Monografia- A Arte Me Curou - Analisando o processo de Individuação da artista Niki de Saint Phalle por meio dos Arcanos do Tarô

June 19, 2017 | Autor: Luciana Reis Savioz | Categoria: Art Therapy, Analytical Psychology
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MÉDICA E PSIQUIATRIA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS (FCM)

Luciana Melo de Sousa Reis (Savioz)  

« A Arte me Curou! »   Analisando o processo de Individuação da Artista Niki de SaintPhalle por meio dos Arcanos do Tarô  

Campinas Dezembro 2013

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MÉDICA E PSIQUIATRIA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS (FCM)

Luciana Melo de Sousa Reis (Savioz)  

« A Arte me Curou! »   Analisando o processo de Individuação da Artista Niki de Saint-Phalle por meio dos Arcanos do Tarô  

Monografia

apresentada

como

trabalho

de

conclusão de curso como requisito parcial para a obtenção do título de Especialista em Psicologia Analítica

Junguiana,

do

curso

de

extensão:

“Psicologia Analítica Junguiana” – FCM 0600 do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas – FCM, sob responsabilidade do Professor Doutor Joel Sales Giglio.

Orientador: José Jorge de Moraes Zacharias

Campinas Dezembro 2013 2    

A Louca Andarilha   Aí está a louca andarilha caminhando, ... como sempre. Ela vai por aí se nutrindo de seu próprio caminho. Sim, ela é louca, não está vendo?... Por que louca? O que você sabe dela? Como ela aparenta? O que ela conta? Mentira dela! Nem ela sabe nada dela mesma! Com seus sapatos vermelhos, bastão cor de sangue na mão, Lá vai ela, em meio à grande selva que misteriosamente esconde tantos tesouros. A cada passo, ela avança carregando-se de um pedaço de ouro aqui e outro ali. Todos encontrados ao acaso! (nesse caminhar, ela aprende a confiar no acaso). Caminho este conhecido. Mesmo, conhecidíssimo - (queira ou não). São traçados dos seus próprios poderes ...e ela encontra mais alguns diamantes aqui, outro ali... Ela sabe que tem outros por ali esperando prontos para a farta colheita. Não se preocupe, ela pode estar nesta estrada ... e até dançar sobre ela ... pois este destino é todo dela... E de ninguém mais. Sem pensar muito, ela se dá conta que seu mundo se enche de cores, ... de odores, ...de amores, ... de sensações fumegantes ... e também de tantos sabores. Nem pensar em caminhar fora da floresta!!! Caminha louca, caminha... Até a próxima carta do tarô. Danada! Você quer ouro, diamantes, você se sente deusa. Nada mais que isso!! E só pode ser assim! 3    

           

Sonho de Laura: “I was nine years old, a time when I was reading about contemporary heroines, women who flew planes and broke world records. Here I was standing at the edge, holding onto the open doors of the plane, as I was about to jump. I could admire the colors and design of the fields below. When I landed I had jumped back in time. I was a baby tangled in the laces of a giant wedding dress, which the parachute had transformed itself into”1. (Laura Mathews, Filha de Niki de Saint Phalle; Phalle, 2006, p.5)

                                                                                                                        1

Tradução livre: “Eu tinha nove anos de idade, num período em que eu lia sobre heroínas contemporâneas, mulheres que voavam em aviões e quebravam recordes mundiais. Aqui estava eu parada no canto segurando a porta aberta do avião, eu estava quase pulando. Eu pude admirar as cores e os desenhos dos campos abaixo. Quando eu aterrissei, eu tinha voltado no tempo. Eu era um bebê enlaçado nas rendas de um vestido de casamento gigante que o paraquedas se transformou”.

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Agradecimentos,   Agradeço ao professor Dr Joël Giglio, ao professor Dr José Jorge Zacharias, nossa querida professora Lunalva Fiuza Chagas, e a todos os outros professores que com tanta generosidade, competência, entusiasmo e entrega nos ofereceram esta conexão, nutrindo nossa paixão e nossa sede de conhecimento. Agradeço aos colegas pelo companherismo, pelas riquíssimas trocas nos intervalos e nas mensagens solidárias na rede internet. Em especial ao nosso colega Lucas Valadão por criar esse vínculo informático entre nós e os professores de forma voluntária e tão generosa. Agradeço também Salete Marisa Dian Biagioni, pelo apoio, pela proteção e por compartilhar tanta sabedoria.      

 

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Dedico esta monografia à sua memória, Niki. Você soube me envolver nas suas mensagens de uma forma tão forte que nunca tive escolha se não ir em frente com você. Claro que entendo que algo de mim está radicalmente em empatia com algo seu. Assim, você faz parte do meu próprio processo de individuação. Eu lhe serei eternamente grata. Você se tornou a heroína que me inspirou tanto e, com esta monografia, espero poder inspirar outras almas. Desejo contribuir para que seu movimento nunca cesse, que sua memória seja honrada, que sua arte esteja sempre viva. Dedico também ao meu marido, Bernard, meus filhos Laura e Philippe (pura coincidência), sem os quais nunca estaria aqui. 6    

SUMÁRIO Agradecimentos ........................................................................................................... 5 SUMÁRIO .................................................................................................................... 7 INTRODUÇÃO............................................................................................................. 8 1. VIDA E OBRA DE NIKI DE SAINT-PHALLE:...................................................... 10 1.1. Nascimento: ........................................................................................................ 10 1.2. Infância : ............................................................................................................. 11 1.3. Vida Adulta ......................................................................................................... 13 1.4. Uma vista panorâmica de seu universo artístico: ............................................... 20 2. A ARTE, PSICOLOGIA ANALÍTICA E VIDA SIMBÓLICA..................................... 26 3.1. O Tarô Como Sistema Simbólico ....................................................................... 33 3.2. O Jardim dos Tarôs de Niki de Saint-Phalle ....................................................... 37 4. OS ARCANOS E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO NIKI DE SAINTPHALLE ..................................................................................................................... 40 4.1.1. O Louco ........................................................................................................... 40 4.1.2. O Louco de Niki de Saint-Phalle ...................................................................... 46 4.2.1. A Morte, Arcano n° XIII .................................................................................... 49 4.2.2. A Morte, segunto Niki de Saint-Phalle ............................................................. 54 4.3.1. A Força, Arcano n°XI ....................................................................................... 58 4.3.2. A Força, segundo Niki de Saint-Phalle ............................................................ 64 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 68 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 70 ILUSTRAÇÕES ......................................................................................................... 72

   

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INTRODUÇÃO  

Esta monografia trata da vida e obra da artista Niki de Saint-Phalle. Ela foi uma pessoa que ao longo da sua existência passou por processos de profunda transformação. As coisas não foram fáceis para ela. Contudo, ela soube expressar na sua arte uma tamanha força de vida, denunciando, assim, sua entrega a um processo de individuação muito profundo. Ela foi uma verdadeira profetiza das cores, das mensagens arquetípicas, da resiliência, e da Vida Vivenciada com V maiúsculo. Ela disse um dia: “A arte me curou!” e eu sempre quis saber por que ela falou isso. Concluí que para mim ninguém seria melhor que Jung para me acompanhar nessa busca. Esta monografia tem a ver com este processo que começou há muito tempo. O foco principal foi o estudo de O Jardim dos Tarôs no Sul da Toscana (Itália), uma obra monumental que ela começou a construir em 1979, aos 49 anos de idade, uma mulher na segunda metade da vida, e terminou por volta de 1996. Esta foi a sua grande obra. Nela, foram representados os 22 arcanos do tarô de Marselha numa leitura muito pessoal e podemos dizer que é também universal por se tratar de uma obra de fundo arquetípico evidente. Vamos ver adiante como podemos sentir seu processo de individuação através dessa produção. Esta monografia propõe, portanto, a seguinte jornada: uma vez que sua vida e obra estejam apresentadas, visitaremos alguns conceitos da psicologia analítica que poderão dar algum suporte na compreensão destes processos e conteúdos. Vamos, então, conhecer o tarô de Marselha para finalmente buscar o tarô de Niki de Saint-Phalle, tentando encontrar, elucidar as raízes do seu processo de individuação nas suas impressionantes esculturas. Diante de tamanha riqueza, tive que optar por delimitar a pesquisa escolhendo somente

três arcanos a serem

analisados em

profundidade.

Primeiramente, veremos o arcano do Louco, por simbolizar a carta de acesso direto ao self, que parece simbolizar sua vida de forma mais global. Depois, o arcano da Morte n° XIII, porque Niki de Saint-Phalle era alguém muito próxima da morte, houve 8    

um jogo de atração/sedução entre ambas tão potente que transformou o arcano num tema central na sua vida. E finalmente a Força n° XI, por uma questão de sincronicidade, pois houve algumas coincidências vinculadas a este arcano que me conduziram à artista; essa seria uma forma para mim de honrar este encontro. Coloquei a Força depois da Morte por uma razão talvez estética ou conceitual, não importa. Na realidade, no tarô tradicional, ela se encontra antes. Talvez simplesmente porque, através da intimidade que venho conquistando na arte e a psicologia analítica, percebo que nem tudo tem que ser explicável e nem tem que ser o esperado por razões lógicas. Aprendi a escutar melhor essas frasezinhas interiores que a gente não sabe bem de onde vêm, dizendo: “Tem que ser assim!”. Através da sabedoria que ambas vêm me proporcionando, aprendi que nem sempre temos que ter todas as explicações. Em outras palavras, estou aprendendo que, quando um mistério continua a planar no ar, quando não encontramos palavras exatas e não conseguimos esgotar a explicação de tudo, estamos entrando num terreno arquetípico. Bem aventurado aquele que o acolhe. Restariam, contudo, 19 outros arcanos que teriam sua importância sem dúvida, mas iremos deixá-los de lado por enquanto, desta vez por razões estéticas. O material é imensamente rico, temos que nos delimitar para não nos estendermos demais. O objetivo principal desta monografia seria o de contemplar este material como uma forma de exercício de leitura alicerçada na psicologia analítica. Na minha hipótese, através dela, podemos sentir como a Grande Arte, ou seja, a arte arquetípica, traz à luz do dia conteúdos que seriam importantes para o processo de individuação e, em última instância, a cura. A arte torna-se assim um grande instrumento da individuação, influenciando não só pessoal, mas coletivamente também.

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1. VIDA E OBRA DE NIKI DE SAINT-PHALLE:  

1.1. Nascimento: Tout était de ma faute. Les ennuis étaient venus avec moi. Ma mère, ma mère, où êtes-vous? Pourquoi m’avez-vous quittée? Allezvous jamais revenir? Tout est de ma faute. Chaque femme devint TOI, Maman, Maman. Je n’ai pas besoin de vous. Je me débrouillerais sans 2 toi. (Saint-Phalle, p. 147 e p. 184, in Hulten, 1999)

Catherine Marie-Agnès Fall de Saint-Phalle nasceu em Paris no dia 20 de outubro de 1930 com o cordão umbilical enrolado duas vezes em volta do pescoço. Ela foi salva pelo médico que enfiou a mão entre o cordão salvando-a na última hora. Segunda de cinco filhos da americana Anne Jacqueline Harper e do francês André Marie Fall de Saint-Phalle. O pai, de família de origem aristocrática, era proprietário com os outros seis irmãos de um banco. Durante a gravidez, a família perdeu tudo no crash da bolsa de 1929. E naquele momento também a mãe descobriu a traição descarada do marido. Aos três meses, ela se mudou para a casa dos avós paternos em Nièvre, França, enquanto os pais foram tentar a vida nova nos EUA. Ela somente voltou a viver com seus pais em Greenwich, em Connecticut, no seu terceiro ano de vida. Em 1937, a família se mudou para Nova York. Agnès passa a se chamar Niki e ela frequenta a escola religiosa Sacre-Coeur, na 91 East-Street.

                                                                                                                        2

 Tradução  livre:  “Tudo  foi  minha  culpa.  Os  problemas  vieram  comigo.”  “Mamãe  mamãe,  cadê  você?  Você  vai   voltar  um  dia?  É  minha  culpa.  Cada  mulher  fica  sendo  você  mamãe,  mamãe.  Eu  não  preciso  de  você.  Eu  vou  me   virar  sem  você.”  

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1.2. Infância: Je rejetterais votre système de valeurs et inventerais le mien. Très tôt je décidai de devenir une héroïne. Qui serais-je? George Sand? Jeanne 3 D’Arc? Napoléon en jupons? (Niki de Sant Phalle in Hulten, 1999, p. 184)

Foi uma infância americana com vários endereços: colégios internos, a casa dos pais, a casa dos avós maternos e também os paternos que acabaram se mudando para os EUA em consequência da II guerra. Menina rebelde, questionadora da condição da mulher na sociedade ao observar a submissão que sua mãe vivia no quotidiano. Menina arteira também, em 1941 ela foi expulsa da escola pela 1ª vez, quando ela voltou a viver na casa dos avós maternos e foi inscrita numa escola pública de Nova Jersey. Em 1942, ela voltou a viver com os pais em NY. A pré-adolescente lia Edgar Alan Poe, Shakespeare, as tragédias gregas e se interessava muito pelas peças teatrais da escola, se arriscando a escrever algumas peças e alguns poemas. Em 1944, ela pintou de vermelho vivo a folha de figo que cobria do sexo da escultura do colégio de freiras. As freiras só a autorizaram ficar na escola na condição de ser encaminhada a um tratamento psiquiátrico. Os pais a enviaram a um colégio religioso interno em Suffren, estado de NY. Ela terminou sua escolaridade no Maryland, em 1947. Todo verão, a família alugava uma casa de campo na Nova Inglaterra. Nas férias de 1942, aos 11 anos de idade (segundo ela, com o físico de uma menina de 13 anos), ela se lembrou que a família tinha alugado uma casa com muitos campos bem verdes. Ela amava ficar olhando as nuvens, sobretudo o por do sol. Um dia, num passeio desses, ela se deparou com duas cobras pretas e corpulentas entrelaçadas da raça copperheads, que eram extremamente venenosas. Terrorizada e fascinada ao mesmo tempo, ela ficou paralisada por muito tempo observando as cobras. Este foi, segundo ela, o primeiro contato com a morte de tão perto. Na semana seguinte, o irmão jogou um cadáver de serpente na sua cama de brincadeira. Aterrorizada, ela gritou e o primo de 22 anos veio acudi-la. Ela                                                                                                                         3

Tradução livre: “Eu vou rejeitar o seu sistema de valores e vou inventar o meu. Muito cedo eu decidi ser uma heroína. Quem eu vou ser? George Sand? Joana D’Arc? Napoleão de saias?”

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estava com tanto medo que ele acabou cedendo e aceitou que ela dormisse com ele naquela noite. No dia seguinte, a família ficou chocada, tamanha sua rigidez moral. Nesse mesmo verão, ela foi ajudar o pai buscar uma varinha de pescar na cabana e ele começou a tocá-la. Ele disse: “Não se mexa!” e ela obedeceu. Desde então, ele passou a procurá-la muitas outras vezes abusando-se dela, violência experimentada com profundo sofrimento, decepção, medo, vergonha e angústia. Em suas confissões, ela questionou o comportamento do seu pai como sendo uma tentação de exercer o poder absoluto sobre o outro, pelo proibido (Saint-Phalle, 2010), algo do ser humano que quer destruir tudo. Ela experimentou, inclusive, certa fascinação, e também vivenciou o conflito entre o amor da menina e a perda da confiança nos seres humanos em geral. Naquele momento, a família vivia num tempo de rigorosa moral religiosa. Com certeza, ninguém acreditaria se ela contasse o ocorrido, e ela escolheu o silêncio. Silêncio que contribuiu com a ruptura profunda com a leveza da infância e com muita solidão4: A onze ans je me suis sentie expulsée de la société. Ce père tant aimé est devenu objet de haine, le monde m’avait montré son hypocrisie, j’avais 5 compris que tout ce qu’on m’enseignait était faux (Saint-Phalle, 2010)

 

 

                                                                                                                        4

Ela conta que sentia, por muito tempo depois, o sexo do pai na sua boca. Aos 20 anos, ela começou a morder involuntariamente os lábios superiores como que limpando algo muito sujo que ficou. Vinte anos mais tarde, ela teve que restaurá-lo por meio de uma dolorosa cirurgia estética. 5 Tradução livre: “Aos onze anos eu me senti expulsa da sociedade. Este pai que amava tanto se transformou em objeto de ódio, o mundo me mostrou a sua hipocrisia, eu compreendi que tudo aquilo que me ensinaram era falso.”

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1.3. Vida Adulta   J’étais une jeune femme en colère, mais il a beaucoup de jeunes gens et de jeunes femmes en colère qui ne deviennent pas artiste pour autant. Je le suis devenue parce que je n’avais pas le choix – c’est pourquoi je n’ai pas eu à prendre une décision. C’était mon destin. A une autre époque j’aurais été enfermée à perpétuité dans un asile d’aliénés.... J’ai adopté l’art 6 pour qu’elle soit mon salut et qu’il réponde à mon exigence personnelle. (Saint-Phalle, in Lower, 2001, p. 46)

Niki casou-se aos 18 anos com Harry Mathews, em 1950, e já vivia com ele desde o ano precedente. Ele, filho único de uma importante e rica família americana. Conta-se que seis meses depois de se casar ela teve que ser operada de uma apendicite que se transformou numa complicação dolorosa e difícil de ser tratada (mais um tratamento doloroso). Naquela época, ele era estudante de letras e música em Harvard, e aspirava ser escritor. Ela fazia aulas de teatro e posava para revistas finas de moda. Era uma mulher extremamente bela e possuía um grande carisma. Laura, a primeira filha, nasceu nessa época despreocupada, na qual o casal gozava de poucos recursos. Contudo, não foi fácil para Niki: ela se conectou com a infidelidade de seu marido e o ciúme possessivo da sogra. Esta última teria pouca vontade de ser avó por pura vaidade. Sentia que esse papel a envelheceria chegando a propor um aborto, o que lhe parecia mais confortável na situação. Inclusive ela nunca aceitou Niki como nora, alegando que ela não vinha de uma família tão abastada como a sua e sentia-se incomodada com seu caráter. Mesmo assim, o casal vivia uma grande cumplicidade e construíam com amor e criatividade as bases da pequena família. Ao final da graduação de Harry, eles decidiram deixar o país. As razões foram muitas. O casal não estava se sentindo à vontade com a sociedade americana dos anos 1950: eram tempos de grandes desigualdades raciais e sociais, tempos da Klu Klux Klan, do pós-bomba atômica. Eles tinham empatia pelos negros que voltavam da segunda guerra, segregados e humilhados, e teriam que retornar a uma                                                                                                                         6

Tradução livre: “Eu era uma jovem mulher enraivecida, portanto, muitos jovens e muitas mulheres enraivecidos não se tornam artistas. Eu me tornei porque eu não tinha escolha – eu não tive que tomar uma decisão. Era o meu destino. Numa outra época eu estaria fechada à perpetuidade num manicômio... Eu adotei a arte para que ela fosse a minha salvação e para que ela respondesse à minha exigência pessoal”.

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vida de terceira categoria. Definitivamente, eles não se sentiam seduzidos pelo famoso American Way Life, além de a decepção ser enorme. Como aceitar viver num país que recusa a volta de Charlie Chaplin? Na sociedade do Macarthismo e da psicose da bomba atômica, como aceitar a nova obsessão americana pelo seu novo brinquedo: a televisão?! Naquele período, a avó de Harry fez uma generosa proposta de envio de pensão, isso possibilitaria levar uma vida tranquila, sem luxo, mas livre e promissora. A jovem família se mudou para Paris. Os anos 1950 em Paris eram mágicos e eles não ficaram indiferentes à riqueza cultural da época. Ao chegar, Niki ficou particularmente impressionada com Simone de Bouvoir. Harry, como aspirante a escritor, estava fascinado com Camus e Sartre. O casal adorou constatar que o jazz foi acolhido com entusiasmo na França, enquanto os EUA nem queriam saber dele. Eles logo encontraram o café SaintGermain-de-Prés, refúgio de artistas de todos os horizontes, inaugurando assim a nova vida boêmia e rica em experiências parisienses. O Louvre era atividade cotidiana do casal. Harry não tardou a encontrar quem trouxesse mais inspiração na sua vida. Ele logo se entregou a uma nova aventura amorosa, uma jovem e linda francesa. Niki, por sua vez, decidiu se envolver com o marido dela. Segundo ela, ele era um lorde Inglês (como ela passaria a chamá-lo, nunca mencionando o seu nome em suas confidências) com tendências depressivas. Os dois passaram a colecionar objetos cortantes e sinistramente alimentavam uma obsessão pela morte, num contexto eroticamente excitante e, segundo ela, muito romântico (Saint-Phalle, 2006). Naquela ocasião, Niki passou a entrar em contato com uma dor, a que, para ela, nenhuma dor física podia se comparar. Algo difuso, de fundo emocional, que ela ainda não conseguia nomear nem encontrar espaço para elaborar. Ela dormia mal e sentia muita ansiedade. Naquele período, o casal e a pequena Laura estavam morando numa casinha na região de Nice. Numa tarde, ela teria ido ao ginecologista onde se sentiu muito constrangida pela maneira fria, humilhante e invasiva que o médico a tratou. Mais tarde, chegando a casa, eles recebem a visita

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da amante de Harry. E foi “a gota” que faltava para que o dia acabasse mal... Mas muito mal... Ela teve uma crise nervosa extremamente violenta, quebrando tudo, batendo em todos. Foram necessárias, ao menos, duas pessoas para contê-la. Eles a levaram com dificuldades ao quarto e, ali, Harry descobriu o arsenal escondido de objetos cortantes. Ela aceitou, sem resistência, ir com ele ao hospital psiquiátrico onde foi atendida com urgência. Mas eles tiveram que voltar para casa e esperar cinco (longos) dias para que um quarto fosse liberado para internação.

Doutor

Cossa, o psiquiatra de formação analista junguiana responsável pelo setor, foi quem atendeu a paciente e acompanhou o caso por muito tempo. Ele informou à família que a situação era grave e ela teria que ficar internada por ao menos cinco anos. Um tratamento de choque à insulina e dez choques elétricos foram ministrados à paciente nas semanas que seguiram. Harry estava em estado de choque. Ele não tinha noção do que havia antecedido essa crise. Ele descobriu então sobre as inúmeras tentativas de suicídio que Niki cometera, das quais, algumas “quase” tiveram sucesso. Era um grito desesperado por mais amor e ajuda que ele não estava escutando. Ele a amava tanto, como isso poderia ter acontecido? Enquanto isso, Niki, internada, recebia o tratamento se perguntando se os ratos que avistava no seu quarto estariam saindo de dentro dela, olhando o sol de Nice atrás das grades esperando a visita de Harry e querendo, no mais profundo do seu ser, ver sua filha Laura.

  Figura 1: No Hospital, (de Saint Phalle, 2006)

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Foi aí que algo muito importante aconteceu: ela sentiu uma urgência de pintar. Algo que ela não explicava, mas simplesmente precisava fazer. Sem nenhum material nas mãos, ela passou a colecionar folhas secas do jardim, cacos de qualquer coisa, e conseguiu também um pouco de cola, realizando, assim, as primeiras colagens. Um amigo, o músico Tony Bonner, foi visitá-la se deparou com essa situação e lhe ofereceu um estojo de guache, pincel e algumas folhas. Neste momento, iniciou-se um processo alquímico de cores e formas que o mundo ainda não havia imaginado. Seis semanas depois, Niki estava em casa! Obviamente, ela se comprometeu a manter visitas constantes ao psiquiatra. Ela conseguiu abandonar o arsenal que carregava sempre consigo e que a ajudava a se sentir protegida: um revólver sem balas, tesouras, facas de cozinha e algumas lâminas de barbear (Saint-Phalle, 2010). Nesse período, outro evento importante aconteceu: poucas semanas depois de voltar do hospital, ela recebeu uma carta do pai. Era uma sexta feira à tarde. Assim, durante os dois anos seguintes, todas as sextas feiras, na mesma hora, ela era tomada de uma enxaqueca devastadora que a deixava na cama durante ao menos 24 horas. Nessa carta, seu pai confessou o estupro e pediu-lhe desculpas. Ela não se lembrava disso. Para ela, era um esquecimento que a protegia de uma verdade insuportável. Ingenuamente, ela mostrou a carta ao doutor Cossa. E ele disse à Niki: “Votre père est fou. Rien ne s’est passé. Il invente. La chose est impossible. Un homme de son milieu et son éducation religieuse ne fait jamais cela.”7 (Saint-Phalle, 2010). Esse médico escreveu uma carta ao pai convidando-o a fazer um tratamento psiquiátrico. Segundo ele, seria normal para uma filha dita histérica sofrer esse tipo de alucinação e para um pai que se sente em culpa ser habitado por fantasmas perigosos (Saint-Phalle, 2010). Dessa maneira, eles voltaram à vida de todos os dias. Mudaram-se algumas vezes na França, entre a capital e o campo, inclusive moraram algum tempo na Espanha. Mas conservaram a vida boêmia de sempre, regada a muitas discussões nos bares de Paris com amigos artistas, viagens insólitas, visitas                                                                                                                         7

Tradução livre: “Seu pai está louco. Nada aconteceu. Ele inventa. Isso é impossível. Um homem deste meio e com esta educação religiosa nunca faria isso.”

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culturais, e baby-sitters para a Laurinha que crescia e se abria ao mundo devagarzinho. Ela abandonou a ambição de ser atriz de teatro e com poucos meios ela assumiu sua nova meta: a pintura. Inicialmente ela tinha como mentor Hugh Weiss, quem implorava que ela mantivesse seu gesto espontâneo e nunca fizesse uma escola de pintura. Ela respeitou o pedido e assim foi. Naquele tempo, os bares de Paris eram infestados de pessoas e discussões extremamente interessantes: Matisse, Picasso, Dubuffet, Jackson Pollack, Jonh Ashbery, Rauchenberg, Jasper Jhons, Jane Freilicher, Daniel Spoerri, Giacometti, Beckett, Saul Steinberg, etc. E nesse contexto, nasceu o pequeno Philip, o segundo filho do casal. Na primavera de 1959, a família saiu de férias em Belle Isle, na GrãBretanha, com os amigos de bar parisienses, Joan Mitchell e Jean Paul Riopelle. Estes últimos, embora artistas geniais, eram chegados num copo. Numa dessas noites regadas a qualquer coisa alcoolizada para se beber, Joan distraidamente soltou a frase: “So you’re one of those writer’s wives that paint.8” (Saint-Phalle, 2006, p. 115). Ninguém se deu conta no momento, mas esse seria o elemento propulsor que daria início a uma mudança radical na vida de todos. Essa frase assombrou seus pensamentos durante um tempo de maneira muito íntima. Harry até estranhou, ele sentia que ela parecia tão tranquila, delicada, bem educada, dava a impressão que ela estava planejando algo (Saint-Phalle, 2006, p. 115). Naquela época, eles estavam de férias nos EUA. Niki estava convalescente de uma importante crise de hipertiroidismo que quase lhe custou a vida e a deixou extremamente enfraquecida. Enfim, ela decidiu se abrir: pediu um ano sabático da família, precisava se dedicar exclusivamente à sua arte e ser uma artista por ela mesma. Voou imediatamente a Paris e o restante da família voltou de navio mais tarde. Ela nunca mais voltou para casa. Passou a existir por ela mesma, dedicandose obstinadamente à sua arte. Precisava sentir que valeu a pena o sacrifício da vida em família: Mais quelle que fût la cause de ce trauma – émotionnelle, physique, psychologique ou sociologique, Saint-Phalle en ressortit défiante, agressive,

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Tradução livre: “Então, você é uma dessas mulheres de escritor que pinta?”

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paranoïaque. Enhardie, son désir de poursuivre sa carrière d’artiste devint une obsession. Cette crise lui donna confiance en l’intuition, la chance et le non rationnel – elle lui permit de déceler la beauté de l’imparfait; et lui 9 inculqua un sentiment de méfiance face à l’illusoire perfection (Parente, in Lower, 2001, p. 81).

Naquela ocasião, também, iniciou-se a relação com Tinguely, com quem ela se casou mais tarde e com quem viveu por mais de 30 anos, constituindo assim um dos casais mais criativos da história da arte. Ele era um escultor suíço integrante do movimento Nouveaux Réalistes, uma pessoa com um caráter explosivo de difícil convivência. Ele mantinha paralelamente uma relação com Micheline Gyrax, na Suíça, com quem teve um filho: Milan. Niki acabou aceitando o menino como membro da família e a vida paralela de Jean. Finalmente, as duas mulheres acabaram por criar uma relação de cumplicidade. Quando Tinghely tomava a estrada para ir à outra casa, elas se telefonavam advertindo. Ele era muito ciumento e possessivo, assim elas se permitiam garantir um mínimo de liberdade individual. Ele apresentou-lhe Pontus Hulten, Marcel Duchamp e Pierre Restany. E ela, por sua vez, apresentou-lhe Jean Raushemberg e Jasper Johns, os poetas Kennet Koch e John Asbery. Ela teria como mestres Gaudí, Facteur Cheval, Matisse, Miró, Le Douanier Rousseau, Picasso, Paul Klee e Léger. E Jean se inspirava em Malevitch, Calder, Duchamp, Tatlin, e no movimento Les Futuristes. A produção de ambos foi extremamente contaminada pela cumplicidade e colaboração do casal. O poder criativo era vitalizado pela imensa troca fecunda que estimulava cada vez mais ir mais longe e mais loucamente. Um exemplo dessa alquimia seria a obra Le Cyclop (ou La Tête - em português, A Cabeça)10. Outro grave problema de saúde ocorreu com nossa artista durante os anos 1974 e 1975. Seus pulmões se queimaram em consequência da emanação de poliéster durante a realização das suas esculturas. Niki comentou que foi uma                                                                                                                         9

Tradução livre:”Qualquer que seja a causa deste trauma – emocional, físico, psicológico ou sociológico, Saint Phalle ressurge desafiadora, agressiva, paranoica. Entusiasmada, seu desejo de perseguir sua carreira artística se transforma em obsessão. Esta crise deu-lhe confiança na intuição, na sorte e no não racional – permitiu-lhe revelar a beleza do imperfeito; e incutiu nela um sentimento de desconfiança na perfeição ilusória”. 10 Le Cyclop é uma engenhoca de 22,5 metros de altura e 350 toneladas de aço na floresta de Milly, França. Nele está representada uma cabeça sem corpo com um olho, uma boca onde deságua um tobogã aquático, uma orelha de uma tonelada onde o visitante é convidado a descobrir uma estrutura labiríntica com diversas atrações. Assinada por Jean Tinguely, ela foi criada com a cumplicidade de Niki de Saint Phalle e outros – para mais informações: www.lecyclop.com.

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verdadeira descida aos infernos (Saint-Phalle, 2006). Muitas hospitalizações se sucederam até que ela resolveu passar um ano num chalé em Saint Moritz (Suíça) para se restabelecer. O isolamento era duro, mas necessário no momento. Jean quase não foi visitá-la. A solidão foi imensa, a dor também. Naquele momento, Niki escapou da morte mais uma vez: ela estava planejando o que era para ela: o suicídio perfeito, quando foi tomada por uma grave pneumonia. Ao ser internada, acabou mudando de ideia e abandonou o projeto fatal. Entretanto, aquele ano foi crucial na sua carreira. Sozinha e com poucas visitas, mas que finalmente tiveram muita influência no seu processo interno, lendo Bachelard, caminhando nas montanhas, ela aprofundou seu processo criativo. Nesse momento, foi concebido, gestado, criado, imaginado e digerido o maior projeto da sua vida: O Jardim dos Tarôs. Ela sonhava em realizá-lo desde que visitara, nos anos 1960, o Parque Güel de Gaudí, em Barcelona: En 1955 je suis allée à Barcelone, avec mon mari Henry Mathews. C’est la que j’ai vu le magnifique Parc Güell de Gaudi. J’ai rencontré à la fois mon maître et ma destinée. J’ai tremblé. Je savais qu’un jour, moi aussi, je construirais un jardin de joie. Un petit coin de paradis, une rencontre entre 11 l’homme et la nature . (Saint-Phalle, 2004, p.2).

A ideia era de realizar um monumento único e simbólico. A obra da sua vida. E onde ela passou os quase 20 anos seguintes trabalhando e habitando. Jean morreu em agosto de 1991 e ela em maio de 2002, em San Diego, EUA.

                                                                                                                        11

Tradução livre: “Em 1955 eu foi a Barcelona com meu marido Henri Mathews. Foi lá que eu vi o magnífico parque Güel de Gaudí. Eu encontrei ao mesmo tempo meu mestre e meu destino. Eu tremi. Eu sabia que um dia, eu também, eu construiria um jardim de alegria. Um cantinho do paraíso. Um encontro entre o homem e a natureza.”

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1.4. Uma vista panorâmica de seu universo artístico:   Quem fala através das imagens primordiais, fala como se tivesse mil vozes; comove e subjuga, elevando simultaneamente aquilo que qualifica de único e efêmero na esfera do contínuo devir, eleva o destino pessoal ao destino da humanidade e com isto também solta em nós todas aquelas forças benéficas que desde sempre possibilitam a humanidade salvar-se de todos os perigos e também sobreviver à mais longa noite. (Jung, 1930, p. 129)

1ª fase: Nigredo - Urobórica12 Niki de Saint-Phalle nunca estudou belas artes e nunca fez uma formação artística. Jamais perdeu sua independência em relação às convenções e ideias socialmente estabelecidas. Nos anos 1950, começou a pintar seus primeiros guaches e óleos. Ela usava diferentes suportes e muitas cores sem economia, traço naïf, já delineando uma grande expressividade num ambiente onírico, urobórico, mítico, surreal, personagens femininos expressivos e carregados de emoção, de paisagens estranhas, fundos escuros, animais voando, dragões, estrelas, luas e céus vermelhos. Nesse período, ela começou também a criar em torno de símbolos que até o fim vão estar presentes na sua obra: serpentes, grandes árvores com imensos e desnudos galhos estendidos, monstros marinhos e dragões. Também pintava mulheres brincando, seminuas, com seios aparentes bem diferenciadas dos personagens masculinos, num ambiente carregado de erotismo e de alegria de viver. Ela já começava a colar alguns objetos em relevos de uma maneira pessoal, metamorfoseando-os em uma nova significação. Em seguida, ela começou a abandonar aos poucos a pintura e seus personagens para investir nas suas primeiras assemblages, colando objetos encontrados nos depósitos de lixo, em qualquer lugar, criando paisagens estranhas e imaginárias. Começou também a criar ambientes vazios contrastando com ambientes densamente repletos de objetos. Ela explodia-os, lançava flechas e tiros na sua obra, num novo tom irônico, buscando novas relações com os materiais após

                                                                                                                        12

Os títulos das fases foram escolhidos por mim. Fazem referência a processos alquímicos que serão mais bem explicados adiante no capítulo da Força.

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a destruição definitiva. Descobriu o prazer de colar objetos associados à violência e à ameaça: revólveres, facas, alvos com flechas, machados, etc. Então, no começo dos anos 1960, ela iniciou sua “descida aos infernos” (Hunten, apud Lower, 2001, p. 51) artística. Ela passou a cobrir objetos com gesso branco e convidava o público a atirar as flechas na obra. Esses trabalhos refletiam certa revolta, um abismo existencial, horror e desespero. Para Hulten (1999), era uma forma de exorcizar e metamorfosear a vida burguesa originária, num gesto de desafio. Evocando um sentimento ambíguo de fascínio e repulsa, ela enfrentou os opostos: o feminino e o masculino – o submisso e a força. Sobretudo, ela introduziu o tema da morte e da ressurreição. 2ª fase: Nigredo - calcinacio13:

“I Became  a  Terrorist  in  Art”                                              

(Niki  de  Saint-Phalle)

No começo dos anos 1960, ela já tinha abandonado a família e começado a relação com Tinguely. Era um período muito conturbado politicamente na Europa. Foi marcado pelas guerras, pelo fim das colônias africanas (na França, foi muito sentida a guerra contra a Argélia), a Ásia estava em fogo. A bomba atômica era o grande pesadelo e as revelações de Auschwitz doíam muito nas entranhas da sociedade. Trata-se de um período em que a arte ignorou esse contexto e tornou-se mais

interiorizada,

intimista,

cuidadosa,

cultuando

a

beleza

leve

e

descompromissada. Mas nossa artista não se contentava com o movimento de seus colegas. Criou, então, os famosos Tiros, que eram bolsas de tinta colorida escondidas no interior de objetos cobertos de gesso branco puro e virginal, ritualizando uma morte simbólica e sacrificial, e celebrando sua própria destruição (Krempel, in Lower, 2001). Ela realizou performances onde ela (ou o público) atirava (com uma espingarda ou um revólver) nessas bolsas, que, ao explodirem, manchavam com todas as cores e o público podia então admirar a tinta escorrendo como sangue:                                                                                                                         13

Idem citação n° 11

21    

En 1961 j’ai tiré sur: Papa, tous les hommes, les petits, les grands, les importants, les gros, les hommes, mon frère, la société, l’Eglise, le couvent, ma famille, ma mère, tous les hommes, Papa, moi-même, les hommes. Je tirais parce que cela me faisait plaisir et que cela me procurait une sensation extraordinaire. Je tirais parce que j’étais fascinée de voir le tableau saigner et mourir. Je tirais pour vivre ce moment magique. C’était un moment de vérité scorpionique. Pureté blanche. Victime. Prêt! A vos marques! Feu! Rouge, jaune, bleu, la peinture pleure, la peinture est morte. J’ai tué la 14 peinture. Elle est ressuscitée. Guerre sans victimes. (Saint-Phalle, in Lower, 2001, p. 53)

Hulten (1999) fala que foi uma forma de liberação das forças criadoras. Era uma forma imediata de transmutação da realidade numa experiência de destruição-criação, um revivificar e um ressignificar a realidade: “Après la série des Tirs, tout était possible”15 (Hulten, 1999, p.15). Foi a partir dos Tiros que ela entrou no grupo dos Novos Realistas, em que era a única mulher. Foi também nessa fase que ela passou a ser conhecida pelo grande público que se sentiu seduzido tanto pela sua beleza, como por sua postura segura e firme e por sua provocação. Sua imagem passou inclusive a ser referência no movimento feminista. Com seu novo grupo, eles passaram a atuar também nos palcos incluindo outros universos artísticos: a música, o teatro e a dança. 3ª fase: Albedo³ Inicialmente nas colagens dos Tiros ela não buscava uma forma definida, eram apenas objetos quaisquer unidos ao acaso num espaço delimitado esperando o tiro fatal. Aos poucos começaram a surgir formas definidas no seu trabalho e os tiros foram cessando. Ela entrou num período chamado Branco. Sempre na perspectiva da assemblage, em seus relevos, ela passou a buscar reproduzir imagens de noivas, mulheres grávidas, mulheres parindo, prostitutas, catedrais, monstros, cabeças, caveiras e corações. Suas representações de mulheres muitas vezes eram crucificadas e vitimizadas. As noivas seguravam buquês de aranhas e bonecas desmembradas.                                                                                                                         14

Tradução livre: “Em 1961 eu atirei: no meu pai, nos homens, nos pequenos, nos grandes, nos importantes, nos gordos, no meu irmão, na sociedade, na igreja, em todos os homens, no meu pai, em mim mesma, nos homens. Eu atirava porque me dava prazer e que isto me fazia sentir uma sensação extraordinária. Eu atirava porque me fascinava ver o quadro sangrar até morrer. Eu atirava para viver este momento mágico. Era um momento de verdade escorpiônica. Pureza branca. Vítima. Pronto! Apontar! Fogo! Vermelho, amarelo, azul, a pintura chora, a pintura está morta. Eu matei a pintura. Ela ressuscitou. Guerra sem vítimas.” 15 Tradução livre: “Depois da série dos Tiros, tudo era possível”.

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Algumas dessas imagens, como as noivas e os monstros, adotavam um aspecto infantilizado e passavam até a ser comercializados em bonecos de plástico banais. Ela produziu, também neste período, assemblages de altares sinistros crivados de balas, morcegos, revólveres, etc. Mergulhava, assim, nas marcas deixadas por sua rígida educação religiosa. Ela certamente transmutava e purificava sua energia, mas não deixaria de lado seus monstros, sua sombra, ela os considerava como parte integrante dela mesma. Representando por exemplo, nos buquês das noivas de aranhas e pedaços de bonecas desmembradas. 4ª fase: Rubedo - Cauda Pavonis16: Nesse momento, as primeiras Nanas começavam a ver o dia. Elas chegaram de mansinho, mas passaram a estar definitivamente presentes durante o resto de sua carreira artística. Nana (se pronuncia Naná) é uma palavra francesa que quer dizer “garota, menina”. Elas foram substituindo aos poucos as mulheres feridas e enraivadas para dar luz às bonecas alegres, bem definidas, emancipadas, de formas generosas e seguras de si. A Nana dança, grita, se afirma, ela sabe o que faz, é misteriosa, é deusa-negra, é livre e criativa. Ela se veste de roupas exuberantes, sensuais, coloridas, exóticas e brilhantes. Tem gestos ampliados dançantes e sem preconceito. Da pequena escultura de mesa à Hon, Niki explorou essa imagem em todos os tamanhos, materiais, cores, maneiras e situações. Hon em sueco significa ela. Foi construída com a ajuda de Tynguely e Peter Olof Utveldt para o Moderna Museet, em Estocolmo, exposto em 9 de junho de 1966, e foi demolida para a exposição seguinte a partir de 4 setembro do mesmo ano. Era uma Nana longa de 28m, 6m de altura e 9m largura. Ela estava deitada e o público entrava pela sua vagina. Dentro, encontravam-se vários ambientes: um cinema de 12 lugares, onde se projetava o filme de Luffalparpetter com Gretta Garbo. No cérebro, uma escultura móvel de madeira, um planetário no seio esquerdo e um Milk-bar no seio direito. Nas coxas, uma escultura radiofônica, no joelho, o banco dos amantes sonorizado todo em veludo vermelho. Encontrava-se ainda um distribuidor de sanduíches, um telefone, uma galeria de arte e um aquário. A música de Bach soava por todo lado para a ambientação.                                                                                                                           16

 Idem  citação  n°  11  

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Com as Nanas, Niki buscava a mulher arquetípica: elas relembram as Vênus pré-históricas representantes da terra-mãe, inspiradoras da espiritualidade da época. Com suas Nanas, ela realizou uma arte essencialmente feminina e multifacetada da mulher. Alguns símbolos do passado se transformaram junto com suas Nanas. Parente (in Lower, 2001) comenta que os monstros ameaçadores se transformavam em pássaros proféticos e desuses animais. Suas pinturas passaram a se movimentar num jogo de construção-desconstrução-reconstrução (na série Tableaux Ecartés). As serpentes viraram fontes coloridas nos jardins públicos e os dragões, tobogãs para crianças. As cores passaram a ser suas grandes parceiras. Tudo era colorido, exuberante, brilhante, presente. Uma verdadeira festa de alegria, leveza e vitalidade. Niki tinha um prazer em realizar esculturas monumentais como Hon, o parque Le Golem, em Jerusalém, ou Le Cyclope, em Milly-la-Forêt, na França. Sua obra mais extraordinária foi o Jardim dos Tarôs na Toscana. Eram esculturas sempre cheias de cores, de brilho, de vitalidade, exuberância e densidade significativa. Na criação do Jardim dos Tarôs ela vivia numa dedicação e imersão total, ela passou a viver no local no interior da mais extraordinária escultura, a Imperatriz. A Imperatriz foi construída em poliéster pintado, inteiramente coberto de mosaicos, na maior parte brilhante, com a dimensão de 15x15x15m. Perfeitamente construída de forma habitável, lembrava uma gigantesca esfinge, com a cara de uma deusa negra. No interior, os cômodos eram esculpidos como uma caverna inteiramente cobertos de mosaico de espelhos. Era onde ela morava e se encontrava com a equipe dos trabalhadores do jardim todas as tardes para um café. Niki falava dessa arcano-escultura como sendo a “Grande Deusa Mãe, a Rainha do Céu. A Mãe, a Emoção, a Prostituta e a Civilização” (Saint-Phalle, 2004). Ela realizava essas esculturas sem projetos arquitetônicos, sem técnicas muito elaboradas. Fazia simplesmente num solitário chamado visceral de realização e generosa celebração à alegria e à vida. Ainda, ela atuou no teatro, colaborando com diversas companhias na realização de cenários, roteiros e performances, contribuindo com uma nova vitalidade no teatro do pós-guerra. Também no cinema, realizou, escreveu e atuou 24    

em filmes de arte, como o cenário do filme The Travelling Companion, de 1966, com a colaboração de Constantin Mougrave, ou o filme Le Rêve plus Long que la Nuit, de 1975, escrito por ela. Gostaria de chamar a atenção ao filme Daddy, de 1972, com a colaboração de Peter Whitehead, como exemplo de sua maneira catártica, poética e exposta de se expressar. Nele, uma menina pré-adolescente simbolicamente domina, humilha, se afirma sobre a figura de um tirano masculino matando-o 17 vezes. Em forma de poesia, ela exprimiu toda a sua cólera contra a situação traumatizante, violenta e humilhante da menina violada. Ela mergulha nas águas da sexualidade sem preconceitos, explorando a relação mãe-filha, pai tirano/menina indefesa de uma forma exposta e profundamente simbólica. Nesse filme, ela falou tudo, dançou nos símbolos, se desnudou na poesia, na ousadia de quem se abria à sua sombra, enfrentava seus complexos com poucas barreiras buscando a integridade do ser. Ela renasceu inteira, forte e cheia de vida, lavando sua alma definitivamente pela violência sofrida no passado. Acredito que esse filme mereceria uma atenção especial nas referências de situações de violência contra crianças, na questão da coragem daquele que se relaciona com sua sombra, na vida-morte-renascimento de um ser integral e com mais frescor criativo. Ela fez uma série de esculturas em bronze polido sobre deuses egípcios. Acrescentava pinturas a óleo coloridíssimas dando efeitos de extrema beleza e originalidade. Criou, ainda, para produção em grande escala, objetos de decoração, joias, bijuterias e objetos infláveis, inclusive um perfume que financiou parte do jardim. E finalmente, ela contribuiu com vários movimentos de conscientização: o mais famoso foi nos anos 1990, com seu filho Philip Mattews, em que ela produziu um desenho animado intitulado “AIDS: You can’t Catch It Holding Hands”. Além disso, recebeu prêmios pelo seu engajamento social. Também publicou livros como Mon Secret (Saint-Phalle, 2010). Trata-se da publicação de uma carta escrita à sua filha Laura, explicando a violência do estupro e a solidão que se seguiu na sua história. Mas é, do mesmo modo, um grande instrumento de conscientização da questão da violência contra a mulher e a criança. Através de sua obra complexa, nessas ações ela mantinha uma postura de um grande engajamento, sensibilidade, franqueza e empatia com os problemas da sua época. 25    

2. A ARTE, PSICOLOGIA ANALÍTICA E VIDA SIMBÓLICA.   Não é Goethe quem faz Fausto, mas sim... Fausto quem faz Goethe. (Jung, 1930, p. 159) [...] J’ai imposé ma vision parce que je ne pouvais pas faire d’une autre 17 manière . (Saint-Phalle, 2004, p.6)

Jung acreditava que a raiz do processo criativo habita o inconsciente. Para ele, o processo criativo é um impulso natural que vem de baixo para cima (Van Den Berk, 2012). O artista seria então alguém que teria a capacidade de ativar os arquétipos*, transformando-os numa linguagem atualizada e formalizada. Jung (1985) fazia uma diferenciação entre a expressão que tem por origem o fundo psicológico e a de fundo arquetípico. Este primeiro teria como “pano de fundo” processos e conteúdos oriundos do que estão no limite do que é compreendido (inconsciente pessoal) e que não nos é estranho. São elementos que nos são familiares e podemos, através de certa análise, esgotar no nosso conhecimento e apreciação todos os sentidos e significados da mensagem proposta. Essa arte se preocupa em falar de fenômenos sociais, questões de relacionamento, questões didáticas, a “paixão e de suas vicissitudes, dos destinos e de seus sofrimentos, da natureza eterna, seus horrores e belezas” (Jung , 1985, p. 140). Por outro lado, temos a arte de fundo arquetípico. Essa arte possui uma característica desconcertante por trazer em si temas desconhecidos, estranhos, que não se compreende facilmente. Ela é portadora de uma carga afetiva e emocional importante. É reveladora e não se intimida diante da possibilidade de provocar angústia, destruição, e incompreensão de “natureza profunda, parece surgir de abismos de uma época arcaica, ou de mundos de sombra e de luz sobre-humanos” (Jung, 1985, par. 141). Pode ser demoníaca ou sublime, grotesca ou extremamente frágil. O seu confronto é uma experiência que nos convida ao olhar intuitivo e aceitar seu mistério. Ela é significação pura, emergente do fundo da vivência originária, na qual as imagens não estão preocupadas com a beleza, mas com o vibrar de uma energia conhecida, visionária, eterna, muito intuitiva e de difícil acesso. Jung

                                                                                                                        17

Tradução livre: “Eu impus minha visão porque eu não podia fazer de outra forma”

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chamou essa arte de “Grande Arte” e tal é a arte com que estamos lidando nesta pesquisa. A maneira de acesso a esse material é através de insights profundos, que podem ser induzidos através da experiência artística, da experiência religiosa e dos sonhos, ou seja, na vida simbólica em geral. Na verdade, é uma experiência de acesso aos arquétipos, cuja comunicação acontece através dos símbolos. Estes têm a função de transmissão do que acontece no espírito original à consciência desde os tempos mais remotos. Eles dão forma aos arquétipos e são capazes de nos comunicar aquilo que sempre existiu na vida mais profunda e interior da humanidade desde o começo dos tempos, que de outro modo não seríamos capazes de formular. Eles sintetizam os contrários da nossa psique tornando possível a reconciliação. Aniéla Jaffé (in Jung, 1964) explica que existe uma tendência natural humana de formular símbolos. Tudo pode se tornar um símbolo a partir do momento em que depositamos uma expressão religiosa ou artística, conferindo-lhes uma importância psicológica e afetiva. Um símbolo se vivencia, não se interpreta. Neles são representados conteúdos instintuais que não podem ser explicados com as palavras ou na experiência racional. Eles são verdadeiras entidades vivas provocadores de vivência numinosa. Jung faz uma diferenciação entre pensamento originário (ou como gostava de chamar, participation mystique) do pensamento moderno. O primeiro, uma forma de identificação profunda e indiferenciada, seria a maneira de pensar simbólica e intuitivamente. É o pensar do homem primitivo que se sentia interligado entre o objeto e o sujeito num estado de inconsciência primordial. Tudo tem uma significação essencial e tudo está ligado a tudo. E o segundo, por sua vez, valoriza o pensamento lógico, reflexivo, explicativo, dissociativo e mental. Os afetos são separados e a ciência, a religião e a arte se encontram cada um no seu domínio especificado, onde tudo pode ser compreendido à luz da razão. Dessa forma, o ser humano se vê distanciado da natureza com suas formas originárias (Jung, 1964). Jung (1964) acreditava que a consciência moderna carrega um grande perigo por trazer em si um fundo de precariedade. Segundo ele, ela não garante que a mente não será preservada dos afetos e, ainda, nós vivemos numa ilusão de 27    

podermos ter controle sobre eles. A qualquer momento nós estamos expostos a ser invadidos e dominados pelas emoções. Em outras palavras, ninguém está liberado da força da manifestação dos nossos complexos. Para entender os complexos, é necessário saber que Jung considerava que existe uma camada mais ou menos superficial do inconsciente que se chama inconsciente pessoal (Tommasi, 2005). Nesse inconsciente, habita a história de vida de cada um com seus afetos e desafetos, frustrações e alegrias, condicionamentos, acontecimentos, traumas, dificuldades, repressões etc. É nesse substrato que os complexos se formam. Whitmont define o complexo como “um conjunto autônomo de impulsos agrupados em torno de certos tipos de ideias e emoções carregadas de energia, é expresso em identidade, compulsão, e primitividade, inflação e projeção, enquanto ele se mantiver inconsciente” (1969, p. 53). Os complexos são verdadeiras entidades vivas que invadem a consciência e provocam reações emocionais dependendo da rede de associações que se constela no momento. O inconsciente em sua constituição, possue uma parte mais superficial, uma casca como diz Whitmont (1969), que respondem a um padrão pessoal onde os complexos existem (junto com outras partes como a sombra o animus|ânima, persona) e são facetas de um núcleo mais profundo. Esse núcleo é proveniente do inconsciente coletivo, impessoal e universal. Seriam aptidões básicas ou tendências pré-formadas que a humanidade compartilha de um modo generalizado. Estamos falando dos arquétipos, que são estruturas psíquicas coletivas portadoras de conteúdos universais, inatos e herdados. Para Jung (1964), os instintos são uma pulsão fisiológica percebida pelos sentidos, enquanto os arquétipos são a manifestação das pulsões que se apropria dos símbolos (imagens ou mitos) para se comunicar. O arquétipo é um centro energético que necessita que sejam construídos símbolos para dar forma e significação adotando formas diversas seja por imagens ou por motivos mitológicos. Ele depende das sensibilidades e das possibilidades podendo ter quantas formas forem possíveis. Sua base é, portanto, sempre a mesma, ainda que a sua expressão esteja vinculada ao seu tempo. Estar exposto à experiência arquetípica é ser possuído por uma força fascinante e terrivelmente misteriosa que é a experiência numinosa. 28    

Van Den Berk (2012) comenta que, para Jung, o momento em que os conteúdos arquetipais se manifestam, trazendo à consciência os impulsos inconscientes, é um momento de grande intensidade e por vezes chega a ser violento. Podem aflorar conteúdos estranhos, desconcertantes, misteriosos e incompreensíveis racionalmente. A vida consciente pode perceber expressão dos complexos como ambígua, ilógica, ou indigesta, todavia eles são indispensáveis à vida. A mente tem um papel importante na gestão dessa força. O Ego, o centro consciente do nosso ser, precisa ter suficiente habilidade para canalizar, ordenar e estruturar essa energia. Jung (1964) acreditava que, para que se tenha uma existência saudável, é necessário que exista uma relação equilibrada entre a parte instintiva (inconsciente, arquetípica) e a parte racional (consciente, ego) do espírito humano. A consciência necessita do inconsciente para enriquecer seu repertório comunicando sua essência originária. Em compensação, o inconsciente precisa da consciência para elaborar, organizar e racionalizar esse conteúdo. Os símbolos, portanto, são os mensageiros que vão permitir a comunicação e a união desses opostos. Jung falava que a experiência numinosa é a verdadeira terapia. Retomando a questão dos complexos, eles são unidades expressivas que dirigem nossa vida consciente por terem vida autônoma. Os complexos são também faces das múltiplas manifestações arquetipais que enriquecem a consciência desacelerando ou estimulando-a. Como entidades expressivas da psique, eles podem ter uma característica tanto de natureza mórbida, reativa e negativa, como também ter a característica criativa e renovadora da realidade (Van Den Berk, 2012). Nesse contexto, eles são também portadores de fantasias, de mensagens dos desejos mais profundos, trazendo o mundo interno à luz do dia, facilitando o equilíbrio da vida psíquica. Jung chegou à conclusão que a criatividade artística é um complexo, e assim ele introduz o conceito de complexo artístico. Em outras palavras, para Jung a arte é a formulação estética do complexo artístico (Van Den Berk 2012). Para Jung (1985), o artista é alguém cujo complexo artístico inconscientemente o dirige, é uma ação vivenciada com intensidade e ele não consegue escapar desse movimento involuntário. O artista é uma pessoa que tem uma tendência a estar insatisfeito com 29    

o presente. Ele não consegue viver unicamente com a visão unilateral (egóica) como a maioria das pessoas. Vive numa conexão que lhe transmite informações de imagens e símbolos, buscando uma forma de expressão destes para ser compreendida por seus contemporâneos. Suas imagens oferecem possibilidades compensatórias na carência e na unilateralidade do seu tempo. Jung (1964) comenta que os movimentos artísticos expressam o que o artista consegue captar o que a sociedade em determinado momento não consegue perceber. Assim vão se criando as escolas artísticas, como o realismo, o romantismo, naturalismo etc. que são referentes às tendências do inconsciente de uma época. O que acontece com o artista é que ele se apodera desses conteúdos que ressurgem do fundo da sua experiência originária e vivencial, que influenciam a sua intuição como um pressentimento ou uma visão criando um símbolo formalizado numa obra de arte. O artista, para Jung (1985), teria então uma função educativa, revelando, renovando e trabalhando continuamente no processo de autorregulação espiritual na vida das épocas e das nações: O segredo da criação artística e de sua atuação consiste nessa possibilidade de reimergir na condição originária da participation mystique, pois nesse plano não é o individuo, mas a vida de toda a humanidade. Por isso, a obra prima é ao mesmo tempo objetiva e impessoal, tocando nosso ser mais profundo (Jung, 1985, p. 160).

A força energética dos conteúdos arquetipais é chamada por Jung de libido, bem diferente do conceito de Freud que se apoia unicamente na sexualidade. Jung acredita que existe uma força irracional, misteriosa, operando e mantendo o funcionamento e o equilíbrio do universo. A humanidade compartilha esse substrato comum sobre a forma de inconsciente coletivo. Jung afirma que as mesmas camadas inconscientes que geram o trabalho de arte geram as alucinações psicóticas. No entanto, a pessoa mentalmente transtornada não é capaz de tomar os fragmentos das informações para a construção de uma nova estrutura significativa; o artista pode. Há um artigo de Jung publicado em 1905 (Van Den Berk, 2009, pp.10-5) em que ele comenta como os fenômenos psíquicos ditos normais e anormais estão próximos. Para ele, tanto o artista como a pessoa que sofre de transtornos mentais estão sob a influência de conteúdos arquetipais profundos. Assim, há uma relação diferente entre a doença mental e o fervor artístico. 30    

O artista tem uma predisposição de relaxamento do controle egóico e está vulnerável a mudanças de humor. Para Jung, o artista é uma pessoa paradoxal: tem um lado de sua personalidade portadora de uma psicologia pessoal com seus conflitos, sua história de vida que pode ser saudável ou não, tendo seu contexto histórico e geográfico, etc. De outro lado, ele possui um instinto criador que o torna “portador e plasmador da alma inconsciente e ativa da humanidade” (Jung, 1985, P. 157). É uma pessoa conduzida, sobretudo, pelo seu inconsciente, que age por necessidade de expressar visões que brotam sem nem saber às vezes como e de onde vêm. É possível que ele tenha uma vida muito precária e insuficiente nas necessidades cotidianas da humanidade comum por causa do seu relaxamento egóico. Pode ser que no seu dia-a-dia ele tenha reações infantilizadas, negligentes, seja egoísta, e possua o que Jung chama de autoerotismo: seja arrogante ou tenha muita vaidade. Lembrando que o ego é necessário para fortalecer a vida consciente de todo dia. Também isso explica porque muitas vezes o artista esquece a fome, o frio, trabalha em condições por vezes inumanas, sofre de doenças mal curadas, alcoolismo, etc. Ele acaba pagando caro por seu impulso criador com uma vida conflituosa, sofrida, sombria e precária. Jung (1964) diz que o artista é aquela pessoa que caminha nos atalhos, nos desvios, diferente das pessoas ditas normais que caminham na estrada principal. O artista que despende muita energia para suas inspirações instintivas pode sofrer dessa fraqueza, dessa luta de poderes interna, mas de forma alguma isso quer dizer que seja doença mental. A doença mental implica sofrimento. Quando a pessoa está doente, se sentindo mal tanto fisicamente como mentalmente, ela não cria. A criação necessita de uma abertura para que ocorra o estado de plenitude, de numinosidade e de sustentação do ego para a realização de algo. A obra artística é a vivência originária da humanidade, que o artista formaliza através da sua técnica na condição de participation mystique. A criação, então, “não é um produto psiquiátrico, mas um trabalho artístico.”  (Van Den Berk, 2009, p. 7/2):

31    

Au tout début du jardin j’étais accablée par l’arthrite rhumatoïde et je pouvais à peine marcher et utiliser mes mais, mais j’ai continué, RIEN ne pouvait m’arrêter. J’étais ensorcelée. Je sentais aussi que c’était ma destinée de 18 faire ce jardin n’importe la grandeur des difficultés (Saint-Phalle, 2004, p. 4).

                                                                                                                        18

  Tradução livre: “No começo do jardim eu estava destruída pela artrite reumatoide e eu mal podia caminhar e utilizar minhas mãos, mas eu continuei, NADA poderia me fazer parar. Eu estava enfeitiçada. Eu sentia que era o meu destino realizar esse jardim não importando do grau das     dificuldades”.

32    

3.  A OBRA DO TARÔ DE NIKI DE SAINT-PHALLE Comme dans tous les contes de fées avant de trouver le trésor j’ai rencontré sur mon chemin les dragons, les sorciers, les magiciens, et l’ange de la 19 tempérance . (Niki de Saint-Phalle, 2004, p. 6)

3.1. O Tarô Como Sistema Simbólico:

O Tarô é um conjunto de cartas cuja origem é misteriosa e muito antiga. Fala-se que é o ancestral do nosso baralho atual. Muitas tradições assim como muitas lendas reivindicam a sua autoria como os egípcios, os caldeus, os árabes, os hindus, os gregos, os chineses, os maias, etc. Fala-se que Adão criou as primeiras cartas ditadas por anjos e que Deus em pessoa cuidou de inspirar os seus significados. A palavra Tarô poderia ter a origem egípcia (tar = caminho, ro, rog = real); ou no hindu-tártaro (tan-tara = zodíaco); ou no hebreu (tora = lei); no latim (rota = roda, orat = falar); no sânscrito (tat = o todo, tar-o = estrela fixa); no chinês (tao = princípio

indefinível),

(Jodorowski, nas

2004).

grandes

etc. Ainda,

tradições

religiosas

como

os

muçulmanos,

cristãos,

os

judeus,

ou

mesmo

entre

sociedades secretas como os alquimistas, os maçons, os ciganos e a rosa-cruz. Muito se fala, mas pouco se sabe sobre sua origem e como as 22 imagens Figura 2: Os 22 Arcanos do Tarô de Marselha

 

foram se formando ao longo da história. Sabemos que o

tarô exerce uma atração universal arcaica e ele possui um poder de ativar a

                                                                                                                        19

Tradução livre: “Como em todos os contos de fadas antes de encontrar o tesouro eu encontrei no caminho de dragões, bruxos, mágicos, e o anjo da temperança”.

33    

imaginação humana. As suas imagens foram sendo criadas ao longo da experiência humana num nível muito profundo (Nichols, 2007). Elas evocam grupos de sentimentos, intuições, pensamentos, sensações, ou seja, são imagens que representam diferentes arquétipos. Estas imagens representadas em cartas são chamadas arcanos. Existem atualmente uma grande diversidade de tarôs com seus motivos e universos particulares. Falaremos aqui do Tarô de Marselha, muito antigo, não foi assinado por nenhum autor e não possui um texto explicativo como na maior parte dos demais. Um tarô sem texto permite que possamos nos abrir ao que as palavras não contam. Nichols (2007) acredita que a partir do momento que uma carta traz um texto explicativo, ela passa a ser alegórica e não simbólica, as figuras passam a ter uma função de tentativas de explicação de conceitos clarificados verbalmente e sem grandes dificuldades. As cartas/arcanos do tarô de Marselha são portadoras de um material simbólico complexo. Trazem imagens com uma grande riqueza de detalhes que podem ser inseridos numa leitura. Todavia, essa leitura pede se faça de maneira instintiva e intuitiva. Os arcanos, numa leitura analítica junguiana, servem simplesmente para uma ampliação que permitirá uma abertura a novas perspectivas de percepção. Promovem um diálogo interno, a pessoa pode se conectar intimamente percebendo que forças estão operando no momento. Pode-se, assim, ter uma ideia de quais mensagens o inconsciente quer transmitir e ativar sua vida criativa. A sua leitura ou percepção pode permitir ao intelecto acalmar o caos dessa transmissão criando uma lógica, promovendo a ocasião de se sistematizar minimamente de maneira que o consciente possa se integrar. No entanto, nunca haverá um esgotamento dos significados. O universo arquetípico nunca esvaziará seus mistérios. No tarô de Marselha as cartas são numeradas e seguem uma sequência muito precisa. Tudo pode significar algo: as cores, os fundos, os objetos ilustrados, os olhares (à direita ou esquerda, que tipo de olhar...), a posição de cada elemento do contexto, as posturas, as vestimentas,... Tal conjunto de elementos é resumido num personagem como o Mago, o Enforcado, a Imperatriz, etc. E cada qual tem sua 34    

representação arquetípica, por exemplo, a Imperatriz e o Imperador representando os arquétipos de mãe e pai, o Papa e o Eremita seriam facetas do velho sábio, etc. Jodorowski (2004) define o tarô como a união de arcanos. Ele imaginou os arcanos como partes de um todo unificado e complexo formando um mandala. O mandala (ou seja, círculo, em sânscrito) é um símbolo hindu de representação da totalidade. Ele tem um espaço central considerado sagrado que está representado igualmente no altar ou templo sagrado. Desdobra-se numa complexidade que são unidades interrelacionadas, formando um círculo e sendo, ao mesmo tempo, a “imagem do mundo e representação do poder divino” (Jodorowski, 2004, p. 31). Mais uma vez estamos tratando aqui de um símbolo arcaico e enraizado no inconsciente coletivo da humanidade. Aniéla Jaffé (in Jung, 1964) traz alguns exemplos de representações de mandalas: os círculos Zen significando a iluminação e a perfeição divina ou mandalas nas catedrais europeias representando “o self transposto na unidade cósmica” (p. 241). Ou, ainda, os muros das primeiras igrejas romanas, a auréola do Cristo e dos santos, as rodas solares neolíticas, etc. O ser humano representou o círculo desde sempre em muitos domínios como a arquitetura, na urbanização, na arte e na religiosidade. Jung se interessou pelo símbolo do mandala lhe conferindo grande importância. Ele percebeu que ela é o símbolo por excelência do self, ou seja, da totalidade do individuo: consciente e inconsciente integrados, sendo a representação dos paradoxos por excelência. O desdobrar das partes num círculo complexo representa a integridade natural (Von Franz, in Jung 1964). Nela estão representados os aspectos dinâmicos do processo que são: nascimento - morte – renascimento da unidade. O mandala nos remete à criação do universo que, da sua unidade divina, se fragmenta criando as partes. Essas partes vão sendo reveladas por meio do trabalho iniciático que, ao se juntarem os fragmentos, se reencontra o todo. Assim concluímos que ela é o símbolo da individuação por excelência. No Tarô, o trabalho iniciático consiste em se expor a sabedoria ancestral de cada arcano buscando a conexão interna e o autoconhecimento. O Tarô seria então um sistema de representação de múltiplas potencialidades humanas 35    

chamadas arquétipos, tendo a função de comunicar a sabedoria arcaica de cada arcano. A partir das figuras estampadas nas cartas, existe uma conexão instintiva que permite ao indivíduo ser chamado a refletir sobre sua própria existência. O tarô teria uma função de oráculo, que exerce uma influência sobre nossa psique, facilitando a adoção de uma ação criativa e inspirando novas ideias e descobertas de si. Nichols (2007) fala que Jung viu no Tarô uma rica expressão do inconsciente coletivo, conceito que criou para designar uma espécie de conteúdo residual de todas as experiências da humanidade. Lá estão representados, por exemplo, o amor materno, a autoridade paterna, o impulso para a guerra, ímpeto criativo, conecção com o self, e o fascínio pelo divino. Na sua complexidade simbólica por seu profundo aspecto arquetípica, o tarô responde pela expressão desses conteúdos e por uma necessidade de troca entre o inconsciente e consciente e é um suporte interessante para a individuação.

36    

3.2. O Jardim dos Tarôs de Niki de Saint-Phalle   Le tarot m’a donné une plus grande compréhension du monde spirituel et des problèmes de la vie et aussi un éveil aux difficultés qui doivent être surmontés pour qu’on puisse aller à la prochaine épreuve et à la fin du jeu trouver la paix 20 intérieure et le jardin de paradis. (Saint-Phalle, 2004, p. 70)

Tudo começou com a experiência de Niki de Saint-Phalle ao visitar, em 1955, o parque Güel realizado por Gaudí em Barcelona, fato que marcou sua alma durante muitos anos. Diz ela que neste momento tremeu e teve a impressão que encontrou enfim seu destino (Saint-Phalle, 2004). Acredito que neste momento preciso houve uma verdadeira experiência numinosa. Como Jung (1988) a define, tal experiência acontece quando um arquétipo é ativado. É uma experiência de caráter compulsivo e vem carregada de emoção. Tem o poder de alinhar o consciente com o inconsciente. É uma experiência forte, indescritível. A pessoa tem a sensação de iluminação. Apodera-se do indivíduo e acontece independentemente da sua vontade. O indivíduo, na verdade, é “mais sua vítima que seu criador” (Jung, 1988, p. 30). Essa experiência tem o poder de modificar a consciência da pessoa passando a fazê-la sofrer uma espécie de encantamento que em seguida

Figura 3: Vista do Jardim do Tarô de Niki de Saint Phalle, fonte: http://www.nikidesaintphalle.com, consultado no dia 04/01/2014

vai influenciar a sua vida. O jardim foi construído após uma longa hibernação no inconsciente da artista. Ela se consagrou à sua construção principalmente entre anos de 1979 a 1996. O terreno foi emprestado pelos amigos Carlo e Nicola Caracciolo, na cidade de Garavicchio, no sul da Toscana, Itália. São esculturas gigantescas para cada um dos 22 arcanos do tarô de Marselha.                                                                                                                         20

Tradução livre: “O tarô me trouxe uma maior compreensão do mundo espiritual e dos problemas da vida e também um despertar das dificuldades que devem ser ultrapassadas para que possamos ir adiante até a próxima batalha e no final encontrar a paz interior e o jardim do paraíso.”

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Foram usadas armaduras de ferro com concreto coberto de cerâmica fabricada no local. Inclusive, foi reativada uma técnica egípcia na qual se moldava a cerâmica diretamente no local para depois receber o cozimento ao menos três vezes. Para evitar a diminuição da cerâmica no cozimento, acrescentava-se vidro cortado à mão. Algumas peças de poliéster foram fabricadas no seu atelier de Paris. O vidro, que vinha diretamente de Murano, foi utilizado em muitas esculturas além da cerâmica. Os efeitos finais tornaram as esculturas repletas de cores brilhantes e expressivas. Uma das coisas que mais impressiona são as paredes interiores da Imperatriz completamente cobertas de espelhos cortados e aplicados em mosaico. Seu marido Tinguely colaborou com algumas esculturas mecânicas. Muitas pessoas amigas, artistas de horizontes diversos e alguns moradores locais contratados trabalharam na construção. O ambiente era de extrema dedicação e imersão, eles viviam como uma família. Nunca houve um projeto arquitetônico. Tudo foi feito à mão e a olho nu de uma maneira absolutamente intuitiva. Niki morava no interior da imensa escultura da Imperatriz onde a equipe se encontrava todas as tardes para um café. Inicialmente não havia conforto algum: sem fogão, sem geladeira, fazia frio no inverno e calor no verão, era cheio de mosquitos, etc. Aos poucos eles foram tornando a escultura mais habitável e acolhedora. Durante a construção, Niki sofreu de uma grande crise de artrite reumatoide. Ela tentou esconder a dor durante muito tempo para não ter que parar de trabalhar, mas não teve jeito, e mais uma vez, foi hospitalizada de urgência. Quanto ao financiamento, foi outra guerra contra os obstáculos. O custo total ficou entre 4 a 5 milhões de dólares. Um terço do jardim foi financiado pelo perfume criado por ela e o resto veio de ajudas diversas. Quanto às questões burocráticas, tudo foi feito com bastante dificuldade e improvisação: eles não davam conta de fazer a papelada que a prefeitura pedia, sofriam pesadelos de não poder se adaptar às exigências, mas enfim, conseguiram passar pelos trâmites legais com sucesso final. Niki fala da sua casa, a escultura da Imperatriz, como a mãe reencontrada. Como se essa mãe exercesse um poder àqueles que a penetravam. 38    

Ela passou muito tempo no interior morando e compartilhando momentos com sua equipe. Conta que passava horas olhando a vida ao exterior pela janela. Ela se sentia em segurança e transportada num espaço de magia onde tudo era possível. Para ela, eram momentos em que a sombra convivia com a luz: Dans ce espace magique, je perdis toute notion du temps. Les limitations imposées par la vie normale se trouvaient abolies. Je me sentais rassurée e transportée. Ici tout était possible. Mais il y avait aussi le versant d’ombre. J’ai souffrait d’insomnies et sentais dans la nuit chaque seconde pousser l’autre. Bien sûr, j’imaginais que Dieu devait réellement m’aimer et m’avoir choisie pour édifier le Jardin. Mais j’avais aussi des visions d’enfer: des milliers de petits démons noirs, luisants, avec des ailes horribles, sortaient de tous mes orifices, dégoutants, repoussants. Pourrais-je me débarrasser d’eux? Au milieu de la nuit, j’ouvrais grandes portes du Sphinx et ils 21 s’envolaient (Niki de Saint-Phalle in Hulten, 1999, p. 181).

                                                                                                                        21

Tradução livre: “Neste espaço mágico, eu perdia a noção do tempo. As limitações impostas pela vida normal eram abolidas. Eu me sentia segura e transportada. Aqui tudo era possível. Mas tinha também seu lado sombra. Eu sofria de insônia e na noite eu sentia cada segundo empurrar o outro. Claro, eu imaginava que Deus devia realmente me amar e ter me escolhido para a construção deste Jardim. Mas eu tinha também visões do inferno: milhares de pequenos demônios pretos, lisos, com asas horríveis, saiam de todos os orifícios, nojentos, asquerosos. Eu podia me livrar deles? No meio da noite eu abria a janela da esfinge e eles voavam.”  

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4. OS ARCANOS E O PROCESSO DE INDIVIDUAÇÃO SEGUNDO NIKI DE SAINT-PHALLE:  

4.1.1. O Louco Le numéro du Fou est zéro, (pas de nombre) mais pour moi le zéro est un chiffre. Le fou dans le jeu du tarot est aussi fort que les autres cartes mises ensemble. Pourquoi ? Parce qu’il représente l’homme sur sa quête spirituelle, ne sachant pas où il va. Le fou est prêt à découvrir. Il est le héros des contes de fées qui apparait comme débile mais 22 au fait est capable de trouver le trésor. (Saint-Phalle, 2004, p. 26)

Esta carta é um arcano diferente dos outros porque ela não tem um número, é o zero. Ela pode ser tanto a carta número zero como 22. É como se fosse um arcano que estivesse por toda parte e em nenhum lugar ao mesmo tempo. Ele traz a ideia de vazio. Está do lado de fora do tarô, vai aonde ele quer quando ele quer, está fora do espaço-tempo servindo de vínculo do principio ao fim. Normalmente, é representado como um andarilho que caminha acompanhado de um cachorro carregando um bastão, um instrumento musical e uma trouxa. Segundo Nichols (2007), esse arcano inspira fascínio por ser uma carta que carrega um simbolismo de ampliação, de mudança de caminho, de ímpeto à ação (energia), de liberdade, o andar sem muito pensar – mas assertivo, ele empurra para a vida. O andar do louco é um andar com o olhar no futuro sem deixar de se servir do olhar da inocência da infância passada. Nichols comenta que o Louco anda como um louco, mas sabe a dose ideal para não sair da estrada. O louco não erra no seu caminhar, ele avança sem se importar com as regras do bom senso, ele age inspirado pelos seus instintos (Chevalier, 2011). O cão o está acompanhando, relembrando sua íntima relação com o mundo animal e instintivo de quem dita as coordenadas da viagem. Nichols (2007) considera-o como o herói que sempre vence com sua maneira despreocupada, debochada e inocente de ver mundo. Ele perturba a ordem, desconcerta, e se diverte com isso. É o bufão, o bobo da corte, o arlequim, o                                                                                                                         22

Tradução livre: “O louco é o número zero, (sem número) mas para mim o zero é um número. O louco no jogo do tarô é tão forte como todas as outras cartas colocadas juntas. Por quê? Porque ele representa o homem na sua busca espiritual, não sabendo aonde ele vai. O louco está pronto a descobrir. Ele é o herói dos contos de fada que aparece como débil, mas na verdade é capaz de encontrar o tesouro”.

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palhaço, o coringa. Como coringa ele representa o vazio, aquele que não tem função nenhuma, mas que pode mudar o curso do jogo a qualquer momento. Ele aparece quando quer, mesmo se não for chamado. Seu sorriso dissipa a agressividade. Se ele decide, e se ele quer, ele traz a destruição e anarquia. Como um bom bobo da corte, ele se senta ao lado do rei repleto de privilégios. Desconfia-se até de que ele é o espião do rei: “ele, sem dúvida, observa e relata o que fazemos a “Alguém lá em cima”” (Nichols, 2007, p. 39). É aquele que recebe a inspiração divina. É a própria representação do que unifica os dois mundos: porta em si o olhar numa terra não verbal, uma terra ancestral, que lhe é familiar, e o olhar dos eventos contemporâneos de todos os dias. Com a sua sabedoria instintiva, ele consegue encontrar a dosagem certa para dar uma nova direção sem estar muito ridículo. Apesar da sua loucura, ele inspira segurança pela sua sabedoria. Figura  5:  Arcano  O  Louco,  Tarô  de  Marseille, Jodorowski  (2004)      

Falando sobre cães e estudando o instinto da vida social dos lobos em estado

selvagem, encontrei uma semelhança com o papel hierárquico do lobo Ômega. Segundo Ellis (2007), numa alcatéia de lobos, a questão da hierarquia fortemente estabelecida é a condição básica para a sobrevivência do grupo. Existe o status do lobo Ômega, um lobo mais fraco desde o nascimento, menor que os outros. Tem uma expressão meio inocente, seu uivo é mais melodioso que os outros, quase um canto. Ele fica um pouco de fora: é o último a comer e não participa dos ataques à presa como os Alpha, Beta, e Gama. Desde seu nascimento os outros o provocam sempre exercendo um papel de bode expiatório. Ele passa o dia brincando com os demais em posição de submissão. Ellis (2006) fala que ele é

Figura  4:  Lobo  Ômega  (de  baixo),   fonte:   http://www.gayanature.com/le-­‐ loup-­‐omega-­‐a104100864   (consultado  no  dia  4/01/2014)  

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tradicionalmente chamado de o palhaço do bando, ele tem inclusive outro apelido sugestivo de lobo-Cinderela. As pesquisas mostraram que este lobo não é tanto o infeliz da alcatéia quanto parece. Ele é o único do grupo que come os restos da caça diretamente da loba Alpha (a loba comandante da alcatéia), ou seja, os melhores pedaços, enquanto os outros (Beta e Gama) têm o direito de comer os pedaços de segunda categoria que a Alpha decide. Os estudiosos perceberam que esse lobo tem uma função de equilíbrio no bando: com suas brincadeiras, ele relaxa as tensões, é receptor de toda agressividade do grupo e faz com que se mantenha a coesão social. Nas refeições, ele protege o espaço dos lobos de alto escalão, se fazendo de bobo e brincando, evitando assim maiores conflitos   no momento em que todos estão famintos. O instrumento musical representa esse espaço inocente e profético do artista e o bastão representa o poder. Em alguns conjuntos de carta, o bastão é de cor ouro dando uma conotação alquímica. Nichols fala do “símbolo do fogo prometeico, o poder transformador que cria a civilização” (Nichols, 2007, p. 46). A trouxa em geral é representada na cor branca, simboliza a espiritualidade e a pureza. Louco em inglês é fool, em francês fou, vem do latim follis, par de foles ou cornamusa, a gaita de foles. O louco (como o coringa) é representado, às vezes, tocando cornamusa. Os foles ativam o fogo fornecendo o oxigênio, assim como o louco, segundo Nichols (2007), fornece o espírito, o ar quente, como o bufão (buffo em italiano – do verbo buffare, em português, bufar). Fornece o sopro divino e espiritual, é quente por sua ligação com a energia. Jodorowski (2004) vê o louco como aquele que é portador da grande energia original, libertadora e sem limites. Ele inspira a perda da razão, o ímpeto criativo fundamental. O louco para ele é aquele que não tem nacionalidade nem pertencimento a qualquer organização. Ele não julga, não tem complexo, não tem necessidade, não tem eira nem beira, sem destino e sem finalidade. Aquele que “toca a música das esferas e conhece a harmonia cósmica”   (Jodorowski, 2004, p. 134). Ele possui a sabedoria da trindade criativa: criação, conservação e dissolução. Jodorowski (2004) acrescenta que essa energia é aquela de que precisamos no momento em que queremos tomar um novo caminho e iniciar um novo projeto. É o convite para passar à ação, numa atitude de, segundo ele, 42    

inconsequência sábia – deixando-se impregnar pelo instinto primitivo ou pela loucura sagrada existente em cada um de nós. Podemos falar também da energia impessoal que buscamos na outra dimensão das palavras e atitudes certas que vão alargar os limites.     O louco é um símbolo   de natureza fálica, portanto, de fertilização da vida e de impulso criativo. Nichols (2007) faz uma interessante vinculação do número zero do louco com o símbolo do círculo. Como já comentamos acima, o círculo é o símbolo de totalidade. Ela vincula o fato de o louco estar no começo e no fim das cartas com o símbolo do uroborus, a serpente que morde sua cauda criando um círculo. Para ela é uma representação do estado original da natureza. O símbolo do uroborus (Chevalier, 2011) contém a ideia de movimento, continuidade e autofecundação, em consequência de eterno retorno - sendo uma força propulsora da individuação  (Nichols 2007). O Louco, portanto, é aquele que está conectado diretamente com o Self e é portador, ou podemos dizer, o tranmissor de seus conteúdos representados pela sua trouxa sagrada. É seu mensageiro e seu representante oficial. Aquele que serve o Grande Princípio Orientador (Self), trazendo à consciência suas verdades e sua essência. Ele é uma energia, um princípio, regido por um grande senso de liberdade. A partir desta conexão, o ser consciente descobre seu lado selvagem, transcendente e divino. O self, para Jung, é um conceito incerto e abrangente, difícil de ser definido. Jung tenta explicar o conceito de self sendo um “resumo hipotético e de uma totalidade indescritível” (Jung, in Whitmont, 1969, p. 194). Samuels (1989) fala que o self é “(...) o potencial para a integração da personalidade inteira”. Nele estariam incluídos “(...) todos os processos psicológicos e mentais, a fisiologia e a biologia, todas as potencialidades positivas ou negativas, realizadas ou irrealizadas, e a dimensão espiritual.” Ele é a essência e a totalidade do ser, pois ele contém as “(...) sementes do destino do indivíduo e remete, também, à filogenia”. É chamado também de “arquétipo central”, “centro de um campo energético” (Samuels, 1989, p. 115).

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Para ilustrar, podemos imaginar um mandada com seu centro sagrado, representando a essência do ser, que conteria a essência da vida numa ideia de pertencimento cósmico. Esse centro seria perfeitamente inconsciente e seria compartilhado com a humanidade inteira pelo que Jung chama de inconsciente coletivo. Podemos acessá-lo por meio de intuições, revelações, vivências religiosas, simbólicas, e ainda, para compreender algo dele, temos que usar da nossa intuição sem nunca poder ter acesso à totalidade dos conteúdos. Em seguida, temos o desdobramento numa circunferência complexa, e vamos observando desfilar a totalidade dos conteúdos da vida psíquica interior nas suas respectivas interações. O ego seria um núcleo que representaria da vida consciente e estaria em alguma parte na periferia exterior dessa circunferência. Esse conjunto inteiro que envolve vida consciente e o inconsciente seria o que Jung chamou de self. Whitmont comenta que o ego é apenas um executor dos planos do self. Ele coloca o self como sendo um “campo de energia que tem como objetivo realizar um padrão de personalidade e de vida que, como potencialidade, é dado “a priori“. Jung fala de “instinto de vida” (Whitmont, 1969, p. 195). O self tem uma função de equilibrar e padronizar. Ele está sempre influenciando o consciente, mesmo que às vezes não se perceba claramente. Samuels enumera as principais funções do self: “a) sintetizador e mediador dos opostos dentro da psique; e b) agente principal na produção de símbolos profundos, fascinantes e numinosos, de natureza reguladora e autocurativa”  (1998, p. 116). Num

processo

unilateral

(por

exemplo,

num

caso

de

extrema

racionalização), em que os conteúdos paradoxais não encontram um meio de expressão, é produzido o desequilíbrio. Por consequência, isso pode ser levado à psicopatologia. O self, então, iria facilitar o acordo entre ambos numa forma de síntese, enviando mensagens por meio de símbolos. Essa síntese se faz por um processo compensatório que envolve o equilíbrio e a autorregulação, ocorrendo assim retificação do desequilíbrio, o que Jung chama de função transcendente. Como vimos acima, a linguagem do self é simbólica. Quanto mais profunda a origem do símbolo, maior o sentimento de integração e de estar no bom lugar no bom momento. A experiência do confronto com símbolos sélficos é sempre 44    

numinosa porque nos conecta com algo muito profundo da nossa essência, podendo até haver uma mudança radical de estilo de vida. Muitas vezes tomamos decisões inspiradas em uma reflexão racional, baseada em questões morais, sociais, exigências profissionais, etc. De repente, somos surpreendidos pelo nosso self nos enviando mensagens completamente opostas desequilibrando nosso plano – sem querer. Esse é o efeito de louco nas nossas vidas, debochando das exigências, tentando reorientar os projetos e trazendo novas necessidades que parecia não termos levado em consideração anteriormente, mas que nos transformam, fazendo com que estejamos mais próximos de nós mesmos: Nossa modalidade coletiva é desafiada por aquilo que se apresenta como consciência individual e como o significado de uma vida estabelecida de modo único. Nesta fase, os elementos antes mantidos sob rígido controle, nossos apetites, desejos e anseios morais ou imorais, podem ter necessidade de encontrar expressão ativa no padrão de inteireza recémdesenvolvido. O antigo “mal” é levado a ser um novo “bem” (Whitmont, 1969, p. 196).

45    

4.1.2. O Louco de Niki de Saint-Phalle

O louco representado por Niki é uma escultura toda vazada, as roupas e a trouxa são bem coloridas (verde claro e escuro, laranja claro e escuro, amarelo, branco e preto). Relembram a brincadeira, a alegria das cores, a transparência, o desprendimento, e o jogo de luz e sombra das partes pretas e brancas. Todo o resto é azul (cabeça e membros), representando sua busca espiritual que, por sinal, ela evidencia no seu texto citado acima. Jodorowski (2004) fala que aquele que caminha com a cor azul é guiado pelo principio divino, é o que sacraliza seu caminho. Os cabelos do louco de Niki mostram que ele está em movimento. Ele se dirige ao lado direito do caminhar assim como seu olhar. Essa direção evidencia que ele caminha voltado para a vida real com os pés bem fincados na terra, mas com seu universo de louco. O cachorro de cor marrom-terracota se encontra logo atrás do pé esquerdo como se estivesse empurrando sua caminhada. Evidencia, assim, que o

Figura 7: Escultura do Louco de Niki de Saint Phalle, Jardim dos

Tarôs, Toscana

instinto selvagem tem uma parte importante no ímpeto dessa caminhada. O bastão é de cor preta, cor muito rica de significados. No Egito antigo e na África do Norte (Chevalier,1982), por exemplo, o preto é símbolo de fertilidade, diferente da cultura ocidental em que é ligado ao luto. Preto pode significar também águas profundas, a vida latente, o vazio, a não manifestação e o nada que prepara um novo renascimento. Afinal de contas a luz precisa das trevas para acontecer. Tem a ver com as profundezas da terra, o breu do mundo subterrâneo. Preto é a cor das virgens negras Isis, Deméter e Cibele. No Brasil, temos Nossa Senhora de Aparecida que apareceu do fundo das águas turvas do Rio Paraíba trazendo redenção ao povo faminto da região, ao mesmo tempo em que nutre, ela espiritualiza. Chevalier fala de cor absoluta da substância universal, a prima matéria, da diferenciação primordial, do caos original das águas inferiores, do norte, da morte, é o negro hermético: retorno ao caos indiferenciado (Chevalier, 1982).

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No texto de apresentação do arcano, Niki fala ainda daquele tipo de herói de conto de fadas que aparentemente é débil e fraco, mas capaz de encontrar o tesouro. Ela fala do herói movido pela força do instinto e não pela força egóica, daquele que pode parecer ridículo ou fora de moda porque simplesmente está escutando sua voz interior, e com essa escuta ele consegue agir com sabedoria e mudar o mundo, e especialmente o seu mundo interior. Relembrando o que falamos no começo desta pesquisa, o artista tem um ego menos ativo que a pessoa comum. Ele age muito mais em conformidade com o seu self, acabando por negligenciar alguns aspectos de todo dia. Se olharmos com atenção a biografia da nossa artista, ela foi alguém que teve um caminhar pela vida como uma louca no sentido do arcano. Sempre agiu de uma forma rebelde ou, podemos dizer, revolucionária, mas prefiro a palavra criativa. Já começou quando ela pintou de vermelho o sexo da escultura das freiras e, mais tarde, quando ela deixou o país natal porque não suportava as incoerências do American Way Life. Depois, ainda, a vida boêmia na França, o surto, quando deixou a família para trás para partir sozinha no mundo para seguir a necessidade de ser artista, o casamento turbulento com Tinguely, a superação das inúmeras doenças, e o que acho que a fez uma louca digna deste arcano: nunca ter aceitado estudar arte. Ela fez aquilo que seu self lhe impôs, escutando sempre alguma voz interna e instintiva e nunca ter pertencido a uma escola. Além de ela não ter parado de viajar, ter morado nos EUA, em vários lugares da França, na Espanha, na Suíça e na Itália. Agiu como uma andarilha, muitas vezes morando em lugares sem conforto e pouco acolhedores. Isso tudo relembra Jodorowski quando ele fala do louco como alguém sem nacionalidade. Por outro lado, Niki de Saint-Phalle deixou um patrimônio artístico impressionante e original, foi alguém que passou por muitas dificuldades, que na maior parte das vezes foram superadas, mostrando que ela olhava sempre para a direita, para frente, que é a direção em que as coisas se realizam, se tornam concretas e faz avançar a humanidade. Todavia, ela nunca deixou de agir e sempre escutou o que seu self anunciava como certo. Inclusive, não escondeu que não teve escolha, pois seu complexo artístico era muito poderoso e não lhe deu muita opção de saída. Ao longo de sua trajetória, foi encontrando a dosagem certa de avançar no 47    

mundo exterior. Estava conectada a algo muito profundo e ainda serviu de profeta, anunciando as boas novas à humanidade por meio da sua arte de aparência naïf que evocava inúmeros símbolos que a auxiliaram, sem dúvida, no seu processo de individuação. Atuou também ativamente em movimentos sociais como o feminismo, a sensibilização à questão da AIDS, etc. Em suma, mudou profundamente o rumo da forma de sentir no seu tempo. Assim, o arcano do louco é muito significativo na vida de Niki de SaintPhalle, tendo influenciado sua existência como um todo.

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4.2.1. A Morte, Arcano n° XIII La Mort est le grand mystère de la vie. Sans mort, la vie n’aurait aucun sens ; La Mort, avec sa faux permet à des nouvelles fleurs de pousser. La carte de la mort est la carte du renouvellement. Rester conscient de la mort est une manière de ne pas être pris par les vanités de la vie.23 (Saint-Phalle, 2004, p. 20)

No tarô de Marselha, este arcano não tem nome. Ele é chamado simplesmente de arcano n° XIII, como se o número falasse por si mesmo, pois se refere à ameaça do arcano: para não tirar sua atenção é melhor nem falar seu nome. Todos os outros têm um nome e um número, à parte o Louco que tem nome, mas não tem número. Existem muitas semelhanças entre estas duas cartas por ambas tratarem de aspectos da mesma energia fundamental. A diferença é que a carta do Louco é sobre um movimento liberatório e a carta da Morte, de um trabalho, de um cultivar uma nova etapa da vida (Jodorowski, 2004). Esse trabalho tem a ver com o processo de eliminação do Ego. Nesse momento da jornada, nada mais é tolerado: sistemas de valores e conceitos redutores, nenhum elemento inútil. Esse processo, por vezes difícil e cruel, é que vai nos permitir reencontrar a liberdade perdida no Louco, na individuação. O

número

13

é

portador

de

vasta

simbologia. Está inclusive presente nas crenças populares – quem não tem certa aversão pela sextafeira 13 ou um receio de ser o 13° na mesa? Se consultarmos um dicionário de símbolos (Chevalier, 1982), descobrimos que o 13 é o que está a mais no relógio de 12 horas ou nos 12 meses do ano. Na mesa, a situação é bem delicada, ele representa Judas em meio aos 12 apóstolos - aquele que estragou tudo.

Figura 8: Arcano A Morte do Tarô de Marselha, (Jodorowski, 2004)

                                                                                                                        23

Tradução livre: “A Morte é o grande mistério da vida. Sem morte a vida não teria nenhum sentido; a Morte, com a sua foice, é o que permite o crescimento de novas flores. A carta da morte é a carta da renovação. Estar consciente da morte é uma maneira de não se deixar levar pelas vaidades da vida”.

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Pode significar ação maléfica, azar. Na Idade Média, era sinal de mau agouro. Na antiguidade, simbolizava o curso cíclico da vida – passagem a outro estado. Filipe da Macedônia morreu depois de acrescentar sua estátua ao lado dos 12 Deuses superiores. Existiam 13 espíritos do mal na Cabala. É o número da Besta do Apocalipse e do Anticristo. Na Antiguidade, representava o mais poderoso. É o caso de Zeus no meio de 12 deuses. E Ulisses, o 13º, o único que escapou de ser comido pelo Ciclope. E para os Astecas, é o número do tempo, término da série temporal (Chevalier, 1982). A Morte se situa mais adiante do meio da sequência e logo após o arcano do Enforcado n° XII. Este último está pendurado de cabeça para baixo - de onde ele passa a se orientar no mundo dando uma ideia de mudança de ponto de vista, de morte espiritual, de abismo. Ele está passivo e imobilizado com os pés e mãos atados. Mas chega a hora de fazer alguma coisa, não é possível viver como antes. Aí vem a Morte com sua foice voraz decepando tudo. No tarô de Marselha, ela é representada por um esqueleto de cor de pele (dando uma sensação de vida orgânica, de essência viva), segurando uma foice vermelha de sangue. No chão de cor preta, dando uma ideia de inconsciência, de profundidade, nos encontramos no mesmo substrato energético do Louco

e

da

Alquimistas. encontramos

nigredo

Sobre

a

duas

dos terra,

cabeças

coroadas (um rei e uma rainha) e

seus

pés

e

mãos

desmembrados e espalhados. Nichols (2007) vincula a cabeça às ideias, os pés aos pontos de vista e as mãos às atividades. As coroas, segundo ela, representariam a ruptura com

o

princípio

orientador.

Assim, estes aspectos da vida

Figura 9: Antes da ressurreição do rei e da rainha, museu Hermético (Roob, 2011)

foram selvagemente cortados e sem pena. Jodorowski (2004) fala do pai e da mãe 50    

destronados. E como se não bastasse, o esqueleto caminha se apoiando nas próprias cabeças para avançar - indicando que este arcano tem a ver com a purificação dos arquétipos mais profundos. Entretanto, se observarmos bem a carta do tarô de Marselha, podemos constatar que nesse solo escuro começam a brotar folhinhas azuis (cor relativa ao espírito) e amarelas (relativa à intuição). Nichols (2007) fala que a carta indica que vida nova está brotando, mostrando que tudo não foi completamente arrasado e um princípio orientador continua. A Morte, então, é uma carta de revitalização e renovação. Interessante é que Chevalier (2011) fala da morte como fim absoluto de qualquer coisa - mas coisas positivas, não se fala da morte como algo negativo. Citando um seu exemplo, não se fala da morte de uma tempestade voraz, mas se fala na morte de uma bela estação do ano como a primavera. A morte é para o que está integrado e tendo um funcionamento razoavelmente equilibrado. A Morte é finalmente uma carta ligada ao trabalho, à lavoura, à terra com seus ritmos orgânicos e seus mistérios, lembrando que tudo o que vive é perecível e está sujeito a ser destruído. A Morte vem para desmaterializar as forças desnecessárias e negativas e libera para a ascensão do espírito. É a força liberadora necessária para fazer a natureza se regenerar e criar nova vida, assim como o sono que a cada dia nos permite retomar novas forças para avançar no dia seguinte. Em algumas sociedades primitivas, simbolicamente se matava o velho rei, que era ritualmente comido e desmembrado para assegurar a renovação e a fertilidade do reino assim como sua revitalização. Equivalente à Sagrada Comunhão da igreja cristã, que seria uma dramatização da incorporação do Espírito Santo através do compartilhamento do pão e o vinho, que seria o corpo e o sangue de Cristo para a renovação da fé (Nichols 2007). “A morte retrata o momento em que a pessoa se vê ‘feita em pedaços’ – espalhada – com a velha personalidade e os modos quase irreconhecíveis de tão mutilados” (Nichols 2007, p. 228). A Morte é uma passagem necessária e tem uma função iniciática. Muitas sociedades primitivas incluem nas suas iniciações uma passagem pela morte simbólica. E em seguida, ela oferece a revelação do que vai conduzir a vida nova - e neste momento entra a questão do tempo. Isto inclui aceitação dos ritmos da terra. Quer dizer, aceitar que o desmembramento voraz e 51    

destruidor de um conteúdo original vão acarretar um sentimento de vazio. Para que esse processo, que necessariamente acontece no inconsciente, se torne consciente, é necessário respeitar o seu tempo orgânico. As antigas projeções, os velhos hábitos e as partes desgastadas da psique serão radicalmente banidos e despedaçados. Depois é uma questão de tempo para se dar a permissão de sair da situação transformado, de se relembrar e de se rejuntar. Um período de luto negro se impõe. O os alquimistas chamam de mortificatio, um estágio do autoconhecimento: “bem aventurados os que choram” (Nichols, 2007, p. 228). Abençoados aqueles que ambicionam se desvincular de uma rígida proteção ou uma reação inconsciente que faz parte da sua vida desde a infância e que muito tempo serviu ao ego: “Será, finalmente, reconfortado com introvisões mais válidas e com um apoio mais duradouro” (Nichols, 2007, p. 229). Seu passado será purificado. O símbolo do esqueleto tem a ver com o que nos resta ao final de tudo. Ele representa a nossa parte mais resistente, o que sobrevive ao tempo, o mais profundo e tudo o que resta dos nossos antepassados, onde deixamos nossas marcas definitivamente para nossos futuros descendentes. Como diz Nichols (2007), “é o homo sapiens arquetípico”, o que representa a verdade básica eterna revelada. É o nosso segredo mais pessoal, tesouro enterrado, escondido – como o inconsciente, o mais profundo e verdadeiro Eu. Tem um sentido revelador, pois, ao mesmo tempo em que é um conjunto de ossos sem vida e monstruoso, é a revelação da vida como ela é. A aceitação da morte tem a ver com a aceitação da vida. No tarô de Marselha, o rosto do esqueleto é assexuado e mascarado, lembrando que a morte é para todo mundo independentemente do sexo e pode ter muitas facetas. A foice, segundo Chevalier (1982), é o instrumento do herói civilizador da Roma Antiga para o cultivo da terra. Ele fala que todo o trabalho da agricultura está ligado a Saturno que é um planeta considerado maléfico, meio apagado, frio, que evoca tristeza e separação. Ele reina nos momentos em que a vida nos pede que nos separemos dos cordões umbilicais diversos da nossa existência do nascimento à velhice. Chevalier fala do “complexo saturnino”, quem sofre dele é aquela pessoa que se cristaliza na infância, não quer desmamar e não consegue se separar das 52    

situações afetivas necessárias ao crescimento. Esta pessoa terá a tendência a uma exasperação da avidez, podendo ser expressa de várias formas como a bulimia, ciúmes, avareza, extrema erudição. Tem a ver também com a desistência do ego, resultando na melancolia e recusa de viver. Jung, citado por Nichols (2007, p. 239), chama a atenção à ameaça da recusa do chamado do destino do autoconhecimento, ao chamado aos processos necessários à individuação. Alerta que a possibilidade de acabar em morte verdadeira é real, explicando, assim, o fato de que o medo de encontrar e de nomear a Morte é válido. Por outro lado, a foice tem uma forma de lua crescente sugerindo os ciclos que virão que são promessas de regeneração. Sua ação nos leva da mortalidade à imortalidade da consciência individual, pois estamos inseridos num processo orgânico, natural e vital. Aceitamos a morte porque aceitamos a vida.

53    

4.2.2. A Morte segundo Niki de Saint-Phalle:   Dés lé début, le danger fut présent. J’apprendrais à aimer le danger, le risque, l’action. Toute ma vie je serais torturée par l’asthme et les problèmes 24 respiratoires. (Saint-Phalle, in Hulten, 1999, p. 184)

Numa imensa base espelhada nesta gigantersca escultura estão espalhados pedaços de diversos elementos: pés, pernas, braços e mãos, e ela ainda acrescenta um caranguejo (que mora no mangue, um solo escuro que lembra o mesmo solo negro do tarô de Marselha), uma serpente (sabedoria, magia), uma carta de baralho (o jogo da vida) e um relógio25. Esses pedaços estão fatalmente colocados sobre um mosaico de tons de verdes bem vivos. Contrastam com o solo preto do tarô de Marselha, que remete a um solo fértil de um jardim ou um lindo gramado e que traz a ideia de agricultura e cultivo como falamos acima. Sobre tudo isso, temos um imenso cavalo preto (a cor

preta

trazendo

a

ideia

de

profundeza e instinto selvagem do cavalo) vestido de uma capa azul com elementos

celestes

(sol,

luas,

estrelas...), apresentando a noção de espiritualidade e ascensão. A caveira que o monta é toda dourada e bem gordinha, uma faceta das famosas Nanas. Ela está vestida com um maiô colorido bem alegre, afirmando e

Figura 10: A Morte da Escultura de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana

assumindo sem pudor assim sua feminilidade. Sua foice é preta como o bastão do Louco. O fato de a escultura ser de um personagem feminino, ela nos faz pensar na Grande-Mãe. A Morte é uma das suas faces, pois ela reina no mistério nascimento-vida-e-morte da vida como um todo.                                                                                                                         24

Tradução livre: “Desde o começo o perigo estava presente. Eu aprendi a amar o perigo, o risco, a ação. Toda a minha vida eu fui torturada pela asma e os problemas respiratórios” 25 Acredito que ela estava querendo trazer o debate entre Chronos e Kairos, ou seja, a questão do tempo físico/linear e o tempo das profundezas do instante. O tempo do racional (Chronos) e o tempo da vivência, o tempo do numinoso, o tempo cósmico e conectado com as forças divinas (Kairos) (Von Franz, 1980).

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Um grande contraste de cores e a cor preta com um material espelhado (seja vidro ou cerâmica), brilha com o espelhado prateado e o dourado. Traz, além do contraste luz e sombra, elementos alquímicos do ouro e da prata, bem como uma alegria leve e festiva dessa efusão alegórica de cores, de bom humor e de senso de afirmação de si. A escultura chama a atenção também pela exuberância do seu imenso tamanho. Nota-se com isso a falta de medo de se expor, de contemplar este arcano e sua grande sabedoria simbólica exposta assim sem muitos rodeios. Um verdadeiro triunfo, o Triunfo da Morte! Nichols (2007) fala que não é raro que alguns tarôs representem a Morte num cavalo espinoteando tudo o que encontra na frente. Dá uma ideia, assim, da morte como uma força impessoal, destruindo tudo o que bem entende, queira ou não ninguém escapa. A vivência da morte é um passo irrevogável – nada será como antes, um caminho sem retorno. Uma vez que o processo começou, a pessoa se transforma, ela se torna irreconhecível. Conforme a situação, a pessoa estará condenada ao exílio, muitas vezes dentro da própria família, ou o próprio país. É um processo profundo, onde forças do inconsciente tomam a dianteira ignorando completamente o que o Ego quer conservar por medo, vaidade ou preguiça. Assim como aconteceu na vida de Niki de Saint-Phalle. Ela teve que se mudar de escola, de país, de matrimônio. Teve que se distanciar da família, da vida acadêmica, da futilidade da vida de modelo fotográfico, e o mais doloroso, de seus próprios filhos. Sua vida foi um constante avanço após rupturas importantes e dolorosas. Muitas vezes este processo se tornava inevitável, era maior que ela porque vinha de águas profundas e viscerais, onde o Grande Self Orientador falava mais forte. Com toda sabedoria, ela se submetia, aceitando o sofrimento e renascendo mais uma vez para cada nova morte. Se olharmos com cuidado na sua biografia, constatamos que a morte sempre esteve muito próxima de Niki de Saint-Phalle. Ela esteve muito perto da sua morte física inúmeras vezes desde o primeiro instante de vida quando o cordão umbilical quase a sufocou e o médico a salvou por muito pouco. Depois ocorreram muitas doenças crônicas, quase incuráveis, muito dolorosas. Houve internamentos complicados, tratamentos intermináveis, e sem contar as inúmeras tentativas de suicídio, os quais alguns por muito pouco não vingaram. Em seguida, vieram várias 55    

mortes na sua vida afetiva desde o abandono dos pais, de todos os embates que a família enfrentou, o estupro do pai, a doença mental, a violência

do

caráter

tempestuoso

do

seu

segundo marido Tinguely, a neurótica reação das sextas-feiras após a carta do pai, a convivência e aceitação da família paralela de Tinguely, a solidão de seu exílio na montanha, a separação dos filhos, etc. A cada vez ela ressurge triunfante, oferecendo ao mundo uma obra que inicialmente exibe descaradamente e com toda sua força

Receita da Calcinatio: “Toma um feroz lobo cinzento, que... é encontrado nos vales e montanhas do mundo, nos quais uiva, quase selvagem, de fome. Dá-lhe o corpo do rei e, quando ele o tiver devorado, queima-o totalmente, até torná-lo cinzas, numa grande fogueira. Por este processo, o rei será libertado; e quando isso tiver sido realizado por três vezes, o leão terá suplantado o lobo e nada encontrará para devorar. E assim, nosso corpo terá se tornado apropriado para o primeiro estágio do nosso trabalho”. (Waite, The Hermetic Museum 1:325, in Edinger, 2006, p. 38)

toda a violência interna nos Tiros, nos Altares repletos de armas e objetos cortantes que vão

“O rei está morto, viva o rei!” (Nichols, 2007, p. 227)

passando progressivamente por um período branco. alquímica

Edinger

(2006)

da

calcinatio,

fala que

da

operação deriva

do

procedimento químico da calcinação que é a um intenso aquecimento de um sólido que vai retirar da água e as impurezas. O exemplo da pedra calcária (CaCO³), uma vez aquecida, ela se transforma num pó branco muito fino e seco. A

 

substância resultante é chamada calx viva (CaO), que, ao ser molhada, passa a gerar calor: “como se o fogo fosse a alma invisível que dá a vida à substância visível ou corpo” (Waite, in Edinger, 2006, p. 37).

  Figura 11: Morte do Rei, Museu Hermético (Roob, 2011)

Essa fase relacionou intimamente à morte, assumindo assim a sua vida. Foi um processo de individuação extremamente intenso de muitas iniciações. Perera (1985) fala que o processo iniciático é essencialmente uma disposição ativa de receber. Estar conectado com a morte nunca é uma ação passiva, mas aqueles (somente os eleitos, ou seja, os que estão preparados) podem estar receptivos a 56    

ela, podendo desfrutar dos seus tesouros escondidos. Não é um processo objetivo, mas um abandonar-se a uma conexão com diferentes níveis da consciência muito mais profundos que os habituais. É a possibilidade de navegar em níveis de natureza arcaica, pré-verbal, carregadas de emoção, que exercem uma força mágica e que antecedem inclusive a própria imagem. É um retorno às origens, às raízes, às forças formadoras da vida é o verdadeiro encontro com o Divino. Um estado regressivo onde nos descobrimos inseridos num universo obscuro, urobórico, vivo, em equilíbrio, somente se pode encontrar num estado de consciência alterada. Sentimos que somos parte de uma força cósmica. Nessa conexão vai haver uma mudança importante, uma revelação acontecerá. Ninguém volta ileso deste confronto. Fella (2004) fala de uma mudança no status ontológico, numa mudança de vibração onde a percepção ressurgirá mais aprofundada e ressoante com o universo. Grandes modificações necessariamente vão ocorrer. O que vai facilitar o retorno diferenciado será uma forma de sacrifício dos aspectos do ego para recriar um novo equilíbrio. Esta é a experiência ritualizada da morte – que são os processos iniciáticos. Terminamos o capítulo com a ideia de que a familiaridade com a morte que Niki acabou desenvolvendo por força do seu destino, foi facilitadora de uma aproximação com forças criativas essenciais da vida de maneira dolorosamente aprofundada, e com uma frase de Perera: A esse nível recebemos o senso da força cósmica e una; aí somos tocados e, através da intensidade de nossos afetos, aprendemos que existe um processo vivo de equilíbrio. A esse nível o ego consciente é esmagado pela paixão e por imagens numinosas. E, embora abalados, destruídos mesmo enquanto nos conhecemos, somos reaglutinados numa nova concepção e devolvidos à vida comum (Perera, 1985, p. 24).

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4.3.1. A Força, Arcano n° XI   Une jeune fille mène par la main un féroce dragon par un fil invisible. Le monstre que la jeune fille doit mâter se trouve à l’intérieur d’elle-même. Elle doit conquérir ses propres démons. A travers cette épreuve difficile elle 26 découvrira sa propre force. (Saint-Phalle, 2004, p. 14)

Para começar, examinemos o número 11. Para Chevalier, é o número que interrompe a harmonia da dezena, estragando e desequilibrando a plenitude de seu ciclo. Dá também a ideia de exagero, de excesso, de “algo a mais”, de conflito anunciado, pois é sempre o causador de desordem e ruptura. De outro lado, é o número da rebelião, do que vai reiniciar um novo ciclo vital,

de

renovação.

Ele

teria

um

caráter

profundamente feminino. Algumas tradições africanas vinculam os onze orifícios da mulher com os mistérios da fecundidade. É visto como o símbolo do ocultismo negro. Já comentamos aqui da cor negra como representadora dos mistérios femininos, como as virgens negras, ex. Isis, Cibele, Deméter. O arcano que abre o ciclo da primeira dezena é o Mago. Se observarmos bem esta figura, arcano n° I, a ação acontece em cima da mesa, na parte superior do desenho dizendo que o processo que se inicia acontecerá à luz do dia, tudo está ali à mostra, nada a esconder. É um arcano de inteligência, consciência e estratégia. Na figura da Força n° XI, a ação acontece Figura 12: Arcano A Força XI, Tarô de Marselha, (Jodorowski, 2004)

embaixo, indicando um trabalho em direção às forças inferiores e nem sempre aparentes (instintualidade,

sexualidade, espiritualidade). Não se sabe bem qual é o centro do drama, se é o leão ou a menina. Acreditamos, então, que o centro é a relação. Essa magia acontece dentro de uma conexão muito íntima, sutil, entre a dama e o leão. É a

                                                                                                                        26

Tradução livre: “Uma menina carrega um feroz dragão segurando um fio invisível. O monstro que a menina deve controlar se encontra no interior dela mesma. Ela deve conquistar seus próprios demônios. Através deste difícil desafio ela descobrirá a sua própria força”.

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história de um encontro. As coisas acontecem num lado oculto. A aproximação se faz delicadamente, calmamente, sutilmente, de maneira muito feminina. Esse vaso alquímico contém a audácia (Nichols, 2007) do envolvimento a dois e o contato físico direto: ela manipula, explora, sente o animal com suas próprias mãos nuas. Nessa relação, ela comunica seus afetos, sua atmosfera, sua fé e suas expectativas. Tudo é direcionado na relação com o animal. Essa força trabalhada com as próprias mãos é uma força de criatividade encarnada, de iluminação, de potência eficaz onde tudo está sob controle. Não parece que a menina precisa fazer grandes esforços. É uma força equilibrada. A relação entre os dois arcanos (o Mago, n° I, e a Força, n° XI) mostra que o trabalho da consciência passa antes da relação com as forças instintivas. O ego precisa de uma estrutura antes de enfrentar seus demônios. Inclusive, ambos possuem um chapéu em forma de leminiscata, de infinito, anunciando que os processos são sempre um ir e vir eternos. No chapéu da menina da Força, encontramos motivos lembrando plumas de águia como se a Força estivesse pronta para voar. Jodorowsky (2004) vincula a águia aqui discretamente mencionada com a abertura versus o que está acima, permitindo que esses ensinamentos (que vêm de baixo) se comuniquem com as instâncias espirituais. Podemos, entretanto, observar que a menina está muito bem ancorada num solo amarelado. Jodorowsky interpreta esse amarelo dizendo que a menina está ancorada no prazer e na beleza mais sublime. Inclusive o leão compartilha o mesmo solo anunciando que ambos estão enraizados no mesmo substrato. Enquanto a primeira dezena estava voltada para a adaptação no mundo exterior (sobrevivência, competição, estratégia, ritualização...), esse novo ciclo desta vez é direcionado ao mundo interno, o crescimento interior, a unificação, a questões básicas da natureza instintual dentro de um princípio feminino e do Eros. Esse arcano anuncia uma nova magia que se apresenta tendo assim um papel iniciatório: ele atua como força mediadora entre o ego e as forças mais primitivas do herói. Na figura do tarô de Marselha, encontramos uma mulher mortal, humana, vestida à moda do seu tempo, sem coroa nem um trono, contudo ela não é comum, ela doma um leão com facilidade. Esta mulher aparenta estar na sua segunda metade da vida pela sua maneira de vestir e sua aparente cultura e refinamento

59    

(Nichols, 2007). Felizmente a dama está se mostrando capaz de enfrentar com serenidade seu destino. Jodorowsky (2004), no seu movimento de ampliação, observa elementos contrastantes como as unhas vermelhas tanto dos pés como das mãos da figura feminina, interpretando como sendo a força vital manifesta. Ele relembra que as unhas continuam a crescer mesmo depois da morte. Elas simbolizam assim a força eterna. Ele acredita que tudo indica que estamos falando de uma presença tanto instintual como espiritual, de uma consciência integrada dos pés à cabeça. Como a figura não está inserida em nenhuma paisagem, Jodorowsky acredita que este arcano não se situa nem num tempo nem num espaço: é presença pura e expressão de grande energia. Ele vê, entretanto, alguns sinais sugerindo dificuldades neste processo: o pescoço da menina tem um colar vermelho, indicando para ele algum recalque de energias sexuais ou um sinal de decapitação. A mão da menina com suas unhas vermelho-sangue na boca da fera pode indicar um conflito causando um combate sangrento. E finalmente o laço apertado do espartilho pode indicar um fechamento do coração. Ele fala que poderia ter a ver com um corpo percebido como fragmentado. Se lembrarmos do cãozinho do arcano do Louco, podemos imaginar aqui que o herói não deu a atenção que ele merecia e agora estaria transformado num imenso leão – agora não tem mais jeito, o confronto e a negociação tornaram-se inevitáveis. A boa notícia é que o herói é capaz de dar conta de confrontar-se com sua natureza animal. Nichols fala daqueles terríveis afetos que todos já sentimos que de repente nos engolem. É a nossa natureza tomando poder sobre nossa consciência reclamando o espaço de direito. Mais se damos as costas, o animal se torna mais voraz e exigente. Como ela comenta, numa forma mais suave pode ser a causa doenças psicossomáticas, um estar fora de si momentâneo, uma boa crise de raiva, de inveja... Mas pode ser algo mais grave causando uma ruptura fatal de algum laço forte, um crime passional, ou de uma maneira mais extrema, como uma crise esquizofrênica. Nesse caso, o ego não consegue mais ter a força necessária para existir e o leão é o rei, é quem vai governar agora. Ele esteve tão ignorado que nem leão ele é mais, transformou-se num monstro indomável. Essa é a força dos complexos.

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Quando nosso animal, seja o cachorrinho ou o leão, deseja ocupar outro lugar, a melhor maneira é encará-lo e dar o que ele quer. Inclusive esta força nos é útil, é o que nos conecta com nosso interior, ela enriquece nossa existência e é o que nos diferencia da massa. É uma grande companheira – só que ela não gosta de ficar atrás, ela quer caminhar lado a lado. O ajustamento não pode acontecer de qualquer maneira e não precisa que a experiência seja uma grande catarse, mas é uma experiência de conexão, um assumir seu animal pessoal. É necessário que haja uma conscientização, pois primeiramente o animal precisa existir. Em seguida, temos que encontrar o lugar adequado de cada um. Aniela Jaffé complementa: “o homem primitivo precisa domesticar o animal em si mesmo e fazer dele seu companheiro útil e o homem civilizado precisa curar o animal em si mesmo e tornálo seu amigo” (Jaffé apud Nichols 2007, p. 214 ). A força do leão personifica a autoridade instintual – “o eu quero do eu” (Nichols, 2007, p. 209). O leão é o símbolo do poder energizante, do sol central da psique, o Eu. É a força que vai nos ajudar a renunciar valores morais e religiosos inadequados, materiais, mandatos inúteis, expectativas alheias... É o sangue dourado que corre nas nossas veias, impedindo que sejamos simples bonecos moldáveis que obedecem estupidamente os outros. Ele nos ajuda a realizar nossas energias inconscientes nos dando liberdade de ação e mais autoconfiança. Faz-nos mais conscientes dando o combustível para um nascer em nós mesmos a partir do que somos. Abrimo-nos assim a uma nova consciência, mais profunda, mais íntima e menos incômoda. Nos contos de fadas, a bela acaba se casando com a fera ou a princesa beijando o sapo. É o que Nichols (2007) chama de verdade poética: quando a consciência humana aceita sua natureza primitiva, isto é, o poder autônomo do instinto. Nesse momento, ocorre a liberação e a transformação da força instintual. Por sinal, nesses contos, o personagem é sempre uma princesa perdida ou adormecida, ou mesmo indecisa, ou uma menina inocente, enfim, é um caminho de ânima, é um despertar a partir de um poder vindo do elemento feminino. Sempre acaba em finais felizes porque a menina acaba aceitando a sua natureza bestial, e ressurge casada com seu animal domesticado e transformado. Observamos, então, que, nos contos, o poder animal nunca age com uma selvageria desenfreada e

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histérica. Mas o encontro com o animal pessoal ocorre normalmente com certa simetria como na figura acima. Todavia um receio ou medo real desta força é natural. É o que Jung chama de medo do inconsciente. É um medo muito incômodo, como fala Jung: “[...] não somente impede o autoconhecimento, mas é também o mais grave obstáculo à compreensão e conhecimento da psicologia” (Jung apud Nichols, p. 206). Todavia é muito revigorante se conseguirmos aceitar esse destino e o enfrentamento com êxito. Inevitavelmente vai haver um rompimento momentâneo com as forças do ego. Mas vêm à tona conteúdos e horizontes novos. Esse encontro é forte porque é portador da força do arquétipo. Como qualquer encontro com tal teor, ele exige uma habilidade para usar o poder criativo da força arquetípica de forma consciente de correr riscos e sem ser engolido por ela. É uma verdadeira arte. Freud chamou a atenção à força do instinto sexual e Jung ao fato de que a iluminação é também instintiva e contém um grande poder que pode ser igualmente perigoso. São instintos que possuem uma força poderosa, arquetípica e primitiva. Uma vez contaminados por eles, uma mudança na maneira de viver, de pensar, de agir é iminente. É necessário reestruturar a vida, rupturas serão necessárias. Seremos diferentes e a arte é também encontrar um meio de lidar com as frustrações que vão se suceder, inclusive na questão social, pode não ser fácil. Picasso, na sua série de minotauros, pintou algumas meninas dominando o feroz minotauro, conforme as imagens:

                   

 

Figura 13: La Monotauromanchie, 1934, Museu Picasso Paris

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    Figura 14: Le Minotaure Aveuglé conduit par Marie Thérèse aux pigeons dans une nuit étoilée, Museu Picasso Paris                  

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4.3.2. A Força segundo Niki de Saint-Phalle  

A escultura da Força de Niki de Saint-Phalle é monumental. É uma menina vestida de branco com aparente segurança dominando um imenso dragão verde. Sua face está pintada de marrom, fazendo referência às virgens negras. Sabemos que nossa artista é sensível a esse tema porque encontramos no parque outras referências a essa virgem, como na Imperatriz. Essa menina está vestida assim para indicar pureza ou será que estamos falando de uma roupa de casamento? Um matrimônio sagrado: eu comigo mesma. Uma heroína que conseguiu unir seu ego com seu inconsciente. Seus universos estão doravante unificados. Eles conquistaram uma relação de boa comunicação, de troca entre eles e se tornaram um. Sua força interna criada a partir desse matrimônio é suficiente para criar esse fio invisível e manter o feroz dragão completamente à mercê da virgem. Doravante o dragão está cara a cara com ela, nada a esconder, sem necessidade de fugas, um existe para o outro na claridade do dia. No enunciado do arcano de Niki de Saint-Phalle, ela não esconde que o monstro faz parte dela e que o caminho foi duro. Hulten fala que ela teria feito

Figura 15: Vista da Escultura A Força de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana

um “pacto com as forças obscuras” (Hulten, 1999, p. 14), pois ela nunca desconsiderou ou tentou esmagar as forças negativas tanto fora como dentro dela. Mas, sobretudo, ela buscou uma persuasão, uma negociação. Ela lhes manteve sempre presente e mostrou um aparente prazer em estar reconciliando as partes dando a cada um seu lugar devido. Por exemplo, em sua relação ao feminino, Hulten (1999) compara às deusas arcaicas a sua maneira de criar beleza. As deusas arcaicas não são completamente boazinhas, meigas, aceitando com facilidade papéis de submissão masculina como as imagens cristãs depois que o mundo aceitou o patriarcalismo. As deusas, à imagem da Grande Mãe, dão e nutrem a vida com generosidade, mas a tolhem sem pena, elas reinam na vida e na morte ao 64    

mesmo tempo. Elas têm caráter, são filhas de trovões, de tempestades marítimas, são guerreiras, amazonas, e tantas outras mil faces. O que mais importa são a expressão dos potenciais e o equilíbrio da vida como um todo. E todos nós sabemos que não tem algo mais frágil que o equilíbrio. O que seria da noite sem o dia, do sol sem suas explosões monumentais e da lua sem suas fases? A vida sem a morte? A luz sem as trevas? É nesse sentido que Hultem fala da beleza, na expressão real e arquetípica. Ele comenta que Niki mantém o feminino no seu lugar, nunca se deixando invadir pelo masculino inibidor quando ela se mantém fiel ao seu anticonformismo, se tranformando inclusive em exemplo no movimento feminista do seu tempo. Sua obra essencialmente intuitiva nunca se deixou influenciar por uma escola ou uma convenção. Hulten fala que ela não precisou se apoiar em nenhum saber. Ela foi o que foi, seguiu o que sua vivência arquetípica lhe impôs, foi o que importava. É a verdadeira liberdade. Retomamos um pouco da jornada artística da nossa grande mulher: após suas primeiras obras de tom naïf, inocente, onde ela expressava todo um universo onírico, urobórico e inconsciente, ela entrou num período obscuro com suas assemblagens, os Tiros e os altares. As assemblagens eram uma forma de exorcizar o meio burguês em que foi criada e suas dores buscando pedaços que queriam novos sentidos. Existia um movimento de recolar, rejuntar, adotando o movimento dos novos realistas, que se preocupava em dar uma nova forma ao lixo, encontrando novas significações ao que “não servia mais” na sociedade que adotava radicalmente o consumismo como a maior sua forma de expressão. Os Tiros foram um canto de louvor à expressão livre, mas também uma reação à violência interna e à situação política da época.

Em seguida, nos seus altares

carregados de morcegos, ratos, de objetos cortantes e armas, ela exorcizava a sua educação religiosa e moralista. Ela sempre procurava expressar o que acontecia dentro e fora dela. Hulten comenta que ela não quis defender sua liberdade por meios agressivos, pois prezava a comunicação inocente da sua mensagem, e assim escolheu se expressar pela arte. Apesar de tanta violência na sua história, ela sempre buscava a pureza, a inocência e a leveza alegre. 65    

Entre os anos 1962 e 1964 ela estava no seu período branco quando ela criou a série das “Mariées” (as noivas). Foram esculturas brancas feitas de grelhas de ferro, cobertas de tecidos e objetos diversos colados, realizadas de diversas formas e segurando um buquê feito de pedaços de bonecas, aranhas... (os monstros e pedaços ainda estavam presentes, mas já tinham uma forma, e estavam presentes, não negados, ainda mais honrados como buquê da noiva), elas estavam partindo, sentadas num cavalo... Passaram inclusive a fabricá-las em brinquedos de plástico e foram comercializadas até em supermercados. A partir desse movimento, aos poucos ela introduz as cores que vão se afirmando na mais profunda variedade e exuberância, produzindo uma ode à vida e ao bom humor. Nunca mais ela

retornou.

espetáculo

colorido

Esse foi

explorado até o fim. Utilizando

uma

linguagem alquímica27, ela passou por um momento nigredo, relativo à cor preta: encarando, Figura 16: Vista panorâmica da escultura A Força de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana

vivenciando,

encarnando sua sombra, seu imenso

dragão

verde.

Apresentando-se como uma terrorista da arte, ela atira, explode, lança sua violência ao fogo purgador da calcinatio. Jung fala que são processos difíceis, perigosos, repletos de obstáculos e que produzem sofrimento. Em seguida, ela passou pela fase albedo. É o branco purificado no fogo da calcinatio, em que o matrimônio sagrado é anunciado pelas suas noivas, convidando a cauda pavonis a injetar sangue trazendo muitas cores e levando à luz de um novo nascimento, o movimento rubedo, que por sua vez tem à ver com a cor                                                                                                                         27

Jung (apud Edinger, 2006, p. 165) fala que a alquimia é uma projeção do drama “ao mesmo tempo cósmico e espiritual em termos de laboratório”, através do que os alquimistas chamavam de opus magnum. Trata-se da operação que tem como objetivo final o “resgate da alma humana e a salvação do cosmos”. Ou seja, uma porjeção na matéria do drama da vida.  

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vermelha. Prontamente, o dragão deixou de ter sua existência autônoma, passando a ser seu parceiro de jornada. Ela nasceu para ela mesma e o mundo se enriqueceu de todo tipo de cor, pois o sangue da nova vida, ou da unidade psíquica voltou a correr nas suas veias (Jung, apud Edinger, p. 165), a opus estava, então, concluída. Ainda restava uma questão: como ela conseguiu realizar essas obras tão grandiosas com este físico tão debilitado (pulmão queimado por emanações químicas das esculturas, o hipertiroidismo que quase a matou, a artrose, as crises de depressão, a neurose...)? Sem contar as condições precárias em que ela vivia em certos momentos, por exemplo, na época em que morava na Imperatriz, onde ela falava que passou, frio, calor, sofria inúmeras mordidas de insetos...

Onde

encontrou a força para estar longe dos próprios filhos e assumir a relação complicada com seu segundo marido? Onde ela encontrou a força necessária para realizar sua obra apesar de tudo? Acho que a resposta está no seu complexo artístico. Como vimos acima, foi o que manteve as portas da sua vida profunda abertas à expressão e foi essa força que agiu com prioridade. Ela confiou à arte a tarefa de manter essa força atuante e domada a partir do dinamismo da vivência simbólica, que é a portadora da força dos arquétipos. A arte foi, portanto, o fio invisível que manteve a opus operante, o movimento que mantinha sob controle com uma força sutil, porém potente, o grande dragão verde. A arte, a grande responsável pela salvação da vida. Agora eu entendo sua frase: “ A Arte me Curou!”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS  

A compreensão do conceito de complexo criativo da psicologia analítica me abriu as portas para resolver a questão da cura pela arte. Essa tendência de experenciar a vida simbólica, a vivência, os símbolos arquetipais mais intensamente de quem não sofre dessa espécie de “mal”. Eu disse ironicamente mal, porque, como vimos, é um percurso heróico, doloroso, com ele se adoece, se enfraquece, implica separações e rupturas importantes... Mas, por outro lado, tem o poder da cura. O símbolo tem o poder de integrar os opostos, de tornar perceptivos os arquétipos, tem uma função pedagógica e terapêutica. Também tem o poder de transformar a energia psíquica relaxando tensões (Tomasi, 2005). Jung comenta que o encontro do eu (consciente) com os símbolos (do inconsciente) é apropriado “para dissolver os bloqueios e estagnações da energia psíquica e, pondo-a em movimento, transformá-los” (Jung apud Tomasi, 2005, p.162). Como já dito acima, o arquétipo é carregado de energia. A pessoa que sofre do complexo artístico se banha da grande energia arquetípica constantemente, sobretudo se ela dá vasão iniciando-se em alguma linguagem artística, criando e concretizando sua experiência na produção. Esse é o ato que vai participar do seu processo de individuação e iluminar o resto do mundo, pois, como vimos antes, a pessoa se torna mensageira de conteúdos do inconsciente coletivo. Com este estudo percebemos a diferença entre doença mental e produção artística. O artista pode viver com problemas no seu cotidiano, são apenas fraquezas em consequência do seu direcionamento de energia que está principalmente voltado à criatividade. Por outro lado, a energia de uma pessoa doente estaria voltada à doença, a pessoa não tem espaço para a criação. Isso não impede que uma pessoa mentalmente enferma possua um complexo artístico. Quando não estiver surtando, ela vai criar e isso vai trazer um impacto na sua recuperação, sem dúvidas. A nossa heroína era portadora de um imenso complexo artístico que lhe salvava a vida constantemente, mas também a colocava em perigo. Algo muito profundo a protegia. Acredito que as portas abertas ao Grande Self Unificador lhe 68    

serviu de anjo da guarda em certos momentos. Ela acabava atraindo situações que a arrancavam do perigo e acabava se renovando continuamente. É impressionante ver como a arte pode ser portadora das essências, protetora das verdades, integradora, reveladora, estimuladora de maior conexão com as mensagens mais profundas, acolhedora e profética. Inclusive a Grande Arte pode influenciar toda uma sociedade humana. Ousamos assim dizer que o artista, além de curar suas próprias feridas com sua arte, pode provocar uma cura coletiva.

     

 

Figura 17 La Mariée ou Eva Maria, 1963. Grilha de Ferro, Gesso, Rendas, Brinquedos diversos pintados. Centre Pompidou, Paris

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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WHITMONT, E. C. A Busca do Símbolo, Conceitos Básicos de Psicologia Analítica. São Paulo: Cultrix, 1969.

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ILUSTRAÇÕES

Figura 1: No Hospital, (de Saint Phalle, 2006) .......................................................... 15 Figura 2: Os 22 Arcanos do Tarô de Marselha.......................................................... 33 Figura 3: Vista do Jardim do Tarô de Niki de Saint Phalle, fonte: http://www.nikidesaintphalle.com, consultado no dia 04/01/2014 ............................. 37 Figura 4: Lobo Ômega (de baixo), fonte: http://www.gayanature.com/le-loup-omegaa104100864 (consultado no dia 4/01/2014) .............................................................. 41 Figura 5: Arcano O Louco, Tarô de Marseille, Jodorowski (2004) ............................ 41 Figura 6: A carta do Arcano do Louco no Tarô de Marselha ..................................... 41 Figura 7: Escultura do Louco de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana .. 46 Figura 8: Arcano A Morte do Tarô de Marselha, (Jodorowski, 2004) ........................ 49 Figura 9: Antes da ressurreição do rei e da rainha, museu Hermético (Roob, 2011) ................................................................................................................................... 50 Figura 10: A Morte da Escultura de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana ................................................................................................................................... 54 Figura 11: Morte do Rei, Museu Hermético (Roob, 2011) ......................................... 56 Figura 12: Arcano A Força XI, Tarô de Marselha, (Jodorowski, 2004)...................... 58 Figura 13: La Monotauromanchie, 1934, Museu Picasso Paris ................................ 62 Figura 14: Le Minotaure Aveuglé conduit par Marie Thérèse aux pigeons dans une nuit étoilée, Museu Picasso Paris .............................................................................. 63 Figura 15: Vista da Escultura A Força de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana ..................................................................................................................... 64 Figura 16: Vista panorâmica da escultura A Força de Niki de Saint Phalle, Jardim dos Tarôs, Toscana ................................................................................................... 66 Figura 17 La Mariée ou Eva Maria, 1963. Grilha de Ferro, Gesso, Rendas, Brinquedos diversos pintados. Centre Pompidou, Paris ........................................... 69

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