Monografia: A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE E O FILME-DOCUMENTÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE

July 4, 2017 | Autor: Renato Maia | Categoria: Sociología, Antropología Visual, Documentário
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

RENATO MAIA

A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE E O FILME-DOCUMENTÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE

(UM ESTUDO DOS FILMES: O ABORTO DOS OUTROS, UM PASSAPORTE HUNGÁRO E A PESSOA É PARA O QUE NASCE)

NATAL / RN 2008

RENATO MAIA

A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE E O FILME-DOCUMENTÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE (UM ESTUDO DOS FILMES: O ABORTO DOS OUTROS, UM PASSAPORTE HUNGÁRO E A PESSOA É PARA O QUE NASCE)

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Orientador: prof. Dr. Alexsandro Galeno

Natal / 2008 2

RENATO MAIA

A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE E O FILME-DOCUMENTÁRIO NA PÓS-MODERNIDADE (UM ESTUDO DOS FILMES: O ABORTO DOS OUTROS, UM PASSAPORTE HUNGÁRO E A PESSOA É PARA O QUE NASCE)

Monografia apresentada ao Curso de Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Ciências Sociais.

Apresentada em: ____/____/____.

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________ Prof. Dr. Alexsandro Galeno Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Orientador

______________________________________ Prof. Dra. Josimey Costa Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Examinadora

_______________________________________ Prof. Dra. Ana Laudelina Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Examinadora

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“Dedico ao meu pai Arione Maia (in memorian)”. 4

AGRADECIMENTOS Nunca acreditei nos “agradecimentos no papel” como demonstração de reconhecimento de ajuda, carinho e/ou atenção recebida. A reciprocidade se dá na forma de relacionamento cotidiano. Contudo, me sinto seduzido a escrever (e demonstrar para todos/as) alguns nomes que durante esses quatro anos do curso me fizeram perceber a realidade com outros olhos e o quanto pode ser plural as formas de conhecimento. Professores: Alex Galeno, Alípio de Souza Filho, Willington Germano, Gabriel Vitullo, Ceiça Almeida, Luciana Chianca, Edmundo Pereira e Carlos Guilherme. Colegas que me acompanharam com maior proximidade durante esse período: Celso (quase um filho e amigo foucaultiano), Fabíola, Pâmela, Bruno César, Raoni, Thaís, Paulo Ricardo, Caio e toda turma 2005. Não menos importante: Wagner Unuigo, Vantiê, Michele, Jennifer, Friedrich Lucas, Geovani & Trupe, Andressa, Bruno Tool, Paulo Emílio, Mariana Morena, os dois Danilo, Emília Maux, prof. Cortez e todos da OTE. As produtoras: Olhos de cão, TvZero e Gasolina Filmes. Família: meus irmãos e irmãs; todos os sobrinhos e “sombrinhas” (pessoas lindas e que oferecem proteção nas situações tempestuosas); João e Til; Mônica, Josélia e toda galera de JP. Em especial algumas pessoas que sinto quase como extensões de mim mesmo: Idalina, Cira, Igor e Lilith.

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RESUMO Trata-se de um trabalho a respeito do filme-documentário na atualidade e as implicações que tal temática suscita: a possibilidade ou não de documentar a realidade tal qual ela se evidência, a realidade construída socialmente (BERGER & LUCKMAN, 1985) e que na pós-modernidade exalta um mundo gerido por imagens (MAFFESOLI, 1995). A pesquisa busca compreender tais questões e realizar um estudo do filme-documentário desde o surgimento do cinema até a produção do documentário em contexto de pós-modernidade (DA-RIN, 2008). Nesse sentido, serão analisados os documentários brasileiros: “O aborto dos outros”, “Um passaporte húngaro” e “A pessoa é para o que nasce”.

PALAVRAS-CHAVE: Filme-documentário, cinema, realidade, pós-modernidade, sociologia do cotidiano.

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ABSTRACT This study concerns contemporary documentary film-making and the implications that this subject brings: the possibility or not of documenting reality such that it becomes evident that reality is a socially constructed (BERGER &LUCKMAN, 1985) and that in post-modernity a world generated by images is exalted (MAFFESOLI, 1995). This study seeks to understand such questions and realize a study on documentary film from the beginnings of movie making to the production of documentary in the context of

postmodernity

(D-RIN,2008).

For

this

purpose,

the

following

Brazilian

documentaries will be analyzed: "O aborto dos outros", "Um Passaporte Húngaro", "A pessoa é para o que nasce".

Keywords: Documentary film, cinema, reality, postmodernity, sociologia of daily life.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES Ilustração 01 – John Grierson, considerado como primeiro cineasta a teorizar sobre o documentário. Fonte: www.everyoneweb.es/.../grierson_front.jpg........................23 Ilustração 02 – Jean Rouch, Marcelline Louridan e Edgar Morin, durante filmagem de “Crônica de um verão” em 1960. Pioneiros do cinema-direto. Fonte: Jornal O Globo, edição online: www.oglobo.globo.com/blogs/arquivos .................................24 Ilustração 03 – Cena de depoimento de adolescente vítima de estupro no filme O aborto dos Outros. Fonte: Jornal O Estado de São Paulo, edição online: www.estadao.com.br.................................................................................................28 Ilustração 04 – Cena de aborto provocado na sala de cirurgia no filme O aborto dos Outros. Fonte: Revista online Almanaque Virtual: http://almanaquevirtual.uol.com.br/ler.php?id=13071..............................................29 Ilustração 05 – Cena inicial do filme Um passaporte húngaro. Fonte: divulgação: www.republicapureza.com.br ..................................................................................32 Ilustração 06 – Ilustração 06: Diálogo com a avó em Um passaporte húngaro. Fonte: divulgação: www.republicapureza.com.br.....................................................33 Ilustração 07 – Início do filme A pessoa é para o que nasce com identificação das personagens. Fonte: divulgação: www.apessoa.com.br...........................................34 Ilustração 08 – Apresentação no Festival PercPan em Salvador/BA, com Gilberto Gil.. Fonte: divulgação: www.apessoa.com.br..........................................................35 Ilustração 09 – As três irmãs na cena considerada polêmica do filme. Fonte: divulgação: www.apessoa.com.br............................................................................37

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SUMÁRIO

01. Introdução...........................................................................................................10 02. A construção da realidade pós-moderna.........................................................12 02.1 A realidade como uma construção.................................................................12 02.2 Pós-modernidade...........................................................................................15 02.3 A realidade na pós-modernidade...................................................................18 03. A realidade do documentário............................................................................20 03.1 Conceituação e história do filme-documentário.............................................20 03.2 Cinema moderno: o documentário sociológico..............................................24 03.3 O documentário na pós-modernidade: exemplos na produção nacional.......26 03.3.1 O aborto dos outros.............................................................................27 03.3.2 Um passaporte húngaro......................................................................31 03.3.3 A pessoa é para o que nasce..............................................................34 04. Considerações finais.........................................................................................38 05. Referência Bibliográfica....................................................................................40 06. Referência Cinematográfica..............................................................................42

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01. INTRODUÇÃO Nunca dexe de fazê o que ocê gosta e nunca dexe de sê como ocê é Chico Arcanjo

A frase que introduz como epígrafe este trabalho foi dita por um velho de um sítio no interior da Paraíba a um menino de sete anos. O garoto estava triste porque seu pai havia reclamado por ele ter feito um trabalho que não era pra idade dele e nem era digno dele fazer. O menino estava inconsolável porque tinha feito o trabalho onde acreditava está ajudando ao velho e não conseguia conceber porque seu pai achava isso degradante. A tarefa era algo como tirar o estrume de um curral em época de inverno, mas isso pouco importa. O que valeu mesmo foi o conselho/consolo sincero e que ficou como princípio arraigado nesse garoto por toda a vida. Não, isso não é um conto. É a monografia de quem escutou o conselho/consolo do velho e seguiu adiante. Esse menino do “mato” que veio morar em Natal e começou a trabalhar aos dezessete anos como operador de vídeo-tape em uma empresa de televisão. Esse garoto que logo passou a operar uma câmera de vídeo e se apaixonou definitivamente pela construção de imagens. Trabalhou mais de quinze anos nessa profissão, mas mantendo a postura tranqüila de quem veio do campo e, talvez por isso, não procurava se aprofundar nas questões técnicas e teóricas do que fazia. O que importava era a paixão pela criação da imagem e tudo saia como sai quando feito por um amante: com cuidado, criatividade, atenção e de forma espontânea apesar da insensibilidade e truculência existente em tal setor. Depois de um tempo senti a necessidade de apresentar a paixão do amante ao conhecer científico como forma de dar cria a novas possibilidades de atuação nessa área. Agora, depois de quatro anos estudando, estou concluindo um trabalho monográfico onde foi estudado o filme-documentário dentro de uma perspectiva sociológica. O aprendizado foi tamanho e acredito que tenha sido assim por ter conseguido me manter tal como sou e fazendo o que gosto. A paixão pela imagem casou com a paixão pelo entendimento do humano, do social, da sociologia. O desejo agora é que a simplicidade herdada da infância no campo misturada com o arrogante (e prazeroso) saber produzido na academia 10

consiga ser traduzido em um escrito compreensível, coerente e que produza frutos, além do que já tenho colhido. O interesse da pesquisa é justamente compreender como o filmedocumentário se relaciona com a realidade dentro do contexto da pós-modernidade onde o ritmo de vida é rápido, fluído, fragmentado, efêmero, onde a noção de verdade (grande ênfase do documentário desde o seu nascimento) é relativizada. Em uma época onde os padrões são questionados se evidencia a importância de compreender como se situa a forma de produzir filmes com ênfase na realidade. Até que ponto o documentário atual, com aspectos antropológicos e sociológicos, condiz com o modelo, caracterizado por Jean-Claude Bernadet (2003), de documentário sociológico na modernidade. Nesse sentido a hipótese que se apresenta é a de que o documentário didático, pretensamente sociológico e conduzido pela “voz do saber”, tem sido substituído por uma nova forma de realização condizente com as transformações sociais e dentro de uma concepção que os caracterizam como documentários pósmodernos. Nesse novo formato a realidade também é construída na maneira de fazer o filme e não apresentada como um registro fiel do que está sendo filmado. Para discutir a construção da realidade como um fator cultural e social será utilizada a discussão iniciada por Peter Berger e Thomas Luckmann que faz uma aprofundada discussão teórica a respeito dessa questão. Com relação à pós-modernidade e a realidade pós-moderna as teorias do sociólogo Michel Maffesoli nortearão a discussão. A ênfase será dada na formação do “mundo imaginal” onde o fantástico e a ficção também fazem parte da constituição da realidade (MAFFESOLI, 2005). A segunda parte deste trabalho é direcionada ao filme-documentário desde o seu surgimento até a atualidade. Também serão analisados três recentes documentários produzidos no Brasil (O aborto dos outros, Um passaporte húngaro e A pessoa é para o que nasce), com temáticas distintas e formas de condução também diferenciadas. O objetivo é compreender como os filmes-documentários lidam com a apreensão da realidade (e se isso é possível) dentro do contexto de pós-modernidade.

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02. A CONSTRUÇÃO DA REALIDADE PÓS-MODERNA

A realidade é apenas humana, e apenas parcialmente real. Edgar Morin

Existe uma tendência tanto para quem trabalha com o filme-documentário quanto para os pesquisadores das ciências sociais de tratar a realidade como dada e, como afirmam Berger e Luckmann (1985, p. 36), há uma prática de “tomar dados os fenômenos particulares que surgem dentro dela, sem maiores indagações sobre os fundamentos dessa realidade”. Contudo, pesquisar e elaborar um trabalho sobre a realidade sem buscar um fundamento de como se constitui o real é percorrer caminhos que podem tornar a pesquisa sem uma maior profundidade, correndo riscos de não ir além das pré-noções do senso-comum1. Por outro lado, existe o risco da precipitação em uma definição parcial, determinista ou mutilada. Edgar Morin afirma com grande coerência que “pensar o real é a aventura mais difícil de todas. É navegar entre mutilação e confusão, entre esclerose e desvio, entre racionalização e irracionalidade, e contra razão/loucura” (1986, p. 88). A questão se torna mais complexa quando se leva em consideração a contemporaneidade e a realidade do estilo pós-moderno. No entanto, antes de abordar tal questão, é importante discutir a respeito de como a realidade cotidiana é construída e se consolida como a realidade dominante.

02.1 A realidade como uma construção O conceito de realidade é complexo exatamente por parecer óbvio demais, por “está aí”, é nossa vida, nosso mundo e não conseguimos pensar e definir de imediato o que acreditamos por realidade. João-Francisco Duarte Junior alerta para o quanto é fundamental compreender “que a realidade não é algo dado, que está aí se oferecendo aos olhos humanos, olhos que simplesmente registram feito um espelho ou câmera fotográfica. O homem não é um ser passivo que apenas grava aquilo que se apresenta aos seus sentidos. Pelo contrário: o 1

A respeito da necessidade de ruptura com as pré-noções do senso comum, ver DURKHEIM,1979. Sobre uma discussão contemporânea e para ir além do que Bourdieu chama de “sociologia espontânea” consultar: BOURDIEU, CHAMBOREDON e PASSERON, 2004.

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homem é o construtor do mundo, o edificador da realidade. Esta é construída, forjada no encontro incessante entre os sujeitos humanos e o mundo em que vivem” (DUARTE JUNIOR, 1991, p. 12)

A realidade se apresenta de forma múltipla em várias esferas e é essa percepção de multiplicidade que faz João-Francisco afirmar que “talvez não devêssemos falar de realidade, e sim de realidades, no plural. O mundo se apresenta com uma nova face cada vez que mudamos a nossa perspectiva sobre ele. Conforme a nossa intenção ele se revela de um jeito” (1991, p. 11).

A realidade pode ser compreendida de forma subjetiva para cada indivíduo. Um mesmo objeto, uma mesma situação pode ter significado diverso para cada pessoa. Duarte Junior (1991, p. 9) exemplifica com a ilustração de um quadro a óleo onde “se vê uma paisagem composta por algumas plantas em primeiro plano, uma árvore florida cercada por um gramado em segundo plano e tendo ao fundo o horizonte tisnado aqui a ali por fiapos de nuvens esgarçadas”. As nuvens e as plantas são uma pintura, não são reais. A pintura foi inspirada em um jardim que é real e o quadro se torna uma representação deste real. No entanto o autor salienta para outro nível de realidade que se apresenta: “o quadro (...) é composto de tintas, tela e madeiras, elementos que podem ser trabalhados de diversas maneiras, criando-se uma realidade pictória ou não. Em outras palavras: existe uma realidade do quadro que capto com a minha sensibilidade e emoção, e outra captada de maneira mais ‘física’” (idem, ibdem).

A percepção sobre o quadro também pode variar de acordo com quem o observa. “O quadro para o espectador é diferente do quadro para o carregador de mobílias, e diferente ainda para o cientista que o submete ao raio X e a outros processos. (...) Diferentes maneiras de se apreender o mesmo objeto: em cada uma delas o quadro possui uma realidade diversa” (1991, p. 10).

A mesma percepção que nos faz compreender a realidade também contém, como nos alerta Morin (1986), um componente alucinatório. Em diversas situações acreditamos que estamos vendo algo e quando verificamos com mais atenção percebemos tratar-se de outra situação e não daquela que se aparentava em primeiro momento. O autor afirma que “devemos desconfiar, na nossa percepção, não somente daquilo que nos parece absurdo, mas também do que parece evidente, porque lógico e racional” (p. 25), mas a realidade não é construída apenas de 13

subjetividade dependendo da percepção e da forma e nível de conhecimento de cada indivíduo. No livro “A construção social da realidade” (1994) Peter Berger e Thomas Luckmann esclarecem que “entre as múltiplas realidades há uma que se apresenta como sendo a realidade por excelência. É a realidade da vida cotidiana. Sua posição privilegiada autoriza a dar-lhe a designação de realidade predominante. A tensão da consciência chega ao máximo na vida cotidiana, isto é, esta última impõe-se à consciência de maneira mais maciça, urgente e intensa. É impossível ignorar e mesmo é difícil diminuir sua presença imperiosa. Conseqüentemente, força-me a ser atento a ela de maneira mais completa. Experimento a vida cotidiana no estado de total vigília. Este estado de total vigília de existir na realidade da vida cotidiana e de apreendê-la é considerado por mim normal e evidente, isto é, constitui minha atitude natural” (1994, p. 38).

Essa realidade dominante é formada pela minha forma como vejo e vivencio o real mais à forma como as outras pessoas também o vivenciam. Existe uma intersubjetividade que faz as pessoas estarem em contínua interação e comunicação com as outras. A realidade cotidiana tende sempre a prevalecer diante de outras formas e concepções de realidade, pois “comparadas à realidade da vida cotidiana, as outras realidades aparecem como campos finitos de significação, enclaves dentro da realidade dominante marcada por significados e modos de experiência delimitados. A realidade dominante envolve-as por todos os lados, por assim dizer, e a consciência sempre retorna à realidade dominante como se voltasse de uma excursão”. (1994, p. 42)

A realidade é construída socialmente, culturalmente e historicamente através da linguagem. Peter Berger e Thomas Luckmann afirmam que “a realidade da vida cotidiana aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram designados como objetos antes de minha entrada em cena. A linguagem usada na vida cotidiana fornece-me continuamente as necessárias objetivações e determina a ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha significado para mim. (...) Desta maneira a linguagem marca as coordenadas de minha vida na sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação”. (1994, p. 38).

Os referidos autores ainda enaltecem que “a vida cotidiana é sobretudo a vida com a linguagem, e por meio dela, de que participo com meus semelhantes. A compreensão da linguagem é por isso essencial para minha compreensão da realidade da vida cotidiana” (1994, p. 57).

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Não é passível de esquecimento a influência da ideologia na construção do real. Morin afirma que “uma ideologia, mesmo aberrante, constitui uma dimensão da realidade enquanto for considerada verdadeira por uma coletividade humana e principalmente quando se torna a ideologia de um Estado” (1986, p. 74),

Contudo, é a linguagem2 (mesmo podendo ser produzida com forte carga ideológica) que dá sentindo as relações sociais provocando a interatividade a partir da compreensão dos signos produzidos e reproduzidos pela sociedade. Assim, o homem constrói a realidade e a si próprio. É importante analisar então como a realidade dominante se caracteriza na atualidade onde a profusão de signos se dissemina de forma ilimitada e são renovados a cada instante; onde as linguagens mais diversas se difundem (e se fundem) globalmente; onde o efêmero, o transitório e a fragmentação são características das relações sociais. Para entender tal questão é necessário discutir a respeito do que alguns autores chamam de “pós-modernidade”3.

02.2 Pós-modernidade A publicação do primeiro livro difundindo amplamente o pós-moderno já está completando trinta anos4 e o que é a pós-modernidade ainda hoje continua sujeito a dúvidas, ambigüidades e contestações. Não há intenção, neste trabalho, de aprofundamento na polêmica que envolve o termo ou definir as diversas teorias a respeito. O pós-moderno desse trabalho também não se refere a um modo de

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Não é essencial para este trabalho um maior aprofundamento na questão da linguagem. Para aprofundar-se no assunto consultar: BARTHES, 1987.

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As aspas são justificáveis porque tal termo é polêmico e poderia ser substituído por outros, tais como: modernidade líquida (BAUMAN, 2001), hiper-modernidade (LIPOVETSKY, 2004), sociedade do simulacro / hiper-realidade (BAUDRILLARD, 1991), super-modernidade (AUGÉ, 1994), etc., dependendo da concepção de cada autor na definição do ritmo de vida na contemporaneidade. 4

O livro “La Condition Postmoderne” de Jean-François Lyotard foi lançado em Paris em 1979.

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relações econômicas e políticas características de um “capitalismo tardio5”. O pósmoderno aqui enfatizado está próximo do aspecto anunciado por Lyotard (1988) de uma condição que se reflete na incredibilidade nas metanarrativas (marxismo, capitalismo, psicanálise, cristianismo, etc.), por outro lado vai além da vinculação conceitual limitada à questão estético-cultural apontada por tal autor. Nesse sentido, a abordagem é direcionada em torno de um movimento, de um estilo que tem se caracterizado dentro da sociedade ocidental com alguns pontos principais que o fundamentam e que se propagam por grande parte da sociedade contribuindo diretamente para a construção de novas dinâmicas e percepções da realidade. O crítico literário Mike Featherstone elenca, no livro “Desmanche da cultura” (1997), alguns desses pontos: “Primeiramente é um movimento que se afasta das ambições universalísticas das narrativas mestras, em que a ênfase se aplica à totalidade, ao sistema e à unidade, e caminha em direção a uma ênfase no conhecimento local, na fragmentação, no sincretismo, na “alteridade” e na “diferença”. Em segundo lugar, é a dissolução das hierarquias simbólicas que acarretam julgamentos canônicos de gosto e de valor, indo em direção ao colapso populista da distinção entre a alta cultura e a cultura popular. Em terceiro lugar é uma tendência à estetização da vida cotidiana, que foi impulsionada pelos esforços, no âmbito da arte, a fim de diluir as fronteiras entre a arte e a vida (arte pop, dadaísmo, surrealismo, etc.) e o movimento em direção a uma cultura de consumo simuladora, na qual o véu das imagens, reduplicado de maneira alucinatória e interminável, apaga a distinção entre a aparência e a realidade. Em quarto lugar, é uma descentralização do sujeito, cujo senso de unidade e cuja continuidade biográfica dão lugar à fragmentação e a um jogo superficial com imagens, sensações e ‘intensidades multifrênicas'”6. (p. 69).

Em conferência na cidade de Salvador, Michel Maffesoli expos de forma mais sintetizadas as diferenças entre modernidade e pós-modernidade. O professor André Lemos resumiu as diferenças apontadas por Maffesoli da seguinte forma: 5

Para uma análise da pós-modernidade com uma elaboração teórica nesse sentido pesquisar autores ligados à revista marxista “new left review” como: Perry Anderson, Robin Blackburn, Franco Moretti entre outros. Mais informações no site da revista: http://www.newleftreview.org ou consultar JAMESON (1997). 6

Sobre o conceito de “multifrênia” Featherstone (1997) afirma que “refere-se a uma ruptura do senso de identidade do indivíduo, por meio do bombardeamento de signos e imagens fragmentadas, que corroem todo o senso de continuidade entre o passado, o presente e o futuro, toda a crença teleológica de que a vida é um projeto com um significado”.

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“O sociólogo define três características representativas da modernidade7. A primeira, a uniformização, pode ser simbolizada pela ‘cifra 1’, que representa a perspectiva monoteísta própria da civilização ocidental judaico-cristã. (...) A segunda característica é a racionalização da existência, sobretudo no plano do sagrado, donde emerge a teologia. Para Maffesoli, a partir de então, tudo está submetido à razão e tudo deve ‘dar uma razão’. Essa lógica da modernidade provoca muitos problemas ao espírito. Por fim, como terceira característica, temos a concepção teleológica de mundo. Uma abstração do mundo real numa sociedade perfeita, que pode estar situada nas idéias de céu e futuro, o que resulta numa esquizofrenia (no sentido de separação, divisão) do mundo, no seu desencantamento” (LEMOS, 2008, s/p.).

Com relação a pós-modernidade: “Três novas características são propostas. A importância do cotidiano, como um presenteísmo, oposto ao ‘foco no futuro’, próprio da temporalidade moderna. O retorno do imaginário, com o hedonismo e a estetização da existência. Como exemplo, Maffesoli cita a crescente importância das academias de ginástica e da moda. (...) A terceira característica da pós-modernidade pode ser entendida como o retorno do politeísmo, ascensão do sincretismo dos valores, aspecto cujo qual, o Brasil, para Maffesoli, é caso paradigmático” (idem, ibdem).

Nesse estilo nascente os valores característicos da modernidade são resignificados. Maffesoli, que utiliza o “estilo”8 como ferramenta metodológica para compreensão do quotidiano, observa que: “Os diversos elementos constitutivos da modernidade não são ‘ultrapassados’, no sentido dialético do termo, não são tampouco acabados, como é demasiado costumeiro dizer. De fato, não se pode negar que eles continuam representando um papel na vida social, mas imperceptivelmente, adquirem outro timbre, sua tonalidade não é mais a mesma. De uma maneira alquímica, sofreram uma espécie de transmutação e, ainda que continuem sendo o que são, vão constituir uma outra configuração”. (MAFFESOLI, 1995, p. 42).

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Grifo do autor.

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“O estilo de um homem ou de um determinado grupo nada mais era do que a cristalização da época em que viviam. Isso lhe dá uma outra amplitude e, sobretudo, permite-lhe servir de revelador da complexidade social. Pode-se, a partir daí, aplicar o estilo à arte, mas igualmente aos sentimentos, às relações sociais, à produção industrial ou à vida da empresa. E, assim, pode-se ver em que essa concepção complexa de um estilo é das mais pertinentes para apreciar todas essas coisas nascentes, realçando aquilo que é aparentemente inútil e que vai da estetização da existência à cultura de empresa, passando pelo desenho industrial ou a preocupação com a qualidade de vida, que caracteriza o urbanismo contemporâneo”. (MAFFESOLI, 1995, p. 30).

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É essa outra configuração que a pós-modernidade provoca no social que faz surgir novas formas de perceber o mundo e de se relacionar com ele, o que Maffesoli (1995) denomina de “estetização da existência” que vai moldando o pensar, o agir e o sentir da sociedade. Assim, vai sendo construída uma realidade com a força da imagem, que não despreza na sua constituição o simbólico, o imaginário, o jogo de aparências e a teatralização da vida. Edgar Morin (1988) declara que “um antigo real, que acreditávamos seguro, verificável, racional, está agonizando” (p. 88). É nessa agonia, nesse estranhamento que se vem anunciando a realidade pós-moderna.

02.3 A realidade na pós-modernidade A contemporaneidade tem se caracterizado como a sociedade da imagem. Michel Maffesoli afirma que a fobia de uma “sociedade do espetáculo”9 tem sido superada pelo poder religante do “mundo imaginal” que se consolida. “O mundo imaginal é causa e efeito de uma ‘subjetividade de massa’ que, progressivamente, contamina todos os domínios da vida social. Esta não mais repousa sobre uma razão triunfante, ela nada mais tem a ver com uma atitude contratual, não mais está voltada ao povir. Mas pode-se desvendá-la no emocional, no sentimento partilhado e na paixão comum, todos eles valores dionisíacos, que remetem ao presente, ao (...) hedonismo mundano. É exatamente isso que faz destacar o jogo das imagens e sua disseminação virótica. Neste sentido, o irreal (...) é o melhor meio de compreender o real, isto é, aquilo que se dá a viver na eflorescência do trágico quotidiano”. (1995, p. 19).

Por intermédio da imagem “o fantástico, a ficção (...) participam da constituição da ‘realidade’” (idem, ibdem). Não é mais aceitável a hipótese de uma verdade única e absoluta à qual é preciso se vincular e atingir. A verdade fragmentase em verdades parciais, plurais, transitórias e até mesmo em simulacros. Maffesoli (1995) ressalta que a realidade é porosa, constituída do que não possui realidade, “para além de uma pulsão racionalizadora e positivista que postula ‘a verdade não nos escapará’, pode-se dizer que o real ficcional de todos os dias ou a ficção surrealista repousam, totalmente ou em parte, sobre as mentiras nas quais o indivíduo decide acreditar. Antes que afrontar a verdade, que em sua forma última é a morte, a 9

Teoria difundida em livro homônimo no final dos anos de 1960 pelo francês Guy Debord, onde criticava as relações mediadas pela imagem, pelo consumo e pela apatia social. Mais informações: DEBORD, 1997.

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massa vive, quase intencionalmente, o ódio da morte pelo viés da mentira. É isso que engendra um certo desencanto, que reenvia ao trágico de uma vida precária” (MAFFESOLI, 2001, p. 100).

Dessa forma, as identificações se fragilizam e tornam-se ao mesmo tempo múltiplas. O referido autor salienta que “em todos os atos da vida cotidiana existe um desdobramento, uma secundaridade, expressão de mobilidade existencial no seio da rotina diária. Uma maneira como outra qualquer de recusar a injunção da identidade, mas recusa branda, sutil, e não de uma maneira frontal. Introduzir a ficção na vida cotidiana é uma manifestação de resistência que escapa à temática ‘ativisita’ da liberação. A astúcia, a bazófia, a fofoca, a hipocrisia (...) não tem outra ambição, elas estruturam, de ponta a ponta, uma existência dupla, cortada, que, sem isso, seria monotonamente unidimensional. A sobrevivência social e individual existe a esse preço, somente se pode prosseguir fazendo uso de máscaras” (MAFFESOLI, 1995, p. 102).

O uso de máscaras, o assumir a “persona”, o ficcional integrado na vida corriqueira é uma proteção contra os poderosos mecanismos do controle social, aponta Maffesoli (2001). Assim, a realidade na pós-modernidade é composta de imaginário, de mito, de ficção, de personagens, de obscuridade, de recusa ao controle social, de, para usar um termo maffesoliano, “evitações”10 e “jeitinhos”. Até mesmo a noção de autoria, que foi uma das grandes conquistas da modernidade estabelecendo inclusive leis que reservam os direitos dos autores, tem sido contestada e o “copyleft”11 e a pirataria12 se expandem fortemente nesse novo contexto. É nesse cenário, nessa nova configuração de realidades que se delineia o desafio de discutir sobre o cinema e em especial o documentário enquanto possibilidade de registro da realidade. Serão analisados alguns documentários produzidos na atualidade no Brasil tentando perceber até que ponto tal produção acompanha as transformações ocorridas.

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Maffesoli (1995) afirma que as pessoas na contemporaneidade não realizam combates frontais, procurando agir de forma sutil e ardilosa evitando se expor, daí o surgimento do termo “evitação” para caracterizar tal atitude. 11

Copyleft é um trocadilho com o termo “copyright” que significa “direito de cópia”. Copyleft rompe com o uso exclusivo (e mercadológico) de determinados produtos, principalmente no âmbito da internet. 12

O termo “pirataria” na atualidade ganha uma conotação de cópia, clonagem não autorizada de determinados produtos repassados através de mecanismos informais.

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03. A REALIDADE DO DOCUMENTÁRIO

O homem cria as ferramentas, as ferramentas recriam o homem. Marshall Mcluhan

O

documentário

enquanto

gênero

do

cinema

foi

visto

com

certa

desvalorização por grande parte dos teóricos do áudio-visual e, principalmente, pela indústria cinematográfica durante boa parte do século XX. A atenção se direcionava para as grandes produções do cinema de ficção, para o espetáculo, e o documentário ficava relegado a um gênero secundário produzido por especialistas em “registrar a realidade”. É nos anos de 1960 que essa visão começa a ser modificada principalmente por documentaristas que conseguiam superar a obsessão em ter o documentário como um espelho refletindo a realidade e, desde então, é possível “constatar que uma perspectiva interpretativa reafirma-se no horizonte do documentário, na mesma medida em que se esvazia a crença em uma infundada objetividade da imagem cinematográfica” (DA-RIN, 2008, p.222).

Para compreender a nova realidade que se tem gerado a respeito do documentário é necessário buscar uma aproximação conceitual e resgatar sua história e suas transformações desde o surgimento do cinema passando pelo cinema moderno, quando o documentário ganhou o rótulo de “sociológico”, até a contemporaneidade.

03.1 Conceituação e história do filme-documentário A definição do que é documentário é uma discussão que nos remete aos primórdios do cinema e exige uma inserção na grande abrangência de teorias desenvolvidas a esse respeito. Sílvio Da-Rin, em livro a respeito da tradição e transformação do documentário, nos alerta para o fato de que nas definições de documentário “os limites são arbitrários e criam um labirinto interminável de exceções que acabam por nos levar ao ponto de partida. Se o documentário coubesse dentro de fronteiras fáceis de estabelecer,

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certamente não seria tão rico e fascinante em suas múltiplas formas” (2008, p. 15).

Estabelecer uma delimitação precisa do que é cinema de ficção e filmedocumentário, ao contrário do que se absorve no senso comum, não é tarefa fácil. A pesquisadora em áudio-visual Manuela Penafria atenta para o fato de que “em todo e qualquer filme (...) é inevitável verificar um conjunto de idéias e pressupostos que constituem o universo mental, cultural e social do seu autor e de sua época” (2003, p.6). Nesse sentido, continua a autora, “o documentarismo está presente em toda a produção de imagens em movimento, uma vez que qualquer filme é uma manifestação/visão do realizador sobre um assunto, que de um modo mais próximo ou mais distante, diz respeito às nossas vidas, às nossas memórias, ou seja, ao universo humano. Existem produções mais especificamente caracterizadas por esse registro documental e que visam consagrá-lo, denominadas por filme documentário” (idem, ibdem).

Diante da dificuldade em definir o que é precisamente documentário Da-Rin diz que “não há como negar a persistência de uma tradição – uma espécie de instituição virtual constituída por diretores, produtores e técnicos que se autodenominam documentaristas” (2008, p. 18). Da-Rin cita Christian Metz para aproximar a noção de documentário do que esse autor chamou de os “‘grandes regimes cinematográficos’ (...) cujas fronteiras são fluidas e incertas, mas ‘são muito claras e bem desenhadas no seu centro de gravidade; é por isto que podem ser definidas em compreensão, não em extensão. Instituições mal definidas, mas instituições plenas’” (idem, ibdem).

Dessa forma, o que se pode absorver é que o filme-documentário tem por objetivo trabalhar com a realidade: um filme que tenta ser um reflexo do que está acontecendo ou aconteceu. A definição que, ainda hoje é a mais plausível, para Manuela Penafria, é a de John Grierson que, no final da década de 1920, definiu o documentário como “um tratamento criativo da realidade” (2003, p. 7). Assim, diante da multiplicidade de conceitos e evitando o aprofundamento desnecessário em polêmicas, o caminho que se apresenta de forma mais coerente é trilhar pelo que se tem registrado como história do documentário que o define pela sua construção e se confunde também com a origem do cinema.

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Desde a invenção do cinematógrafo13 havia a preocupação com o registro em imagens de momentos da vida quotidiana, mas a maioria das produções iniciais do cinema tinha um objetivo mais relacionado à observação, à contemplação como nos filmes produzidos pelos irmãos Luimière: “a chegada do trem na estação Ciotat” e “a saída dos operários das usinas Lumière”, forma de registro que posteriormente seria denominada “atualidades”14. Contudo, apesar de o cineasta russo Dziga Vertov e o seu cinema-verdade ter uma produção que pode ser considerada como o embrião do filme-documentário15, Manuela Penafria considera que no período inicial do cinema “ainda estávamos longe da constituição do filme documentário enquanto gênero, o que veio a ter lugar nos anos 30 na GrãBretanha, com John Grierson (1898-1972). A partir do seu filme Drifters (1929) Grierson defendeu duplamente o documentário: como produtor e impulsionador do chamado ‘movimento documentarista britânico’ e através de textos em que proclamava as potencialidades do documentário” (PENAFRIA, s/d, p.1).

Os teóricos do movimento documentarista britânico são os primeiros a discutir de forma abrangente sobre o filme documentário, inclusive a primeira ocorrência do uso do termo “documentário” é “atribuída a uma crítica ao filme Moana (Robert Flaherty16, 1926), escrita por John Grierson e publicada em fevereiro de 1926, em um jornal de Nova York” (DA-RIN, 2008, p. 20).

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O cinematógrafo era uma máquina de filmar e projetar filmes inventada por Léon Bouly em 1892, mas foram os irmãos Auguste e Louis Lumière que registraram o invento em 13 de Fevereiro de 1895. 14

Atualidades era a denominação dada ao tipo de filme realizado pelos irmãos Lumière e também “as reconstituições que focalizavam assuntos de grande repercussão na imprensa e que não podiam ser filmadas ao vivo” (DA-RIN, 2008, p. 32). 15

Para um maior aprofundamento sobre Vertov e o “cine-olho” consultar: DA-RIN, 2008, p. 109.

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Robert Flaherty também foi um dos pioneiros com relação a criação de um método que possibilitava uma narrativa documentária. O seu filme “Nanook of the North” também pode ser considerado um clássico pioneiro do documentário.

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Ilustração 01: John Grierson, considerado como primeiro cineasta a teorizar sobre o filmedocumentário.

Para o documentarismo britânico não havia a preocupação com o filme como documento e nem se acreditava, como observa Da-Rin, “que a imagem cinematográfica poderia reproduzir por mimetismo a realidade” (2008, p. 92), contrariando o pensamento hegemônico da época. O que poderia explicar tal postura era o fato de que a produção deste movimento tinha uma forte vinculação com os interesses do Estado e os filmes tinham finalidades sociais, educativas e de propaganda estatal. Em 1960 com a invenção de aparelhos de filmar mais leves, registrando imagem e som em sincronia, possibilitou a consolidação de um movimento denominado cinema-direto17 que aprofundou e provocou polêmicas sobre o

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O cinema-direto dividiu-se em facções distintas. Em um primeiro momento: “Candid eye” cinema canadense anglófono que tinha como princípio registrar as situações de forma mais discreta possível; sem roteiro, captando o som na locação e sem montagem muito elaborada. Também o “Cinema spontané” ou “Cinema vécu” semelhante ao candid eye, mas do lado francófono no Canadá, tendo como preocupação a legitimação do idioma francês. “Living camera” jornalistas americanos que produziam filmes com linguagem para a Televisão. “Cinema Vérité”, tendo como marco inicial o filme “crônica de um verão” de Jean Rouch e Edgar Morin. O cinema-direto francês tinha características mais inventivas se estabelecendo na fronteira entre ficção e documentário. Posteriormente o cinema direto iria se polarizar entre os americanos: “the fly on the wall” que defendia a pureza do documentário sem excessos de montagem, roteiro e sem a percepção da presença dos produtores, e o cinema-direto francês: “the fly on the soup” que, inversamente, era marcado pela

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documentário e a questão da representação da realidade. Nesse mesmo período, aqui no Brasil, se consolidava a forma de fazer documentário com um estilo considerado moderno ou o chamado documentário sociológico.

Ilustração 02: Jean Rouch, Marcelline Louridan e Edgar Morin, durante filmagem de “Crônica de um verão” em 1960. Pioneiros do cinema-direto.

03.2 Cinema moderno: o documentário sociológico Apesar do surgimento do cinema-direto e dos trabalhos inovadores de cineastas como Jean Rouch e da criatividade do denominado cinema-novo aqui no Brasil, a predominância na produção de documentários foi o estilo criado pelo movimento documentarista britânico, onde especialistas davam o parecer objetivo sobre determinadas situações. Tal formato foi definido por Jean-Claude Bernadet em seu livro Cineastas e imagens do povo como o modelo sociológico, prevalecendo “a voz do saber, de um saber generalizante que não encontra sua origem na experiência, mas no estudo de tipo sociológico; ele dissolve o indivíduo na estatística e diz dos entrevistados coisas que eles não sabem a seu próprio respeito” (2003, p. 17).

presença dos realizadores que também participavam dos documentários intervindo e conduzindo as filmagens. Ver: DA-RIN, 2008.

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Os documentários sociológicos18 se caracterizavam pela presença do locutor que não aparecia na imagem e narrava em voz off 19, com narração na terceira pessoa, conceituando o que era apresentado de forma generalizante: “O filme funciona porque é capaz de fornecer uma informação que não diz respeito apenas àqueles indivíduos que vemos na tela, nem a uma quantidade muito maior deles, mas a uma classe de indivíduos e a um fenômeno” (BERNADET, 2003, p. 19).

A ênfase dada seria sempre no “outro de classe” que eram, como afirma Bernadet (2003), o outro do sociólogo. Portanto o filme deveria ter uma função didática, semelhante aos documentários produzidos por John Grierson, trazendo informações com o objetivo de esclarecer um conflito social geral. A atitude sociológica, diz Bernadet, estava justamente em o documentário estabelecer uma relação de dominação do sujeito do saber (o documentarista) para com o objeto de estudo que eram os indivíduos tema dos documentários. A condução desses documentários tinha uma forma tendenciosa, tratava-se de “ajeitar o material cinematográfico, de domá-lo em favor das idéias que se quer colocar” (BERNADET, 2003, p. 55). O documentário funcionando como legitimação do discurso do saber. Com relação ao filme-documentário brasileiro praticamente todos tinham esse viés sociológico, mas existiram exceções. Em 1960 foi produzido o filme Aruanda que já destoava do modelo vigente. Bernadet atribuiu a Aruanda o papel de filme de transição por conviver no mesmo filme “um sistema sonoro ainda dominante e um outro tipo que contesta e começa a se instalar” (p. 283). É importante ressaltar que também os filmes produzidos por Arthur Omar foram elaborados como uma quebra do modelo vigente. A linguagem de Congo (1972), como percebe Bernadet, é uma quebra, uma ruptura com todos os documentários produzidos no período. O filme, que deveria ser sobre a manifestação popular chamada congada,

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Bernadet associa a prática dos documentaristas modernos ao exercício da sociologia clássica (Comte, Durkheim, Pareto, etc.) que buscava produzir ou desvelar verdades, ou, ainda, fornecer receitas prontas para resolver problemas que atingem as sociedades. Mesmo assim, não se pode desconsiderar o teor preconceituoso e generalizante que tal associação carrega. 19

A “voz off” é a voz que narra o filme e não é visível na imagem. Existe uma discussão a respeito da utilização do termo ou se seria mais adequado a utilização de “voz over” utilizado no cinema americano. Neste trabalho é mantido o termo “voz off” por ser a forma mais usual.

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“sonega radicalmente o seu referente, ou aparente referente. Do ambiente rural, restaram apenas algumas imagens irrisórias, soltas, sem muita significação (...). Fragmentos, talvez, do que um olhar urbano pôde captar, desatentamente, numa visita a um sítio” (BERNADET, 2003, p. 109).

Nesse caso, Jean-Claude Bernadet, conclui que “o outro não foi transformado em objeto: apenas se indicam os instrumentos que o tornam objetos. Mas tampouco tornou-se sujeito, foi eliminado. O sujeito é o cineasta. E, nesse filme, o sujeito que emite o discurso também está apontando para seu desaparecimento” (idem, ibdem, p. 118).

A produção de documentário, na atualidade, tem sido bastante diversificada e supera o padrão único que existia no seu início. Em virtude de tais transformações o que anteriormente era visto como um gênero secundário, hoje é reconhecido como uma narrativa visual tão importante quanto o cinema de ficção. Esse reconhecimento tem suas motivações justamente pela superação do modelo “voz do saber” e também pelo interesse por imagens “reais” despertado em diversos setores do audiovisual. Consuelo Lins e Cláudia Mesquista apontam no livro Filmar o real que não só a realidade do documentário está em evidência, mas “parte significativa das ficções cinematográficas e mesmo televisivas tem investido em uma estética de teor documental, e são expressivas as adaptações de relatos literários cuja matéria são situações reais”. (2008, p. 8)

Na contemporaneidade, o documentário tem absorvido influências tanto do cinema de ficção quanto da televisão e as fronteiras que tentavam caracterizar com precisão os gêneros específicos se tornam tênues, híbridas e difusas. É a tendência do nascente documentário com a linguagem da pós-modernidade: o abandono ao modelo tradicional e a contestação aos padrões se evidenciando como suas principais características.

03.3 O documentário na pós-modernidade: exemplos na produção nacional Alguns pontos que caracterizam a pós-modernidade também são perceptíveis na produção dos documentários contemporâneos. A preocupação em registrar uma realidade verdadeira e única cede lugar às interpretações múltiplas e, muitas vezes, discordantes, abrindo espaço também para a ficção. A obstinada busca de 26

construção de uma narrativa globalizante tem sido substituída por um formato composto de fragmentos de histórias localizadas onde o que interessa é o processo de elaboração dos documentários e não o produto final. Nesse processo tem se diluído as diferenças sujeito/objeto. Nos documentários de Eduardo Coutinho, por exemplo, o próprio cineasta e sua equipe também participam, aparecem, interferem, dialogam no filme. Grande parte dos documentários produzidos no Brasil “situam-se dentro de uma estética pós-moderna, marcada pela profusão de citações e paródias de gêneros, pela falta de profundidade histórica e pela adoção da ironia como um viés crítico difuso, que tem como alvo privilegiado os grandes sistemas de valores políticos e morais” (DA-RIN, 2008, p. 214).

Para tentar compreender como essas transformações ocorrem na prática será feita a análise de alguns documentários produzidos no Brasil e que foram escolhidos justamente por estarem em evidência e abordarem temáticas diversificadas.

03.3.1 O aborto dos outros O aborto dos outros (2008) é um filme realizado pela produtora Olhos de Cão com direção de Carla Gallo, financiado pelo programa de fomento do cinema paulista de 2005, com o apoio do governo do estado de São Paulo e co-patrocinado pela secretaria municipal de cultura de São Paulo. A partir desse elenco de patrocínios governamentais vinculados a um filme, com uma temática que gera polêmica em praticamente todo o mundo, não é difícil de perceber que alguma coisa estranha, diferente, ou seja, é importante atentar que alguma mudança está acontecendo. O início do filme, após os dados (de produção e patrocínios) padrões da maioria dos documentários, é feito com uma tela de um branco asséptico exibindo o título. A primeira cena é composta por uma adolescente vítima de estupro respondendo a um questionário feito por uma assistente social. A câmera fica em contra-plano (ou em detalhes) para não identificar à adolescente. Assim é feito todo o relato do estupro e a intenção de realizar o aborto que, nesse caso, é previsto por lei.

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Ilustração 03: Cena de depoimento de adolescente vítima de estupro.

A mãe da adolescente também relata o caso para a assistente social. Até então não há depoimentos direcionados diretamente para o documentário, mas a câmera funcionando como uma acompanhante do caso, o que irá se repetir em várias partes do filme. A partir do momento em que a garota aparece no quarto do hospital para realizar os exames e posteriormente o aborto começam os depoimentos de mãe e filha direcionados para o documentário. A cena da menina desenhando temas infantis é revelador da sensibilidade do documentário para deixar transparecer o contraste existente na situação. O relato desse primeiro caso é interrompido após imagem de corredor do hospital e tela branca. O segundo caso é iniciado com imagens de mulheres grávidas em um hospital. Em seguida entra uma imagem de uma mulher fazendo uma ultrasonografia e o médico relatando o problema de má-formação do feto com origem letal. Nesse momento é feita uma punção para paralisar os batimentos cardíacos do

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feto e provocar o aborto. O médico dá depoimento esclarecendo que não há um incentivo para tal prática, mas que é um direito garantido por lei e que reconhece que está fazendo um benefício para a paciente, pois a criança não sobreviveria após o nascimento. A mãe é identificada na imagem e faz um relato detalhando o porquê da interrupção da gravidez. As tomadas do terceiro caso são feitas com a câmera em detalhe do rosto de uma mulher (principalmente os olhos) onde ela relata como aconteceu a gravidez indesejada feita sob chantagem e dentro de uma relação já desgastada e sem afetividade. A forma como foi feito o aborto também é descrita com dramaticidade. Após novamente a tela branca é apresentado mais um caso de estupro. Em uma reunião médicos discutem com detalhes o caso e é aprovada a interrupção da gravidez.

Ilustração 04: Cena de aborto provocado. Drama na sala de cirurgia no filme O aborto dos outros.

Seguem cenas do aborto na sala de cirurgia. A câmera em close na lágrima escorrendo retrata o drama da vítima, seguido do depoimento da médica: “Ela não tá sentindo nada agora, o problema é o procedimento em si. É uma perda, né? É uma agressão, não tem jeito... não dá prá ser diferente, infelizmente”. Depois da inserção da tela branca começa o relato do caso mais polêmico. A imagem concentra-se durante todo o depoimento em uma torneira pingando. A voz 29

de mulher narra que já realizou cinco abortos e detalha a forma como engravidou e como foram feitos todos os abortos. Os relatos impressionam pelo teor de clandestinidade e falta de condições para realização dos abortos feitos através das “mães de anjo” e, aparentemente, em condições precárias de realização. No último caso a mulher tem o rosto identificado e fala do aborto provocado em casa; o drama, a denúncia de uma vizinha e a sua prisão. A mulher reconhece todo o sofrimento, mas afirma que faria novamente o aborto caso engravidasse, pois não teria condições de criar o filho. A partir desse momento do filme começam os depoimentos dos especialistas que apresentam os dados, as leis a respeito, a gravidade da situação e os benefícios que traria uma lei que legalizasse o aborto oferecendo condições para evitar os riscos que acontecem atualmente. Todos os depoimentos coincidem em argumentos para justificar a legalização do aborto. Após os depoimentos dos especialistas é retomado o caso da adolescente onde a mãe sintetiza o que foi visto durante todo o filme: “tudo passou, mas a angústia fica”. O documentário encerra com mãe e filha saindo do hospital e vários segundos de tela branca. O filme opta por realizar a abordagem de forma parcial sobre um tema polêmico e, como diz o release: “é um filme sobre maternidade, afetividade, intolerância e solidão”. Assim, é retomada a temática das questões sociais dos primeiros documentários só que invertendo a abordagem. Ao invés de ser um filme que sugere uma mediação para um conflito, o documentário polariza ainda mais a discussão. O enredo não é construído de forma linear e uniforme, O aborto dos outros fragmenta a narrativa em depoimentos de mulheres que vivenciaram casos diferenciados sem estabelecer julgamento de valor, nem naturalizar ou provocar sensacionalismo. Contudo, apesar de ser construído com aspectos da pós-modernidade (a não linearidade, a fragmentação dos discursos, a multiplicidade de vozes), também é perceptível características do formato tradicional de documentários onde a “voz do saber”, através de especialistas entrevistados, diagnostica o problema e propõem a solução que seria a legalização do aborto. O aborto dos outros é um filme quase panfletário, mas que não se deixa desqualificar pelo mergulho em tema tão denso, dramático e problemático. O documentário trabalha em cima de uma realidade

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exposta de forma direta, sem rodeios, que impossibilita ao espectador assistir e não refletir com inquietação sobre o tema.

03.3.2 Um passaporte húngaro O documentário Um passaporte húngaro foi realizado pela produtora República Pureza e dirigido por Sandra Kogut, entre os anos de 1999 e 2001. A escolha desse filme como objeto de estudo se deve ao fato do mesmo sintetizar diversos elementos abordados nesse trabalho como características da pósmodernidade e das novas possibilidades de construção da realidade no filmedocumentário. Tal constatação poderá ser verificada na descrição das seqüências analisadas. É possível afirmar que o documentário é um filme-contato: desde o contato da diretora com as suas raízes húngaras, com a sua família, amigos, funcionários públicos estatais, linguagens e culturas diferentes até as parcerias construídas para produzir o filme que foi uma co-produção entre os países: Brasil, França, Bélgica e Hungria. O início do filme, que a autora chama de filme-passaporte, é bastante sugestivo: aparece a imagem de um aparelho telefônico e a voz em off cogitando, junto a embaixada da Hungria, um passaporte húngaro. Em seguida entra uma conversa de Sandra Kogut com a sua avó. A diretora almeja conseguir o passaporte por causa da sua descendência húngara. No depoimento da avó que faz um relato breve, mas bastante objetivo, da sua imigração e das dificuldades passadas. No decorrer do depoimento são inseridas imagens, aparentemente antigas, da Hungria e é feito o repasse dos passaportes dos avôs para a diretora/personagem do documentário. Após a inserção do título do filme, é continuado o depoimento da avó e o drama do exílio dos imigrantes judeus durante um período de perseguição e intolerância. Com os passaportes dos avôs, que atestam a veracidade do parentesco, Sandra Kogut começa a longa trajetória em busca do seu almejado passaporte e da desejada cidadania européia. A partir de então o filme faz um relato detalhado do funcionamento da burocracia e das dificuldades que permeiam as relações internacionais envolvendo os interesses de um indivíduo e uma nação. 31

O documentário é conduzido como uma experiência pessoal, mas da autora aparece apenas à voz em diálogo com outros personagens do filme.

Ilustração 05: Cena inicial do filme Um passaporte húngaro.

Com relação ao enredo o filme é composto por uma combinação de depoimentos, documentos e imagens antigas da Hungria. Ao revelar o que está por trás de uma simples tentativa de conseguir um passaporte o filme explicita o que Maffesoli havia falado do resgate da importância do aparentemente insignificante e que na pós-modernidade ressalta a sua dimensão e complexidade. No documentário não há a preocupação com o produto final, a conquista ou não do passaporte, mas sim com o processo, a forma como se dá a busca; o caminho percorrido é que faz a estória. Outra característica do documentário é a combinação polifônica. Desde os vários idiomas (inglês, francês, húngaro e português) que constroem os diálogos até a profusão de sons e ruídos que fortalecem e trazem substância ao filme: sons de telefone, campainhas, brindar de copos, trem, carros, latidos de cães até a trilha musical feita com ecletismo e delicadeza. É o hibridismo lingüístico, cultural, sonoro 32

que faz a trilha (mesmo com um considerável exagero de pastiche) dar um teor cosmopolita evitando à redução do filme a experiência de uma brasileira tentando conseguir a cidadania húngara. As imagens mesclam os fatos vivenciados no presente com imagens antigas numa clara combinação entre o novo e o arcaico, induzindo também ao componente imaginário de como seria a vivência da autora em um país até então desconhecido. Apesar de um formato bastante diferenciado dos documentários considerados por Bernadet como “sociológicos”, a temática do documentário consegue fazer discussões com abordagem sociológica, provocando reflexões sobre questões como: imigração, intolerância racial/religiosa, nacionalidade, cidadania, identidade, burocracia, memória, parentesco, entre outros temas, todos conduzidos a partir de uma experiência pessoal, onde a própria diretora se transforma em personagem: assume a persona e desconstrói a narrativa fragmentado-a em vários episódios, viagens, passagens de tempo, diálogos e situações de uma estória pessoal que provoca a construção de uma realidade inserida em um contexto amplo, situações que podem ser vivenciadas por qualquer outra pessoa.

Ilustração 06: Diálogo com da autora com a avó em Um passaporte húngaro.

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03.3.3 A pessoa é para o que nasce Esse documentário se diferencia por ter tido uma primeira versão em curtametragem e depois foi mais trabalhado se tornando um longa-metragem que durou em torno de oito anos para ser concluído sendo lançado em 2005, pela produtora TV Zero, com direção de Roberto Berliner. O filme, que faz uma clara mistura de realidade e ficção romanceada, é iniciado com as três personagens segurando uma placa com os seus nomes. Em seguida é inserido o título e imagens das irmãs caminhando. A seqüência é interrompida de forma abrupta por uma tela preta e silêncio seguido por exclamações das personagens. É possível entender que tal artifício é uma referência a temática do filme: a cegueira.

Ilustração 07: Início do filme com identificação das personagens.

A estrutura narrativa do documentário é pontuada por períodos de gravação que refazem o percurso das personagens, mas não dentro de uma visão linear da história. Como nos outros documentários analisados a narrativa é fragmentada, inclusive os autores fazem referência a outras mídias com imagens de reportagens de televisão, entrevistas de jornais, propagandas de festivais e até mesmo o rádio tocando música de Roberto Carlos ou noticiando o próprio filme: “As três ceguinhas de Campina Grande viraram estrelas de cinema”. É a profusão de citações, a fragmentação e as paródias de gêneros citadas anteriormente como características do documentário pós-moderno. 34

A pessoa é para o que nasce é também um filme do filme, onde as câmeras, em um vale-tudo de captação20, declaram presença, se impõem. O próprio diretor também vira personagem, causa paixão e é trabalhada essa questão entre as personagens, descartando a possibilidade de um roteiro rígido ou de uma seqüência mais programável. Os objetos do documentário vão se apropriando do filme: em um momento Maroca demonstra insatisfação com o longo período de gravação, em outro ela questiona sobre o dinheiro das premiações do curta-metragem, dialogando com o diretor que na resposta também dá justificativas indiretamente ao espectador. As histórias relatadas revelam, como num hiper-texto, as tragédias cotidianas de grande parte da sociedade: o drama da deficiência, a solidão, o abandono, a miséria, a exclusão social, morte, assassinato, violência. Não excluindo também a paixão, a ironia, o sexo, a alegria, a superação e a importância de aproveitar o presente. Características exploradas por Michiel Maffesoli e suas teorias de presenteísmo e tragédia dionisíaca vivenciados na realidade cotidiana.

Ilustração 08: Apresentação no Festival PercPan em Salvador/BA.

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Na gravação do filme foram utilizadas: câmeras digitais diversas, câmera de cinema com película 16mm e até uma micro-câmera, fato criticável para os padrões da indústria cinematográfica.

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A saga das “ceguinhas de Campina Grande” vai além do filme, também se transforma em CD com as músicas do repertório das três irmãs interpretadas por nomes de expressão nacional: Pato Fu, Lenine, Os Paralamas do Sucesso, Otto, Mombojó, Silvério Pessoa, etc. Vários eventos21 também foram propiciados pelo documentário: participação das cantoras no festival internacional de percussão PercPan, em 2000, conhecendo Salvador e São Paulo e recepcionadas por Gilberto Gil e Itamar Assunção; participação na novela “América” da Rede Globo; condecoração na câmera municipal de Campina Grande; medalha de mérito cultural em Brasília, sendo recepcionadas pelo presidente Lula e cantando o hino nacional, etc. É a vida das personagens abolindo as fronteiras entre filme e realidade. É o filme provocando outra realidade e mesmo que as estrelas do filme não brilhem com a mesma intensidade produziram resultados concretos, tal qual filmes como Janela da Alma, provocando outra forma de enxergar a realidade. O documentário explora quadros considerados como não-apresentáveis dentro de uma visão purista de cinema. O close nos olhos com má-formação, o embaraço ao não conseguir vestir um vestido ou a dificuldade de atender ao telefone, etc. Investindo mais fortemente contra o politicamente correto o filme encerra com as personagens concretizando o sonho de conhecer o mar. A cena provocou polêmica por ter sido filmada em uma praia de nudismo e com as três mulheres tomando banho nuas. Aqui pode ser percebido mais uma característica do que Da-Rin aponta no documentário pós-moderno: “o viés crítico difuso, que tem como alvo privilegiado os grandes sistemas de valores políticos e morais” (2008, p. 214). O filme, que aparentemente apresenta-se como um documentário de estilo tradicional, tem um forte potencial de quebra de padrões e mantém as características da sociologia contemporânea onde o aparentemente insignificante revela toda a sua profundidade nos impulsionando à (auto) reflexão. A reflexividade é também uma marca do documentário contemporâneo, mas Sílvio Da-Rin alerta para o fato de que “(...) à reflexividade, apesar do seu potencial antiilusionista, não deve ser considerada uma panacéia do documentário. Muito menos, um antídoto às contestações e abalos que sofre os dispositivos de 21

Alguns dos eventos citados estão inseridos no próprio filme. Informações sobre os outros eventos foram extraídos do site: www.apessoa.com.br

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representação, em um contexto marcado pela proliferação desenfreada de imagens. As estratégias auto-reflexivas podem facilmente ser empregadas como puro formalismo, transformadas em um maneirismo ou apropriadas enquanto técnicas que visam legitimar argumentos espúrios com uma aparência crítica” (2008, p. 218).

Não é o caso de A pessoa é para o que nasce. É possível perceber que o diretor e a equipe entram no filme empurrada pelas conseqüências do ritmo narrativo conduzido também pela postura das três irmãs que, com carisma e simpatia, seduz tanto a equipe de produção quanto as pessoas que assistem ao documentário.

Ilustração 09: As três irmãs na cena considerada polêmica do filme.

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04. CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do que foi exposto é possível concluir que grande parte dos filmesdocumentários estão devidamente inseridos no contexto de pós-modernidade com relação à percepção da realidade. Não é possível perceber nos filmes produzidos na atualidade a intenção de “registrar” ou de ser um reflexo/espelho da realidade. Nos três documentários analisados os autores deixam bastante evidente que os próprios filmes são construções de realidades chegando inclusive a modificar a realidade até então vigente das pessoas abordadas, como é o caso do filme A pessoa é para o que nasce. As realidades construídas não correspondem, necessariamente, a realidade objetivada, a realidade construída pelo social tal qual exposta no primeiro capítulo. Nos filmes são apresentadas subjetividades enquanto realidades singulares, não há a antiga pretensão de refletir o todo. Outro aspecto condizente com o que tem sido teorizado sobre a pósmodernidade é a linguagem utilizada nos documentários; a “voz do saber” praticamente é descartada dos filmes e quando aparece não tem mais a pretensão do poder de legitimação que tinha anteriormente. Em alguns casos, como em O aborto dos outros, há um elemento ambíguo, uma problematização das “verdades” expostas que possibilitam ao espectador duvidar das afirmações apresentadas, há o outro lado do sofrimento, do drama, do trauma. Em Um passaporte húngaro o teor pós-moderno domina praticamente toda a linguagem do filme, desde a abordagem centralizada na experiência pessoal da própria autora do documentário até a ênfase no processo de elaboração e não no seu produto final. Os documentários também têm conseguido acompanhar as transformações ocorridas dentro da própria concepção de sociologia. A voz do saber científico exaltado durante toda a modernidade com o uso do discurso dos fundadores da disciplina tem sido questionada e substituída por análises que levam em consideração o cotidiano e o aparentemente inútil, como afirma Maffesoli (2005). Dentro dessa mudança paradigmática também se questiona a autoridade científica como a fonte verdadeira do conhecimento. Dessa forma, a abordagem que tem fundamentado os documentários mantém o teor sociológico, mas com esse viés pós-moderno. 38

Contudo, é preciso perceber o que está por trás da elaboração desses filmes e que permite a utilização da linguagem pós-moderna sem comprometer os resultados esperados pela indústria cinematográfica. É exatamente a presença da própria indústria na estruturação básica do filme, passando pela produção, chegando até a difusão dos documentários se mantendo tal qual na modernidade. Mesmo com um leque de oportunidades de democratização surgido com a produção dos documentários em vídeo, que minimiza os custos, a grande maioria dos documentários ainda está inserida dentro dos mecanismos que tem caracterizado o cinema desde o seu início. Nesse

sentido,

características

da

pós-modernidade,

como:

a

descentralização, a negação da autoridade, o hibridismo, o igualitarismo, a não hierarquização, entre tantas outras que provocam a sua tônica mais libertária estão ausentes na parte crucial dos documentários que é a sua estrutura de financiamento, produção, distribuição e exibição. Portanto, o que se pode concluir é que o filme-documentário pode ter uma linguagem pós-moderna e superar o formato didático e claramente ideológico do seu início, mas não pode ser considerado como filmes pós-modernos. Tal conceituação não tem (e até rejeita a condição de) uma legitimação formal possível de enquadrar claramente qualquer produção ou expressão puramente de “pós-moderna”.

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