Mohandas Gandhi - Definição de um pensamento revolucionário e pacifista

June 6, 2017 | Autor: Filipe Nunes | Categoria: Mahatma Gandhi
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FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA

Mohandas Gandhi Definição de um pensamento revolucionário e pacifista Baseado no filme Gandhi, realizado por Richard Attenborough, escrito por John Briley, International Film Investors, 1982.

Curso de História História dos Impérios Marítimos e Coloniais Docente: Profº Doutor Manuel Leão Marques Lobato

Realizado por: Filipe Miguel Nunes nº 46378

Lisboa, 23 De Dezembro De 2015 Ano Lectivo 2015/2016

Neste trabalho, vamo-nos dedicar apenas a dois tópicos que fizeram parte da vida de Gandhi. Referimo-nos ao conceito por ele exponenciado, de Satyagraha e ao episódio revoltista que ficou conhecido como “A Marcha do Sal”. Com isto pretendemos explorar o que foi a vida de Gandhi e o seu impacto na Índia. A Grã-Bretanha passou a controlar a Índia desde meados do século XVIII, onde muitos indianos sucumbiram ao peso de serem uma colónia de outro país submetendose a elevados impostos e ordens determinadas pela lei. É neste âmbito, de séculos de domínio imperial, que Mohandas Karamchand Gandhi vai impôr os seus ideais1. Mohandas

“Mahatma”

Gandhi

é

considerado

o

pai

do

movimento

independentista indiano, contudo, passou vinte anos da sua vida na África do Sul a combater a discriminação. Na Índia, a sua integridade, estilo de vida simplista e uma imagem minimalista, tornaram-no mais próximo do povo. Os seus objectivos seriam melhorar as condições de vida dos pobres e libertar a Índia do domínio britânico. Gandhi nasceu a dois de Outubro de 1869 em Porbandar. Foi aqui que Gandhi começou os seus estudos no Samaldas Arts College. A sua ambição era estudar medicina, mas quando o seu pai morreu – e sendo o único homem educado na família – ele foi impelido a tirar o curso de direito, de modo a tomar o lugar do seu pai num emprego de estado, para concretizar este intuito ele teria de se deslocar a Inglaterra. Em 1888 Gandhi passou a estudar no University College London. Em 1891, licenciou-se e passou a ser um advogado qualificado, regressando à India no mesmo ano.

Satyagraha, 'A força da verdade' Seguindo os ensinamentos do Livro Sagrado Bhagavad Gita, parte integrante do Mahabharata 2 , que se encaixa na poesia épica hindu, Gandhi passou a adoptar um modo de vida simples. Tarefas corriqueiras passam agora a fazer parte da sua rotina. Absteve-se de comida em demasia, de riquezas que se destacassem, de roupas ocidentais. Iniciou uma vida de pobreza voluntária, reduziu os seus custos de vida, comia apenas nozes secas, fruta, sempre em contenção, passou a vestir roupa tradicional 1

Dados biográficos in CLÉMENT, Catherine, Gandhi, the Power of Pacifism, ed. Harry N. Adams, Nova Iorque, 1996. 2 BANDYOPADHYAYA, Jayantanuja; Class and Religion in Ancient India; Anthem Press; [s.l.]; 2008.

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indiana, um dhoti e sandálias. Em 1906, declarou-se celibatário, abstendo-se também de uma actividade sexual ou de pensamentos orientados para esse contexto, pregando Brahmacharya3. Em 1899, a Segunda Guerra dos Bôeres começou, um confronto entre o Reino Unido e as repúblicas independentes de Transval e Orange, na África do Sul. Foi neste período que Gandhi desenvolveu o conceito de Satyagraha. O seu significado era já antigo e havia sido teorizado por muitos estudiosos, mas foi Gandhi que o aplicou sistematicamente e numa grande escala que se dirigia a problemas sociais. O termo foi usado pela primeira vez em 1907, quando o governo do Transval emitiu o Asiatic Registration Act, também conhecido como The Black Law, que forçava todos os indianos e chineses a registarem-se perante as autoridades. Pessoas não registadas podiam ser deportadas, sem direito a apelo. Satyagraha foi comparado, inicialmente, aos movimentos sufragistas que ocorriam por esta altura em Inglaterra, adoptou-se, assim, a frase “resistência passiva” a este novo conceito. Contudo, Gandhi pensava que isto não explicava correctamente o significado do termo, visto que o seu método não tinha nada de passivo, e não estava confinado a resistências físicas. Ele preferia a tradução “força da verdade”, a sua tradução literal é “agarrar a verdade”, os interesses alinham-se para se poder atingir o derradeiro objectivo: unidade e paz entre todos4. O advogado pacifista acreditava que qualquer tipo de exploração só podia ser possível se o explorado e o explorador, em conjunto, aceitassem a verdade universal. O termo verdade, neste contexto, transmite a ideia de “direito natural”, um direito garantido pela natureza e pelo universo que não deve ser admoestado pelo homem. Ao usarem a satyagraha, os indianos que permaneciam na África do Sul recusaram dar a sua impressão digital e boicotaram arquivos com este tipo de documentação. Foram organizados protestos, os mineiros fizeram greve e massas de indianos viajaram de Natal para o Transval, desafiando o Acto. Muitos dos protestantes foram agredidos e presos, incluindo Gandhi. Após sete anos de protestos, em Junho de

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Voto de celibato ; Para mais sobre este termos e respectivos significados ver NAGLER, Michael N. The Search for a Nonviolent Future, HI: Inner Ocean; Maui; 2002; Capítulo 2. 4

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1914, o Acto foi anulado. Gandhi havia provado que o caminho da não-violência funcionava. No seu primeiro ano de regresso à Índia, depois da sua campanha na África do Sul, foi-lhe dado o título honorário de Mahatma 5 . Alguns autores dão crédito a Rabindranath Tagore, vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1913, pela criação do nome e sua publicitação. Este título reflectia o sentimento de milhões de indianos que viam na sua figura um homem sagrado. Gandhi nunca aceitou o título, pois achava que era uma pessoa como as outras. Assim percebemos que existiam três objectivos principais para o princípio da satyagraha: a concordância do lado opressor e do lado oprimido na “verdade”, i.e., o direito natural ao pensamento e acção livre; o objectivo de fundo político, onde se cria uma “santificação da imagem”; e por fim, a ideia de que actos de “amor” como resposta a actos de “ódio” podem converter estes últimos nos primeiros, transformar a parte desumana/animal presente em todos nós, na qualidade humana que também nos caracteriza. Em suma, percebemos que o conceito satyagraha carrega uma enorme esperança para o futuro da Humanidade.

A “marcha do sal” No mês de Dezembro de 1928, Gandhi associado ao INC6 lançou uma afronta ao governo britânico. Se não fosse garantido um lugar à Índia na Commonwealth, até 31 de Dezembro de 1929, um protesto nacional seria organizado contra os impostos britânicos. O prazo passou sem qualquer tipo de mudança. Existiam vários impostos injustos, mas Gandhi queria incidir num que simbolizasse a exploração britânica dos pobres. A melhor resposta foi o imposto monopolizador do sal. Esta era uma especiaria usada na cozinha indiana do dia-a-dia, mesmo do mais pobre dos pobres. De qualquer modo, os britânicos ilegalizaram o uso e produção de sal que não fosse explorado e vendido por si. A “Marcha do Sal” foi uma campanha ao longo de toda a Índia para boicotar o imposto do sal. Teve início a 12 de Março de 1930, quando Gandhi e 78 membros da sua comuna em Ahmedabad saíram de Sabarmati Ashram e se dirigiram à costa que 5 6

Tradução: Grande Alma. O Congresso Nacional Indiano, com as siglas da instituição na sua tradução para inglês.

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ficava a cerca de 300 km, em direcção a Dand. O grupo andava quase 20 km por dia, outros apoiantes iam aderindo pelo caminho até se juntarem quase duas mil pessoas. Pouco tempo depois de chegarem ao seu destino, Gandhi pegou num pouco de sal que estava na praia, um gesto simbólico pois tecnicamente estaria a cometer um crime. Gandhi via esta questão do sal como uma causa que podia unir todos os indianos, independentemente da sua classe, religião, etnia, ou género. Não foi a primeira vez que o imposto foi alvo de reclamações, tal sucedia já ao longo de várias décadas, era um problema antigo. Este movimento marcou o princípio de um processo revoltoso a nível nacional. Começou-se a produzir sal caseiro, milhares de pessoas iam às praias pegar em sal enquanto outros evaporavam água salgada. Dentro de pouco tempo, o sal produzido por indianos era vendido por todo o país. O espírito de rebelião despoletado pela marcha era contagioso e expansivo. Outras marchas e protestos pacíficos foram levados a cabo. Os britânicos só souberam responder seguindo a lei e prendendo os desordeiros. Existiu um evitar em prender o líder do movimento mas passado um mês, quando Gandhi ameaçou que iria marchar em direcção a Dharasana, as autoridades prenderam-no sem direito a julgamento. Precisamente o que o advogado queria, pois apesar de existir a ideia que a prisão de Gandhi impediria a continuação do movimento, o resultado foi o seu exponenciar. A poeta Sarojini Naidu, assumiu a liderança e guiou 2.500 pessoas para a exploração imperial. Depararam-se com 400 polícias e avançaram em colunas de cerca de vinte pessoas, sendo cada uma destas repelidas com violência. O objectivo do movimento não podia ter corrido melhor, o mundo ficava chocado pelo tipo de violência que se fazia contra protestantes pacíficos, mais uma vez o caminho da não-violência funcionava. No final do ano mais de sessenta mil pessoas tinham sido presas. A “Marcha do Sal” foi relativamente breve e teve pouco efeito no mercado do sal, mas reacendeu o entusiasmo popular pela luta contra a ocupação britânica. Gandhi só foi solto em Janeiro de 1931. O vice-rei, nesta altura chamado de Lord Irwin, encontrou-se com Gandhi (o único representante da INC) passado um mês, ambos assinaram, em Março, o Pacto de Deli que garantia o direito à produção limitada de sal por indianos e a libertação de todos os protestantes pacíficos de gaol na condição de os protestos cessarem. Muitos indianos acharam que o seu líder espiritual podia ter incidido mais nas condições do 5

tratado a favor dos indianos. Contudo este foi um passo importante para a independência indiana e um marco exemplar do que passou a ser uma campanha organizada. Variados episódios existiram onde Gandhi praticou outros tipos de protesto (dos mais famosos são as suas greves de fome), este episódio em questão serve apenas de exemplo prático ao que é a satyagraha. Sem percebermos teórica e praticamente a acção que Gandhi pretendia cumprir, será muito complicado percebermos quem foi este homem e como as suas acções tiveram impacto na Índia, e restante mundo. Gandhi tem legiões de admiradores, tendo sido igualmente alvo de críticas severas e virulentas em vários âmbitos. É alguém que “todos adoram odiar”7. Criticamno por ter tomado parte em questões específicas, como por exemplo, o movimento Khilafat – uma campanha de protesto político criada por muçulmanos na Índia britânica, foi este movimento que causou a separação do Paquistão islâmico da Índia-mãe, originando no processo, vários traumas relacionados com a separação, principalmente entre a etnia de Punjabis. O movimento acabou por apenas durar sete anos, mas deixou a sua marca para o que se sucederia no futuro8. A forma como Gandhi conseguiu atrair a si mesmo pessoas de vários espectros deixa ainda muito a identificar, mesmo com o seu ponto de vista estridente sobre a modernidade, a civilização industrial, o materialismo, as relações sexuais, ou mesmo em tudo o que engloba a sua vida política e social9. A atracção inequívoca permanecia. Para explicar este facto fala-se no “carisma de Gandhi” 10 . A este aspecto acrescenta-se o facto de dezenas de milhões de pessoas em todo o mundo que percebiam e aceitavam as suas ideias devido à preeminente característica materialista e violenta que o mundo irreversivelmente assume. Tudo isto foi antes do século de atrocidades que ainda estava para vir, desde o Holocausto aos acontecimentos da Bósnia ou do Ruanda. A violência parece ser um aspecto recorrente na nossa História, pelo que a ideia deste 7

Expressão retirada de LAL, Vinay; “The Gandhi Everyone Loves to Hate” in Economic & Political Weekly; Universidade de Nova Deli, Instituto de Crescimento Económico; Deli; publicação de 4 de Outubro de 2008. 8 MINAULT, Gail; The Khilafat Movement: Religious Symbolism and Political Mobilization in India; Columbia University Press; [s.l.]; 1982. 9 Sobre as perspectivas controversas para o mundo ocidental adoptadas por Gandhi ver capítulo seguinte. 10 RUDOLPH, Susanne Hoeber; RUDOLPH,Lloyd I.; Gandhi: The Traditional Roots of Charisma, Orient Longman, Hyderabad, 1983.

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“carisma de Gandhi” dever continuar a atrair mentes de todo o mundo, lutando contra o facto de a humanidade desprezar esta sua fraqueza deve persistir. Esta Humanidade é incapaz de manter uma Razão rigorosa sobre uma cosmovisão11. É desta forma que a vida de Gandhi dá aso a variadíssimas possibilidades que devemos exponenciar. A sua própria estrutura cognitiva e moral teria sido cativa a uma epistemologia colonial que tinha noções firmes sobre o “próprio”, e o “outro”, sobre relações sociais num mundo de desigualdades. O desafio está presente nas próximas gerações de académicos e de pensadores, que terão de delinear uma crítica epistemológica mais comensurável com o resto do mundo que a de Gandhi.

A perspectiva historiográfica de um filme de época: debate sobre um homem controverso Richard Attenborough planeou este filme durante muito tempo, acabando por o terminar em 1982. Vencedor de um óscar para melhor filme, melhor realizador e melhor actor principal. Com um argumento de John Briley, retracta a vida adulta de Gandhi, preenchendo o contexto inicial da África do Sul e o período em que Gandhi esteve em Inglaterra. O filme foca-se mais nas suas campanhas contra o domínio britânico na Índia, nos anos trinta e quarenta, concluindo com o seu assassinato, demonstra como a Índia pode ser bela, quer pelas suas paisagens naturais, quer pelo retracto real de heroísmo e de nobreza do espírito humano. Nesta parte do trabalho fazemos uma análise partindo não só de dois pontos de vista diferentes, mas também do significado histórico por detrás da figura de Gandhi. O objectivo final será oferecer duas perspectivas dissimilares, uma de Grenier e outra de DeParle. A primeira visão que apresentaremos12 é a de um crítico de cinema e colunista cultural 13 , neo-conservador norte-americano, nascido em 1933. Ele olha para os acontecimentos numa outra perspectiva. Por vezes descontextualizado, com um olhar ocidental sobre o oriente e fora do espaço temporal em que se inserem os 11

CHAUDHURI, Nirad; Autobiography of an Unknown Indi; University of California Press; Berkeley; 1973, [edição original de 1951]. 12 GRENIER, Richard; “The Gandhi Nobody Knows” in Commentary; edição de Março de 1983, secção de Cinema; pp. 59-72. 13 Trabalhou para o The Washington Times, The New York Times e para a Commentary

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acontecimentos, faz uso de uma clara falta de objectividade (no que respeita a pontuação e o tom narrativo, quase parece um manifesto). Ao mesmo tempo clarifica para o olhar ocidental o que é uma sociedade, para nós, com características completamente ultrapassadas para os dias de hoje. Dá uma ideia mais realista e verosímil do significado de Gandhi para o seu país e para os indianos, ideia essa que pode ter sido corrompida pela sua exagerada necessidade de opinar pessoalmente. Pandit Nehru no filme é retratado de forma lisonjeadora. Razão para tal reside no facto de ele ter sido parte das primeiras reuniões sobre o argumento e os seus objectivos. A própria Indira Gandhi, a primeira-ministra da Índia aquando da publicação deste artigo, contribuiu para as decisões tomadas. Gandhi é portanto uma obra piedosa, moral, centrada numa figura santa e santificada, chamada Mahatma Gandhi, que é afastada de qualquer elemento demasiado hindu para os olhos ocidentais (a palavra “casta” não é mencionada, por exemplo). Apesar deste enredo, existe hoje pouca informação actual que nos diga que os ideais de Gandhi foram seguidos. Existem no filme esporádicos planos da pobreza sagrada da Índia, mas sempre numa perspectiva turística, nunca realista. O filme tem três núcleos temáticos centrais: o anti-racismo, o anticolonialismo e a não-violência, que giram à volta da figura de Gandhi, retratado como a quintessência da tolerância, amigo dos bretões, mas acima de tudo é-nos mostrado um retracto de um homem que ainda é importante nos dias de hoje, e com quem devemos aprender. O filme demonstra que existia uma vontade britânica em separar a Índia, que para Grenier, foi “a força unificadora da qual o país nunca gozou”. E continua afirmando que “Gandhi era tão errático e imprevisível que ele pode ter atrasado a independência indiana em vinte anos” 14 . Gandhi era um líder nato que procurava defender uma causa. Encontrou-a na influência política que tinha na Índia e na luta pela sua independência. 14

Um dos autores que cita para suportar as suas afirmações é V.S. Naipaul, Vidiadhar Naipaul, o prémio Nobel da Literatura em 2001. Ver NAIPAUL, V.S., An Area of Darkness – a Discovery of India, Vintage Books, Londres, 1964. Ver também, NAIPAUL, V.S; India: a Wounded Civilization; Harmondsworth: Penguin Books; [s.l.]; 1983.

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No espírito hindu a que Gandhi pertencia, existia uma certa incapacidade de aceitar pessoas ou ideias diferentes de si, não existindo qualquer tipo de afeição pelas lutas de outros asiáticos ou africanos, opondo-se mesmo a alguns deles. Os hindus dividiam-se por milhares de castas e subcastas, os parses, os sikhs ou os que seguem o jainismo. Na África do Sul eles tinham sido todos postos sobre a mesma categoria. Eram todos indianos. Isto deu origem à ideia de uma nação independente indiana, mesmo sem existirem boas relações entre hindus e muçulmanos, apenas promove o khilafat devido aos princípios nacionalistas indianos que tinha. Para Leo Tolstoi o nacionalismo de Gandhi “estragava tudo”. O filme mostra-nos Gandhi como o santo cristão que vive no Shangri-la, pelo que elimina por completo a complexidade da sua crença religiosa, os seus princípios e as suas vacilações, deixando apenas a ideia do pacifismo como lei. Exemplo da sua imensa complexidade é a noção de que “a guerra pode ser um mal necessário”. A ligação com a violência que o movimento pacifista de Gandhi tem desde o seu génesis é outro aspecto que o filme não demonstra, Rabindranath Tagore vê uma corrente niilista em Gandhi, e escreve sobre a “enorme satisfação pela aniquilação”, que Tagore temia levaria a Índia a uma profunda devastação. O juízo de Tagore foi categórico, apesar de reverenciar Gandhi como um homem sagrado, era bastante discordante das suas políticas, considerava que as suas campanhas eram tão próximas da violência que era falso chamar-lhes “não-violentas”. O primeiro jejuar de Gandhi que aparece no filme, não foi contra um acto de violência, mas sim contra uma proposta britânica de 1931 que dava aos “intocáveis 15” um eleitorado separado na legislatura nacional indiana. Gandhi era completamente contra tal proposta, “não pestanejava em sacrificar um milhão de vidas indianas pela liberdade da Índia”

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, citação introduzida por Grenier, exemplo do uso

descontextualizado de frases para seu proveito.

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Grupo segregado das classes mais baixas, das quais faziam parte os Dalit, os oprimidos. Ver KANMONY, Jebagnanam Cyril; Dalits and Tribes of India; Mittal Publications; [s.l.]; 2010; p. 198. 16 Citações de Gandhi retiradas de GANDHI, Mahatma, The Mind Of Mahatma Gandhi; ed. R. K. Prabhu e U.R. Rao; Jitendra T Desai; Ahmedabad, Índia, 1966. Ver também, GANDHI, Mahatma, All Men Are Brothers, ed. Krishna Kripalani, Unesco, Paris, 1958. E ainda, GANDHI, M.K., An Autobiography or the story of my experiments with truth, Navajian Publishing House, Bombaim, 1955.

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No filme não vemos Gandhi a afirmar que a guerra é um mal necessário. Apenas refere mais do que uma vez que “olho por olho, todo o mundo ficará cego”. Grenier aqui levanta uma questão interessante: e os entremeios? Gandhi ter-se-ia esquecido nesta definição contextual de não-violência, em referir as câmaras de gás do Holocausto ou os Gulags russos. Gandhi, sobre a II Grande Guerra Mundial chegou mesmo a dizer a Louis Fischer, que os judeus morreram de qualquer das formas, pelo que podiam ter morrido por uma causa. Ainda que se perceba no filme que Gandhi é hindu, não se entende o que isso implica. O comum ocidental não tem noção das crenças fundamentais da religião Hindu. Para os cristãos, os judeus e os muçulmanos, quando se fala de Deus, fala-se de um Deus pessoal, único. Quando Gandhi fala de Deus, não se refere a uma entidade una, a um Ele, mas sim a algo muito diferente: “Deus não é uma pessoa… mas sim uma força, a força misteriosa e indefinível que penetra em tudo, um poder vivo que é Amor…”. Isto remete Deus para um conceito abstracto, onde tudo faz parte de Deus. As pessoas, mas também os animais, plantas, tudo é Deus. Uma ideia muito diferente do Deus ocidental. Homens religiosos hindus chegaram mesmo a converter-se a várias religiões, como o islamismo ou o cristianismo, para melhor perceberem os diferentes aspectos deste seu Deus. Outro aspecto do hinduísmo tem a ver com o facto de um hindu não querer perdão pelos seus pecados, pois talvez numa próxima vida se possa ascender a ser alguém pertencente a uma casta superior. Nesta vida, não há esperança. Um verdadeiro hindu não acredita numa alma imortal, mas sim no karma, uma série de reincarnações que podem, por fim, levar ao mukti17. Gandhi escreveu a Tolstoi que a reincarnação “explicava os muitos mistérios da vida”. A teologia hindu com a sua tríada sagrada do karma, da reincarnação e do necessário sistema de castas, oferece uma justificação desumanamente complacente e distinta de qualquer outra religião do mundo (na opinião de Grenier). Gandhi aceitava o sistema de casta como “a ordem natural da sociedade”18. Para além de castas e subcastas,

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A libertação do sofrimento e a necessidade de renascimento, um vazio que carrega tal possibilidade. Ideias defendidas por Max Weber que refere que o hinduísmo é “caracterizado por um fio condutor de inovação mágico-maléfica”, na sua essência está um garantir de estatuto. Ver WEBER, Max; The Religion of India – The Sociology of Hinduism and Buddhism; Munshiram Manoharlal Publishers, Nova Deli, 1996, capítulos I, II e III. 18

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o hinduísmo tem várias seitas com ritos e crenças diferenciadas. Não existe uma organização eclesiástica nem uma doutrina principal para todos. Num outro tópico referente a actividades sexuais, Gandhi era um feroz opositor do sexo por prazer, ele várias vezes referiu que um casal apenas devia ter sexo quatro vezes durante toda a sua vida, apenas para ter filhos. Ideia que pode parecer surpreendente aos nossos olhos, mas temos de perceber que não estamos no ocidente, mas sim num lugar com muitas peculiaridades definidoras, com uma enorme densidade populacional, com várias crenças e etnias. Outro exemplo para nós escandaloso, é o facto de Gandhi ter negado qualquer tipo de educação à sua mulher e filhos. A sua mulher permaneceu mesmo analfabeta. Não podemos esquecer que esta é uma sociedade patriarcal, onde o homem é o único que tem poder de decisão. As ideias de liberdade começam assim a parecer distantes, conforme o contexto em que se inserem. Gandhi também defendia um mundo não moderno, não-industrial. Em jeito de conclusão, Grenier termina referindo que ambos líderes e povo indiano ignoravam os princípios de Gandhi, quer em relação à abstinência sexual, alterações do sistema de castas, críticas da modernização, ou mesmo em relação à educação. Mas acima de tudo, ignoravam a ahimsa, a não-violência. Naipaul refere que com a independência, a Índia descobriu de novo que era “cruel e horrivelmente violenta”. Jaya Prakash Narayan chegou a admitir, “nós costumamos comportarmo-nos como animais… Somos mais susceptíveis a tornarmo-nos agressivos, selvagens e violentos. Matamos, queimamos e saqueamos”. Para os hindus Gandhi era um Mahatma, um homem sagrado, um símbolo de santidade e não um guia de condutas. Mohandas Gandhi foi um ponto alto na História da Índia, muito devido ao efeito que a comunicação social teve, tornamdo-o conhecido em todo o mundo, como um líder moral e o “pai do seu país”. A Índia nos últimos dias do Raj britânico era já governada, em larga medida, por indianos. Algo que mais uma vez, o filme não realça. Grenier termina a sua explanação afirmando que Gandhi pode ter atrasado a independência do seu país e que o seu maior gesto humanitário talvez tivesse sido a melhoria que se passou a dar aos “intocáveis”. Surgiu uma reacção enorme ao texto de Grenier, iremos destacar uma em específico.

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Jason DeParle num artigo que ronda o mesmo período oferece uma visão diferente19. Ele responde ao “manifesto” de Grenier analisando-o de forma objectiva e tentando explicar o porquê de tanta pontuação e o porquê de um tom de tal modo severo. Tal como fizemos anteriormente, os parágrafos seguintes demonstraram o ponto de vista de DeParle. Gandhi foi música para os ouvidos dos liberais. Os fracos que triunfam sobre o forte, o bem sobre o mal, justiça sobre a injustiça. No outro extremo, os conservadores atacam o filme e atacam o homem, sendo as palavras mais fortes de Richard Grenier. O escritor demoniza toda a Índia, todo o hinduísmo, atingindo os liberais americanos. O filme tocava assim, em problemas que eram proeminentes na política americana de então. Tanto Gandhi, o filme, como Gandhi, o homem, se tornam debate que se envolve nas “politiquices” americanas. Muitos dos seus admiradores como DeParle o é, por vezes, tendem a elevá-lo ainda mais, tornando-o mais linear, retirando-lhe a sua enorme complexidade, por outras vezes, estendendo as suas soluções a situações onde elas não se encaixam. Ele diz-nos que sobre Gandhi não queremos ouvir falar de ambiguidades nem defeitos, mas sim de um herói mitificado, fora do seu significado como homem santificado e homem real que foi. O filme tem, em si, a habilidade de suscitar revolta e empatia por um movimento justo e necessário aos seus olhos. Apesar de várias diferenças, os dois autores concordam em vários aspectos, explicitando-os de formas diferentes. A longa-metragem demonstra um Gandhi “santo”, sem questionar a veracidade ou a necessidade dessa religiosidade. Não se tenta rever Gandhi como um homem que, como todos, é ambivalente e com falhas. As “falhas” como as podemos perceber no ocidente e a sua santidade, vieram ambas da sua devoção feroz à religiosidade. Membros do seu ashram, por exemplo, eram sujeitos a uma disciplina estrita em assuntos como o sexo, a dieta, a pregação, o trabalho, a educação, a roupa, entre outros. Ele desconfiava de relações humanas demasiado próximas, vendo-as como uma tentação e um empecilho às suas aspirações espirituais. O filme não se questiona sobre as consequências que os imperativos espirituais de Gandhi deixam na sua família e 19

DePARLE, Jason; "Why Gandhi Drives The Neoconservatives Crazy" in The Washington Monthly, edição de Setembro de 1983, pp. 46-50.

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amigos. Mas a maior falha está em não identificar as limitações dos actos de nãoviolência, algo que Gandhi fez, o filme ignora estas suas vacilações e contradições, referindo-se à não-violência como um método absoluto. Com estas falhas é dado espaço a um neoconservador, para criticar à sua maneira: “A análise de Grenier não foi tanto uma crítica, talvez mais um ataque epiléptico”. Grenier chega mesmo a afirmar que o porta-voz da não-violência assassinou a sua mulher, mas não refere que Kasturbai Gandhi já jazia morta, e esta teria sido apenas uma derradeira tentativa. Ao falar do hinduísmo Grenier refere que “saltará por cima” dos upanixades, da Vedanta, da Yoga, dos Puranas, do Bakthi e da Bhagavad Gita, isto com “a permissão do leitor”, algo que afecta DeParle pois refere que isso é como pedir ao leitor para, ao explicar o cristianismo poder deixar de parte, o Genesis, o êxodo, e outros capítulos da Bíblia e centrar-se apenas nas Cruzadas e na Inquisição, como essência da sua História e não apenas parte dela, mais uma vez descontextualiza-a. Para perceber a reacção de Grenier temos de ter em conta que ele é um conservador, um patriota, que acha os EUA superiores a outros países. Os neoconservadores enumeram os valores americanos, mas ao mesmo tempo, depressa criticam as suas consequências. Ironicamente, Gandhi partilha de variadas características dos neoconservadores. É patriota, acredita e promulga a comunidade, e defende códigos restritos de moralidade pessoal e de impedimentos sexuais. Os neoconservadores acreditam no respeito pela autoridade de instituições sociais e políticas, como a Igreja ou o Estado, tal como Gandhi fazia. Ao invés de se analisar a figura e o significado de Gandhi de forma racional, tenta-se desacreditá-lo com mentiras, meias-verdades, insinuações e insultos raciais. Isto ajuda a explicar o ataque, mas também a virulência. Uma das grandes lições a aprender com Gandhi é que a verdade pode nem sempre triunfar, mas que por vezes tal acontece. Tiranos e assassinos podem nem sempre cair, mas que por vezes caem. Nem a esquerda, nem a direita deixam espaço para melhor perceber que o legado de Gandhi se pode facilmente encontrar nos EUA. Em 1966, Martin Luther King Jr. presta tributo às vitórias que o movimento pelos direitos civis tiveram através do uso de tácticas de não-violência. A influência de 13

Gandhi em King foi directa e profunda. King estudou-o, aprendendo com as suas tácticas, não as adoptando, mas adaptando-as ao espaço e tempo em que se insere. Estes são os principais pontos de luz que os dois jornalistas realçam. Sendo um tema da História Contemporânea e não da história de ontem (onde se encaixa e como se define, na sua maior parte todo o jornalismo), este não deve ser um tema tratado por críticos de Cinema. Contudo, através destes dois comentários podemos perceber ideias essenciais sobre o filme e colocá-las de forma não linear, mas sim, muito ondulante. Isto é essencial não só para cada um dos leitores chegar à sua própria conclusão e posterior opinião, mas também para oferecer um lado mais humano a uma história que precisa dele, precisamente para não ser unidimensional. Gandhi não foi, mesmo com toda a sua religiosidade, nem santo, nem pecador. Era um homem com fortes convicções, com capacidades de liderança fenomenais e com uma mensagem essencial. Tudo isto são características que se têm de perceber dentro do contexto espacial que é a Índia, com todos os seus aspectos culturais complexos, seja na sua religiosidade, na sua hierarquia de género ou de classe social, e claro no seu contexto temporal. Um tempo de mudança eminente, mudança traz revolta, que origina uma nova ordem, o que não significa necessariamente, melhor qualidade de vida, apenas algo diferente. A estes objectivos deve-se acrescentar uma maior objectividade sobre um tema que parece um pouco mal trabalhado por muitos estudiosos. Referimo-nos a este problema pois existe quem quer fazer Gandhi passar por homem santo, que não era, e quem o quer fazer passar por grande pecador, que também não era. Como já referimos atrás, a verdade normalmente, está nos entremeios. Seja qual for a conclusão ninguém pode deixar de aceitar que Gandhi é um homem que merece ser percebido, com o qual podemos aprender, Gandhi é um passo importante para um caminho “mais humano”, mas que é, em boa verdade, um caminho mais duradouro.

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