Monografia: \"A posição do homem no mundo segundo o filósofo Max Scheler\"

June 15, 2017 | Autor: Maiara Miguel | Categoria: Max Scheler, Antropología filosófica, Filosofia contemporânea
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS CURSO DE FILOSOFIA

MAIARA RÚBIA MIGUEL

A POSIÇÃO PECULIAR DO HOMEM NO MUNDO SEGUNDO O FILOSÓFO MAX SCHELER

CAMPINAS 2014

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS CURSO DE FILOSOFIA

MAIARA RÚBIA MIGUEL

A POSIÇÃO PECULIAR DO HOMEM NO MUNDO SEGUNDO O FILOSÓFO MAX SCHELER

Trabalho

de

Conclusão

de

Curso

apresentado ao curso de Filosofia, da Pontifícia

Universidade

Católica

de

Campinas, como requisito para obtenção do título de Licenciada em Filosofia, orientado pelo Professor Dr. Newton Aquiles Von Zuben.

CAMPINAS 2014

MAIARA RÚBIA MIGUEL

A POSIÇÃO PECULIAR DO HOMEM NO MUNDO SEGUNDO O FILOSÓFO MAX SCHELER

Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado a Pontifícia Universidade Católica de Campinas, como parte das exigências para a obtenção do título de Licenciada em Filosofia.

Campinas, 05 de Dezembro de 2014.

________________________________________ Prof. Dr. Newton Aquiles Von Zuben

Ao meu modelo maior e proseador Sebastião, que hoje proseia sobre o universo, a vida e tudo mais com os anjos e querubins.

AGRADECIMENTOS A caminhada desses três anos de formação trouxeram muitos benefícios e ensinamentos que serão levados comigo para todo o sempre, apesar das adversidades enfrentadas, mas com a inspiração de pessoas e modelos pude responder a cada desafio com força e coragem. Primeiramente agradeço a Deus, por ter me dado o dom da vida, força e inspiração para superar as dificuldades. Aos meus heróis Valentim e Matilde, que nunca deixaram de acreditar que eu fosse capaz de realizar meus sonhos e alçar voos altos, e mesmo não entendendo as minhas razões para escolher filosofia sempre estiveram comigo. Por isso, não poderiam deixar de ser a influência maior em minha formação como licenciada em filosofia e pessoa. Além do meu apreço e amor incondicional por eles, agradeço por toda força e atenção. Aos professores que com seu amor à filosofia oportunizaram meu aprendizado, com sabedoria souberam ilustrar os desafios da filosofia e a elaborar questões. Em especial, agradeço o paciente trabalho e conselhos do professor orientador Dr. Newton Aquiles Von Zuben, que foi responsável pela conclusão desse trabalho. Ao professor Dr. Renato Kirchner, que com sua presença humilde e amizade me conduziu aos estudos de Max Scheler minha imensa gratidão, pois seu apoio e fé contribuíram para o meu amadurecimento intelectual. À instituição, administração e funcionários que juntos trabalharam na intenção de propiciar um ambiente adequado para os estudos, deixo meus agradecimentos. Não poderia deixar de esquecer os amigos que conheci nessa jornada e que levo para vida. Agradeço o ombro amigo, as conversas, trabalhos em grupos e leituras que fizemos juntos, que permitiram o aperfeiçoamento do meu processo de aprendizagem. Por fim, agradeço a todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para minha formação e que não mencionei.

“Mantém-te pura na tranquilidade e deixa trovejar ao teu redor; quanto mais sentes ser um homem, tanto mais semelhante és aos deuses”. - Goethe

RESUMO A antropologia filosófica é o resultado de um processo intelectual de questionamentos oriundo do espanto e amor ao conhecimento, que muitos pensadores se dedicaram, e nesse sentido, Max Scheler dedica-se a compreensão do que o homem é, e sistematiza a antropologia no século XX. Partindo do pressuposto de que as tradições anteriores não deram conta de explicitar a questão, e de que é preciso considerar outras disciplinas e o fato de o homem não ser somente um ser dotado de razão, ele empreende na obra “A posição de homem no cosmos” publicada pela primeira vez em 1928, onde se vê a sistematização da antropologia filosófica amparada pelas ciências empíricas, a saber, a biologia, física e química. Sendo assim, essa comunicação pretende abordar o interesse de Scheler pela antropologia filosófica, bem como, a investigação da possibilidade da criação da religião e metafísica ser características do homem. Palavras-chaves: Antropologia, Ser Humano e Cosmos.

ABSTRACT The philosophical anthropology is the result of a intellectual process of questions that arises of wonder and love of knowledge that many thinkers devoted, and accordingly to this process, Max Scheler devotes to understand what is the human being and systematizes the philosophical anthropology in the twentieth century. Assuming that previous traditions did not clarify the question about the man, and that is necessary consider what others areas of knowledge developed about the human beings, and as Scheler does, considering that the man is not only a rational being, he engages the work “The human place in cosmos” with the purpose to codify the man supported by biology, physics and chemistry. Key words: anthropology, human being, cosmos.

INTRODUÇÃO.............................................................................................................7 CAPÍTULO I: O que é o homem? ............................................................................12 1.1 A crise na antropologia filosófica ..............................................................14 1.2 O homem: Um animal extraordinário ........................................................18 1.3 A construção do mundo psíquico ............................................................ 21 1.3.1 Impulso Afetivo (planta) ............................................................. 22 1.3.2 Instinto (animal) .......................................................................... 23 1.3.3 Memória Associativa .................................................................. 24 CAPÍTULO II: Abertura de mundo e o princípio de espírito ............................... 25 2.1 A diferença essencial ............................................................................... 26 2.2 O ato de ideação ..................................................................................... 30 2.3 A ação do espírito: erros das doutrinas.................................................... 34 CAPÍTULO III: A fundamentação do mundo, religião e metafísica .................... 40 3.1 A contribuição de Max Scheler ................................................................ 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................... 48 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 50

INTRODUÇÃO A pergunta sobre o que é o homem está contida na história da filosofia e existem diferentes homens em diferentes tradições que tentaram responder e sanar esta questão, pois é a interrogação inquietante de um problema que move um filósofo, que por meio de sua curiosidade e rigor sistemático - próprio da filosofia desenvolve um tratado filosófico, e consequentemente influencia toda uma geração de pensadores, possivelmente sem mesmo ter intenção. Essa motivação é explicitamente vista quando lemos trabalhos do grandioso Max Scheler, que foi um dos pensadores que marcou o período contemporâneo, e que possuía uma inquietação imensa com o que havia sido desenvolvido, até então, sobre o próprio ser do homem. A antropologia filosófica é uma das disciplinas da filosofia que foi sistematizada por Max Scheler no período contemporâneo, mas antes de penetrarmos nas ricas considerações destes diferentes homens espantados com seu próprio ser, cabe uma ressalva sobre quem Max Scheler foi, uma vez que poucos o conhecem. Max Scheler nasceu em Munique, Alemanha a 22 de agosto de 1874. Desde pequeno confrontou a religiosidade, já que foi filho de mãe judia e pai protestante, contudo aos 15 anos de idade, na florescência da adolescência Scheler teve sua primeira conversão sob a influência do capelão do Liceu onde estudava. Mas, o um dos pontos mais importantes deste autor, além de suas curiosidades particulares da vida, foram suas escolhas acadêmicas, pois, Scheler se formou em filosofia e ciências naturais. Foi aluno de Eucken. Discípulo de Husserl. Frequentou o círculo dos jovens fenomenólogos de Gottingen. Ocupou a cátedra de sociologia por muito tempo na Universidade de Colônia. Foi diretor do Instituto de Estudos Sociológicos da mesma cidade, mesmo sem ter formação em sociologia. Em 1928 ele publica a obra “A posição do homem no cosmos”, obra de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho e que marca a sistematização da antropologia filosófica, mas alguns meses depois ele falece. A circunstância intelectual contribui para influências e maturidade intelectual, e nesse momento, grandes pensadores tiveram presença. O encontro com grandiosos mestres como O. Liebmann em Jena colaborou para as influências e

estudos neokantianos. Posteriormente, ocorre em Berlin o contato com Dilthey, que aparece com a exposição de que o ideal de compreensão precisa recuperar o material histórico na busca de sentido hermenêutico. E, ainda, existe o encontro de Scheler com R. Eucken, que foi professor dele e uma de suas maiores influências, a saber, Eucken afirmava que ao homem enraizado na natureza é proposto a tarefa de uma ação de modo que seja possível alcançar a liberdade, mas sem perder este enraizamento. (VEGAS, 1992, P.10). A relação com Husserl deu-se início em Halle no ano de 1901, encontro este que possibilitou o contato com a fenomenologia e seus conceitos importantes. Portanto, a formação filosófica de Scheler e suas obras podem ser divididas em três momentos, sendo eles: o pré-fenomenológico (1896-1906) que é destacado por sua tese de doutorado intitulado Contribuição ao exame das relações entre os princípios lógicos e éticos, e pelo trabalho de habilitação O método transcendental e o psicológico. O segundo período é o fenomenológico (1906-1920), sua época de maturidade, segundo alguns comentadores. Mas, a característica marcante é a publicação de obras importantíssimas como O formalismo na ética e a ética material dos valores (1918) e Do eterno no homem (1921). Por último, o período antropológico e metafísico (1922-1928) onde o rompimento com a fenomenologia pode ser identificado parcialmente, além de corresponde ao projeto inacabado de metafisica e antropologia filosófica, as obras que marcam este período são: A sociologia do conhecimento (1926), e A posição do homem no cosmos (1928), sua última obra publicada.

Alguns estudantes de filosofia possivelmente conhecem Scheler pelo o que foi produzido no campo da moral, uma vez que ele inaugura no período contemporâneo uma modalidade de estudo sobre os valores com auxilio do método fenomenológico. Podemos afirmar que em um determinado momento o pensador tentou desenvolver seus estudos sobre o ser do homem, tendo em vista que o homem não é somente um ser dotado de razão, pois, para ele esta resposta que filósofos anteriores haviam dado não era suficiente, uma vez que o homem não é somente um ser dotado de razão, ademais, o homem é ainda um ser que possui sentimentos, e assim Scheler inicia uma sondagem sobre o caráter dos sentimentos e descobre justamente

através de tal sondagem a relação dos sentimentos com certas possibilidades cognitivas do homem (CASANOVA, 2003, p. 8). Este momento em que nosso pensador se ocupa em entender o ser do homem por meio deste discurso ético-valorativo pode ser entendido como a fase fenomenológica, aquela em que muitos preceitos herdados por Husserl são conceituados, como por exemplo, a intencionalidade da consciência. No entanto, Scheler vê que por este método, possivelmente, ele não terá acesso à essência mesma da questão. É mais do que certo entender que, este rompimento não se deu de um dia para o outro, e muito menos se deu por completo, mas a fenomenologia neste momento não era mais um método descritivo por excelência, porque ele, como muitos outros discípulos de Husserl tiveram uma desilusão com o caminho que o método enveredou, a saber, Husserl prolongou seus estudos fenomenológicos derivando-os a um “transcendentalismo” em que o centro era ocupado pela consciência como constitutiva do objeto, enquanto que para Scheler o método era entendido como meramente descritiva e com um ar realista (VEGAS, 1992, p.11), e por estas razões ele rompe com a fenomenologia de modo que o discurso se torna um pouco mais antropológico e metafísico, e é justamente neste período que é notado por Max uma possível crise com a antropologia filosófica. Era sabido, segundo Scheler, que no período antigo o modo de conceber esta questão estava fundado na perspectiva de que o homem elevou seu potencial e a compreensão de sua posição no mundo por meio da razão, do logos, que significa tanto discurso, quanto capacidade de apreender a “quididade” (SCHELER, 2003, p.6), já no período medieval, onde a justificação da fé por meios racionais estava fortemente enraizada, trouxe consigo uma resposta interligada com as tradições judaico-cristãs, ou seja, potencialmente a resposta estaria na esfera de Adão e Eva, a criação, e o paraíso, posteriormente, com as evoluções do homem, das ciências e de método, já que este momento é caracterizado pela vitória das ciências sobre as evidências de fé trazidas pelos “teólogos-filósofos” fazendo assim com que no período moderno a possibilidade de conhecer melhor o ser do através da moderna ciência da natureza e pela psicologia genética era mais importante, e esta ciência afirmava que o homem é um resultado final da evolução do planeta Terra. É possível perceber a dificuldade e os modos diferentes de responder uma mesma questão, no entanto a existência da antropologia científica, filosófica e/ou mesmo teológica não dão conta de elucidar o que de fato é o ser do homem, e qual

sua posição, assim como, as tradições expostas anteriormente também não conseguem revelar a essência mesma deste ser. Portanto, para que seja possível esse desvelar o filósofo Max Scheler defenderá que não há uma ideia una do homem, já que ao invés de iluminar o caminho para a concepção da essência e posição do homem, simplesmente encobre e obscurece essa possível resposta filosófica. Esta preocupação não foi somente de Scheler, o filósofo Kant 1 soube muito bem elencar o interior da razão humana quando demonstrou os interesses filosóficos com as questões sobre a fundamentação do conhecimento: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? E, o que é o homem? Pois bem, vejamos que no período em que Kant evidencia estas questões, a saber, o moderno, as atenções estão voltadas nas relações sujeito e objeto, portanto, como o sujeito se coloca mediante a questão o que é o homem? Assim, neste sentido o objeto se torna o homem, sobretudo nesta perspectiva, não se materializa o homem, mas sim admite e considera sua natureza como sujeito e com a finalidade de construir um conhecimento, e também um discurso sobre o mesmo. Diante das diferentes tradições e modos de concepção do homem desenvolvidos, é possível notar uma crise da própria antropologia, já que existe uma especificação das áreas de investigação, pois, segundo Scheler, não existe uma unidade entre as tradições e áreas de investigação, uma vez que as ciências se desenvolveram de tal modo que seu método permitiu também descrever o que o homem é. Portanto, o pensador se propõe em elucidar com um belo tratado filosófico de modo mais claro e evidente a posição metafisica do homem e qual sua essência, fazendo uma conciliação entre filosofia e ciência partindo da construção anímica, a fim de comparar o homem com os animais e plantas, e demonstrar a singularidade do ser humano. A

obra

“A

posição

do

homem

no

cosmos”

marca

o

período

antropológico/metafísico de Scheler. Este tratado filosófico da antropologia foi publicado em 1928, alguns meses antes de sua morte. E, é neste livro que o filósofo alemão irá definir o homem como ser ávido de coisas novas, e demonstra como a postura do homem vai além da possibilidade de conhecer.

1

Filósofo alemão que marca o período moderno que desenvolve trabalhos sobre a fundamentação do conhecimento.

Deve ser dada devida atenção à profundidade e riqueza do pensamento desenvolvido sobre a antropologia filosófica, e também à consideração que Gadamer faz, a saber, é simplesmente inacreditável, quando se pergunta hoje a um jovem, ou mesmo a alguém mais velho que se interessa por filosofia, ele mal sabe quem foi Max Scheler (GADAMER, 2007, p. 17). A importância de descrever o que o homem é, e qual sua essência se faz presente até hoje, logo é importante trazer um estudo sobre estas questões que são elucidadas por tanto tempo, e, além disso, há de considerar que é interessante pontuar o que torna uma antropologia filosófica e o motivo da preocupação em unificar as tradições a fim de se ter uma possível conclusão sobre a problemática do ser do homem. Scheler afirma brilhantemente que nunca se teve tanto conhecimento sobre o homem, e ao mesmo tempo nunca foi tão difícil defini-lo como foi no período contemporâneo. Contudo, esta dificuldade ainda é sentida pelos estudiosos em nossos dias, ainda mais neste momento tão incerto sobre a própria essência da humanidade, portanto a relevância de repensar algo que este filósofo tratou, e a compreensão das influências que o mesmo teve acabam sendo significativo para abordagem de um trabalho de conclusão de curso. Este trabalho não visa de modo algum mudar a postura da humanidade diante da essência do homem, ou até mesmo da antropologia filosófica, pelo contrário, esta dissertação se pauta na explanação dos argumentos importantes que o filósofo Max Scheler traz na tentativa de explicar a posição peculiar do homem, e também na tentativa de compreender melhor o próprio filósofo. Sendo assim, a efetivação deste trabalho terá com um cunho filosófico e amparado pela a história da filosofia contemporânea o objetivo de demonstrar quem foi afinal Max Scheler, o que caracteriza o homem e sua antropologia filosófica.

CAPÍTULO I

A pergunta sobre o que é o homem está contida na história da filosofia e existem diferentes tradições que tentam responder e sanar essa questão, pois é a admiração e a interrogação inquietante de um problema que move um filósofo, que por meio de sua curiosidade e rigor sistemático – próprio da filosofia – desenvolve um tratado filosófico, e, consequentemente, influência toda uma geração de pensadores, possivelmente sem mesmo ter intenção de tal façanha. Nesse primeiro capítulo será compreendido, brevemente, de que modo os pensadores, com o espanto e curiosidade, empreendeu a reflexão sobre o homem, desde a Idade Antiga ao momento contemporâneo, sendo possível entender o desenvolvimento da antropologia filosófica.

1. O QUE É O HOMEM? Se retomarmos Platão, será constatado que a admiração é um sentimento importantíssimo para a reflexão filosófica, e assim ele escreve na obra Teeteto A admiração é o estado dum homem que ama muito a sabedoria 2, assim como Aristóteles que considerava a admiração um componente essencial para a vida na filosofia. Quando se leva em consideração somente a questão “O que é o homem?” podemos perceber que é uma das inúmeras indagações que surgiu a partir desse sentimento de admiração oriundo da filosofia, mas que também foi responsável pela origem da disciplina antropologia filosófica. Portanto, foi pela admiração que o homem se tornou objeto do conhecimento filosófico, ora, Sófocles no II canto da “Antígona” apresenta o homem como digno de ser admirado3, assim aquele ser que possui a admiração também pode ser admirado, ou seja, o homem se torna objeto. “Muitos milagres há, mas o mais portentoso é o homem. Ele, que singra o mar sorrindo ao tempestuoso Noto, galgando vagalhões que escancaram em torno o abismo; e que a Deusa suprema, Terra, a eterna infatigável, anos após ano, rasga o arado e pisa com cavalos [...] Somente a morte não sabe fugir, embora as piores doenças saiba achar remédio. Senhor da arte 2 3

PLATÃO, Teeteto, p. 11 RABUSKE, 2001, p. 11

e de engenho que ultrapassam qualquer sonho, pode preferir tanto o mal como o bem” (SÓFOCLES, II canto Antígona, § 335- 370).

Compreender o que é o homem é uma tarefa extremamente difícil e a filosofia possui uma posição central, todavia quando temos em vista tantos avanços científicos, e as inúmeras pesquisas sobre o homem no âmbito da ciência, fica complicado obter uma resposta meramente através da pura reflexão filosófica, por isso, se faz importante conciliar a filosofia com a ciência para o desenvolvimento da antropologia filosófica, mas afinal, o que é antropologia filosófica? Bem, para perceber o que essa disciplina significa é preciso estar disposto a entender, primeiramente, que por algum tempo o estudo do homem era chamado “De Anima” e era o estudo, ao mesmo tempo experimental e metafísico 4, mas era muito mais metafísico do que propriamente experimental, portanto, foi com Wolff, um dos primeiros teóricos que foi possível distinguir os dois tipos de pesquisa, e assim, tal distinção se fez, mas segundo o pesquisador Edvino Rabuske, o termo “Antropologia” foi usado no século XVI pelo humanista O. Casmann quando publicou em 1596 uma “Psycologia anthropologica”, contudo, esse termo se tornou conhecido mesmo a partir de Kant, que foi responsável por colocar a questão “O que é o homem?” em pauta em meados dos anos de 1778. O filósofo Kant soube muito bem elencar o interior da razão humana quando demonstrou os interesses filosóficos com as questões sobre a fundamentação do conhecimento: O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar? E, o que é o homem? Pois bem, vejamos que no período em que Kant evidencia essas questões, a saber, o moderno, as atenções estavam voltadas nas relações sujeito e objeto, portanto, como o sujeito se coloca diante da questão o que é o homem? Assim, nesse sentido o objeto se torna o homem, sobretudo, nessa perspectiva, não se materializa o homem, mas sim, admite e considera sua natureza como sujeito, e, sobretudo, com a finalidade de construir um conhecimento, e também um discurso sobre o mesmo. A autonomia e sistematização da disciplina antropologia filosófica se deu no século XX, com um movimento constituído por grandes pensadores, a saber, Max

4

MONDIN, 1926, p.9.

Scheler, Helmuth Plessner5 e Arnold Gehlen6, e o foco maior desse movimento era de construir uma antropologia filosófica para atingir a essência do homem, sem desconsiderar o que havia sido desenvolvido anteriormente pela história da filosofia sobre a questão do homem, e, também, levando em conta o que as antropologias física, social e cultural produziram até então. É possível perceber a dificuldade e os modos diferentes de responder uma mesma questão, no entanto, a existência da antropologia científica, filosófica e/ou mesmo teológica não dá conta de elucidar o que de fato é o ser do homem, e qual sua posição, assim como, as tradições expostas anteriormente não conseguem revelar a essência mesma deste ser. Portanto, para que seja possível esse desvelar, o filósofo Max Scheler, defenderá que não há uma ideia una de homem, já que ao invés de iluminar o caminho para a concepção da essência e posição do homem, simplesmente se encobre e obscurece uma possível resposta filosófica acerca do problema. 1.1 A crise da antropologia filosófica na tradição filosófica E possível observar que na história do pensamento existiram perspectivas diversas sobre o estudo do homem, pois, na filosofia clássica grega a visão de homem era cosmocêntrica, enquanto que, quando observamos o que foi desenvolvido durante a idade média, na filosofia cristã o homem era visto a partir da perspectiva teocêntrica, e no período moderno e contemporâneo, são observados estudos sobre o homem a partir de uma visão antropocêntrica. E, é mais do que certo, afirmar que destas diversas perspectivas foram obtidas imagens diversas sobre o próprio ser do homem. Foi identificado o problema da antropologia filosófica nas diferentes tradições, e foi reconhecido que só por meio de uma antropologia filosófica que é possível fornecer um fundamento último da natureza filosófica, além de objetivos determinados para outras ciências que tratam do mesmo assunto, a saber, o homem. Entretanto, não foi desse modo que a antropologia filosófica se 5

Helmuth Plessner (1892-1985) foi filósofo e sociólogo alemão, que ao lado de Scheler ajudou a sistematização da antropologia filosófica moderna, além de ser responsável pela publicação da obra “Die Stufen der Organischen und der Mensch” no ano de 1928. 6 Arnold Gehlen (1904-1976) foi um filosófo e sociólogo alemão que com Scheler conseguiu desenvolver estudos na área da antropologia filosófica, além de ser reconhecido pelo auxilio na sistematização da antropologia filosófica moderna.

desenvolveu, sobretudo, quando se pensa que dentro da história de dez mil anos, o período contemporâneo é a primeira época em que verdadeiramente o homem se tornou problemático, pois, ele não tem noção de qual sua essência e nem mesmo de sua estrutura essencial, ao mesmo tempo em que sabe que não sabe tais determinações essenciais. É preciso compreender que o erro na antropologia filosófica foi identificado tendo em vista o homem e a história do pensamento, portanto, para que seja possível a apreensão da ideia do homem é preciso fazer uma tabula rasa. A expressão tabula rasa está presente na história da filosofia. e quem melhor trabalhou tal conceito foi John Locke (1632 – 1704), que negou a existência de ideias inatas, assim, quando o ser humano nasce, argumentava que a mente era uma página em branco e que conforme este ser confrontava o mundo esse papel em branco era preenchido, sendo assim, o conceito de tábula rasa faz menção a esse papel em branco. Nesse momento, deve ser advertido que não está sendo afirmada nenhuma influência de Locke sobre o que Scheler desenvolveu enquanto antropologia filosófica, senão, somente está sendo demonstrado o que é tabula rasa, pois, para Scheler, é preciso fazer uma tabula rasa de todas as tradições referentes ao homem, com objetividade e espanto para chegar a opiniões sólidas acerca do homem, para que seja possível a sistematização da antropologia filosófica. Contudo, existe certa dificuldade metodológica, ou seja, há de constar uma grande dificuldade na aplicação da tábula rasa nas tradições referentes ao homem, por isso, o que poderá ser desenvolvido a fim de “libertar” lentamente destas categorias é chegar a conhecê-las com exatidão na sua origem histórico-espiritual e dominá-la através desta tomada de consciência7 e sistematizar a antropologia filosófica. Portanto, o ponta pé inicial se dá no conhecimento da história da consciência de si do homem, e posteriormente, compreender as ideias do homem e seu correlato com a concepção histórica, pois toda teoria histórica tem seu fundamento em uma espécie de antropologia8 A consciência de si do homem se desenvolve tendo como inicio a cultura clássica, pois é nela que residem as primeiras determinações acerca da consciência

7 8

SCHELER, 1986, p. 74. Ibid., p. 77.

do homem, a saber, foi nesse momento que se cunhou aquela ideia de logos, razão, e do espírito, que como agente especifico e próprio somente do homem, devendo elevá-lo para muito além de todos os outros seres9 depois passa pela tradição cultural da idade média, que afirma, por sua vez, o cristianismo, com as doutrinas de Deus-homem e homem-filho-de-deus, isto, demonstra uma nova concepção e evolução da consciência de si do homem, onde ele se coloca como o filho de Deus. Enquanto que, na modernidade a palavra razão, cunhada pelos clássicos, é abordada novamente e evolui, pois nesse momento pensadores como Descartes declarará a soberania do pensamento, além disso, esse momento é marcando pelo reconhecimento de que o sol é o centro do sistema solar. “É verdade que o homem reconhece ser apenas um habitante de um pequeno satélite do sol; entretanto, que sua razão possua força de penetrar dentro da aparência natural dos sentidos e de invertê-las – é isto justamente que aumenta notavelmente a sua consciência de si” (SCHELER, 1986, p. 75).

Portanto, é notada uma correlação da história com a antropologia, pois seguindo a evolução natural da história, se segue a evolução do pensamento, e consequentemente, das questões acerca da antropologia, por exemplo, o período histórico

de

transição

da

idade

média

para

idade

moderna

tem

seus

desdobramentos, que influenciaram questões de nível filosófico e evoluíram, de modo que a reflexão sobre a questão do homem evolui. Scheler com a preocupação em destroçar qualquer conceito errado sobre o homem, o método da tábula rasa é abraçado, para conseguir entender melhor como o que o homem é essencialmente. Além de ter em mente a evolução história do homem, é vista ainda, a importância das ciências naturais, pois como se sabe, Scheler foi um estudioso dessa área também, então era mais do que certo esperar influências dessa área do conhecimento que ele tinha domínio, por isso, como filosófo ele considera o que havia sido produzido filosoficamente, historicamente e cientificamente sobre o homem, e demonstra o modo como até o período contemporâneo tais áreas e momentos históricos não deram conta de sanar essa problemática, portanto, com auxílio de outros estudiosos ele pensa e sistematiza a antropologia moderna.

9

SCHELER, 1986, p.73.

Quando se tem em mente uma antropologia cosmocêntrica, como representante existe o filosófo Platão, pois ele afirmava que o homem é essencialmente alma, alma espiritual, incorruptível, e, portanto, imortal, isto para Platão, não era necessariamente um problema, porque na verdade, o problema estaria centrado no como “libertar” a alma da prisão do corpo 10. Enquanto que, na filosofia cristã, que se abre para o homem na perspectiva teocêntrica, tem como representante Santo Agostinho. Ora, o pensamento do Bispo de Hipona é essencialmente centrado no homem e Deus, sendo assim, ele propõe estudar a alma, porque é nela que Deus reside, portanto, pode ser observado, que Agostinho segue a mesma linha de Platão, pois foi visto a dicotomia entre alma e corpo, e, assim, a redução do homem à alma, neste sentido, o homem possui liberdade para o conhecimento intelectivo com respeito a qualquer contribuição do corpo11. Era sabido, segundo Max Scheler, que no período antigo o modo de conceber a questão sobre o ser do homem estava fundada na perspectiva de que o homem elevou seu potencial e a compreensão de sua posição no mundo por meio da razão, do logos, que significa tanto discurso, quanto capacidade de apreender a “quididade”12, já no período medieval, onde a justificação da fé por meios racionais estava fortemente enraizada, trouxe consigo uma resposta interligada com as tradições judaico-cristãs, ou seja, potencialmente a resposta estaria na esfera de Adão e Eva, a criação, e o paraíso, mas, com as evoluções do homem, das ciências e de método, no período moderno a possibilidade de conhecer melhor o ser do homem através da moderna ciência da natureza e pela psicologia genética era mais importantes, e esta ciência afirmava que o homem é um resultado final da evolução do planeta Terra. Mas, quando se pensa o momento contemporâneo, se têm em mente a perspectiva antropocêntrica, e neste caso, um dos representantes clássicos desse momento é Martin Heidegger, que afirma categoricamente que antropologia quer dizer ciência do homem13, ou seja, envolve a natureza humana e propicia diferenciar o homem da planta e do animal, e foi em vista disso que o filósofo Martin Heidegger, em sua obra “Kant e o problema da metafísica”, acentua no capítulo sobre “a ideia 10

MONDIN, 1926, p. 11. Ibid., p. 11. 12 SCHELER, 2003, p.6 13 Tradução nossa. HEIDEGGER, 1986, p. 176. 11

de uma antropologia filosófica” que, essa problemática é a que permite que o ente que chamamos de homem possa ser diferenciado das outras demais regiões do ente, nessa perspectiva, a antropologia filosófica, se converte em uma ontologia regional de homem, portanto, a antropologia como esse campo que tenta entender o homem, abraça o que é possível ser investigado a respeito da natureza humana, na qualidade de um ser dotado de corpo, alma e espírito, isto significa que a antropologia é uma tendência fundamental da posição que o homem ocupa de si mesmo14, por isso, a grande dificuldade em acessar a essência da questão. A antropologia filosófica possui condições de desenvolver um discurso mais rico sobre o homem do que no passado, e o filosófo Max Scheler, é o exemplo claro do que a antropologia pode assumir. Por isso, a antropologia filosófica possui uma responsabilidade grande, pois é nessa disciplina que residem, também, de acordo com Scheler, os problemas psicofísicos do corpo e da alma e o problema no-ético fundamental15. Na tentativa de empreender e organizar uma antropologia filosófica, que fosse responsável por sanar tal questão, e adentrar a essência mesmo do homem, Scheler tinha em mente que a antropologia deveria ser uma ciência fundamental da estrutura essencial do homem, bem como, sua relação com o que é animal, inorgânico e o fundamento de todas as coisas, da origem da metafísica da sua essência, como do seu início físico, psíquico e espiritual no mundo16. “Em nenhuma época se teve tanto conhecimento sobre o homem como a nossa. Em nenhuma época se expôs o conhecimento do homem de forma mais penetrante e mais fascinante como essa. Nenhuma época, como hoje foi capaz de fazer acessível esse saber com a rapidez e facilidade que a nossa. E, contudo, em nenhum momento se sabe menos acerca do que o homem é. Em nenhuma época o homem tem sido problemático como a atual” (HEIDEGGER apud SCHELER, 1986, p. 177).

1.2 O homem: Um animal extraordinário Na tentativa de aprofundar o estudo sobre o ser humano, e para entender o modo como Scheler conciliou a filosofia com as ciências naturais, é preciso, antes de tudo, entender que somente por meio da reflexão filosófica, não é possível acessar a essência mesma da questão sobre o homem, portanto, se faz necessário,

14

HEIDEGGER, 1986, p. 176 e 177. SCHELER, 1986, p. 72. 16 Ibid., p. 72. 15

o auxílio das ciências empírico-formais, pois assim, é possível ter uma ideia mais clara, ou, uma aproximação mais determinante do que seria o ser humano. Assim sendo, é preciso considerar que nas ciências-empírico-formais, a primeira em que o homem acontece objetivamente é a biologia, pois, é na biologia que o homem é considerado um ser vivo, além de ocupar um “lugar”, a saber, “homo sapiens”. Mas, o homem é também um corpo no espaço e no tempo, além de ser um complexo de processos químicos, portanto, a física e a química também podem auxiliar a investigação sobre o ser do homem, no entanto, nessas áreas o homem não ocorre objetivamente como na biologia. O método do biólogo é a comparação, que na grande maioria das vezes, acontece com indivíduos de uma espécie com indivíduos de outra espécie, de preferência das espécies que são mais parecidas. Além disso, a comparação pode ser feita em duas dimensões, sendo uma tendo em mente a condição da profunda diferenciação do homem e o animal, e a outra, tendo como perspectiva a coincidência na animalidade com base comum, e depois, os estudos se concentram nas diferenças. A dimensão do procedimento da biologia para poder auxiliar a filosofia é a segunda dimensão, pois a procura dum conceito da essência do homem, no diálogo com as Ciências, implica que o acento seja posto no específico, é naquilo que destaca o homem do geral no respectivo objeto da ciência17. Quando se pensa nas diferenças do homem e do animal, as principais constatadas pela ciência que devem ser consideradas referem-se ao cérebro, a presença das mãos - que segundo Aristóteles era considerado o instrumento dos instrumentos - e pela postura ereta. O cérebro ocupa a parte mais importante do sistema nervoso central, e na organização de um ser vivo é responsável por caracterizar a “inteligência” deste ser, por isso, é certo esperar que o cérebro do homem seja privilegiando, já que, aos olhos da biologia, o cérebro humano permite a capacidade do agir inteligente, de tal modo, que o mesmo possa ser qualificado como “homo sapiens”. No homem o cerebelo, que é competente pelos domínios que direcionam os instintos, é filogeneticamente mais velho e atrofiado, enquanto que, o

17

RABUSKE, 2001, p.22.

volume do cérebro18 do homem ocupa as funções mais altas e está desenvolvido de modo extraordinário. A

organização

do

esqueleto

do

homem

também

apresenta

certa

peculiaridade, já que tudo converge para o porte ereto – ligação do crânio com a coluna vertebral, a curvatura dos pés, o alargamento da caixa torácica, e etc. – o porte ereto do homem, traz algumas desvantagens como doenças, a saber, artrite, varizes, pés chatos, estômago caído e outros, mas, antes de tudo, os braços livres permitem que o homem trabalhe, e o polegar opositor permite que homem tenha habilidades específicas também. O homem é o único animal nu, a pele não é especializada contra o frio ou o calor, mas permite a sensação em toda sua extensão. Há de constar outras diferenças que a biologia se ocupa, como por exemplo, as diferenças de comportamento, que de acordo com o que é observado pela ciência o animal se mostra fixado de modo típico para a respectiva espécie, sem contar, que a experiência que o mesmo pode ter. Consequentemente, todos os estímulos dos animais estão relacionados ao meio ambiente, e podem ser vistos como um resultado da atuação do mesmo, nesse sentido, o meio ambiente deve ser entendido como as plantas, inimigos, parceiros sexuais, filhotes e etc. Assim sendo, todo o conhecimento obtido pelo animal é provocado por certos esquemas que possuem

relação

com

o

comportamento

do

animal,

são

estímulos

que

desencadeiam uma reação19. Logo, pode ser observado que o animal possui um impulso para a conservação própria e a espécie, além de existir uma correlação com entre as figuras de movimento e estímulos. Em suma, o comportamento do animal é caracterizado pela relação direta ao meio ambiente. O animal não é uma máquina, por isso deve ser considerado que mesmo quando se afirma que o animal possui uma relação direta com o meio ambiente, isso não simboliza que o animal age de modo mecânico, senão, simplesmente, que o animal pode ter percepções sensoriais, além da capacidade de memorização sensível e associativa. O animal conserva em sua memória impressões, que podem ser despertadas em qualquer outro momento em que possui 18

O volume do cérebro do homem mede 1.300cm³ (mais ou menos), enquanto que o volume do cérebro de um gorila mede pelo menos 500 cm³ (RABUSKE, 200, p.22). 19 Ibid., p. 23

contato com outra impressão, mas tudo isto está estreitamente ligado e determinado no meio-ambiente. Com tudo o que foi exposto, até então, faz menção aos conceitos chaves que são possíveis serem utilizados para entender o homem, tendo em mente o que a biologia permitiu entender com suas experiências, que são: desvinculação relativa do instinto e vinculação a cultura20. O que a biologia nos permite afirmar são duas coisas: uma que o homem é um animal de ordem dos primatas, e em um segundo momento, é possível entender que o homem é um animal de espécie própria, ou seja, o homem é um animal que se destaca de todos os outros animais. Tendo em vista tais considerações, Max Scheler, na obra A posição do homem no cosmos, se atem ao que alguns biólogos, psicólogos e intelectuais representantes da área das ciências empírico-formais descobriram e estudaram, com o propósito de entender melhor o destaque do homem em relação aos outros animais, bem como, chegar o mais próximo possível da essência mesmo do ser do homem. 1.3 A construção do mundo psíquico Era defendido por Scheler que se for interessante trabalhar a visão de mundo de modo filosófico, isto é, abordar uma visão filosófica de mundo é imprescindível que o filósofo tenha coragem de amparar seus argumentos na sua própria razão, e, sobretudo, duvidar de opiniões herdadas para o desenvolvimento de um argumento filosófico. Diante disso, ele buscou em toda a sua vida acadêmica, tratar qualquer questão filosófica de modo que suas ideias, seus argumentos não fossem tachados como fetichismo, ou, até mesmo como certo tipo de idolatria. Ora, o homem deve fazer constantes análises e questões sobre tudo o que é posto como verdade absoluta, e uma vez observado um argumento oriundo do senso comum, é mais do que obrigação do filósofo destroça-lo, e com isso, o homem encontra o estado de espírito próprio e motivação. Foi com esse espírito, que Scheler, defendeu a premissa de que deve existir diálogo entre a filosofia e ciência, sobretudo, para responder a questão sobre o ser do homem, pois, só será possível acessar a verdade de tal questão se existir esforços para construção conjunta do mundo biopsíquico, que nesse caso, só se dá mediante o auxílio da biologia. 20

SCHELER, 2003, p. 33.

Existe uma gradação de forças que atuam sobre os animais em geral, e capacidades psíquicas que permitem a sobrevivência dos mesmos. Mas, o fenômeno psíquico originário da vida, se dá no ser-para-si, e no ser íntimo dos seres vivos, pois, é certo entender, que os seres vivos não são somente seres que podem ser observador por “observadores externos atentos”, mas possui, sobretudo, um serpara-si e um ser íntimo, que é o que permite que sejam íntimos de si mesmos. Por isso, a construção biopsíquico, idealizada pelo filósofo Scheler, possui quatro formas anímicas, sendo elas: impulso afetivo, impulso, memória associativa e a inteligência prática. Essas diferentes formas anímicas, expressam de modo mais determinante a gradação de forças e as capacidades psíquicas dos seres vivos, em cada uma dessas categorias. 1.3.1 Impulso Afetivo (Planta) O impulso afetivo é o nível mais infímo do psíquico, além de ser o modo em que o ser vivo não possui representação, sensação ou até mesmo consciência, por isso, nessa primeira forma anímica, o filósofo Scheler, toma a planta como o exemplo mais fiel ao que representa esse nível do psíquico. A planta vive de modo que não possui consciência, ou representação, é um mero “para lá”, por exemplo, para a luz, e um mero “afastar-se-de”, um prazer e padecimento desprovidos de objetos21. O impulso afetivo da planta está subordinado ao seu meio, ao crescimento no interior deste meio, segundo as direções fundamentais, sendo assim, as únicas características presentes na planta é o impulso para o crescimento e reprodução, nada mais, além disso. Mesmo a planta sendo a exemplificação do impulso afetivo, deve ser advertido que esse nível anímico não existe somente na planta, senão, ainda, em todos os outros seres, mas, sobretudo, existe no homem também, pois o homem reúne em si todos os níveis essenciais da existência, e neste caso, o impulso apresenta a unidade de todas as pulsões e afetos articulados dos homens22.

21 22

SCHELER, 2003, p. 9. Ibid., p.14.

1.3.2 Instinto (Animal) O instinto é visto como a segunda forma anímica, e pelo filósofo, é definido a partir do comportamento do ser vivo, que é objeto de observação e descrição, ou seja, o comportamento instintivo é aquele que transcorre em certo ritmo invariável, deve ainda, ser condizente com o sentido, ou seja, ser de tal modo que possua certa finalidade – que seja teleoklino23. O instinto serve a espécie de cada ser vivo, por isso diz respeito às situações que possuem grande significação para a espécie, e é aquele comportamento que, independente do número de tentativas do animal, faz frente a uma situação. O instinto já está incorporado à morfogênese do ser vivo, e se encontra ativo na mais estreita conexão com as funções plasmáticas fisiológicas, que cunham pela primeira vez as formas estruturais do corpo dos animais24. Portanto, é entendido como comportamento instintivo, aquele que é condizente com os sentidos, ou seja, com o meio ambiente, além de ser aquele comportamento independente do número de tentativas que um animal empreende para fazer frente a uma situação determinada. 1.3.3 Memória Associativa A terceira forma psíquica, e base para compreensão da posição do homem, representa a associação de ideias, que é conhecido como memória associativa, ou mneme. Essa forma psíquica faz menção a certa aptidão que não pertence a todos os seres vivos, pois esta capacidade é atribuída a todo e qualquer ser vivo, cujo comportamento

se

modifica

lenta

e

constantemente,

em

razão

de

um

comportamento anterior do mesmo tipo, de uma maneira útil a vida. A característica mais importante da memória associativa é o fato de existir a intromissão intelectual nas decisões dos seres. 1.3.4 Inteligência prática O complemento da memoria associativa é considerada a quarta forma psíquica é a inteligência prática. Essa forma psíquica pode ser entendida como o 23

Teleoklino faz menção ao comportamento animal que faz frente a uma situação com certa finalidade condizente com relação da espécie com o meio ambiente. A natureza do comportamento animal parece que como preparado para o fim. 24 SCHELER, 2003, p.18.

corretivo que é inserido nos riscos das primeiras disposições dessa aptidão. A capacidade e características de escolha, ação seletiva, capacidade de preferir entre bens, e a capacidade de estabelecer preferência entre os membros da espécie está diretamente ligado à inteligência prática. Neste ponto, Scheler traz uma característica vinculada, ainda com o orgânico, porém, ao mesmo tempo seu sentido final é sempre um agir, através do qual o organismo perde seu fim pulsional 25, ou seja, quanto mais o Ser exerce a inteligência prática, mais longe do impulso afetivo ele fica, perde o fim pulsional e trabalha a partir da razão, além disso, deve ser ressaltado que essa inteligência prática, essa capacidade psíquica, pode ser colocada nos homens a serviço de metas especificamente espirituais; somente então ela se alça para além da astúcia e do ardil26.

25 26

SCHELER, 2003, p. 30. Ibid., p. 29.

CAPÍTULO II

Pôde ser observado por Scheler, a respeito das capacidades psíquicas e formas anímicas, que existem diferenças, mas, sobretudo, existe ainda a inteligência no animal em graus diferentes do homem, mas existe. Sendo assim, não existira, portanto, uma diferença entre o animal e o homem que não seja meramente gradual, não seria possível uma diferença essencial? Aos olhos de Scheler, existe uma diferença essencial, e, neste segundo capítulo será abordada de que modo essa diferença foi descrita por Max Scheler, além de entender as razões de que modo homem se abre ao mundo e o princípio de espírito.

2. ABERTURA DE MUNDO E O PRÍNCIPIO DE ESPÍRITO Para que possa ser compreendida a diferença gradual entre o homem e animal, é necessário perceber que existem duas teorias diferentes que tentam conciliar essa questão sobre as diferenças necessárias entre o homem e o animal. Uma dessas teorias afirma que o homem possui capacidades de escolha e inteligência negando tais capacidades aos outros animais, de modo, que é considerada uma diferença, mas não é exposta ainda uma diferença essencial. Enquanto que, a segundo teoria é representado por aqueles, que se atrelam e afirmam a doutrina monista sobre o homem, que Scheler, compreende como a teoria do “homo faber”, além disso, as pessoas que aderem essa teoria não conseguem reconhecer nenhum ser metafísico, nenhuma metafísica do homem, isto é, nenhuma relação insigne que o homem possuiria como tal como fundamento do mundo 27. Todos os evolucionistas que trilham o mesmo caminho da escola de Darwin28 e Lamarck29 negam uma diferença essencial e gradual do homem, por isso, Scheler tem em mente, que estes estudiosos também pertencem à segunda teoria, que nega a metafísica e afirma não existir uma diferença derradeira entre homem e o animal, justamente porque o animal possui inteligência.

27

SCHELER, 2003, p. 34. Responsável, juntamente com Alfred Wallace, pela publicação da Teoria da Evolução. 29 Biólogo que defendia o princípio de que os seres vivos evoluem e se transformam. 28

Contudo, Scheler nega as duas teorias, já que para ele a essência do homem, ou seja, a “posição peculiar” se encontra muito além das capacidades de escolha e inteligência, e, sobretudo, tendo em vista, que o que torna o homem “homem” não pode ser simplesmente um novo estágio de vida, ao contrário, o homem é um princípio oposto a toda e a cada vida em geral, também à vida no homem. Dito isso, se coloca em pauta uma nova questão, qual é afinal o fundamento do ser do homem? Seria este fundamento determinante para a compreensão da diferença essencial entre o homem e o animal? Este fundamento, ou melhor, este X para os gregos era a razão, mas que, ao lado do “pensamento das ideias” – Platão – é um conceito que envolve e afirma, de certo modo, uma intuição dos fenômenos originários e conteúdos essenciais, ora, para Scheler, o homem não pode ser somente um ser cujo X é somente a razão, se assim fosse, ele não teria se ocupado em negar as teorias daqueles que afirmam existir uma diferença meramente gradual, assim como, aqueles que seguem as teorias de Darwin e Lamarck, ademais, o homem possui a capacidade de uma determinada classe de atos volitivos e emocionais – ao lado da razão - tais como bondade, o amor, o remorso, a veneração, a ferida espiritual, a decisão livre: a palavra “espírito”. Portanto, é designado ao homem um centro ativo, no qual o espírito aparece30. 2.1 A diferença essencial Pode ser afirmado, que segundo Scheler, existe uma diferença essencial entre o homem e o animal, e essa diferença é determinada pelo fato do homem ser um ser espiritual, ou seja, o X, o fundamento de seu ser é um centro ativo espiritual, por isso, Scheler, se ocupará em dizer que existe uma função particular de conhecimento ao que concerne o conceito de espirito. A capacidade de desprendimento existencial do orgânico está diretamente ligada ao fato de o homem ser espiritual, isto significa, que é possível existir o distanciamento de tudo o que possui uma “inteligência pulsional”, desta maneira, o homem como um ser espiritual não está vinculado a pulsões, ou, ao meio ambiente, ao contrário, o homem possui uma liberdade em relação ao meio ambiente, pois, o ser espiritual se encontra longe do orgânico, e isto, só acontece porque a 30

SCHELER, 2003, p. 36.

inteligência prática está mais próxima do ser espiritual absoluto, e do ser que o homem mesmo é. Sendo assim, o homem possui uma relação inversa com a realidade, pois, o animal age de maneira completamente direta ao meio ambiente, ao orgânico, enquanto que, o Ser de espírito trabalha de modo que permite um afastamento do orgânico, e de tudo o que o atrai ao impulso afetivo e seus instintos. O homem é aquele que pode se comportar abertamente em relação ao mundo. O animal não tem nenhum objeto, não consegue transformar seu meio em objeto como o homem, já que essa é uma característica específica do “ente de espirito”. O animal não consegue ter o afastamento necessário para categorizar e criar conceitos, não consegue transformar o meio ambiente em mundo. Deve ser advertido, que de modo nenhum, se afirma que o animal não é inteligente, pelo contrário, ele possui inteligência, porém, ela é totalmente condicionada a tudo o que é orgânico, ao meio ambiente. Portanto, reunião, autoconsciência, e capacidade objetiva de resistência pulsional originária formam uma única ilacerável que, como tal, só é própria do homem31. Por isso, certamente, pode ser conferido ao ser espiritual um mundo. Tal ser espiritual é livre, tão livre, a ponto de possuir um mundo, devido à possibilidade de desprendimento pulsional e do meio ambiente. “Espírito é com isto objetividade, ele é a possibilidade de ser determinado pelo modo de ser das coisas mesmas. Somente um ser vivo capaz de levar a termo tal pertinência as coisas “tem” espírito. Dito de maneira mais incisiva: o “portador” de espírito é aquele ser cujo trato com a realidade exterior assim como consigo mesmo se inverteu em um sentido dinamicamente oposto ao do animal com a inclusão de sua inteligência” (SCHELER, 2003, p. 37)

Existe aos olhos de Scheler, uma segunda característica essencial do homem, que faz menção a autoconsciência. Pois bem, para o ser espiritual tornar-se autoconsciente, significa permitir uma centralização de sua própria posição e existência, que somente o espírito faculta, e, consequentemente, brota uma nova reflexão sobre o próprio ser de espírito. Essa autoconsciência permite, portanto, que o homem seja capaz de objetivar a sua própria constituição fisiológica e psíquica e justamente por essa razão, que o homem pode modelar sua vida livremente. O homem, ou melhor, o ente de espírito é livre na perspectiva da filosofia scheleriana, tão livre, a ponto de possuir desprendimento do meio ambiente, objetivar o mundo e ser capaz de objetivar sua própria vida no mundo. 31

SCHELER, 2003, p. 39.

Desse modo, fica claro que a autodotação é uma capacidade humana, além de existir a capacidade de transformação de seu meio ambiente em objeto e todo o ser psíquico e físico, e por isso, a partir dessa estrutura ontológica do homem, é possível observar outras peculiaridades humanas, bem como, o fato de o homem ser o único ser que está em posse das categorias, que pelas quais, é possível objetar o meio ambiente e lhe atribuir conceitos. Além disso, desde o início, o homem possui um espaço próprio, e somente no homem que pode ser reunido todos os dados sensoriais como seus impulsos funcionais pertinentes, que os liga a um “mundo” ordenado substancialmente32. O homem, na medida em que é pessoa, consegue se colocar acima de si mesmo como ser vivo e acima do mundo, e, possui ainda, a peculiaridade do humor e ironia que envolve uma elevação por sobre sua própria existência. Rir de si mesmo é ter consciência de seus próprios atos humanos e ser livre para superá-los. Com essa reflexão, Scheler atribui outra determinação do espírito muito importante, a saber, o espírito é o único que é por si mesmo incapaz de ser objetivado, pois é pura atualidade, ou seja, só existe na medida em que existe a livre realização de seus próprios atos. Justamente por essa razão, que o centro ativo do espírito, que neste caso é compreendida como pessoa, não é, e nunca será, portanto, um ser objetivado ou coisificado, senão, somente uma estrutura ordenadora de atos. A pessoa só é em seus atos, e através deles, ora, algo anímico como uma planta não realiza a si mesmo, mas, somente, a pessoa que possui os atributos de certos acontecimentos no tempo, que pode ser, a partir, e pelo centro de espírito ativo. Só assim, que é possível objetivar observações internas percebidas. A planta é passível de objetivação, o que é anímico também, mas o ato espiritual - a intentio - nunca será objetivado. O homem como pessoa, não pode objetivar nem mesmo outras pessoas. O homem só pode se reunir ao ser de sua própria pessoa, ou seja, ao ser e centro de seus próprios atos espirituais, mas nunca objetiva-los. No entanto, é possível existir participação do homem em outras pessoas, já que o mundo que se vive é um mundo onde existem outras pessoas, e o fato de ser impossível objetivar outra pessoa, não excluí a possibilidade de compreensão da mesma. Sendo assim, com o amor, com a vontade de uma pessoa

32

SCHELER, 2003, p. 42.

e por meio da postura de amor espiritual é possível conquistar pelo homem uma participação em outras pessoas, na medida em que se acompanha a realização e co-realiza seus atos livres. A compreensão é, por sua vez, o oposto mais extremo de toda objetivação33. Aqui cabe uma observação importante sobre o sistema filosófico de Scheler. Pode ser afirmado, que em um determinado momento, Scheler tentou desenvolver seus estudos sobre o ser do homem, tendo em vista que o homem não é somente um ser dotado de razão, para ele esta resposta que filósofos anteriores haviam dado não era suficiente – como já foi exposto - o homem é ainda um ser que possui sentimentos, ou seja, que possuía a capacidade de amor espiritual. Existe uma diferença entre a experiência vivida no amor e no ódio, que se dá na referência ao valor, pois o amor de uma pessoa faz possível a dilatação de seu valor, enquanto que, o ódio leva ao contrário, faz a pessoa viver certa constrição. O amor é uma atitude correta e permite que a pessoa penetre mais profundamente o valor de um determinado objeto, enquanto que o ódio ofusca tal valor. Scheler vê no amor um movimento emocional que vai de um valor inferior do objeto a outro superior, enquanto que o ódio se caracteriza pelo movimento contrário, portanto o sujeito deve ao amor a profunda percepção afetiva do valor do objeto, enquanto que pelo ódio se exclui a percepção afetiva do valor. Visto que, as experiências vividas revelam o valor, fica claro que a razão sozinha não descobre o valor, nem traduz sua essência peculiar, por isso é a emoção, o amor e a percepção afetiva que manifesta sua essência axiológica. A participação da pessoa no mundo só acontece por meio da co-realização e co-geração de atos. As ideias não são antes, em, ou, depois das coisas, mas são unidas as coisas. Diferentemente do que Santo Agostinho afirmava, pois era suposto por ele a ideia de ante res, “uma providência”, e um plano de criação do mundo34. No entanto, o mundo existe e é concreto na medida em que é considerado que as ideias estão conectadas as coisas, pois as ideias só são geradas no ato da constante concretização do mundo (criatio continua) no espírito eterno.35Mas, deve ser percebido, que segundo Scheler, a realização de tais atos não é um mero achado de um ser independente de nós, senão uma co-realização, uma co-geração 33

SCHELER, 2003, p. 46. Ibid., p. 46. 35 Ibid., p. 46. 34

da essências, ideias, valores, e metas subordinadas ao logos eterno, ao amor eterno e à vontade eterna, a partir do centro e da origem das coisas mesmas 36. 2.2 O ato de ideação e a ideia de homem Na intenção de clarear a ideia do que é espírito, o filósofo Max Scheler se ocupa em desvendar e exemplificar o que seria o ato de ideação, tendo em vista, que para ele este ato é primordial para compreensão da diferença essencial entre o homem e o animal, além de possuir relação com o espírito, já que este ato é essencialmente espiritual. Logo, se nota outra característica diversa, pois, se o ato de ideação é essencialmente espiritual, somente o homem possui tal capacidade, além de ter em vista que este ato trata de modo diferente a inteligência, técnica e de todo o agir que já foi atribuído ao animal. Mas afinal, o que significa idear? Pois bem, a capacidade de ideação além de pertencer somente ao ente de espírito, é, sobretudo, sempre co-aprender cada vez as qualidades essenciais e as formas de construção do mundo em meio a um exemplo oriundo da região essencial da questão37. Por exemplo, o homem pode sentir dor e levantar uma questão: mas como essa dor surgiu? A resposta pode ser buscada através de análises científicas, mas se este mesmo homem que sentiu a dor e perguntou sobre sua origem se distanciar um pouco, e por meio de uma reflexão mais meditativa, esse mesmo homem retomar a questão sobre a dor pode ser que tal questão evolua e seja mais essencial, ou seja, o homem pode inferir que existem outros seres humanos que sentem dor, e que a dor pode ser acompanhada de sofrimento, e mal, e tais sensações são universais, ora, o mundo está manchado de dor? Portanto a questão do surgimento da dor se converte em algo mais essencial, a saber, o que é a dor mesma? Outro exemplo que serve para apreender essa capacidade humana e que o próprio Scheler utiliza, é a história da conversão de Buda, pois, de acordo com o que se conta, Buda ficou por muito tempo afastado do palácio de seu pai, e de todas as impressões negativas possíveis, e, depois de um tempo, em suas meditações ele vê um homem morto, outro doente, e outro homem pobre. Nessa visualização é assimilada de modo que é afirmado por Buda, então, que estes três casos que se 36 37

SCHELER, 2003, p.46. Ibid., p. 48.

apresentaram naquele instante a ele, era a exemplificação do que seria a constituição essencial do mundo. As questões postas se elevam de acordo com o espírito do homem, diferente do animal, que não está em condição de fazer nada deste gênero. Todas as perguntas são exatamente como o espírito as coloca38, se o espírito estiver o mais próximo possível da inteligência prática, ele estará de certo modo elevado, consequentemente, a questão a ser colocada será também elevada. Existe, por assim dizer, uma relação proporcional na graduação da questão – o que é pensado, admirado e inquietante ao homem – com o espírito, se existisse uma “equação” para compreensão do modo como o homem coloca a questão, seria basicamente, expressa da seguinte maneira: “espírito=questão – desprendimento”, já que esta elevação mesma do espírito se dá pelo desprendimento do que é orgânico, como já foi exposto. Mas, independente do modo como se quantifica as observações do homem, e o modo como se chegar às conclusões indutivamente por meio da inteligência, idear significa co-aprender as construções do mundo. O homem caminha em busca do conhecimento, e nesse sentido, existem conhecimentos essenciais, que de acordo com o filósofo alemão, possuem duas funções diferentes, a saber, as ciências positivas buscam a verificabilidade por intermédio da observação e da mensuração39, enquanto que, a metafísica filosófica, com a meta do conhecimento do ser em destaque que concerne ao que às essências formam como Hegel diria “janelas para o absoluto”. Qualquer essência que a razão do homem encontra no mundo não pode ser reconduzida nem por si mesma, pois uma vez que é essência, só pode ser atribuída a um espírito supra singular, como o atributo do “ens supra - singular se”40, ou seja, o conhecimento essencial permitido pela metafísica filosófica é apreensão da essência mesma – ens supra-singular se – que é o ser em si mesmo. O essencial a ser entendido sobre o homem, até então, é que ele, como um ser capaz de conhecer essencialmente as coisas por meio da ciência positiva e por meio da metafísica filosófica, pode, ainda, alcançar um saber a priori, e as intelecções conquistadas pelo ser humano, desse modo, vai para além dos limites 38

SCHELER, 2003, p.48. Ibid., p. 49. 40 Ibid., p. 49. 39

de toda experiência sensível, uma vez que valem para o mundo o que realmente existe e para os mundos possíveis. Portanto, a capacidade de cisão entre a essência e a existência perfaz o traço fundamental do espírito humano, um traço que funda os demais41. Para Scheler, não é possível existir uma organização racional do modo como Kant afirmou, pois para Kant existem conceitos que cabem ao entendimento humano, de modo que o fenômeno apresentado é intuído por meio das percepções a priori de espaço e tempo, e que pela tábua dos juízos, tal fenômeno antes apresentado, se torna algo do entendimento humano, além disso, para Kant não é possível conhecer o fenômeno em si – conhecido como“ens suprasingular se” para Scheler -, somente o que a intuição do homem legisla acerca da representação deste tal fenômeno. Mas, essa organização racional, está errada no ponto de vista de Scheler, pois não reconhece a possibilidade dos conhecimentos essenciais além de negar que tais conhecimentos são inerentes ao homem, nesta perspectiva se questiona: onde está a essência do ser? O homem pode, consegue e alcança a essência das coisas (ens en se) e é o grande responsável por permitir que seja percorrido o caminho da ideação pelo homem, que se dá por meio da suspensão do caráter de realidade das coisas. Como já foi afirmado, o animal vive no totalmente concreto. Enquanto que, o homem nesta tentativa e possuidor de tal “técnica” de apreensão da essência, o logos essencial é desvelado a partir do mundo concreto das coisas. Contudo, toda realidade implica numa relação de espaço e tempo, um aqui e um agora, e, além disto, um ser casualmente do modo como a percepção sensível o apresenta a partir sempre de um “certo” aspecto42. Logo, ser homem significa: lançar um vigoroso “não” de encontro a este tipo de realidade estritamente concreta, e muitos pensadores levou em conta tal característica. Quando Platão pensou o mundo das ideias, destacou que na articulação deste “mundo” existe a possibilidade do desvio da alma diante das coisas sensíveis, e um retorno da alma sobre si mesma, ou até mesmo, em um período bem mais distante ao de Platão, é realçado pelo pai da fenomenologia Edmund Husserl, que pela epoche, isto é, na “redução fenomenológica”, era possível considerar o ato que define o espírito humano. 41 42

SCHELER, 2003, p. 49. Ibid., p. 50.

O que o ser real, o homem possui é a resistência para seus próprios instintos, por isso ele lança um vigoroso “não”, este não é direcionado ao que concerne a vida pulsional, o impulso vital central. Neste sentido, deve ser entendido que não é uma conclusão que leva o homem ao seu posicionamento real no mundo, não é também, o conteúdo intuitivo de suas percepções, e muito menos a posição fixa no espaço, ao contrário, é a vivência originária da realidade efetiva como vivência da resistência do mundo precede toda consciência, toda representação, toda percepção 43. Mas afinal, o que é este “não” que Scheler tanto afirma? Assim sendo, o não toma o sentido de suspensão do juízo, ou seja, o homem naturalmente possui um juízo sobre o mundo, mas para efetivação e dizer o “não” com propriedade é preciso, antes de tudo, como o próprio Husserl afirma, reter o juízo existencial, por isso, idear significa muito mais suspender o próprio momento de realidade, em suma, aniquilar toda e qualquer impressão indivisa e poderosa de realidade com seu correlato afetivo44. “Se a existência é “resistência”, este ato no fundo ascético de desrealização só pode subsistir em meio à suspensão, em meio ao desligamento justamente daquele ímpeto vital, em relação ao qual o mundo aparece antes de tudo como resistência, e que é ao mesmo tempo a condição de toda percepção sensível do que está casualmente aqui-e-agora desta maneira” (SCHELER, 2003, p. 52).

Percebe-se que o ser que é visto como capaz de executar tal ato de desrealização é, portanto, o homem (ser vivo), mas isso ocorre pelo fato de que o homem é, ainda, um ser vivo, que por meio de sua força espiritual se faz pessoa. Pelo fato do homem ser pessoa, pela capacidade de viver seus próprios atos espirituais e conduzir suas ações de acordo com tais atos, que o homem sempre será aquele que protesta eternamente contra toda mera realidade. O animal sempre diz sim ao que é real, por conseguinte, o homem é o eterno “fausto”, a bestia cupidíssima renum novarum45, que nunca se aquieta com a realidade que o cerca, sempre ávido por romper as barreiras de seu ser, sempre aspirando a transcender a realidade efetiva que o envolve 46. O homem é o asceta da vida, isto é: o homem pode “sublimar” sua energia pulsional para uma atividade espiritual47.

43

SCHELER, 2003, p. 51. Ibid., p. 52. 45 Animal avidíssimo de coisas novas (Santo Agostinho). 46 SCHELER, op. cit., p. 53. 47 Ibid., p. 53. 44

A atitude inversa do homem em relação ao mundo é independente de qualquer tipo de questão valorativa, ou, de visão de mundo e este fato não muda mesmo na busca pela elevação até a esfera irreal das essências como a meta definitiva, porque já se avalia a realidade mesma como mal, quer se busque voltar sempre novamente a partir da esfera da essência, para a realidade e seu ser aqui e agora48 de modo que possa ser aprimorado. Assim, se visualiza outra característica determinante do homem, pois neste ritmo eterno entre realidade e ideia, ímpeto e espírito – no equilíbrio de sua tensão perpetua –49 se dá a verdadeira vida e determinação do homem. Portanto, pode ser compreendido que este conflito não torna o ser humano um ser fixo e imutável, pelo contrário, este conflito exerce uma força que o torna uma unidade não fixa que volta a si mesmo e ao mundo, além de sua capacidade de elevação espiritual. 2.3 A ação do espírito: Erro das doutrinas Diante de tudo o que foi exposto sobre a ação do espírito, Scheler reconhece certa questão fundamental, a saber, existe alguma força no espírito? O espirito só surge da repressão de tudo aquilo que tido como impulso e instintos? Ademais, o espírito só surge e atua segundo sua essência? Para esclarecimento de tais considerações, é preciso, antes de tudo, compreender que Scheler é convicto de que o espirito não é absolutamente condicionado a capacidade do “não”, ao contrário, a atividade de sublimação não condiciona a sua capacidade de manifestação. “Como já dissemos, o espírito é em última linha um atributo do ente mesmo que se torna manifesto no homem em meia à unidade de concentração da pessoa que se “reúne” em si mesmo. Enquanto tal, porém, o espírito em sua forma “pura” encontra-se originariamente desprovido de qualquer poder, força, atividade. Para conquistar ainda que seja um pequeno grau de força e atividade, aquela ascese, aquela repressão pulsional e ao mesmo tempo aquela sublimação precisam vir se somar a ele.” (SCHELER, 2003, p. 54).

Com o objetivo de apreender melhor a possibilidade de apreensão do espírito considerada adequada pelo filósofo deve, sobretudo, ser considerado que existem duas teorias possíveis para uma intelecção da “força” de apreensão do espírito que desempenham papel importante na história da ideia de homem. Portanto, há de

48 49

SCHELER, 2003, p. 53. Ibid., p. 53.

constar a existência de duas teorias diversas, a saber, a doutrina clássica e a doutrina negativa de homem. A primeira teoria é a doutrina clássica de homem, que foi cunhada pelos gregos, e que, por sua vez, atribui ao espírito apenas essencialidade e autonomia peculiar, mas também, força e atividade. Essa teoria cumpre o papel de integração da visão de mundo afirmando que desde o princípio existem forças superiores. “O ser do mundo que existe desde o princípio e se mantém inalterável através do processo de devir da história – cosmos – é construído de tal maneira que as formas superiores do ser, desde a divindade até a matéria bruta, também são os modelos de ser mais poderosos, mais vigorosos, portanto, os modos de ser causantes. O ponto mais elevado de um tal mundo é o deus espiritual e onipotente, o deus que é onipotente em virtude justamente de seu espírito” (SCHELER, 2003, p. 55)

Já a segunda teoria oposta à primeira, neste caso, é a doutrina negativa de homem, que parte do pressuposto de que o homem não produz, ou melhor, não transforma o meio ambiente em mundo, simplesmente, por uma diferença essencial, o homem não objetiva o mundo a partir de um “não”, isto é, não é da sublimação dos impulsos e instintos. “Ela defende inversamente a opinião de que o espírito mesmo – até o ponto em que este conceito é em geral admitido -, de que no mínimo todas as atividades “culturalmente produtivas” do homem, todos os atos lógicos, morais, todos os atos que propiciam uma visualização estética e uma formação artística, emergem exclusivamente daquele não”. (SCHELER, 2003, p. 55)

No entanto, para Scheler, o espírito possui uma essência e legalidade própria, mas de modo nenhum, há de constar a existência de uma energia responsável pela origem e que possua “força própria”, ora, através daquele querer inibidor – “não” – é que pode ser visualizado o lugar a energização do espirito em si mesmo impotente e que não consiste senão em um grupo de intenções puras50. Sendo assim, Scheler dá alguns exemplos de representantes de tais teorias, e exemplifica a razão da rejeição das mesmas. Portanto, quando se tem em mente a teoria negativa, é percebido,

enquanto

representantes,

pensadores

diversos

como:

Buda51,

Schopenhauer, Paul Alsberg52 e Sigmund Freud.

50

SCHELER, 2003, p. 55. Considerado a doutrina de redenção de Buda. 52 Considerado o livro Das Menschheitsrätsel (O enigma da humanidade) de Paul Alsberg, que foi médico e antropólogo alemão que auxílios a sistematização da antropologia filosófica moderna. 51

O que Buda reconheceu com profundidade é o modo como a realidade é dada, que implica, necessariamente, no padecimento da ação da resistência. Buda não acentua uma ideia positiva do espirito, do homem e até mesmo do mundo, senão, afirma, simplesmente, a possessão de uma espécie de “técnica” que permite o conhecimento do saber divino, que supera, neste caso, o sofrimento. “Ele reconheceu profundamente a ordem causal na qual, em meio ao exercício da técnica da desrealização, através da suspensão interna do desejo, disto que ela chama “sede”, o mundo da realidade sensível e os processos corpóreos e anímicos se desvanecem – na qual as qualidades sensíveis, as figuras, as relações, a especialidade e a temporalidade do ser se suprimem pedaço por pedaço”. (SCHELER, 2003, p. 56)

Mas, quando se investiga de modo aprofundado o que o pensador Schpenhauer afirma é possível destacar que a diferença essencial entre o homem e animal se dá pelo fato do animal não conseguir empreender a negação da vontade de vida, ou seja, é considerado que somente o homem pode negar a fonte superior de todas as “formas superiores” da consciência e do saber da metafísica, na arte, no ethos da compaixão53. Entretanto, o aluno de Schopenhauer chamado Paul Alsberg reconhece que a diferença essencial entre o homem e o animal não pode ser, simplesmente, a partir de um traço empírico-psicológico, ou fisiológico, ou mesmo, um traço característicos da morfologia, portanto, para Alsberg, a princípio do mundo é encontrado no fato de o homem ter sabido “descolar” seus órgãos da luta pela vida e da manutenção tanto do individuo quanto da espécie em favor do instrumento, da linguagem e da formação conceitual54 Ademais, Alsberg deixa de lado qualquer tipo de afirmação que considere o homem somente através da razão e do espírito, pois, para ele o que muitos denominam “espírito” não passa de um substitutivo de uma adaptação orgânica tardia, sendo assim, qualquer “dom superior” que o homem possa ter é uma mera compensação dessa inferioridade orgânica da própria espécie humana. Já Sigmund Freud conseguiu visualizar que a partir das considerações acerca “repressão das pulsões e aos afetos” schopenhauriana era possível entender o conceito de neurose, importantíssimo, pois, a neurose, para Freud, seria, então, o resultado do conflito entre o que o indivíduo é (ou foi) - Ego –, com aquilo que o indivíduo gostaria ser (ou ter sido) “prazerosamente” – Id. Portanto, estas mesmas 53 54

SCHELER, 2003, p. 56 Ibid., p. 56

repressões de afetos e pulsões esclarecem em certa direção à neurose, no caso em que a energia reprimida das pulsões é sublimada, e, assim, não deve produzir nada menos do que a capacidade para cada tipo de configuração cultural mais elevada, isto é, a especificação da constituição humana mesma55. “O desenvolvimento do homem até aqui não me parece carecer de nenhum outro esclarecimento além do esclarecimento dado para os animais, e o que se observa em uma minoria de indivíduos humanos como impulso incansável para o aperfeiçoamento ulterior deixa-se compreender naturalmente como consequência da repressão à pulsão, uma repressão sobre a qual está construído o que há de mais valoroso na cultura humana” (SCHELER apud FREUD, 2003, p. 57).

Contudo, nenhuma das teorias que trilham pelo caminho da doutrina negativa de homem expostas, para Scheler, estão corretas, pois, são “argumentos” sobre psíquico unilateral e ligado apenas a valores vitais, além disso, um grande defeito fundamental é o de não ser capaz de responder questões como: O que nega afinal o homem? O que diz não à vontade de vida? O que reprime as pulsões? Como é que os princípios do espírito concordam com os princípios do ser? E, por fim, para que a vontade de vida é negada?56 “Em cada forma em que se apresenta a teoria negativa já sempre pressupõe justamente o que deve ser explicado por ela: o espírito, a razão, o conjunto de leis próprias autônomas do espírito e a identidade parcial de seus princípios com aqueles do ser mesmo. É o espírito mesmo que já introduz a repressão à pulsão, na medida em que a “vontade” espiritual, já orientada ideal e valorativamente, recuso os impulsos ideais e valorativos conflitantes as repressões necessárias para uma ação pulsional, e, por outro lado, coloca diante dos olhos como iscas representações adequadas ideal e valorativamente às pulsões latentes, a fim de coordenar os impulsos pulsionais de tal modo que eles levem a termo o projeto volitivo estabelecido espiritualmente, o realizem” (SCHELER, 2003, p. 59-60)

Depois da exposição acerca da doutrina negativa e o apontamento de seus erros, Scheler retoma a teoria clássica de homem, com o intuito de demonstrar a existência de incongruências como as destacadas na doutrina negativa. A doutrina clássica de homem domina quase que todo o conjunto da filosofia ocidental, e, justamente por isso, que deve ser tratada com mais cautela e apontado seus erros, que são graves na perspectiva scheleriana. Sua origem veio através do conceito grego de espírito e ideia, além disso, essa teoria aponta para autarquia da ideia de

55 56

SCHELER 2003, p. 57. Ibid., p. 58.

sua força e atividade originária57 e Platão e Aristóteles são os nomes que Max Scheler pontua como representantes desta doutrina. Para que possa ser exemplificado de modo mais claro o erro da doutrina clássica, será abordado o autor, que segundo Scheler, introduziu na consciência ocidental todo um exército de equívocos da pior espécie acerca da natureza humana58, a saber, Descartes. Pode ser percebido, que no período clássico, a teoria clássica de homem encontrou a sua forma na doutrina cartesiana, que foi responsável por dividir todas as substâncias em “pensantes” e “extensas”, além de afirmar, categoricamente, que somente o homem – dentre todos os outros seres -, é constituído de substâncias “pensantes” e “extensas”. O filósofo Descartes ignorou a natureza psíquica e o caráter animado de animais e plantas, segundo Scheler, pois há de constar na filosofia cartesiana que o mundo consiste de pontos pensantes e em mecanismo que pode ser entendido por intermédio do conhecimento matemático. “A consequência não foi apenas o contrassenso oriundo da exacerbação máxima da “posição peculiar” do homem, sua extração dos braços maternos da natureza – através daí mesmo a categoria fundamental da vida foi simplesmente arrancada do mundo com um único traço” (SCHELER, 2003, p. 69).

Apesar de Scheler apontar o erro da teoria clássica de homem, e em específico, explicitar o erro da forma como essa teoria configurou-se na doutrina cartesiana, o filósofo alemão reconhece que Descartes fez algo de muito valioso, ora, o filósofo moderno defendeu a autonomia e soberania do espirito 59, uma vez que foi reconhecida a supremacia do espirito sobre o que orgânico; uma supremacia que não possuía identificação medieval da forma corporeitatis com a alma espiritual60, contudo, todo o resto, para Scheler, não faz sentido, já que está cercado de grandes equívocos. O psíquico não constitui apenas na consciência, e não possui vínculo ao córtex cerebral, como era suposto por Descartes, além disso, não há substância anímica alguma, em uma “região específica”, a saber, a glândula pineal, tal como supunha, pois não há uma posição central no cérebro, ou em qualquer outro lugar 57

SCHELER, 2003, p. 60. Ibid., p. 69 59 Ibid., p. 70. 60 Ibid., p. 70. 58

no corpo humano , uma posição para qual confluísse todos os filamentos nervosos sensíveis e no qual se encontrassem todos os processos nervosos 61. Tendo em mente o avanço cientifico não se pode afirmar uma conexão intrínseca entre a substância anímica e corpórea, principalmente, quando se leva em conta as investigações psiquiátricas que demonstram, que as funções psíquicas que influencia o caráter humano, e tudo o que engloba a vida pulsional e afetividade, não têm seus processos fisiológicos paralelos no cérebro, senão na base do encéfalo, por um lado na massa cinzenta da parte central do terceiro ventrículo, por outro lado na região central entre os dois hemisférios cerebrais, que intervém nas sensações e vida pulsional62. “O sistema das glândulas endócrinas (glândula tireoide, glândula generativa, hipófise, cápsula suprarrenal etc.), cujo tipo de função determina a vida pulsional dos homens e a afetividade, além do crescimento em altura e largura, do gigantismo e do ananismo, provavelmente mesmo os caracteres étnicos, se mostrou como verdadeiro intermediário entre o organismo como um todo, inclusive sua forma de configuração, e aquela pequena parte atrelada da vida anímica que denominamos “consciência do crescimento”. Todo o corpo e não apenas o cérebro tornou-se hoje uma vez mais o campo fisiológico paralelo dos acontecimentos anímicos” (SCHELER, 2003, p. 70).

61 62

SCHELER, 2003, p. 70. Ibid., p. 70.

CAPÍTULO III

Considerar as diversas capacidades do homem que o diferencia do animal vai muito além ao fato do homem ser um ser de espírito, uma vez que tais atributos permitem entender o fundamento do mundo. Max Scheler considerava que a filosofia não podia prescindir da metafísica, e tendo isso mente, ao empreender uma antropologia filosófica que possuísse a presença da filosofia deveria ser considerado o que é o homem, o que ele pode e deve ser. Pois bem, nos capítulos anteriores foi possível entender um pouco do que é o homem para o pensador, sendo assim, nesse momento será possível entender um pouco sobre o que o ente de espirito pode e deve ser. Nesse propósito, Scheler reflete sobre a origem da religião e da metafísica, e esse momento importante da obra A posição do homem no cosmos será retratado em um terceiro capítulo.

3. FUNDAMENTO DO MUNDO, RELIGIÃO E METAFÍSICA. É passível de compreensão o papel que a antropologia cumpre, ainda mais, quando se leva em conta, a tarefa importante de mostrar como as realizações e obras do homem se manifestam a partir de sua estrutura ontológica. Ora, as ideias de certo e errado, o estado, o governo, as representações artísticas, o mito, religião a linguagem, a voz da consciência, o instrumento, as armas, ciência e outros, para Scheler, são realizações consideráveis, todavia nessa reflexão deve ser dirigido às consequências do que foi dito a relação metafísica do homem como fundamento das coisas63. O que a natureza humana permite construir, de maneira belíssima, como é pontuado por Scheler, é que se pode mostrar com que necessidade interna o homem, no mesmo instante em que se tornou consciente de si e do mundo que o circunda, também precisou apreender a ideia maximamente formal de um ser supramundano infinito e absoluto64. Se em certo momento o homem se destacou de todos os outros seres, e conseguiu tomar consciência de si e do mundo através da 63 64

SCHELER, 2003, p. 85. Ibid., p. 85

objetivação mesma de sua natureza psíquica, ele se tornou objeto, e se voltou espantado e lançou questões sobre seu próprio ser, a saber, onde me encontro afinal? Qual é minha posição? Com essas questões em mente, o homem não consegue afirmar com propriedade que é parte do mundo, ou que é envolvido pelo o que circunda, pois o ser atual de seu espírito e de sua pessoa é superior até mesmo as formas do ser deste “mundo” em espaço e tempo. Pode ser percebido que o homem se faz homem no momento em que toma consciência do que é e do mundo em que está inserido, fazendo assim, com que se torne objeto do conhecimento também. Com isso, ele lança questões, que são postas do modo como o espírito as coloca, portanto são essenciais, e tais questões essenciais coloca o homem diante do nada absoluto, e faz frente a questões como: Quem eu sou? Para onde vou? Por que existo? “Assim, em meio a essa viragem, ele olha como que para o nada: ele descobre neste olhar como que a possibilidade do “nada absoluto” – e isto o impele para frente até a pergunta: „por que há em geral um mundo‟, por que e como „eu existo?” (SCHELER, 2003, p. 86).

Sendo assim, é apreendido que há de constar uma rigorosa necessidade essencial de o homem ser além de um simples ser no mundo. Tais questões são exteriorizadas pelo homem segundo seu espirito, e essas questões existem entre a consciência do si próprios do mundo e da consciência formal de Deus. Nesse sentido, “Deus” é apreendido como um ser que é por si mesmo, dotado com o predicado divino65. Todavia, indiferente deste ser possuidor do predicado divino existir ou não, ou ainda, de ser ou não acessível ao conhecimento, pertence de maneira tão constitutiva à essência do homem quanto a sua autoconsciência ou a sua consciência do mundo66. O filosófo da linguagem Wilhelm von Humboldt, mencionado por Scheler, afirma que o homem não pode ter inventado a linguagem, pois ele só é homem através da linguagem, e assim, nesse mesmo sentido, pode ser entendida a relação do homem com a consciência formal de Deus, já que ele não inventou Deus, senão somente se faz homem através deste Ser que impõe veneração, ou seja, o homem é homem através de Deus, tal Ser que venera. Então, se percebe que a existência da religião e da metafísica coincide com a gênese do próprio homem, e não representa 65 66

SCHELER, 2003, p. 86 Ibid., p. 86.

simplesmente o preenchimento de uma esfera vazia com suposições ligadas a fé, senão a origem desta esfera mesma. No instante em que o ser humano se torna consciente do mundo e de si, ele precisa descobrir a contingência do fato de que o mundo é, com essa sentença sublinhada, Scheler aponta que é um erro deixar o “eu penso” de Descartes, ou o mundo é de Tomas de Aquino preceder a sentença universal de que “há um ser absoluto” e de que é possível acessá-lo por deduções, por meio de seus modos de ser. Ora, para Scheler, a consciência do mundo, do si próprio e de Deus formam uma unidade estrutural ilacerável – exatamente como transcendência do objeto e da autoconsciência emergem justamente no mesmo ato67. “No mesmo instante que aquele „não, não‟ à realidade concreta do meio ambiente entrou em cena, o instante no qual se constituíram o se espiritual atual e seus objetos ideias; exatamente no mesmo instante em que surgiram o comportamento aberto para o mundo e mania que nunca se apazigua de avançar ilimitadamente para o interior da esfera descoberta do mundo e de não se aquietar em meio a nenhum estado de fato; exatamente no mesmo instante em que o homem deveniente rompeu os métodos de todo viver animal que lhe era precedente para reação inversa: a adaptação do mundo descoberto à si e à sua vida que o „homem‟ se arrancou da „natureza‟ e a tornou objeto de sua dominação e do novo princípio da arte e dos signos” (SCHELER, 2003, p. 87).

Pois bem, esta descoberta faz com que o homem assuma uma postura dupla, pois assim que toma consciência do mundo e de seu cerne ontológico, o homem pode se admirar quanto a isso, e colocar seu espirito para apreender e articular-se com o absoluto, e aqui se vê a origem de todo tipo de metafísica, que só veio à tona tardiamente e em poucos povos. O que deve ser percebido é que o homem precisou ancorar seu centro de algum modo para além do mundo, como pode ser percebida na passagem supramencionada, e que ele não podia ser simplesmente uma parte do mundo. Além disso, essa descoberta pode permitir que o homem povoe sua esfera ontológica com figuras a partir de um impulso para buscar abrigo, e com a ajuda do excesso de “fantasia”, segundo Scheler, estava deposita no homem desde o princípio, a fim de se refugiar em seu poder por intermédio do culto e do rito e de receber proteção e auxílio, uma vez o afastamento e objetivação da natureza o coloca diante de um grande nada, e em meio ao vir-a-ser de seu ser e

67

SCHELER, 2003, p. 87.

autoconsciência, e a superação deste niilismo e busca por abrigo é o que chamamos de religião68. Faz-se necessário considerar que religião é, primariamente, de grupos e povos, sem contar que só se tornou religião a partir do momento em que existiu um Estado e fundador (religião de um fundador). Todavia, do mesmo modo que o mundo é dado, a saber, como resistência para existência prática humana, antes do que como objeto do conhecimento, todas essas conformações de pensamento e representação sobre a esfera que o homem acaba de descobrir, conformações que emprestam ao homem, e, posteriormente, a religião que se desdobra a partir dele. Ela é primariamente religião de grupos e povos. Ela só se tornou muito posteriormente, juntamente com a origem do Estado, “religião de um fundador”. Assim como o mundo é dado na vida primariamente como resistência para nossa existência prática. E, bem antes do homem tomar posse do objeto do conhecimento e do modo como se orientar para a verdade, todas as conformações prévias emprestam ao homem força para afirmar-se no mundo. O modo que o homem se afirma no mundo, bem antes de objetivar seu caminho em busca da verdade pode ser notado pela maneira que os gregos antigos descreviam a origem do universo, ora, Hesíodo possui versos que expressam, a maneira fantasiosa – parafraseando Max Scheler -, que o homem encontrou para se brigar e proteger-se do nada. “Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também Terra de amplo seio, de todos sede irresvalável sempre, dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado, e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias, e Eros: o mais belo entre Deuses imortais, solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos ele doma no peito o espírito e a prudente vontade. Do Caos Érebos e Noite negra nasceram. Da Noite aliás Éter e Dia nasceram, gerouos fecundada unida a Érebos em amor. Terra primeiro pariu igual a si. Céu constelado, para cercá-la toda ao redor e ser aos Deuses venturosos sede irresvalável sempre. Pariu altas Montanhas, belos abrigos das Deusas ninfas que moram nas montanhas frondosas. E pariu a infecunda planície impetuosa de ondas o Mar, sem o desejoso amor. Depois pariu do coito com Céu: Oceano de fundos remoinhos e Coios e Crios eHipérion e Jápeto e Teia e Réia e Têmis e Memória e Febe de áurea coroa e Tétis amorosa. E após com ótimas armas Crono de curvo pensar, filho o ais terrível: detestou o florescente pai. Pariu ainda os Ciclopes de soberbo coração: Trovão, Relâmpago e Arges de violento ânimo que a Zeus deram o trovão e forjaram o raio. Eles no mais eram comparáveis aos Deuses, único bem no meio repousava na fronte. Ciclopes denominava-os o nome, porque neles 68

SCHELER, 2003, p. 87 e 88.

circular olho sozinho repousava na fronte. Vigor, violência e engenho possuíam na ação. Outros ainda da Terra e do Céu nasceram, três filhos enormes, violentos, não nomeáveis. Cotos, Briareu e Giges, assombrosos filhos. Deles, eram cem braços que saltavam dos ombros, improximáveis; cabeças de cada um cinquenta brotavam dos ombros, sobre os grossos membros. Vigor sem limite, poderoso na enorme forma” (HESÍODO, 1995, p. 91 e 92).

Então, a religião ou qualquer mito vem antes, ou seja, antecede o momento em que o homem faz frente as tentativas de conhecimentos objetivos em vista da verdade, ou até mesmo metafísica. Max Scheler lista alguns tipos de ideias religiosas que o homem formou a partir de sua relação com mundo, além do exemplo exposto anteriormente com o poema de Hesíodo, a saber, a ideia da infância homem diante de Deus (Deus pai – filho), anuncia Deus aos homens em sua essência interior e lhes prescreve com autoridade divina certas opiniões de fé e mandamentos69. 70 Mas, todas as ideias fantasiosas devem ser rejeitadas, e Scheler faz questão de mencionar, pois a relação do homem com o fundamento do mundo não deve ser entendida a partir de presunções teístas: um deus espiritual, pessoa e onipotente em sua espiritualidade, pois a relação fundamental do homem com o mundo reside no próprio homem. “A relação fundamental do homem com o fundamento do mundo reside no fato de que este fundamento se compreende e realiza no homem – que, como tal, tanto como ser espiritual quanto como ser vivo, é sempre apenar um centro parcial do espírito e do ímpeto do “ser que existe por si”. Eu digo: ele se compreende e realiza imediatamente no homem mesmo”. (SCHELER, 2003, p. 88 e 89).

É reconhecido pelo filosófo, que este modo de entender a relação do homem com o fundamento do mundo é um tanto quanto parecida com o antigo pensamento de Espinosa, de Hegel e de muitos outros: o ente originário toma ciência de si mesmo no homem em meio ao mesmo ato em que o homem se vê fundado nele 71. Mas, não se pode apenas considerar este modo de compreensão, senão é preciso remodelá-lo, e assim, Scheler sublinha que este saber fundado é apenas uma consequência da tomada de decisão pelo centro do ser do homem, e chega ao ponto de que o lugar da auto realização e engendramento do “Deus” se mostra como a crescente compenetração entre espírito e instinto, isto é, entre o perpetuo 69

SCHELER, 2003, p. 88. Ibid., p. 88. 71 Ibid., p. 89. 70

conflito do impulsivo, instintivo e a capacidade de inversão e objetivação frente ao orgânico possui como resultado a realização de “Deus”. “Dissemos que o lugar desta auto-realização, daquela autodivinização que busca o ser que existe por si e cujo preço é a história do mundo, é justamente o homem, o si próprio humano e o coração humano. Eles são o único lugar da gênese de Deus que nos é acessível”. (SCHELER, 2003, p. 89).

O homem é o ponto onde Deus se encontra, e nele o logos, segundo o qual o mundo é formado, por isso, Scheler afirma que há de constar que a gênese do homem e de Deus estão co-referidas reciprocamente, ou seja, no momento em que o homem toma consciência de seu ser e se percebe como homem, em seguida, este homem toma consciência de Deus. Portanto, Deus existe por meio de uma tomada de consciência do mundo e do próprio ser consciente, ademais, o reconhecimento do ser Divino é algo da própria natureza humana, uma vez que é o resultado deste conflito entre instinto e espírito. Contudo, é necessário entender que os dois atributos do ser, a saber, espírito e instinto não estão em si prontos, pelo contrário, de acordo com Scheler eles crescem juntos em si mesmo justamente através destas suas manifestações na história do espírito humano e na evolução da vida universal72. Para Max Scheler, não há sentido nas afirmações daqueles que defendem a ideia de que a divindade é algum tipo de amparo, ou, que não é possível para o homem suportar uma ideia de Deus imperfeito. Ora, a metafísica não é nenhum tipo de instituição segura á homens fracos, pelo contrário, é pressuposto rigor e sentido altivo no homem, e para que o homem tenha consciência e entenda seu próprio conflito e tome consciência de seu ser em si, e de sua co-obtenção do divino, o homem precisa se lançar nesse saber rigoroso e de pleno sentido. O ser absoluto não é o amparo para a mera complementação das fraquezas humanas, até porque esse modo de compreensão levaria o homem a objetivar seu próprio ser, e já se sabe que, segundo Scheler, a realidade do ser que existe por si não é passível de objetivação, mas, que só se pode tomar conhecimento da vida de outro ser através do ato de entrega e co-realização de seus atos. Mas, o ser

72

SCHELER, 2003, p. 89.

absoluto é o amparo no sentido da realização dos valores na história do mundo até o presente, uma vez que esta obra requer a conversão da “divindade” em um “Deus”. “Em última instância, porém, nunca devemos buscar apenas certezas teóricas que devem preceder a esta auto-entrega. Somente na entrega da pessoa mesma abre-se a possibilidade para também saber o ser do ente que existe por si”. (SCHELER, 2003, p. 90).

3.1 A contribuição de Max Scheler É claro e evidente, que para Scheler, há de constar que o homem é um ser que pode transcender, e justamente por possuir tal capacidade que ele é um ser de espírito, contudo isto não significa que não há nenhuma influência do instintivo na vida humana, pelo contrário, o orgânico está presente em algum nível na constituição anímica do ser humano, e justamente por isso que existe este conflito entre instinto e espírito. Este perpétuo conflito, faz com que o homem se abra a possibilidades, que consequentemente, possibilita o encontro do seu ser com o ente que existe em si. Contudo, este desvelar só se dá na medida em o homem confronta os significados que se manifestam na história universal do mundo que o circunda. “A experiência espiritual, na qual fazemos consistir a pré-compreensão que o homem tem de si mesmo no nível do espírito, ou seja, no nível da sua estrutura noética-pneumática é, na verdade, a experiência fundamental segundo a qual o homem está presenta a si mesmo e está presente no mundo”. (VAZ, 1991, p. 204).

Nessa perspectiva, Max Scheler reformula a concepção clássica de homem, mas pensa na tradição, no princípio e fundamente, e por isso leva em consideração não só o que os rigorosos estudos metafísicos afirmam acerca do ser do homem, mas também o desenvolvimento das ciências biológicas que operam uma revisão profunda no problema das relações do homem com o mundo 73. Mas, nesse panorama, a antropologia filosófica permaneceu problemática, ora, quando se considera a crítica de Heidegger, que se contrapões exatamente a Max Scheler, se nota certas dúvidas relacionadas a legitimidade do que foi empreendido enquanto antropologia filosófica por Scheler. É obvio que deve ser considerado o horizonte de cada filosófo, mas não se deve desconsiderar o que cada um empreendeu, levando em consideração que a 73

VAZ, 1991, p. 134

reflexão desses homens e mulheres contribuíram para a construção de modelos de imagens do homem. E Scheler é um desses homens, que a partir de seu horizonte tentou responder a questão ontológica fundamental: o que é homem? Sendo assim, a contribuição de Max Scheler vai muito além da articulação entre metafísica e ciência biológicas, ou ainda da afirmação da capacidade de somente entender o homem, enquanto ser consciente, através da co-realização de seus atos, mas influência toda uma geração de filósofos e movimentos, a saber, a antropologia personalista, que exemplifica um dos modelos de imagens do homem no momento contemporâneo. Na esteira da antropologia filosófica personalista é vislumbrada a categoria de pessoa, e nessa utilização, como o próprio Lima Vaz adverte, convém distinguir os níveis epistemológicos, sendo eles: ontológico, o ético, político, ou ainda o pedagógico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensar os problemas tendo em mente a tradição, e a partir dela empreender um projeto que almeje resolver tal problemática é a intenção de muitos pensadores, e para Max Scheler não poderia ser diferente. Colocando em evidência a questão que o espantava e pensando a tradição Scheler conseguiu sistematizar uma antropologia filosófica. Confrontar as ideias de pessoas como Platão, Aristóteles, Agostinho, Descartes e outros não é para qualquer um, pois somente a partir de uma dedicação e postura investigativa que é possível empreender algo que Scheler conseguiu, parcialmente, alcançar. Ora, Pensar o homem como ser dotado de razão é correto, mas reduzir suas capacidades à isso é um tanto quanto incoerente, portanto um dos objetivos principais de Max Scheler foi demonstrar, justamente, que o homem não pode ser somente e simplesmente um ser dotado de razão, afinal, este ser é mais complexo do que parece, e as tentativas de sanar tal questão e reflexões não deram conta de acessar a essência mesma do problema, a saber, o que é o ser humano e qual sua posição no mundo? As investigações de Scheler não se limitam ao que foi produzido na obra “A posição do homem no Cosmos”, mas há, ainda, textos que foram organizados por Maria Scheler e publicados postumamente, que dão sequência ao que Scheler pensou ser a antropologia filosófica. Por isso, há de constar textos como: “Visão filosófica do mundo” e “O homem e a história”, que revelam que a antropologia filosófica não se reduz, somente, a questão do ser do homem, mas vai, além disso, pois é preciso entender o sentido da questão, afinal, qual o sentido da questão: o que é o homem? E o propósito do homem lançar tal questão é possível ser entendida a partir de uma compreensão acerca da constituição biológica do homem, sociológica e histórica. Pois bem, na idade antiga o homem era um animal bípede racional, enquanto que na idade média o homem era o filho de Deus, e na idade moderna o homem era um ser dotado de razão. Mas, com os desenvolvimentos da moderna ciência tal resposta ficou mais complexa, e há de constar que só é possível empreender uma antropologia filosófica quando se leva em consideração o que as outras áreas do

saber desenvolveram, como a biologia, já que é preciso observar a problemática com uma visão mais holística, se levarmos em conta o que Scheler afirma. Um dos propósitos de Scheler era demonstrar que o homem vive em um mundo. No mundo há diversas formas de vida, além do homem, e é nesse mundo que se observa as diversas formas anímicas de vida, que começa pela o impulso afetivo (planta), instinto (animal), memória associativa e inteligência prática. O homem recebe graus de influência dessas formas anímicas, e tal influência será determinada de acordo com o modo que o homem confronta e se comporta no mundo. O homem age de maneira inversa aos animais e outros seres, uma vez que ele por ser dotado de espírito consegue objetivar e encarar os significados e questões do mundo de modo essencial. Quanto mais livre o homem for, mais próximo de seu centro de atos espirituais ele está, e, consequentemente, mais essencial sua atuação no mundo será. Deve ficar claro que a capacidade de transcendência é inerente ao ser humano, mas não é possível viver somente e através de atos espirituais, pois o homem ainda está vinculado ao que é orgânico e instintivo, portanto o homem é um ser complexo e conflitivo, pois nele há o confronto perpetuo entre o instinto e espirito, e tal conflito o faz dinâmico e diverso. Além disso, ao pensar no ser do homem, consequentemente pensamos no que é construído e idealizado por ele. A metafísica é um dos frutos do homem, já que este ser no mundo, confrontando diversos significados e seu conflito perpétuo entende seus limites, e sabendo que é limitado começa lançar questões essenciais, a saber, quem eu sou e para onde vou e qual meu fim? E tais respostas são alcançadas de diversas formas. Uma delas e pela metafísica. Outra forma é pela religião. Portanto, a religião é o modo de afirmar que o nada possui sentido, enquanto que a metafísica afirma o nada, mas busca seu sentido. Mas, a marca de Scheler que não pode ser ignorada é a afirmação de que decisão de se abrir ao mundo e de compreender seu próprio conflito é do homem, a fim de se fazer pessoa, que está imediatamente enraizada no ser e no espírito eterno, que há validade individual, cujo conteúdo é historicamente determinado ao mesmo tempo na sua medida de perfeição e adequação.

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