo étnico Tupi-Guarani foram estudados por Nobre (2013), ao qual nomeamos de bloco arqueológico Boa Esperança. O pesquisador, com base no perfil técnico de dois sítios associados e na análise espacial comparada a dados etnohistóricos identificou esse local como uma aldeia pertencente a um grupo ceramista localizado as margens do rio Trairi cuja economia estaria voltada a agricultura. As nossas análises, para a cultura material do sítio Trairi II, apontaram que ali ocorreu uso de cerâmica da Tradição Tupi de forma sazonal e que o contexto do bloco arqueológico Boa Esperança aponta-o como uma aldeia (NOBRE, 2013), construímos a hipótese de que TR-II e seu entorno fariam parte de um acampamento sazonal pelo mesmo grupo, onde ali seria realizada a exploração de recursos naturais necessários à complementação da dieta alimentar da comunidade, como a mariscagem e a pesca, já que a única formação de coral próximo à aldeia seria em Flecheiras. Salienta-se que no bloco arqueológico Mundaú ocorre à mesma situação (Quadro 3), onde o acampamento Tupi que haveria em MD-III e MD-IV, locais onde foram identificadas essa tradição cerâmica no bloco, também poderiam compor um acampamento para exploração do ambiente com os mesmos fins. Os dados etnohistóricos da região revelam que a atividade pesqueira era primordial para sobrevivência de comunidades indígenas da área, além de haver indícios de estes realizavam deslocamentos para determinadas regiões a fim de coletar outras matérias primas como o âmbar-grês ou a Tatajuba25, que eram comercializadas com os europeus. Apesar de não haver nessa pesquisa a comprovação de que as resinas sejam algum desses elementos alvo do comércio com os colonizadores, destacamos que no sítio TR-III, que também possui esse 25

Que foram referenciados nos dados etnohistóricos no capítulo 3.

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vestígio, há uma presença de louças, metais e grês. Outro fator que contextualiza nossa hipótese são as datações para ocupações Tupis na costa leste cearense, que remontam ao período de contato (MORALES et al, 2012). A opção de assentamento dos povos Tupis junto a drenagens se dava também para suprir sua dieta (SENA, 2007). Quanto a esse modelo de ocupação territorial Dias (2003) faz referência ao sistema de assentamento criado por Binford no qual existiria um padrão de ocupação forrageiro. O contexto espacial de ocupação é dividido em, um núcleo residencial, caracterizado por uma funcionabilidade mais específica (manufatura, processamento, consumo e manutenção) e pela possibilidade de passar por várias reocupações apresentando grande quantidade de vestígios, e um núcleo locacional, onde aconteceriam atividades extrativistas. Quadro 3 – Decoração entre os recipientes dos blocos Boa Esperança, Mundaú e Trairi.

Fonte: NOBRE, 2013, p. 102

Fonte: MARQUES, 2013; Acervo do autor, 2015, respectivamente.

109

Explicada as razões para a presença Tupi nos sítios de Flecheiras, a questão é: quem são os grupo(s) ligado(s) a cerâmica Cabocla? Localizadas apenas em sítios sob dunas recentes e com registro nos sítios da praia de Flecheiras e do bloco Mundaú é precípuo que havia uma alta migração da comunidade por entre esse ambiente, corroborado a hipótese de Molares et al (2012) que propõe uma ocupação uniforme ao longo do litoral por vários grupos, com um adensamento de ocupações em áreas de grande disponibilidade alimentar, como os estuários (mangues), pois esses, em épocas remotas, ofereciam maiores disponibilidades de recursos, soma-se a isso terem os rios além de grande atratividade alimentar, funcionarem como rotas de circulação entre as praias e o sertão, já que esses rios teriam suas nascentes em locais bastante recuados em relação à costa. Como não dispomos de dados sobre a presença da cerâmica Cabocla fora do ambiente de dunas móveis podemos inferir que a circulação entre as praias era bem maior para esse(s) grupo(s). Como os dados etnohistóricos para a região apontam várias etnias Tapuias em trânsito como a presença de índios de filiação Tremembé e Tarairiú e outros com uma filiação duvidosa, como os Jaguaribaras, Jaguaruanas e Anacés, podemos imaginar que esse vestígio esteja ligado a migrações e acampamentos mais recentes que os Tupis no litoral ou até mesmo podendo estar ligado a comunidades pesqueiras com remanescentes indígenas, como o caso da vila de Emboaca que ainda abriga uma nascente do qual a comunidade se utilizava, entre outras coisas, para a extração de argila e confecção de tijolos e telhas, o que apenas através de análises difratométricas em raios X poderia confirmar a composição da cerâmica arqueológica e compará-la com amostras da nascente. Marques (2012a, 2012b, 2012c), ao classificar a cerâmica Cabocla, aponta a queima redutora (fornos) e a manufatura com uso de torno como de época contemporânea. Partindo do pressuposto de que a cerâmica Cabocla seja recente e ligada a comunidade pesqueiras seria possível justificar a presença de louças, vidros e metais como no sítio Trairi III. Independente do período de ocupação e reocupação no local dos sítios é a busca por espaços que ofereçam melhores condições de sobrevivência que impulsiona grupos de características sociais e culturais diferenciadas aos mesmos locais para um assentamento, como podemos observar no Mapa 6: Distribuição dos sítios na área de estudo, são os rios Trairi, Mundaú e o córrego Estrela (antigo riacho da Tatajuba), principalmente em sua foz que residem o seu maior atrativo, relacionado ao mangue, corais e seixos neles contidos.

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Logo é com a compreensão do funcionamento do meio ambiente que poderemos inferir sobre a paisagem, como elemento construído da relação homem – natureza, e um aspecto importante no que diz respeito à compreensão dos modos de habitabilidade de grupos pretéritos, fornecendo dados que podem indicar como as populações utilizavam os recursos naturais encontrados e de como isso influenciava nas relações sociais no qual esses grupos estavam inseridos, buscando a organização desses espaços.

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120

Anexo A: Mapa 3 - Distribuição dos Sítios Arqueológicos no Município de Trairi

121

Anexo B: Mapa 6 - Distribuição dos sítios na área de estudo

122

Anexo C: Mapa 7 – Sítio Arqueológico Trairi I

123

Anexo D: Mapa 8 - Sítio Trairi II concentração I

124

Anexo E: Mapa 9 - Sítio Arqueológico Trairi II concentração II

125

Anexo F: Mapa 10 - Sítio Arqueológico Trairi III concentração I

126

Anexo G: Mapa 11 - Sítio Arqueológico Trairi III concentração II

127

Anexo H: Mapa 12 - Sítio Arqueológico Trairi IV

128

Anexo I: Tabela 1

Sítio Arqueológico Trairi I Artefato

Quantidade

Cerâmica

02

Lítico

05

Malacológico

-

Vidro

01

Louça

-

Resina orgânica

-

Metal

-

Telha

02

Tijolo

-

Osso

-

Grés

-

Outros

01 (frag. de coral)

Total

11

129

Anexo J: Tabela 2 Sítio Arqueológico Trairi II – Concentração 1 Artefato

Quantidade

Cerâmica

37

Lítico

30

Malacológico

06

Vidro

-

Louça

-

Resina orgânica

-

Metal

-

Telha

-

Tijolo

-

Osso

01

Grés

-

Outros

Carvão

Total

74

130

Anexo L: Tabela 3 Sítio Arqueológico Trairi II – Concentração 2 Artefato

Quantidade

Cerâmica

323

Lítico

77

Malacológico

215

Vidro

03

Louça

06

Resina orgânica

07

Metal

01

Telha

-

Tijolo

-

Osso

37

Grés

-

Outros

Carvão

Total

669

131

Anexo M: Tabela 4 Sítio Arqueológico Trairi III – Concentração 1 Artefato

Quantidade

Cerâmica

66

Lítico

-

Malacológico

05

Vidro

01

Louça

03

Resina orgânica

-

Metal

04

Telha

-

Tijolo

-

Osso

07

Grés

01

Outros

Carvão

Total

87

132

Anexo N: Tabela 5 Sítio Arqueológico Trairi III – Concentração 2 Artefato

Quantidade

Cerâmica

143

Lítico

01

Malacológico

27

Vidro

08

Louça

05

Resina orgânica

03

Metal

02

Telha

-

Tijolo

-

Osso

15

Grés

04

Outros

Carvão + manchas orgânicas

Total

208

133

Anexo O: Tabela 6

Sítio Arqueológico Trairi IV Artefato

Quantidade

Cerâmica

04

Lítico

47

Malacológico

06

Vidro

-

Louça

-

Resina orgânica

-

Metal

-

Telha

-

Tijolo

-

Osso

01

Grés

-

Outros

Carvão

Total

58

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