Monografia Andréia Martins - O caso Eloá, do noticiário à fabricação de obituários na comunidade Profiles de Gente Morta

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Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes Curso de Comunicação Social

ANDRÉIA DE SOUSA MARTINS

A morte midiatizada: o caso Eloá, do noticiário na TV à fabricação de obituários na comunidade Profiles de Gente Morta

João Pessoa - Paraíba 2009

ANDRÉIA DE SOUSA MARTINS

A morte midiatizada: o caso Eloá, do noticiário na TV à fabricação de obituários na comunidade Profiles de Gente Morta

Trabalho apresentado à Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, habilitação Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Cláudio Cardoso de Paiva

João Pessoa - Paraíba 2009

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ANDRÉIA DE SOUSA MARTINS

A morte midiatizada: o caso Eloá, do noticiário na TV à fabricação de obituários na comunidade Profiles de Gente Morta

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à banca examinadora do Departamento de Comunicação da Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social, habilitação Jornalismo.

Nota

Banca Examinadora:

_______________________________________________ PROF. DR. CLÁUDIO CARDOSO DE PAIVA – Orientador Universidade Federal da Paraíba

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________________________________________________ PROFª. DRª. JOANA BELARMINO Universidade Federal da Paraíba

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_________________________________________________ PROF. DR. DINARTE BEZERRA VARELA Universidade Federal da Paraíba

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Média: __________

Aprovado em: ______ de ________________ de 2009 3

Resumo Eis um estudo da simbologia da morte no contexto da comunicação digital, com base em uma antropologia da comunicação. O trabalho busca analisar a inserção da temática da morte nos meios de comunicação massivos (como a televisão) e pós-massivos (como a internet). Empiricamente, explora o episódio da menina Eloá, cujo assassinato foi coberto pela mídia (ao vivo) e gerou a criação de um perfil virtual no site de relacionamento Orkut. Após uma revisão teórico-conceitual e histórica do imaginário da morte no Ocidente, a pesquisa se empenha numa interpretação da forma como essa experiência extrema é inserida no espaço público da sociedade midiatizada. Como fundamentação epistemológica, o trabalho se inspira nas intuições filosóficas, estéticas e mitopoéticas de Dante, Goethe, Dostoievski, Calvino, Borges, e acolhe as contribuições de Edgar Morin, Philippe Ariès, Jean Baudrillard, entre outros estudiosos e pensadores da simbologia da morte no plano da cultura, da história e da comunicação. Palavras-chave: morte; comunicação; televisão; Orkut; luto.

Abstract Here’s a study of death’s symbology within the fields of digital communication, based on communication’s anthropology. This work aims to analyze the theme of death on the mass media (such as television) and post massive media (such as the Internet). Empirically, it explores the Eloá case, whose murder was covered by the live media and generated the creation of a series of virtual profiles on the Orkut network. After a historical and theorical, conceptual review of death at western’s imaginary, this research aims, as an interpretative study, to understand how this extreme experience is inserted on the public spaces of the media society. As epistemological bases, this work was inspired on the philosophical, aesthetical and myth-poetics legacies of Dante, Goethe, Dostoievski, Calvino, Borges and assembles the contributions of Edgar Morin, Philippe Ariès, Jean Baudrillard between others intellectual names of death’s symbology inserted in our cultural manners and communication history. Key-words: death; communication; television; Orkut; mourning.

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Agradecimentos: Ao Breno, por todo o suporte psicológico; Ao Fred, pelo desenvolvimento desta idéia e das invencionices compartilhadas; À Nati, por todas as discussões produtivas e anseios partilhados; À Minha Vó, Dirce, por todo o apoio logístico (sem o qual este trabalho não seria possível) e momentos de reflexão e força; À Minha tia/madrinha, Gabriela, pelas palavras de coragem e incentivos diversos; Aos professores Cláudio Paiva, Nadja Carvalho, Joana Belarmino e Dinarte Varella, por todos os complementos didáticos e opiniões relevantes; À Renata, pela ajuda nas traduções do Francês e pelo acompanhamento; Aos meus pais, por compreenderem a importância deste trabalho; Aos integrantes da PGM que responderam às enquetes e sugeriram idéias. Agradeço especialmente, à Giselle, por toda a participação e sugestões; À todas as pessoas que participaram direta e indiretamente de todo o processo; À Nati Nóbrega, por toda a ajuda, perto do fim; À Zuca, por apoiar e acalmar, silenciosamente, quando não havia mais ninguém.

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Para O avô, Zico, O amor, Julio César, e O amigo, Igor Bezerra.

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Devia ter morrido mais tarde; Então, houvera ocasião certa para tal palavra. Um amanhã, outro amanhã e outro amanhã, Se arrastam em passos curtos dia após dia Até a última sílaba da escrita do tempo. E todos os nossos ontens sinalizam aos bobos o caminho para o pó da morte. Apaga-te! Apaga-te, pequena chama! A vida é apenas uma sombra que caminha. Um pobre ator Que se pavoneia e treme em seu momento no palco e desaparece; nunca mais é ouvido. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, Significando nada. (SHAKESPEARE, Macbeth, 1607)

“[…] Ou então vagueio, com as mãos às costas, entre as lajes, as eretas, as chatas, as inclinadas, escolhendo as inscrições. Elas nunca me decepcionaram, as inscrições, há sempre três ou quatro tão engraçadas que preciso me agarrar à cruz, ou à estela, ou ao anjo, para não cair. A minha já compus há muito tempo e continuo satisfeito com ela, bastante satisfeito. Meus outros escritos mal têm tempo de secar e já me dão asco, mas meu epitáfio ainda me agrada [...]: Aqui jaz quem daqui tanto escapou Que só agora não escape mais.” (BECKETT, Samuel. Primeiro Amor. São Paulo: Cosac & Naify, 2004)

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Lista de figuras: Figura 1: Página inicial do Orkut...................................................................................19 Figura 2: Página inicial do Orkut...................................................................................19 Figura 3: Estruturação de um perfil no Orkut................................................................21 Figura 4: Página inicial do Orkut comemorativa de cinco anos do site.........................22 Figura 5: Página inicial do Orkut em 29 de setembro de 2006......................................31 Figura 6: Página inicial do Orkut em 31 de maio de 2009.............................................31 Figura 7: Página inicial da comunidade Profiles de Gente Morta..................................39 Figura 8: Regras da PGM...............................................................................................42 Figura 9: Padronização das postagens na PGM.............................................................43 Figura 10: Página inicial da comunidade PGM Moderação...........................................49 Figura 11: Lista de pessoas com a palavra “luto” em seus nomes no Orkut..................64 Figura 12: Integrante fala sobre os julgamentos de valor comumente exercidos na PGM...............................................................................................................................76 Figura 13: Página inicial da comunidade PGM – Já foi Postado?.................................84 Figura 14: Primeiras postagens do tópico que discutiu o seqüestro e a morte de Eloá.................................................................................................................................92 Figura 15: Perfil original de Eloá, mantido por amiga quando ela já estava sequestrada.....................................................................................................................93 Figura 16: Perfil fake de Eloá.........................................................................................94 Figura 17: Perfil fake de Eloá.........................................................................................95 Figura 18: Perfil fake de Eloá.........................................................................................95 Figura 19: Fotos do álbum do perfil fake de Eloá com fotos de seu enterro..................96 Figura 20: Perfil fake de Eloá.........................................................................................96 Figura 21: Integrante da PGM sugere como Eloá poderia se comportar no cativeiro..........................................................................................................................98 Figura 22: Integrantes da PGM listam os perfis dos envolvidos no seqüestro...............98 Figura 23: Tópico da PGM lista as notícias relacionadas ao caso Eloá.........................99 Figura 24: Perfil original de Nayara Rodrigues.............................................................99 Figura 25: Novo perfil de Nayara Rodrigues...............................................................100 Figura 26: Novo perfil de Nayara Rodrigues...............................................................100 Figura 27: Perfil de Iago Vieira de Oliveira, namorado de Nayara Rodrigues......................................................................................................................101 Figura 28: Novo perfil de Iago Vieira de Oliveira.......................................................101 Figura 29: Comunidade Eloá Cristina Pimentel (vida)............................................................................................................................102 Figura 30: Comunidade Caso Eloá [OFICIAL] LUTO!..........................................................................................................................102 Figura 31: Perfil fake de Lindemberg Fernandes Alves...............................................103 Figura 32: Página de recados do perfil fake de Lindemberg Fernandes Alves............103 Figura 33: Perfil do suposto primo de Lindemberg Alves...........................................104 8

Figura 34: Perfil fake de Lindemberg administrado por seu “primo”..........................105 Figura 35: Álbum de fotos do perfil fake de Lindemberg com imagens de Eloá........106 Figura 36: Administrador do perfil fake de Lindemberg expõe a quantidade de visitas que vem recebendo.......................................................................................................106 Figura 37: Administrador do perfil fake de Lindemberg “agradece” a quantidade de visitas............................................................................................................................107 Figura 38: Comunidade “Força Lindemberg tamos com vc”.......................................107 Figura 39: Comunidade “Eloá ta queimando no Inferno”............................................108 Figura 40: Comunidade “Eloá ta queimando no Inferno”............................................108 Figura 41: Comunidade “Eloá ta queimando no Inferno”............................................108 Figura 42: Resultado da enquete sobre a manutenção do tópico da Eloá na PGM......111 Figura 43: Integrante da PGM questiona a existência do tópico sobre o seqüestro de Eloá ..............................................................................................................................112 Figura 44: Integrante da PGM responde ao questionamento sobre a existência do tópico da Eloá..........................................................................................................................112 Figura 45: Integrantes comentam a importância da manutenção do tópico.................113

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Lista de gráficos: Gráfico 1: Sobre a possibilidade de postar o perfil de um familiar ou conhecido após seu falecimento...............................................................................................................40 Gráfico 2: Motivos que levaram os integrantes a participar da PGM............................41 Gráfico 3: Sobre a visualização de perfis de pessoas falecidas......................................44 Gráfico 4: Monitoramento da entrada de integrantes na PGM de Outubro de 2008 a Agosto de 2009...............................................................................................................46 Gráfico 5: Monitoramento de integrantes de PGM entre 16 e 30 de julho de 2009......47 Gráfico 6: Expulsões da PGM em Janeiro de 2009.......................................................49 Gráfico 7: Expulsões da PGM em Fevereiro de 2009....................................................50 Gráfico 8: Expulsões da PGM em Março de 2009.........................................................50 Gráfico 9: Enquete revelou que 72 dos 141 entrevistados mudaria algo na PGM.........51 Gráfico 10: Mortes contabilizadas pela PGM em Janeiro de 2009................................52 Gráfico 11: Mortes contabilizadas pela PGM em Fevereiro de 2009............................52 Gráfico 12: Mortes contabilizadas pela PGM em Março de 2009.................................53 Gráfico 13: Sobre a exposição do próprio perfil na PGM..............................................67 Gráfico 14: A comunidade Profiles de Gente Morta tem participantes de todos os estados brasileiros...........................................................................................................70 Gráfico 15: Tempo de permanência na comunidade PGM............................................71 Gráfico 16: Reações sobre a participação na PGM........................................................72 Gráfico 18: Integrantes da PGM acham que apenas as mortes chocantes são mais discutidas........................................................................................................................81

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Sumário

Resumo/Abstract ______________________________________________________ 4 Lista de figuras _______________________________________________________ 8 Lista de gráficos ______________________________________________________ 10 1.Introdução _________________________________________________________ 12 2.Afinal, o que é o Orkut? ______________________________________________ 18 2.1 O êxtase da comunicação na sociedade em rede ______________________ 23 2.2 A nova caixa de Pandora _______________________________________ 27 3. Profiles de Gente Morta _____________________________________________ 37 3.1 Inventário Alfabético dos Mortos __________________________________ 54 3.2 A morte e o morrer mediáticos ___________________________________ 58 3.3 Memória ____________________________________________________ 79 4. Caso Eloá _________________________________________________________ 88 4.1– “Acho que vai ter morte” _______________________________________ 91 Considerações Finais ________________________________________________ 114 Referências Bibliográficas ____________________________________________ 116

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1. Introdução Vai-se por mim à cidade dolente, Vai-se por mim à sempiterna dor, Vai–se por mim entre a perdida gente. Moveu justiça meu alto feitor, Fez-me a divina Potestade, mais, O Supremo Saber e o Primo Amor. Antes de mim não foi criado mais Nada senão eterno, e eterna eu duro. Deixai toda esperança, ó vós que entrais. (ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno: tradução e notas de Ítalo Eugênio Mauro – São Paulo: Ed. 34, 1998)

A disposição do ambiente celeste medieval moveu Dante Alighieri, poeta florentino, a criar A Divina Comédia, representação da visão cristã dos meandros da morte. Único ser vivente a penetrar os segredos do Inferno, do Purgatório e do Céu, tendo o poeta latino Virgílio como guia, “Dante tornou-se um dos principais narradores da morte medieval e é o único a carregar a memória dos mortos para que nós, os vivos, sejamos informados e não esqueçamos os que um dia já foram como nós” (REZENDE, 2008; 5). Neste sentido, tomamos o vasto e instantâneo campo da Internet como uma nova forma de representação dos lugares da morte, aproximando-nos dos “espaços celestes medievais” propostos por Dante e averiguados por Renata Rezende (2008). A contemporaneidade midiática permite-nos interagir vigorosamente no contexto acelerado da sociedade globalizada. A internet consiste na convergência de texto, imagem e som, promovendo modificações tanto no campo de produção de notícias quanto no campo de ação do leitor-internauta-cidadão, que pode interagir e participar colaborativamente desta experiência comunicativa. Neste sentido, a observação do sociólogo catalão Manuel Castells parece pertinente (2001; 07), pois ele não exagera ao classificar as redes de informação como um “tecido de nossas vidas”, principalmente, se considerarmos as várias formas interativas geradas pela rede mundial de computadores. A cada dia, a rede nos oferece mais recursos, aplicativos e ferramentas, que favorecem a realização das experiências de interação, debate, crítica e participação social. 12

Se a tecnologia da informação é hoje o que a eletricidade foi na Era Industrial, em nossa época a Internet poderia ser equiparada tanto a uma rede elétrica quanto a um motor elétrico, em razão da sua capacidade de distribuir a forma de informação por todo o domínio da atividade humana. Ademais, à medida que novas tecnologias de geração e distribuição de energia tornaram possível a fábrica e a grande corporação como os fundamentos organizacionais da sociedade industrial, a Internet passou a ser a base tecnológica para a forma organizacional da Era da Informação: a rede. (CASTELLS, 2001; 07)

Exploraremos aqui a potência de um grande facilitador da comunicação na era do digital, o site mundial de relacionamentos Orkut, que possui aproximadamente 29 milhões de brasileiros cadastrados (49,66% do total de usuários no planeta)1, de acordo com projeção realizada pelo próprio site. No vasto conteúdo da Internet, o Orkut é uma grande rede dentro da rede, em que as pessoas são interligadas através de amigos/conhecidos em comum e comunidades relacionadas às suas preferências, em todos os campos: literatura, música, culinária, saúde, ciência, religião, orientação sexual, etc. É nossa intenção, no decorrer do trabalho, apreciar as formas de interação que o Orkut proporciona e as modalidades dos discursos que promovem a sua interacionalidade. Em meio às diversas experiências interativas propiciadas pela Internet, este site de relacionamento consiste num dispositivo midiático que merece um exame mais detido. Hoje, cinco anos após seu lançamento, foram adotadas estratégias de controle mais rígidas sobre os conteúdos disponibilizados, uma vez que o ciberespaço surgiu num contexto anárquico-criativo, em que engenheiros, informaticistas e artesãos tecnológicos provocaram a abertura para a liberdade de informação. Sendo o ciberespaço um “não-lugar”, como define o pesquisador Augé (1994), o controle, a vigilância e o monitoramento da internet, como se sabe, não é simples. O universo on line consiste num espaço aberto à colaboração, em permanente territorialização, movido pela intervenção pública, sede de novidade e predisposição dos usuários de se comunicarem. Com o avanço da sociologia (SIMMEL, 1971; BENJAMIN, 1975), antropologia (CERTEAU, 1975) e semiótica (SANTAELLA, 2003) voltadas para a contemplação do cotidiano e das mídias, sabe-se que os meios de comunicação irradiam afetos, sensações 1

Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#MembersAll.aspx, acesso em 20.07.2009

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e sentimentos, gerando uma experiência estética que estrutura a vida mental nas cidades. (SODRÉ, 1976). Os sites de relacionamento, em vários sentidos, simulam a realização dos desejos e expectativas da vontade coletiva. Os discursos que atravessam o espaço do Orkut funcionam como vetores de liberação, dispositivos tecnológicos que promovem a catarse, revigorando as sensações de bem estar na “vida real”. O Orkut pode ser visto, hoje, como uma plataforma de entretenimento, envolvendo mais pessoas do que o cinema, o teatro, as artes visuais (SANTAELLA, 2002; 30). E isto se deve ao fator instantaneidade, o registro atualizado dos acontecimentos reais, que propicia a possibilidade de análise, crítica, interpretação dos fatos. A rede mundial de computadores é uma poderosa ferramenta comunicacional que não se sustentaria somente da pura ficção; as narrativas telemáticas precisam incluir constantemente a representação de aspectos realistas da vida cotidiana. As imagens nas telas (televisão, computador, celular) promovem efetivamente aparições sedutoras, porque nos mostram dimensões “impossíveis” de serem captadas do “mundo real” sem os olhares da tecnologia; isto é possível na rede devido à sua hipertextualidade (criada pela conjunção das imagens, textos e sons), a simulação de um “real” que rivaliza com a própria realidade.

A Internet foi apropriada pela prática social, em toda a sua diversidade, embora essa apropriação tenha efeitos específicos sobre essa própria prática social [...]. A representação de papéis e a construção de identidade como base da interação on-line representam uma proporção minúscula da sociabilidade baseada na Internet, e esse tipo de prática parece estar fortemente concentrado entre adolescentes. De fato, são os adolescentes que estão no processo de descobrir sua identidade, de fazer experiências com ela, de descobrir quem realmente são ou gostariam de ser, oferecendo assim um fascinante campo de pesquisa para a compreensão da construção e da experimentação da identidade. No entanto, a proliferação de estudos sobre esse assunto distorceu a percepção pública da prática social da Internet, mostrando-a como terreno privilegiado para as fantasias pessoais. O mais das vezes, ela não é isso, é uma extensão da vida como ela é, em todas as suas dimensões e sob todas as suas modalidades (CASTELLS, 2001; 99100).

As redes instalaram na vida cotidiana um espaço de criação, de interação e de debate dos temas emergentes na efervescência da vida cotidiana, mas também dos 14

fenômenos extremos como a morte. Como a internet é construída por seres reais, orgânicos, históricos, mortais, é compreensível que a presença dos indivíduos se faça notar na espessura da vida digital. E não se pode falar em vida sem se pensar na experiência da morte. E é nos interstícios das narrativas telemáticas (BRETAS, 2006) que se infiltram os discursos movidos pela curiosidade, vontade de saber e de interagir com as idéias acerca das experiências radicais como a morte. Propomos uma contemplação da morte, representada virtualmente pela comunidade Profiles de Gente Morta (ou PGM). Ou seja, tencionamos explorar a representação da morte (da finitude do ser humano), num fórum de discussão criado num site de relacionamento da internet. De saída, enfrentamos um paradoxo: observar a morte num lugar em que se cultiva a vitalidade das relações, as discussões entusiasmadas que atestam o vigor da existência. Mas, convém perceber que a experiência de interagir com os temas ligados à morte demonstra uma atitude afirmativa diante da vida; significa uma postura serena e esclarecida sobre a finitude, sem deixar de se regozijar no exercício dinâmico de uma comunicação aberta à interatividade. As nossas primeiras impressões - baseadas em intuições, mas também a partir das observações (e deduções) atentas acerca dos discursos produzidos no site - são de que as intenções que movem o grupo de internautas integrantes da PGM, são basicamente estas: deter-se, refletir sobre a morte, especular sobre o outro lado; tudo isso perpassa o imaginário dos integrantes da PGM. Exploramos as formas como o conteúdo do Orkut, em grande parte, já se antecipa na televisão. E especificamente, buscamos perceber como o conteúdo dos telejornais, principalmente de cunho mais sensacionalista e espetacular, é apropriado pela Internet, uma mídia interativa, que favorece a multiplicação do acontecimento real (e suas versões eletrônicas). Remontando ao pensamento de McLuhan (1964), encontramos a sua idéia instigante de que cada meio de comunicação emergente tende a absorver (e atualizar) os meios anteriores (o rádio em relação à fala; o cinema em relação à fotografia; a TV em relação ao cinema e assim por diante). A cibercultura é gerada pela união das telecomunicações e da informática (telemática) e absorve os elementos de massa transmitidos pela televisão (SANTAELLA, 2003); ocorre então uma atualização das modalidades de produção e consumo, que modifica inteiramente a experiência cultural.

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Se levarmos em conta que a Internet proporciona interação instantânea, a dinâmica dos serviços virtuais, as compras on line e a expressão das opiniões diante dos acontecimentos rotineiros, percebemos um vasto campo empírico gerado pela inserção das tecnologias midiáticas na vida cotidiana. Da mesma forma que, anteriormente, costumávamos procurar jornais e revistas para aprofundar-nos em assuntos abordados pelos noticiários televisivos, hoje, depois da breve exposição dos assuntos na TV, procuramos a Internet para ampliar a nossa compreensão da atualidade. O receptor hoje pode consumir a informação transversalmente, enquanto passa de uma mídia à outra, tornando-se, ao mesmo tempo, ouvinte, espectador, leitor. A opinião acerca da realidade é gradualmente formada a partir de múltiplas fontes de informação. E, a rigor, não precisamos mais trocar de mídia, pois o computador é uma multimídia, que aglutina os diferentes meios e linguagens, podendo abranger os diversos temas sem que o usuário precise se deslocar. Atendo-nos especificamente ao nosso objeto de pesquisa, o Orkut, cumpre ressaltar que, hoje, é possível participar deste processo sem intermediários. Ao contrário da época em que surgiu, em 2004, idealizado pelo engenheiro do Google, o turco Orkut Büyükkokten, quando os usuários eram admitidos através de convites (daí o slogan – Quem Você Conhece?), atualmente, qualquer um pode se cadastrar, conhecer outras pessoas, discutir assuntos variados e criar comunidades (que são, na verdade, grandes fóruns de discussão). O perfil que o usuário constrói no Orkut acaba se transformando, para muitos, numa representação de sua vida, e não apenas uma extensão dela, como o próprio site propõe. Desejamos avaliar a forma como o mundo virtual – construído por sujeitos vivos e realimentado também pelas especulações em torno da morte - é elaborado através do mundo presencial, por intermédio da mídia, especialmente na interface Televisão/Orkut. Delimitamos o nosso enfoque das questões relativas à morte, suas representações nos programas jornalísticos e de entretenimento, na TV, e na comunidade virtual Profiles de Gente Morta – PGM, no Orkut. Concretamente, elegemos como objeto empírico o episódio midiatizado na jovem Eloá Pimentel, adolescente de 15 anos, mantida refém e assassinada pelo ex-namorado, Lindemberg Alves. O caso teve ampla repercussão na mídia, não só pelo recorde de permanência em cárcere privado - entre os dias 13 e 17 de outubro de 2008, com mais de 100 horas de cativeiro - mas também pela participação maciça e decisiva dos meios de comunicação social, principalmente a televisão, em seu desenrolar. Já na comunidade Profiles de Gente Morta, o seqüestro foi noticiado através 16

de um tópico aberto 24 horas após o início do acontecimento, (quando apenas a imprensa paulista se envolvia em sua divulgação); o site acompanhou todo seu desdobramento até o final trágico, quando contabilizava quase 26 mil comentários. Por causa desta exposição através da televisão, o perfil da adolescente e de sua amiga Nayara Rodrigues, também mantida em cativeiro, foi copiado, reproduzido, alterado e serviu de exemplo para atitudes diversas, como ironia e compaixão. Diante do exposto, algumas questões se apresentam, constituindo-se enquanto fio condutor desta investigação: O que leva as pessoas a estas atitudes? Como a sensibilidade do trágico é dramatizada pela televisão? Essa movimentação no mundo virtual é decorrência da movimentação no mundo real? Pretendemos avaliar os impactos dessa relação simbiótica e estabelecer um paralelo entre o mundo virtual e o mundo real – quem alimenta quem? Pretendemos investigar as motivações para as amplas discussões no Orkut acerca de mortes especificas e os motivos para as pessoas mortas terem seus perfis clonados em inúmeras comunidades com milhares de participantes que nunca os conheceram em vida; gostaríamos de entender as manifestações simbólicas em torno do ato de deixar incontáveis recados, com sentimentos igualmente diversos e pedidos de amizade de desconhecidos. No caso da Eloá, foi possível constatar efetivamente a importância que cada usuário assume dentro da divulgação de notícias. A postagem que discutia o seqüestro e a morte da menina, no dia 18 de outubro de 2008, já havia se transformado em local de referência no fim daquele mesmo mês, para todos os que tentavam acompanhar o episódio. Por todas estas razões, empenhamo-nos a investigar este caso que ultrapassa as dimensões de um simples fait divers.

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2. Afinal, o que é o Orkut? (...) as pessoas, as instituições, as companhias e a sociedade em geral transformam a tecnologia, qualquer tecnologia, apropriando-a, modificando-a, experimentando-a. Esta é a lição fundamental que a história social da tecnologia ensina, e isso é ainda mais verdadeiro no caso da Internet, uma tecnologia da comunicação. A comunicação consciente (linguagem humana) é o que faz a especificidade biológica da espécie humana. Como nossa prática é baseada na comunicação, e a Internet transforma o modo como nos comunicamos, nossas vidas são profundamente afetadas por essa nova tecnologia da comunicação. Por outro lado, ao usá-la de muitas maneiras, nós transformamos a própria Internet. Um novo padrão sociotécnico emerge dessa interação. [...] a Internet foi deliberadamente projetada como uma tecnologia de comunicação livre. O que resultou desse projeto não é que sejamos livres finalmente graças à Internet [...], mas resultou disso que a Internet é uma tecnologia particularmente maleável, suscetível de ser profundamente alterada por sua prática social, e conducente a toda uma série de resultados sociais potenciais (CASTELLS, 2001; 10).

Sim, nós transformamos as tecnologias de forma cada vez mais eficaz – e nem percebemos. Ao adentrar no mundo do relacionamento virtual, ao contrário de tentar adequá-lo às nossas vidas, adequamo-nos a ele, como bem definiu Castells (2001; 107) ao referir-se a uma pesquisa2 no Reino Unido entre 1999 e 2001. Muito do que conhecemos no mundo virtual já mudou, radicalmente, nestes últimos anos, mas a nossa forma de encará-lo, não. Continuamos a tentar moldar nossas vidas às exigências que a virtualidade nos traz, integrando-nos cada vez mais em seus meandros. Um exemplo da capacidade que a Internet tem, de fazer-nos mover mundos e fundos por ela, pode ser notada se examinarmos mais detidamente o Orkut. O Orkut é uma rede social filiada ao Google, criada em 24 de Janeiro de 2004, com o objetivo de ajudar seus membros a instituir novas amizades e manter relacionamentos. Seu nome é o mesmo de seu projetista, Orkut Büyükkokten. Tais sistemas, como o adotado pelo projetista, também são chamados de redes sociais. Dentre as redes sociais virtuais disponíveis no Brasil, o Orkut é a que tem maior participação de brasileiros, com aproximadamente 17,2 milhões de usuários, e o segundo site mais acessado pela população com acesso regular à Internet3, de acordo com o site de monitoramento Alexa Internet Inc., serviço pertencente à Amazon que mede quantos usuários de Internet visitam um site da web4. De acordo com os cálculos

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Anderson e Tracey (2001), Tracy e Anderson (2001) e Anderson et al. (1999), apud CASTELLS (2001; 107). Disponível em: http://www.alexa.com/topsites/countries/BR, acesso em 21.07.2009 4 Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Alexa_Internet, acesso em 21.07.2009 3

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do Alexa, o Orkut também é o 122° site mais acessado no mundo, e seus usuários passam 10.4 minutos por dia conectados a ele. Desde outubro de 2006, o Orkut permite que os usuários criem contas sem necessidade de um convite, o que transformou o sentido do seu slogan: Quem você conhece?, conforme expresso na imagem abaixo, obtida em 2006:

Figura 1: Página inicial do Orkut em 15.05.20065

Em 16 de agosto de 2007, o Orkut aboliu o slogan da página inicial, que permaneceu somente com a logomarca do site:

Figura 2: Página inicial do Orkut em 10.08.2009.

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Disponível em http://www.brasileiros-na-alemanha.com/portal/index.php?option=com_content&task=view&id=47&Itemid=92, acesso em 10.08.2009

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Se antes, a admissão só era permitida através de um convite, a importância de conhecer alguém que já fazia parte desta rede residia no fato de que você seria um participante em potencial. Mas, depois da abolição desta exigência, é possível utilizar a ferramenta mesmo que sejamos completamente anônimos no mundo virtual ou que não queiramos manter contato com as pessoas que conhecemos fisicamente, possibilidade que acreditamos ter contribuído para o aumento exponencial do número de participantes. Castells (2001), explica esse comportamento:

O desaparecimento da comunidade residencial como forma significativa de sociabilidade parece não ter relação com os padrões de povoamento da população. [...]. Assim, as pessoas não formam laços significativos em sociedades locais, não por terem raízes espaciais, mas por selecionarem suas relações com base em afinidades. Além disso, padrões espaciais não tendem a ter um efeito importante sobre a sociabilidade. Vários estudos feitos por sociólogos urbanos (entre os quais Suzanne Keller, Barry Wellman e Claude Fischer) mostraram, anos atrás, que redes substituem lugares como suportes da sociabilidade nos bairros e nas cidades (CASTELLS, 2001; 106).

Ainda em 2004, os Estados Unidos foram ultrapassados pelo Brasil em número de usuários - antes mesmo de o site ter versão em português. De acordo com o blog Depósito da Web, “em setembro de 2005, segundo o Ibope/NetRatings, a metade dos ocupantes do portal era composta por internautas residenciais brasileiros, 6 milhões de pessoas à época”6. Isso fez com que a sede do Orkut, originalmente sediada na Califórnia, fosse transferida para o Brasil, em agosto de 2008, para que o site pudesse ser operado diretamente pelo Google Brasil. Desde sua criação, o site sofreu mudanças radicais em sua interface, mas a idéia inicial de representação do indivíduo através de um perfil e de um avatar se manteve inalterada, mesmo com diversos acréscimos. O perfil é o local onde o usuário vai descrever suas preferências, seus gostos em diversas áreas, onde as suas comunidades ficarão visíveis para outros usuários, onde ele postará suas fotos e vídeos favoritos. É um resumo do indivíduo, uma extensão da personalidade e uma maneira de transformar-se virtualmente. Podemos demonstrar a estrutura de um perfil no Orkut de acordo com a imagem a seguir7:

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Disponível em: http://www.depositonaweb.com.br/3671/orkut-completa-5-anos-sendo-acessado-por-70-por-cento-dos-brasileiros/, acesso em 21.07.2009 7 Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Orkut#column-one, acesso em 29.07.2009

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Figura 3: Estruturação de um perfil no Orkut

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Mas, de forma contínua, pudemos perceber outras mudanças na página inicial do site, como podemos expressar na Figura 4, referente ao seu aniversário de cinco anos:

Figura 4: Página inicial do Orkut comemorativa de Cinco anos do site. Em 24.01.2009.

Essas mudanças ajudaram a aprimorar as regras iniciais do Orkut, as interações com novas pessoas e o fortalecimento dos laços. Dentre as mudanças mais significativas, podemos ressaltar o aumento gradual na adição de fotos por cada usuário em seu perfil: em 2004, podíamos acrescentar apenas 12 imagens; em 2007, esse número aumentou para 25 e, logo em seguida, dobra para 50. Somente em 2008 o limite de fotos por usuário passa para mil e, depois, para dez mil. Podemos citar também a ferramenta de monitoramento da quantidade e dos nomes dos usuários que visualizaram o seu perfil no dia anterior; a possibilidade de restringir a visualização de certas informações somente para as pessoas desejáveis e, por último, visualizar as atualizações dos amigos, que vão desde a troca do nome até as novas fotos e vídeos adicionados por eles. A gama de oportunidades de interação aumentou consideravelmente conforme essas novas ferramentas foram introduzidas no Orkut.

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2.1 O êxtase da comunicação na sociedade em rede O entretenimento, na comunicação audiovisual, de acordo com Santaella (2003), advém da proximidade daquilo que se deseja. Na sociedade de consumo em que vivemos, essa proximidade - de certo modo - materializa aquilo a que não se tem acesso (e que desejamos). Mas, em meio a toda essa comunicação, desejos e vontades das coisas que não temos, há também a curiosidade e a necessidade de lidar com os afetos negativos, como o medo, a repulsa, o desgosto. Se pudermos acessar todas as coisas boas, em segurança e confortavelmente instalados em nosso lar, por que não aproveitar essa sensação de infinitude informacional para acessar também aquilo que é proibido, controlado, marginalizado? É muito prazeroso contemplar, a partir das telas (da televisão, do computador e outras mídias), a projeção do mal acontecido com outros, enquanto estamos protegidos pelos muros, cercas, paredes blindadas e pelos dispositivos, como o avatar, o perfil, o nickname. A antropologia, a sociologia e a comunicação - enquanto domínios do saber que estruturam as ciências humanas - são norteadas também pelo que está em constante renovação (morrendo e ressurgindo com uma nova roupagem). Podemos compreender as formas culturais a partir das narrativas que descrevem as relações interpessoais. As narrativas midiáticas (da televisão) e telemáticas (do Orkut) constituem experiências que morrem e renascem diariamente, realimentando toda a indústria comunicativa e não cessam de lançar desafios ao nosso conhecimento. O que é mostrado na televisão e lido nos jornais é sempre uma releitura de acontecimentos que já ocorreram em outros espaços, em outras épocas, apenas com novos detalhes e algumas diferenças. Já foi dito que os clichês e estereótipos da cultura de massa (e pós-massiva) não são nada mais que a atualização de antigos arquétipos (MAFFESOLI, 1996).

Enquanto a leitura de ficções literárias declina em todo o planeta, as principais aspirações para a criação do eu parecem brotar de outras fontes. De modo bastante notório, uma caudalosa vertente emana das telas que invadem todos os cantos da paisagem contemporânea,com suas insistentes imagens cinematográficas, televisivas e publicitárias. Os dados são eloqüentes: o consumo de TV se impõe como atividade preponderante para a maioria da população mundial, enquanto a leitura de contos e romances decai vertiginosamente. Há quem prognostique, inclusive, que tal hábito irá se extinguir por completo em poucas décadas. De acordo com uma pesquisa recente, além de ser a tarefa

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dominante nos momentos de lazer, ver televisão é a terceira ocupação humana padronizada mais habitual nos Estados Unidos, depois de trabalhar e dormir. Mas é claro que esse quadro não se restringe àquele país; ao contrário, assim como ocorre com outros vizinhos da América Latina, o Brasil é uma das nações cujos habitantes consomem mais horas de televisão por dia; além disso, quase a metade das crianças nunca lê livros. (SIBILIA, 2008; 35)

Os programas de televisão, mesmo contando com uma produção em larga escala, sempre serão repetidos, pois os assuntos se esgotam. Essa repetição só ocorrerá, em parte, em outros programas, que poderão tornar-se documentários do anterior, numa constante construção da cultura do efêmero, daquilo que é passageiro e fugaz e, por conta desta mesma propriedade, instiga a nostalgia (SANTAELLA, 1996:35). Se a cultura é inseparável da comunicação, como formulou Santaella (1996:29), já que as mídias são veículos de comunicação alimentados por tudo aquilo que produzimos, constatamos que o que fazemos constantemente é procurar, também, novos meios de tratar desses antigos assuntos. Dentre essas tentativas, podemos destacar o site de relacionamentos Orkut, já muito conhecido dos brasileiros e sucesso imediato desde seu lançamento, em 2004. A diferença é que, com o avanço tecnológico, estamos transferindo, aos poucos, nossas vidas reais para a virtualidade: podemos dizer que esse movimento começou com os telefones celulares: não usamos mais agendas telefônicas para guardar os números mais discados; sequer os lembramos de cor, pois o telefone celular chegou com essa propriedade arrebatadora de nos escusar desse trabalho tão penoso que é usar nossa memória numérica; mal sabíamos que aquele era apenas o começo, já que, depois da agenda virtual, compramos os aparelhos com câmera fotográfica integrada, depois filmadora... E, assim, chegamos a um produto que já faz parte dos nossos hábitos cotidianos.

A história social do telefone nos EUA, de Claude Fischer (1992), mostrou como o telefone reforçou padrões preexistentes de sociabilidade, sendo usado pelas pessoas para se manter em contato com parentes e amigos, bem como com aqueles vizinhos com quem já tinham travado conhecimento (CASTELLS, 2001; 107).

A corrida tecnológica do celular chegou mais rapidamente ao grande público, pois a variedade de formatos e preços pôde, democraticamente, alcançar a todos, o que 24

está acontecendo com o computador pessoal, que vem saindo dos escritórios para instalar-se nas residências desde os anos 80; apenas com a chegada dos anos 2000 o computador se tornou uma ferramenta de trabalho comum, o que configura uma experiência cultural diferente, pois há duas décadas o uso das tecnologias da informação e da comunicação era um sonho muito distante. Os disquetes tinham tamanhos de pratos de sobremesa e eram operados por complicados comandos telemáticos. No início, somente alguns poucos especialistas em computadores podiam acompanhar de forma mais participativa este crescimento da informática, mas o desenvolvimento tecnológico, hoje, com a ajuda principal da telemática – cujas ferramentas estão em todos os lugares, inclusive dentro dos celulares - nos faz migrar para terrenos virtuais cada vez mais amplos, que só existem por causa do computador: a Internet consiste no maior deles.

É muito rica, embora não tão longa, a história dos sistemas fundados no princípio de broadcasting como o rádio e a televisão, tipos de mídia cuja estrutura comporta uma fonte emissora para muitos receptores. Já nos primórdios do século XXI, testemunhamos a consolidação deste outro fenômeno igualmente desnorteante: em menos de uma década, os computadores interconectados através das redes digitais de abrangência global se converteram em inesperados meios de comunicação. (SIBILIA, 2008; 11)

A autora prossegue seu argumento: “À materialidade áspera e tangível da folha de papel, do caderno, da tinta, das capas duras e do envelope, opõe-se a etérea virtualidade dos dados eletrônicos”. Mesmo que a virtualidade só seja possível através do uso de uma “pesada – e custosa – parafernália maquínica ligada na tomada, após digitarmos no teclado os signos se propagam na magia etérea dos impulsos elétricos e passam a brilhar na tela do monitor.” Para Sibilia (2008), os signos se convertem “em pura luz intangível, algo que não aparenta possuir qualquer consistência material”. A Rede Mundial de Computadores substituiu os diários pessoais, álbuns de fotografia, suportes musicais, livros de culinária, artesanato e literatura através dessa “pura luz intangível”. E no vasto campo das redes, a empresa Google introduziu a Wikipédia, que, aos poucos, vem substituindo as enciclopédias clássicas - como a Britânica, a Barsa, a Mirador. Hoje, as crianças começam a manusear aparelhos tecnológicos cada vez mais cedo e tem sido comum aprenderem a escrever antes em um teclado do que pelo próprio 25

punho. Assim, o ato de escrever por meio do computador pessoal (PC) constitui uma prática corrente; ou seja, diferentemente dos anos 80, o computador permite o acesso às tecnologias da comunicação cada vez mais cedo. Percebemos a ocorrência de mudanças nos domínios da educação, arte, ciência, política e comportamento. Houve transformações notáveis desde as máquinas de datilografia até o uso dos computadores e reconhecemos que os recursos da informática podem aumentar nossas chances de entrada no mercado de trabalho. Entretanto, o mundo on-line tem suas ambigüidades, e o acesso precoce aos meios de comunicação digital, em especial a Internet, não garante o acesso imediato à vida profissional, mas, sim, uma ponte da vida presencial para a virtual, como colocou Castells (2001; 107): “as redes são montadas pelas escolhas e estratégias dos atores sociais, sejam indivíduos, famílias ou grupos sociais”. Ao elegermos o celular como início da interação virtualizada, podemos encontrar uma lógica semelhante nos estudos de Kopomaa (2000), Nafus e Tracey (2000), citados por Castells na obra A Galáxia da Internet (2001; 111):

Novos desenvolvimentos tecnológicos parecem aumentar as chances de o individualismo em rede se tornar a forma dominante de sociabilidade. O crescente fluxo de estudos sobre os usos dos telefones móveis parece indicar que a telefonia celular adequa-se a um padrão social organizado em torno de “comunidades de escolha” e interação individualizada, fundado na seleção do tempo, do lugar e dos parceiros de interação (Kopomaa, 2000; Nafus e Tracey, 2000). [...] Essas tendências equivalem ao triunfo do indivíduo, embora os custos para a sociedade ainda sejam obscuros. A menos que consideremos que indivíduos estão de fato reconstruindo o padrão da interação social, com a ajuda de novos recursos tecnológicos, para criar uma nova forma de sociedade: a sociedade de rede (CASTELLS, 2001; 111).

Um dos princípios da liberdade democrática para acessar a informação é a possibilidade de coexistência de diversos pontos de vista no mesmo espaço-tempo (CIRINO, 1974:214), o que podemos observar nas comunidades do Orkut, pois, embora as pessoas participem de uma comunidade em particular porque tem seu assunto-tema como afinidade comum, é possível haver divergências nas interpretações dessas mesmas afinidades e seus subtemas. Assim, podemos destacar as formulações de Nunes (2001), ao afirmar que a magia, já mencionada por Contrera (2002), está interligada às nossas relações de afeto no que concerne, principalmente, à memória, um dos maiores trunfos da Internet. 26

Lembremo-nos de que magia e afeto, não ao acaso, brindam à primeira memória organizada pelo jornal: informações secretas tornando-se nomeadas e informações moldadas em uma progenitura emocional, as quais denominamos produtos dos memes de afeto. A magia, é bom reafirmar, recrudesce às expressões psicoafetivas. Desse modo, a certeza de que hoje, a velocidade comanda todos os fluxos de informação acirrando a produção do efêmero, ao provocar a temporalização de tudo (MOSCOVICI, 1983) é quase unanimidade. Contração das distâncias físicas e a vivência no tempo, graças às transmissões “diretas” ou em “tempo real” promovem a codificação do presente, e, entre os mais céticos (JAMESON, 1996) funda a ruptura da própria temporalidade, liberando um presente isolado, vívido, intenso e intoxicante (NUNES, 2001; 141).

Seguindo o raciocínio da autora, deduzimos que o Orkut é uma confluência de idéias, parte deste presente “isolado, vívido, intenso e intoxicante”, o que corresponde ao nosso cotidiano. Esta observação consegue corroborar, mais uma vez, a hipótese de que estamos transferindo nossas vidas materiais para o mundo virtual com mais rapidez, a cada dia. Já Paula Sibilia (2008) afirma que o grande segredo do relato autobiográfico é a necessidade de “escrever para ser, além de ser para escrever”. Quando essa prática pode se tornar de imediato pública, o indivíduo só é quando é lido ou, na linguagem atual, acessado.

2.2 A nova caixa de Pandora

As possibilidades oferecidas pelo Orkut podem se assemelhar ao mito da Caixa de Pandora. Pandora era a filha primogênita de Zeus, que a presenteou, aos nove anos de idade, com um colar que pertencera a Prometeu. Para melhor conservar o presente, Pandora guardou-o na mesma caixa que utilizava para conservar sua mente e suas lembranças do primeiro namorado, Narciso. Como a caixa só poderia ser utilizada para guardar sentimentos e memórias, o colar, sendo um bem material, foi destruído. Pandora, que o considerava de grande valor sentimental, chorou por diversos dias seguidos, sem cessar. A intenção da caixa, ao guardar lembranças, era a de deixá-las sempre acessíveis ao seu dono. Mais tarde, Pandora foi enviada por Zeus a Epimeteu, 27

irmão de Prometeu, que a tomou como esposa e, junto com ela, a caixa (uma jarra ou ânfora, de acordo com diferentes traduções). Epimeteu acabou abrindo-a e liberando os males que afligiriam a humanidade dali em diante: o trabalho forçado, a doença, a loucura, a mentira, a violência. No fundo da caixa, restou a Esperança (ou segundo algumas interpretações, a Crença irracional ou Credulidade) 8. Sobre a atualidade do mito de Prometeu (paralelamente ao de Pandora), Ariès (1975) ressalta a importância que o personagem tem em relação aos méritos infinitos humanos – dentre eles, a morte:

Prométhée remarque d'abord qu'en ce qui concerne les hommes il a des mérites infinis. Car il a fait en sorte qu'ils ne savent - pas quand ils doivent mourir. Et en cela, Prométhée s'explique: l'ai transformé toute leur existence en leur apprenant àobserver les astres, en leur enseignant les nombres, les arts et les techniques, etc., bref, pour tout ce dont ils sont capables j'ai bien mérité des humains. Même si on les additionne à la manière de l'algèbre, les mythes demeurent toujours des choses indéchiffrables, qui nous disent quelque chose. La question non élucidée est celle-ci-comment les deux choses sont-elles liées, la dissimulation du savoir sur la mort et l'habileté technique nouvelle. On peut à peine éviter de les réunir par la pensée. Eschyle ne nous dit rien sur la façon dont Prométhée a caché aux hommes leur certitude de mourir et l'heure de leur mort. Cela n'a-t-il pas eu lieu précisément par le fait qu'il a tourné leur pensée vers le lointain, qu'il les a aidés à créer les oeuvres durables d'un travail organisé par un plan. Ce serait là une connexion entre savoir et non-savoir, un rapport entre la pensée de la mort et la pensée du progrès? Et la véritable angoisse est précisément ce qu'il y a d'inquiétant à n'être angoissé par rien. L'angoisse, c'est en quelque sorte se-penser-hors-de-tout-l'être, de tout ce à quoi on peut se retenir. Dans le néant. Ainsi, dans l'angoisse de la vie et de la mort, et non dans la pensée qui médite sur ce qui l'angoisse et qui l'écarte, l'expérience de la mort rejoint la destination véritable de l'homme, d'être celui qui pense. Car qu'est-ce que penser? C'est prendre des distances, être dégagé des traits instinctifs de la vie naturelle. En ce sens, c'est une sorte de liberté, non cette liberté, dont nous jouissons, de pouvoir transformer notre conduite en arbitraire, mais une liberté que nous ne pouvons détourner de nous-mêmes, même si nous le voulions. Notre thèse devient alors que la liberté de la pensée est la vraie raison pour laquelle la mort a une incompréhensibilité nécessaire. (Sens et Existence, en hommage à Paul Ricoeur, Paris, Seuil, 1975)9 8

Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Pandora, acesso em 22.07.2009 Prometeu começa por referir que, naquilo que diz respeito aos homens, tem muitos méritos. Porque ele os fez de uma maneira que não sabem quando devem morrer. E nisto, Prometeu se explica: transformei toda a existência deles lhes ensinando a observar os astros, lhes ensinando os nomes, as artes e as técnicas, etc., enfim, por tudo que são capazes, eu tenho muitos méritos pelos os humanos. Mesmo se adicionados a maneira da álgebra, os mitos continuam sempre indecifráveis, nos dizendo alguma coisa. A questão não elucidada é aquela de como são as duas coisas ligadas: a dissimulação do saber sobre a morte e a habilidade técnica nova. Dificilmente podemos evitar de os reunir pelo pensamento. Ésquilo não dos diz nada sobre a maneira pela qual Prometeu escondeu dos homens a certeza da morte e a hora da morte deles. Isso não aconteceu precisamente pelo fato de que ele direcionou o pensamento dos homens para o 9

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Trazendo este mito para o presente, podemos interpretar a Caixa de Pandora como uma representação do mundo do Orkut; ali vamos descobrindo as diversas facetas do comportamento humano, nos surpreendendo, nos chocando, nos comovendo com as informações que são disponibilizadas através das ferramentas oferecidas. Relembramos que a Caixa de Pandora guarda as memórias e os sentimentos – a mesma matéria do mundo virtual – e cabe ao seu dono conservá-las; o acesso e a abertura das “pequenas caixas” do Orkut pode revelar surpresas. Encontramos no mundo virtual, principalmente no Orkut, os medos, os anseios, as esperanças, as virtudes e os pequenos defeitos de todos nós; é como se o site fosse uma caixa comunitária permitindo a troca de experiências, emoções e sentimentos através da própria exposição. Algumas pessoas se integram totalmente a esta forma de relacionamento virtual, entre outras coisas, pela extrema facilidade de acesso ao outro. Os dados pessoais estão disponíveis; podemos, com a visualização rápida de um perfil, especular se o outro (virtualizado) tem gostos compatíveis com os nossos e, a partir daí, cogitar a possibilidade de um relacionamento. Quando as pessoas deparam com a possibilidade de criação de um perfil alternativo e de acesso ao perfil de outra pessoa, de maneira “segura”, acabam transferindo uma porção maior da vida real para o mundo imaginado no ciberespaço. Esta experiência pode ser rica, propiciar o usufruto de prazeres e satisfações mútuas, mas pode vir a se constituir num tipo de ilusão, gerando o fascínio extremo e o deslumbramento.

Em todos os casos, recorrendo às diversas técnicas de criação de si, tanto as palavras quanto as imagens que tricotam o minucioso relato autobiográfico cotidiano parecem exalar um poder mágico: não só testemunham, mas também organizam e inclusive concedem realidade à própria experiência. [...] devido a todos esses fatores, as escritas de si constituem objetos privilegiados quando se trata de compreender a constituição do sujeito na linguagem (ou nas linguagens) e a estruturação da própria vida como um relato – seja escrito, audiovisual ou multimídia. [...] o eu e a vida, sempre fluidas e dificilmente apreensíveis, embora cada vez mais enaltecidas, veneradas e espetacularizadas. Pois é notável a atual expansão das narrativas biográficas: não apenas na Internet, mas nos mais diversos meios e suportes. Uma intensa “fome de realidade” tem eclodido nos últimos anos, um apetite voraz que incita o consumo de vidas alheias e reais. Os distante, lhes ajudou a criar obras duráveis através de um trabalho organizado por um plano. Tradução livre de Renata Gambarra.

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relatos desse tipo recebem grande atenção do público: a não-ficção floresce e conquista um terreno antes ocupado de maneira quase exclusiva pelas histórias de ficção. (SIBILIA, 2008; 33-34)

Algumas questões se impõem ao refletirmos acerca do bom uso das ferramentas disponibilizadas no mundo virtual. Como é possível escapar das armadilhas do deslumbramento face às aparências de novidade, face à possibilidade de interação e de reconstrução da própria identidade? Como discernir as “formas do falso”? Como enfrentar a espetacularização do real favorecida pelo processo da interacionalidade? Quais as estratégias para entrar e sair do Orkut sem experimentar o mal-estar? Neste sentido, cogitamos duas saídas: utilizar o Orkut de acordo com sua principal meta - comunicar-se com rapidez com os amigos reais ou virtuais (aqueles que conhecemos pessoalmente ou só através do perfil) e para pesquisar e debater assuntos de interesse próprio; cometer o chamado Orkuticídio, ou seja, apagar o próprio perfil na rede de relacionamentos, podendo voltar ou não a utilizá-lo no futuro. A forma curiosa como essa prática é designada, remetendo claramente ao ato de tirar a própria vida, demonstra que a transferência de sentimentos e relacionamentos é, definitivamente, real. O Orkuticídio nos leva a pensar sobre os suicídios reais; remete, enfim, a uma especulação da verdadeira morte. Eis aí, uma primeira relação direta com a morte, num sentido simbólico, virtual, estabelecida na realidade artificial gerada pelo Orkut. A administração do site, percebendo as relações diretas entre vida/morte desenvolvidas nas dependências virtuais do Orkut, pronunciou-se, por duas vezes, com relação às mortes de integrantes da sua rede de relacionamentos. A primeira vez foi com a queda do avião da Gol Companhias Aéreas, voo 1907, em 29 de setembro de 2006, que chocou-se no ar com o jato particular Legacy, vitimando 154 pessoas:

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Figura 5: Página inicial do Orkut em 29 de setembro de 2006.

A segunda vez que a página inicial do Orkut foi modificada para expressões de luto foi em 31 de maio de 2009, com o acidente do vôo 447 da Air France, que, por razões ainda desconhecidas, caiu sobre o Oceano Atlântico vitimando 228 pessoas.

Figura 6: página inicial do Orkut em 31 de maio de 2009.

Diante destes exemplos, podemos afirmar que a relação morte/vida expressada no Orkut é bastante palpável e confirma a popularidade do site dentre os brasileiros, conforme expomos anteriormente. É importante salientarmos a presença da fita negra – expressão de luto – em destaque nos dois momentos. Desta forma, poderemos salientar 31

a necessidade de exposição do luto nas relações virtuais, conforme trataremos mais adiante. Segundo Contrera (2002; 13-14), criamos formas mágicas de lidar com a realidade, quando esta não mais nos apraz, e projetamos nossos medos e anseios em signos estereotipados, reproduzindo o fenômeno irracional e primitivo da magia ou da construção dos mitos, pois, diante da crise, esses fenômenos podem restabelecer o equilíbrio individual. Assim, notamos que os mitos (e as mitologias), antigas e contemporâneas têm uma função primordial no imaginário coletivo, entre outras coisas, porque espanta o medo da morte. E existiria um assunto tão extremo, radical, inquietante quanto a morte? Talvez, só a própria vida, as paixões, sensações, sentimentos, os afetos mais arrebatadores, mesmo que experimentados a partir da virtualidade. No que concerne, particularmente, à transferência do corpo para as mídias, Mônica Rebecca Ferrari Nunes (2001), em sua obra sobre a evolução dos memes (unidades mínimas da memória) de afeto, nos fala que

A fome insaciável remete-se à melancolia e à angústia infinita, por sua vez, contrapartida psíquica da fragilidade biológica com a qual o ser humano chega ao mundo, se lembrarmos Freud (LAPLANCHE e PONTALIS, 1988). Aqui, o sentido imputado à angústia aproxima-se daquele apresentado no mito ao enfatizar a prematuridade dos homens nus, sem qualidades. No corpo, a cultura. A fragilidade biológica e a prematuridade, fruto da escolha equivocada e do esquecimento epimetéicos. Na mídia, o corpo. “Mais uma vez, o rumor como furo, marca corporal do impresso, enreda sentidos plurais. (NUNES, 2001; 140)

O sentido da transferência do corpo para o espaço virtualizado das mídias pode ser desvelado se observarmos o interesse (ontológico) que desenvolvemos por aquilo que está se renovando. Nessa direção, notamos que as nossas próprias relações interpessoais estão irremediavelmente ligadas às experiências da morte (e do renascimento). Daí o entusiasmo diante da possibilidade e facilidade virtual ao encontrarmos novas pessoas e novos relacionamentos, e também o hábito de aceitar naturalmente o desaparecimento de um amigo virtual, pois temos a consciência de que tudo isso, de algum modo, já se encontra previsto no programa da vida digital.

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O êxtase da comunicação interativa advém do poder de acessar informações diversas e, a partir daí, nos sentimos livres para discutir de tudo, inclusive a morte, que, para muitos, indica apenas o fim de um ciclo e o início de uma nova jornada. O interesse pelo assunto encontra analogias com as formas de resgate histórico, cultural. E o Orkut (e o ciberespaço) é, também, um dispositivo que nos leva a refletir sobre outra forma de se recontar a história, resgatar os mortos, as corporeidades, as reminiscências e tudo aquilo que a história oficial, letrada, iluminista – de algum modo – deixou à sombra. Essa facilidade de transferência e integração “mágica” no mundo virtual beneficia a troca de experiências e informações, contribuindo também para a formação e identificação de novos grupos sociais, nascidos exclusivamente no campo virtual.

O individualismo em rede é um padrão social, não um acúmulo de indivíduos isolados. O que ocorre é antes que indivíduos montam suas redes, on-line e off-line, com base em seus interesses, valores, afinidades e projetos. Por causa da flexibilidade e do poder de comunicação da Internet, a interação social on-line desempenha crescente papel na organização social como um todo. As redes on-line, quando se estabilizam em sua prática, podem formar comunidades, comunidades virtuais, diferentes das físicas, mas não necessariamente menos intensas ou menos eficazes na criação de laços e na mobilização. Além disso, o que observamos em nossas sociedades é o desenvolvimento de uma comunicação híbrida que reúne lugar físico e ciber lugar (para usar a terminologia de Wellman) para atuar como suporte material do individualismo em rede. Assim, para mencionar um dos muitos estudos que corroboram esse padrão de interação entre redes on-line e off-line, a investigação conduzida por Gustavo Cardoso (1998) na PT-net, uma das primeiras comunidades virtuais em português, mostrou estreita interação entre sociabilidade on-line e off-line, cada qual com seu próprio ritmo, e com suas características específicas, formando, contudo, um processo social indissolúvel. Como Cardoso relata: “Estamos na presença de uma nova noção de espaço, em que físico e virtual se influenciam um ao outro, lançando as bases para a emergência de novas formas de socialização, novos estilos de vida e novas formas de organização social” (1998; 116) (CASTELLS, 2001; 110).

Contemplando as relações entre a magia (para usarmos os termos de Contrera (2002) e a sociedade em rede (para lembrarmos Castells (2001), somos levados a refletir sobre o emprego dos critérios da distância (psicológica, cognitiva, espacial, social) e do domínio, ou, melhor ainda, da apropriação (CONTRERA, 2002; 15).

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No ambiente cultural contemporâneo, quando os referenciais da racionalidade moderna se dissipam, reaparece a função substitutiva e unificadora do pensamento mágico, germinando um ambiente fantástico, onde as possibilidades de interação são ilimitadas, mesmo que a pessoa física por trás daquela ferramenta esteja completamente dispersa da vida social real, conforme se expressa na página de apresentação do Orkut:

O Orkut é uma comunidade on-line criada para tornar a sua vida social e a de seus amigos mais ativa e estimulante. A rede social do Orkut pode ajudá-lo a manter contato com seus amigos atuais por meio de fotos e mensagens, e a conhecer mais pessoas. Com o Orkut é fácil conhecer pessoas que tenham os mesmos hobbies e interesses que você, que estejam procurando um relacionamento afetivo ou contatos profissionais. Você também pode criar comunidades on-line ou participar de várias delas para discutir eventos atuais, reencontrar antigos amigos da escola ou até mesmo trocar receitas favoritas. Você decide com quem quer interagir. Antes de conhecer uma pessoa no Orkut, você pode ler seu perfil e ver como ela está conectada a você através da rede de amigos. Para ingressar no Orkut, acesse a sua Conta do Google e comece a criar seu perfil imediatamente. Se você ainda não tiver uma Conta do Google, nós o ajudaremos a criá-la em alguns minutos. Nossa missão é ajudá-lo a criar uma rede de amigos mais íntimos e chegados. Esperamos que em breve você esteja curtindo mais a sua vida social. Divirta-se!10

Dentre os assuntos explorados pela cultura de massa, propiciada principalmente pela televisão, a morte (espetacularizada), se precedida de flagelos, torturas, cativeiros, mistérios e requintes de crueldade, figura como o mais polêmico. Neste sentido, alguns estudos têm fornecido materiais para uma análise, como Débord (1967; 8), caracterizando este fenômeno como um produto da “sociedade do espetáculo”, pois, de acordo com ele:

Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da representação. (DÉBORD, 1967; 8)

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Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#About.aspx acesso em 28.07.2009 às 22h47min.

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Muniz Sodré (2002), por sua vez, diagnostica tudo isso como efeitos de uma “comunicação do grotesco”, acrescentando a nossa necessidade de transgredir, de quebrar barreiras e tabus:

A transgressão é um traço propriamente barroco, na medida em que este estilo, historicamente figurado como dominante no século dezessete, acolhe a contradição entre aspectos matemáticos e abstratos (na arquitetura e no urbanismo, o rigor no planejamento das ruas e no traçado das paisagens) e aspectos rebeldes, antimecânicos, sensuais – tanto na escultura quanto na pintura quanto nas roupas e nos costumes sexuais. No que alguns entendem como variante grotesca do barroco, a transgressão assume a forma de uma heterogeneidade forte, em geral chocante. (SODRÉ, 2002; 24)

Esta forma heterogênea de transgressão é a mesma que experimentamos diariamente face à televisão e à Internet. A predisposição de refletir sobre a morte num ambiente juvenilizado como o Orkut pode implicar numa forma de transgressão. Assim, transgredimos a conduta social vigente ao discutir sobre a morte, um tabu no contexto da cultura contemporânea, regida pela mitologia de Narciso, o desejo extremo de longevidade e da vida eternamente jovem. Isto se projeta com força nos ambientes virtuais. O que há de transgressão na comunidade Profiles de Gente Morta, no entanto, não é exatamente o fato de discutir a morte, pois esta tem sido espetacularizada frequentemente pelos mass media. O que há de inusitado é fazê-lo através da virtualidade, que confere permanência – ou uma “nova vivência” – do morto. Na TV, essa dimensão é muito reduzida, pois a mídia eletrônica, apressada, “não dispõe” de tempo para elaborar uma reflexão sobre os assuntos extremos como a morte. Logo, o tema sempre causa certo estranhamento.

Porém, ainda que a velocidade e a aceleração, aparentemente, garantam o pendor para o efeito do presente e a antecipação do futuro, em qualquer que seja o veículo, é possível vislumbrar lentas durações revelando a ambigüidade dos tempos codificados pela mídia: antecipação prometêica e retardamento epimetéico, em meio à transmissão “ao vivo”, em “tempo real”, do desenrolar de trágicos acidentes. Presente, passado e futuro a um só jorro comunicativo e textual. Superposições de temporalidades disfarçadas em presente urgente. (NUNES, 2001; 141-42)

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Examinaremos como este fenômeno típico da cultura de massa (radio e televisão), partes deste nosso “presente urgente”, se expressa no contexto da cibercultura (Internet), em que existe um nível mais dinâmico de participação e interação por parte dos espectadores-usuários-cidadãos. Sobre eles, Paula Sibilia (2008) diz que:

Ao longo da última década, a rede mundial de computadores tem dado à luz um amplo leque de práticas que poderíamos denominar “confessionais”. Milhões de usuários em todo o planeta – gente “comum”, precisamente como eu ou você – têm se apropriado das diversas ferramentas disponíveis on-line, que não cessam de surgir e se expandir, e as utilizam para expor publicamente a sua intimidade. Gerou-se, assim, um verdadeiro festival de “vidas privadas”, que se oferecem despudoradamente aos olhares do mundo inteiro. As confissões diárias de você, eu e todos nós estão aí, em palavras e imagens, à disposição de quem quiser bisbilhotá-las; basta apenas o clique do mouse. E, de fato, tanto você como eu e todos nós costumamos dar esse clique. (SIBILIA, 2008; 27)

A exposição da vida íntima de forma escancarada, ao vivo e em cores, tornou-se uma prática freqüente na sociedade midiatizada, e tem levado ao êxtase as grandes audiências televisivas. Ocorre-nos pensar sobre a projeção da experiência da morte no contexto midiático. E assim, seguimos o fio que leva às representações deste fenômeno radical no Orkut. Buscamos examinar como os discursos no ciberespaço contribuem para a desmistificação da morte, e como corpus de análise, como material empírico, focalizamos a comunidade Profiles de Gente Morta.

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3. Profiles de Gente Morta

Assim como na televisão, um dos assuntos mais discutidos no Orkut e que causa estranheza e comoção é a morte. Não só pelo sentimento geral de fim comum, mas pela ainda delicada maneira com que a virtualidade lida com o fenômeno, como se esta não existisse.

Se ela é, por si mesma, filha da noite e irmã do sono, ela possui, como sua mãe e seu irmão, o poder de regenerar. Se o ser que ela abate vive apenas no nível material ou bestial, ele fica na sombra dos Infernos; se, ao contrário, ele vive no nível espiritual, ela lhe revela os campos de luz. (CHEVALIER, 1982; 621)

A visão da morte e suas implicações evoluíram, junto conosco, para representações muito mais complexas e, a todo tempo, estamos tentando livrar-nos dela e das suas conseqüências. Ao cuidar disso, proporcionamos aos defuntos certas propriedades que são frutos de nossos próprios medos, e necessitamos discipliná-los para que não interfiram, de fato, na vida dos vivos, como podemos observar em algumas tradições em diversos lugares do mundo: como no Quebec, onde não se calça o cadáver, a fim de impedi-lo de caminhar sobre a neve e o gelo (MAERTENS, 1979, apud RODRIGUES, 2006; 32); roga-se também que o defunto esqueça os seus, que os deixe em paz (RODRIGUES, 2006; 32). Nós, certamente, não deixamos os mortos em paz. E o que significa essa paz? Seria esquecimento? Ou seria somente o hábito de manter viva uma lembrança? O que os mortos seriam para nós, então? Pensamos na “paz” como uma forma de tratar o morto com certo respeito, conferindo-lhe características e tratamentos diferentes dos usados àquela mesma pessoa em vida. Mas a imprensa não deixa os mortos descansarem em paz, e cada morte serve de pretexto para a fabricação do acontecimento midiático. As matérias jornalísticas que tratam das mortes são lidas, comentadas. E isto nos faz pensar sobre a maneira como permanecemos atentos à tragédia alheia. Talvez porque o mal-estar da “pós-modernidade nos leva a nos sentirmos melhores, quando o outro está pior do que nós mesmos. E na sociedade de consumo, sem transcendência (no sentido clássico do termo), extremamente materialista e narcísica, entende-se a morte 37

como o que há de pior na vida. Daí, a obsessão em “deixar os mortos em paz”. Mas, o que significa “deixar os mortos em paz”, senão o esquecimento? Não somos habituados a ritualizar a morte como as antigas culturas, não somos capazes de profanar o corpo do morto, como algumas tribos fazem: “os edo, da Nigéria, quebrando as pernas e perfurando os olhos do morto. (THOMAS, 1976: 512)”. Tal ato nos é impensável porque o cadáver é para nós algo intocável, algo tão precioso ou mais que a pessoa foi em vida:

Entre algumas culturas, é costume enterrar o cadáver duas vezes; na primeira, ele é apenas colocado em um lugar para decompor-se e esse tempo varia: podem se passar dias ou anos. Este é o tempo da passagem do morto para o reino dos mortos, ele está suspenso entre esses dois destinos, ainda não pertence a nenhum deles. Depois, apenas seus ossos, mais passíveis de convivência, são inumados na aldeia; aí ele já pertence ao reino dos mortos; é neste segundo ritual que a tribo acredita realmente ter matado a morte, enquanto essa realocação não terminar, segundo nos relata Hertz, a alma é instável e ansiosa, “errando pelas florestas e freqüentando os lugares que ela habitou quando viva. (RODRIGUES, 2006).

Alimentado e regido pelos perfis criados pelos usuários, o Orkut acabou por tornar-se um território em que podemos dividir o espaço com pessoas que já não estão mais entre nós no mundo real. É exatamente este aspecto de “convivência mútua” (entre os vivos e os mortos) que a comunidade Profiles de Gente Morta ou PGM trata.

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O grupo foi criado em 23 de dezembro de 2004, pelo paulista Guilherme Dorta, que descreve sua intenção na página inicial da comunidade11:

Figura 7: Página inicial da Comunidade Profiles de Gente Morta em 10.08.2009

Podemos destacar, na descrição da comunidade, que os integrantes são convidados a postarem perfis também de familiares e amigos, além daqueles desconhecidos, facilmente encontrados nos obituários dos jornais ou nos programas de 11

Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=993780, acesso em 29.06.2009

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televisão. Mas, em pesquisa realizada com os integrantes da comunidade entre os dias 22 de fevereiro e 22 de março de 2009, pudemos comprovar que a opinião dos 141 entrevistados está dividida, com uma diferença muito pequena entre aquelas que disponibilizariam e as que não tem intenção de disponibilizar tais perfis:

Gráfico 1: Sobre a possibilidade de postar o perfil de um familiar ou conhecido após seu falecimento

Em seu estudo sobre os cartuns de fim de século, a pesquisadora Nadja Carvalho relaciona a experiência infantil do trem fantasma com a representação confusa da morte – daí o motivo para experimentarmos, em diversos graus, um enfrentamento do medo que sentimos em relação ao assunto. “A viagem em trem fantasma é medonha, o seu destino é o mundo dos mortos. [...] dos passageiros que temem o toque do desconhecido”. Ao pesquisar os perfis de gente morta, refazemos essa viagem do trem fantasma, num ambiente constantemente renovado por outros personagens – pessoas que morrem a todo momento – e assuntos relacionados às suas mortes. Na PGM são postados os perfis de integrantes do Orkut que já morreram, conforme nos mostrou a figura 7, corroborando a idéia da inserção no mundo obscuro que o trem-fantasma representa. Mas, neste novo mundo obscuro midiático, é obrigatório disponibilizar ou uma notícia ou matéria jornalística, veiculada em algum meio tradicional de informação, ou alguma evidência que indique a veracidade do falecimento (print screens de páginas de recados com avisos de que aquela pessoa 40

realmente faleceu, amigos com a palavra “Luto” precedendo seu próprio nome - como trataremos adiante – e outros indícios). Não há restrições para integrar a PGM. Deve-se solicitar a entrada na comunidade (por causa de seu conteúdo, seus fóruns de discussão e tópicos só podem ser visualizados pelos seus membros) e a participação será consolidada após a aprovação do moderador e demais co-proprietários da comunidade. De acordo com Renata Rezende (2008; 2), o ciberespaço, na contemporaneidade, é o lugar que “poderia representar o Além”, já que, para Wertheim (2001), os “portais do Paraíso” estão abertos para todos, assim como a Internet. Mas por que participar de uma comunidade que reúne perfis de gente morta? Em pesquisa realizada com 144 integrantes entre os dias 22 de fevereiro e 22 de março de 2009, pudemos perceber que a maior razão é a curiosidade que temos sobre a morte:

Gráfico 2: Motivos que levaram os integrantes a participar da PGM

Aproveitando as facilidades comunicativas que o Orkut disponibiliza, são criadas discussões sobre cada morte, pois todas recebem um tópico específico no fórum – e todas são regidas por regulamentos estabelecidos pelo seu criador e moderadores: não são permitidas agressões verbais, propagandas, fotos violentas, discussões religiosas e políticas, entre outros. Conforme disponibilizado em um tópico criado pelo moderador12: 12

Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=65537209&tid=5235757002899152661, acesso em 16.07.2009

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Figura 8: Regras da PGM. Em 10.08.2009

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Nas regras citadas acima, é importante salientar as formas corretas para a postagem de uma morte, seguindo uma padronização, conforme exposto na figura abaixo:

Figura 9: Padronização das postagens da PGM. Em 10.08.2009.

A “obrigatoriedade” do uso da cruz antecedendo o nome do falecido comprova a idéia do obituário transportado para a realidade virtual. Uma postagem que desobedeça a esse critério é imediatamente rechaçada pelos integrantes da comunidade, porque a padronização é tão importante para a sua manutenção quanto as próprias mortes. Sem a cruz, assim como nos cemitérios, não há uma representação de uma morte. A própria nota de falecimento, o próprio obituário, obedece a uma fórmula quase sempre igual, em que os dizeres são parecidos e evocam a solidariedade cristã acima de tudo. Se nos obituários físicos, tão tradicionais, é comum convocar pessoas para comparecer ao velório ou à missa, porque é considerada tão estranha a atitude dos integrantes da PGM? Segundo pesquisa que realizamos com 48 integrantes, 2% deles declaram sentirse da mesma forma que num velório quando visitam o perfil de um falecido e 6% pensam estar prestando algum tipo de homenagem. 75% deles declararam visitar estes perfis apenas por curiosidade. De qualquer forma, essa visita virtual também é um ato de fé cristã. Conforme é explicitado no gráfico13:

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Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommPollResults.aspx?cmm=993780&pct=1243969727&pid=1648120652, acesso em 10.08.2009. Enquete realizada entre 01 de junho e 01 de julho de 2009, na comunidade Profiles de Gente Morta.

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Gráfico 3: Sobre a visitação de perfis de pessoas falecidas

É preciso colocar os mortos em seu lugar, e este lugar precisa ser organizado, separadamente, a salvo da visibilidade dos vivos e das conversações sobre o tema. Já o uso das cruzes precedendo os nomes dos mortos também se deve ao fato de colocar aqueles em seu devido espaço. Não fazemos o mesmo nos cemitérios? Por mais que os campos-santos mais novos usem aquela imagem de parque, sem a arquitetura exuberante, própria dos cemitérios, a utilização das placas ocorre porque ainda é preciso assinalar o local onde aquele indivíduo descansa, é preciso identificá-lo, de qualquer forma, para que ele seja facilmente reconhecido. E, mesmo nessas placas, é comum encontrar a cruz gravada. Ela não está lá fisicamente, mas representada, assim como nas postagens. E convém refletir sobre a simbologia da cruz, que precede em muito a cristandade, embora – milenarmente - remeta quase que exclusivamente à filosofia cristã. É o que nos revela Chevalier em seu Dicionário de Símbolos (1982; 309-310):

A cruz vem sendo utilizada para designar mortos ou a morte desde a antiguidade e possui diversos significados dentro deste campo. A cruz é um dos símbolos cuja presença é atestada desde a mais Alta Antiguidade: no Egito, na China, em Cnossos, Creta, onde se encontrou uma cruz de mármore do século XV a.C. A cruz é o terceiro dos quatro símbolos fundamentais (segundo Champeaux), juntamente com o centro, o círculo e o quadrado. Ela estabelece uma relação entre os três outros: pela intersecção de suas duas linhas retas, que coincide com o

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centro, ela abre o centro para o exterior, inscreve-se no círculo, que a divide em quatro segmentos; engendra o quadrado e o triângulo, quando suas extremidades são ligadas por quatro linhas retas. A simbologia mais complexa deriva dessas singelas observações: foram elas que deram origem à linguagem mais rica e mais universal. Como o quadrado, a cruz simboliza a terra; mas exprime dela aspectos intermediários, dinâmicos e sutis. A simbólica do quatro está ligada, em grande parte, à da cruz, principalmente ao fato de que ela designa um certo jogo de relações no interior do quatro e do quadrado. A cruz é o mais totalizante dos símbolos (CHAMPEAUX, 1966: 365). A cruz tem, ainda, o valor de símbolo ascensional. Numa adivinha medieval alemã, fala-se de uma árvore cujas raízes estão no inferno e a rama no trono de Deus e que engloba o Mundo entre seus galhos. Essa árvore é, precisamente, a cruz. Nas lendas orientais, ela é a ponte ou a escada de mão pela qual os homens chegam a Deus. Em certas variantes, a madeira da cruz tem sete degraus, da mesma forma que as árvores cósmicas representam os sete céus (ELIT, 1949, nova edição 1964: 2545). A madeira da verdadeira cruz de Cristo ressuscita os mortos, segundo uma velha crença deve tal privilégio ao fato de ser essa cruz feita com a madeira da arvore da vida plantada no paraíso. No Egito, a Cruz Ansada (Ankh), muitas vezes confundida com o nó de Isis, é o símbolo de milhões de anos de vida futura (grifo do autor). [...] emblema da vida divina e da eternidade. [...] A cruz figura o estado de transe, no qual se debatia o iniciado; mais exatamente, ela representa o estado do morto, a crucificação do eleito e, em certos templos, o iniciado era deitado pelos sacerdotes num leito em forma de cruz (CHAMPDOR, 1963: 22). Costumava ser aplicada à fronte do faraó e dos iniciados como que para lhes conferir a visão da eternidade para além dos obstáculos por vencer. É apresentada pelos deuses aos defuntos, observa Maspero, como um símbolo de vida eterna, cujos eflúvios são vivificantes. Para Paul Pierret, é igualmente símbolo de proteção dos mistérios sagrados. [...] Indica os quatro pontos cardeais; significa a totalidade do cosmo. [...] Encruzilhada, ela exprime também os caminhos da vida e da morte, uma imagem do destino do homem (MVENG 1964: 106). O eixo vertical dessa cruz une a terra (morada dos homens e, na sua expressão ctoniana, das almas mortas) ao Céu Superior, morada do Deus Supremo. Ele próprio está no centro de uma cruz (CHEVALIER, 1982; 309-310).

Ainda sobre as regras da comunidade, é preciso salientar que postar uma morte fake (falsa) é uma atitude grave, penalizada com a expulsão. Os integrantes, dentro do tópico sobre uma morte específica, comentam sobre o fato, lamentando se a pessoa era nova, se morreu de acidente trágico, ou então fazem julgamentos, como nos casos de suicídio ou irresponsabilidade ao volante, para citar casos mais comuns. Há também a prática de deixar nestes perfis de falecidos recados com as siglas RIP e DEP, que significam “Rest in Peace” e “Descanse em Paz”, respectivamente, como é esclarecido

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na própria comunidade, num tópico fixo14, para que todos os freqüentadores saibam dos seus significados. Talvez seja por isso que o uso da cruz nas postagens sobre uma morte é obrigatório na PGM, como é possível constatar nas regras básicas disponibilizadas pelo moderador e citadas anteriormente, para que o formato das postagens seja mantido. A PGM é uma segunda sepultura, constantemente revolvida. Os mortos que nela residem não pertencem a outro reino senão ao da memória e estão sempre acessíveis. Esse acesso é facilitado pela impessoalidade da máquina; assim, acompanhar o morto e constantemente lhe ‘visitar’ é algo muito mais fácil. Buscamos, então, mesmo com receio de uma resposta direta, manter uma comunicação com os que já morreram, e continuamos a amputá-los a paz. Neste estudo, pudemos acompanhar o constante crescimento do número de integrantes: em novembro de 2008, 57.436 membros; março de 2009, 61.749 membros, totalizando 4.313 novas adesões em apenas quatro meses. Já em agosto do mesmo ano, o número de integrantes subiu para 65.476, conforme exemplificamos no Gráfico 4:

Gráfico 4:Monitoramento da entrada de integrantes na PGM de Outubro de 2008 a Agosto de 2009.

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http://www.orkut.com.br/Main#CommEvent.aspx?cmm=993780&crt=4501161&dat=1262073600

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Fizemos um acompanhamento mais detalhado, entre os dias 16 e 30 de julho de 2009 e constatamos que a entrada e a saída de integrantes é constante. Esse acompanhamento da entrada e saída de integrantes pode ser mais bem visualizado no gráfico:

Gráfico 5: Monitoramento de integrantes da PGM entre 16 e 30 de julho de 2009.

Em vista disso, a comunidade Profiles de Gente Morta poderia, grosso modo, ser classificada como grande obituário em tempo real, quando focamos a divulgação praticamente imediata do falecimento de indivíduos, pois é possível informar-se sobre a morte de uma pessoa antes mesmo dela ser noticiada pelos meios de comunicação tradicionais. Qual a razão de tamanho interesse, de tanta busca pelos pormenores sobre a morte dessas pessoas e sobre o que foram em vida? De acordo com Contrera (2002; 52):

A morte é o grande incômodo e o destino tem sido simbolicamente representado como quem dela dispõe. (...) Segundo a lógica do mito, o tempo mata. Logo, temos de matar o tempo antes mesmo que pressintamos sua ação, o que justifica o ritmo acelerado com que, cada vez mais, sobrecarregamo-nos de afazeres, incluindo aqui a linguagem de velocidade da mídia eletrônica. Mas, como matar o tempo? Sendo impossível atingi-lo como entidade autônoma (não nos esqueçamos que ele é um deus, afinal), atacamos o suporte através do qual o experimentamos – a concretude, o corpo. Essa concretude, experimentada na comunicação pela proximidade, nos leva ao descrente distanciamento da comunicação (CONTRERA, 2002; 52).

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Destarte, podemos deduzir que, se o tempo mata, devemos “matá-lo” de várias formas: uma delas é discutindo a morte dos outros. Assim, retornamos para a discussão ao redor das mortes divulgadas na Comunidade Profiles de Gente Morta. Nos termos da professora Paula Sibilia (2008), esse interesse pode residir na experiência de se ver e ver os outros vivendo:

A câmera permite documentar a própria vida; registra a vida sendo vivida e a experiência de “se ver vivendo” [...] A própria artista (Nan Goldin) confessa que, quando jovem, costumava escrever diários a fim de “reter sua própria versão das coisas”. Isso aconteceu até o momento em que ela descobriu as potências da câmera, uma ferramenta que lhe ofereceria a inédita possibilidade de se “manter viva, sã e centrada”, já que essa inscrição fotográfica de sua memória voluntária lhe permitia “confiar na própria existência”. (SIBILIA, 2008; 33)

No Orkut, temos os dois artefatos: o diário e a fotografia. Por isso, os perfis “trancados” (com acesso restrito às pessoas selecionadas pelo seu proprietário) não são tão interessantes, pois fornecem poucas informações escritas e, menos ainda, visuais – não nos deixam ver o morto quando ele estava vivendo. São diversos os casos de “perfis trancados”, o que dificulta o acesso à página de recados, por exemplo, para averiguar mensagens de amigos que indiquem a morte. Neste caso, o integrante que postar o perfil do recente falecido deve indicar que acabou de acontecer e, posteriormente, adicionar uma notícia embasando-a para não correr o risco de ser banido, ou então deve procurar contatar algum amigo do falecido em questão para que ele lhe confirme a informação. É quase como uma checagem de fontes jornalísticas, um apanhado dos fatos. A organização é levada tão a sério que, para atender a grande quantidade de banimentos diários, foi criada a comunidade afiliada “PGM – Moderação”, onde são postados os usuários que foram excluídos da comunidade, juntamente com a justificativa por tal ato. Este espaço é exclusivo dos moderadores da PGM e não se pode comentar nos tópicos de lá, apenas visualizá-los. Então, a moderação da comunidade representada pela PGM – Moderação representa um departamento de controle comportamental, quase como uma censura.

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Podemos ver, na figura e nos gráficos abaixo, esses detalhamentos das expulsões:

Figura 10: Página inicial da comunidade PGM Moderação. Em 10.08.2009

Expulsões da PGM entre Janeiro e Março de 2009:

Gráfico 6: Expulsões da PGM em Janeiro de 2009

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Gráfico 7: Expulsões da PGM em Fevereiro de 2009.

Gráfico 8: Expulsões da PGM em Março de 2009.

Como, no Orkut, tudo pode virar assunto para uma comunidade, não seria diferente com um tão polêmico quanto este. O que gostaríamos de salientar, através deste monitoramento, é o grau de organização da comunidade. E, a partir desta constatação, através do gráfico abaixo, podemos perceber que a maioria dos 141 integrantes que responderam a uma pesquisa realizada entre os dias 22 de fevereiro e 22 de março de 2009 mudariam seu modo de funcionamento:

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Gráfico 9: Enquete revelou que 72 dos 141 entrevistados mudaria algo na PGM.

Numa pesquisa superficial ou olhando apenas no quadro de comunidades relacionadas na página principal da PGM, é possível identificar, sem esforço, onze outras, dentre elas: Sou Viciado na Profiles, Eu já chorei lendo a Profiles, Gente Morta sem Profile, Eu Adoro a PGM, Não ao RIP e DEP nos Profiles, Seu eu Morrer, me enterre na PGM, A PGM não me Deixa trabalhar, PGM Moderação, Eu sou um Pegeêmico, Culinária PGM. Dentre estas, a mais útil para os usuários da PGM é a PGM – Já foi postado?, onde são relacionados por ordem alfabética todos os perfis de pessoas falecidas já noticiadas na comunidade, para que não haja uma constante duplicidade de casos. Alguns dos perfis listados já foram desativados, mas a lista permanece indicando que aquela pessoa de fato existiu no mundo real e virtual, funcionando como uma espécie de memória permanente.

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Podemos também perceber que a organização da comunidade estendeu-se, entre janeiro e março de 2009, ao detalhamento das mortes lá anunciadas, conforme foi disponibilizado pela integrante Giselle15:

Gráfico 10: Mortes contabilizadas pela PGM em Janeiro de 2009

Gráfico 11: Mortes contabilizadas pela PGM em Fevereiro de 2009

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Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=993780&tid=5302757140161963057, acesso em 18.03.2009

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Gráfico 12: Mortes contabilizadas pela PGM em Março de 2009

Utilizando-se da ferramenta de busca de comunidades, é possível identificar mais outras relacionadas à Morte e, em especial, à PGM, pois visitar o perfil de um morto é resgatar esse sentimento de “visão própria dos acontecimentos” (SIBILIA, 2008) e é algo muito mais interessante e profundo que um obituário escrito por terceiros, já que não temos mais o costume de extremas unções, testamentos longos ou palestras à beira da morte, como antigamente, como bem descreveram José Carlos Rodrigues (2006) e José Luiz de Souza Maranhão (2008). Mais que uma substituição dessa prática, o perfil no Orkut torna-se uma ferramenta poderosa de manutenção da memória, pois, em primeiro lugar, não é preciso ter estado no sopé da cama do moribundo, ou sequer conhecê-lo, o que é ainda mais curioso. Esse perfil, como continuamos a repetir, é uma representação do que o morto foi, tanto para ele mesmo quanto para os seus, de início, e para a sociedade, a posteriori, ligada a ele pela morte, fim comum. Ou, como colocou Margareth Wertheim (2001), “junto com a libertação da dor, virá também a libertação máxima, pois a morte não haverá mais”.

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3.1 Inventário Alfabético dos Mortos

“Este é um volume funéreo, longo e fino, encerrado numa cortiça prateada. Nele se encerram todos os nomes dos mortos que viveram na terra. O primeiro nome é Adão e o último é Susana, mulher de Próspero. Os nomes estão escritos em muitas tintas e diversas caligrafias, dispostos em extensas colunas que por vezes reflectem o alfabeto, outras uma cronologia da história, mas mais frequentemente utilizando taxonomias intrincadas, tanto que um pode procurar muitos anos para encontrar um nome ainda que certo de que ele lá se encontra. As páginas do livro são muito antigas e ostentam marcas de água de uma colecção de desenhos de tumbas e jazigos, pedras tumulares trabalhadas, campas, sarcófagos e outras grandezas arquitectónicas para finados, pressupondo que o livro poderia ter outro propósito, ainda anterior à morte de Adão.” 16

Organizar a morte, catalogá-la, mantê-la restrita num local por nós delimitado, como acontece com os cemitérios, é uma prática muito antiga da raça humana. Saltando diretamente para a contemporaneidade, onde convocar pessoas conhecidas e desconhecidas para um funeral ou uma missa de falecimento é considerado “um ato de fé cristã”, precisamos lançar um olhar mais demorado aos obituários, figuras ilustrativas que também participam do corpo de um jornal impresso há muito. Tomamos como exemplo o obituário do jornal americano The New York Times que, segundo Matinas Suzuki Jr (org.), “é quase sempre uma ode à vida”,

A seção de obituários do Times é uma cerimônia de adeus diária de bom jornalismo e uma das campeãs de leitura do jornal mais influente do mundo. Há quem pense que a valorização do obituário pela imprensa de língua inglesa seja um ritual de morbidez, mas essa é uma impressão falsa. (SUZUKI, 2008)

De acordo com o autor, o obituário reitera “a brevidade de tudo, ao tomar o ponto final da existência como ponto de partida do jornalismo”. Mas, mesmo assim, acreditamos que é exatamente desta matéria, desta “brevidade de tudo” que o jornalismo mais se alimenta. Daí, a necessidade de obituários na mídia, em geral, pois podemos perceber obituários em todos os jornais brasileiros, em todos os programas jornalísticos de televisão.

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Disponível em http://livrosdeprospero.blogspot.com/2005_07_01_archive.html, Acesso em 04.05.2009

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Deixando bem definida a idéia do obituário e sua relação com o jornalismo, tencionamos estabelecer um paralelo entre esse chamamento primeiro e o que presenciamos, hoje, na comunidade Profiles de Gente Morta (PGM), do Orkut. Acreditamos que os dois extremos se completam, ou melhor: o segundo é apenas um reflexo melhorado do primeiro, onde podemos acessar um sem-número de obituários instantaneamente. Esses obituários foram escritos desde o dia da morte daquele indivíduo, pelas pessoas que pesquisaram sobre sua vida, brevemente ou exaustivamente nos bytes do Orkut e expuseram o resultado no tópico onde o perfil do falecido figurava como destaque maior.

Quando as redes digitais de comunicação teceram seus fios ao redor do planeta, tudo começou a mudar vertiginosamente, e o futuro ainda promete outras metamorfoses. Nos meandros desse ciberespaço de escala global germinam novas práticas de difícil qualificação, inscritas no nascente âmbito da comunicação mediada por computador. São rituais bastante variados, que brotam em todos os cantos do mundo e não cessam de ganhar novos adeptos dia após dia. (SIBILIA, 2008; 12)

O Orkut e a PGM são exemplos dessa “mudança vertiginosa”, principalmente no tocante à morte e à sua exposição. Mais que uma simples foto e alguns dizeres repetitivos dos obituários dos jornais, o obituário virtual é o próprio perfil pessoal, em que as informações foram inseridas pelo próprio indivíduo, ainda em vida. Como sempre procuramos não pensar na nossa própria morte, não nos damos conta dessa dimensão que um simples cadastramento num site de relacionamento pode tomar. Os dados que lá inserimos serão baluartes de nós mesmos após a nossa partida. Estas visitas, pesquisas e comentários podem ser considerados atos correlatos de fé cristã realizados pelos integrantes da PGM. E relembrando Edgar Morin (1976), encontramos elementos vigorosos para uma antropológica da morte, senão vejamos:

La Rochefoucauld dizia que para o Sol e para a morte não se podia olhar de frente. Desde então, os astrônomos, com os ardis infinitos de sua ciência – de todas as ciências -, já pensaram o Sol, já lhe calcularam a idade, já lhe anunciaram o fim. Mas a ciência ficou como que intimidada e tremente perante o outro sol, a morte. Continua a ser verdadeiro o comentário de Metchnikoff: “A nossa inteligência, que se tornou tão ousada e tão ativa, mal se tem dedicado à morte.”Mal se tem dedicado porque o homem ora renuncia o olhar para a morte, a coloca entre parênteses e a esquece como acabamos por nos esquecer do Sol, ora, pelo contrário, a olha com aquele olhar fixo, hipnótico, que se perde no estupor e donde nascem as miragens. O homem, que

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negligenciou de mais a morte, desejou também de mais olhá-la de frente, em vez de tentar enredá-la com a sua astúcia. (MORIN, 1976; 19)

Embora a morte, assim como o Sol, esteja sempre presente diante de nossos olhos, participando e, principalmente, alterando nosso cotidiano, por vezes é abstraída. Com a morte, certamente, essa abstração (ou esquecimento voluntario) acontece com mais freqüência que o Sol. De toda forma, entendemos a PGM como uma tentativa de alterar esse fato, como uma tentativa de “olhar a morte de frente”. Aqui, nos perguntamos: qual o grande incômodo em saber que a morte também migrou para os terrenos virtuais? José Carlos Rodrigues (2006; 34) nos conta que os mortos não cessam de existir, apenas são libertos do aspecto terrestre para continuá-la em outro lugar, idéia que presenciamos, hoje, com as diversas religiões que conhecemos. Crer na sobrevivência do homem em algum lugar alheio ao nosso conhecimento é, talvez, inerente ao ser humano: um esqueleto do Homem de Neanderthal, encontrado na Chapelle-aux-Saints, estava acompanhado de uma perna de bizonte quase intacta. Através desta descoberta, nos é possível supor que seus contemporâneos acreditassem que o morto precisaria de alimentos e teria outras necessidades quando chegasse ao outro mundo. Depois, torna-se comum encontrar esse tipo de arrumação:

Na Idade do Bronze os mortos são enterrados com alimentos e utensílios de cozinha; no Egito antigo, algumas moedas são-lhes introduzidas na boca para que possam pagar sua estadia no além... (RODRIGUES, 2006; 34).

A despedida é um ato de exclusão. Se for o caso dos mortos, configura uma exclusão definitiva, que necessita ser compensada, “invertida de certo modo, em um movimento contrário de re-inserção do indivíduo, de iniciação, de renascimento para uma nova vida, em um novo mundo, em uma nova sociedade.” (ibidem; 34). Desta feita, podemos afirmar que garantir a permanência do morto – entre nós ou em outro lugar – é prática tão antiga quanto nossa própria existência e não é exclusividade nem conseqüência dessa era tecnológica e da exposição do virtual sob o real. Por isso, a PGM não deveria ser tratada como esdrúxula, pois, segundo Edgar Morin, “a conservação do cadáver implica um prolongamento da vida. O não abandono dos 56

mortos implica a sua sobrevivência” (MORIN, 1976; 24-25). O autor também nos diz que

A sociedade funciona não apenas apesar da morte e contra a morte (nomeadamente segregando uma formidável neguentropia em que a morte é negada e recalcada); mas também que só existe enquanto organização, pela morte, com a morte e na morte. A existência da cultura, isto é, dum patrimônio coletivo de saberes (saber fazer, normas, regras organizacionais, etc.) só tem sentido porque as gerações morrem e é constantemente preciso transmiti-la às novas gerações. Só tem sentido como reprodução, e este termo assume o seu sentido pleno em função da morte. (MORIN, 1976; 10-11)

Seguindo o mesmo raciocínio, o autor também nos leva a perceber a humanidade nas “fronteiras da terra-de-ninguém” onde fomos transformados de integrantes da natureza para o “estado de homem”; “o passaporte da humanidade válido, científico, racional e evidente, é o utensílio: Homo faber. As determinações e as idades da humanidade são as dos seus utensílios” (MORIN, 1976; 22). Assim, podemos salientar a importância das novas mídias no desenvolvimento da comunicação, característica mais expressiva da humanidade. Colocamos aqui as novas mídias como apoteose do produto humano, do Homo faber citado por Morin. Daí a grande importância dessas tecnologias, da Era Digital ou Idade Multimídia. Primeiro tivemos a pedra, o fogo, o ferro, a roda; hoje, temos a Internet e a rearrumação, rearticulação da comunicação em tempo real. É como se, num piscar de olhos, pudéssemos ter evoluído tão rapidamente quanto Stanley Kubrick propõe no filme 2001: Uma Odisséia no Espaço (1968): da clave e do monólito diretamente para HAL. Se pensarmos a vida como hoje é, completamente dependente das máquinas, não teríamos dificuldade em imaginar todas (ou quase) as situações ali representadas: temos a conversa telefônica via vídeo, temos homens no espaço, temos a Inteligência Artificial, temos formas de patrulhar e monitorar ações e pensamentos mais íntimos das pessoas com apenas um clique. Parte dessa possibilidade também pode ser vista em 1984, livro de George Orwell (1948) que originou a idéia do Grande Irmão, ou Big Brother, que está presente em tudo e de tudo sabe.

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3.2 A morte e o morrer mediáticos

“As pompas da morte aterrorizam mais que a própria morte” (BACON apud MORIN, 1976; 27)

De acordo com Bernardo Issler (2004), a transmissão oral do óbito é anterior à imprensa; em Roma, acontecia através dos “Actos Diurnos” e também

Diversas fontes registram o desempenho de informantes públicos, pregões de rua, porta-vozes da notícia, encarregados de disseminar novidades legais ou de interesse geral: os editos, os pregoeiros, a trombeta real, os vozeadores, núncios, arautos e outros. Curiosamente um desses termos, o Heraldo, foi resgatado pelo jornalismo impresso em várias línguas, como designativo próprio de jornal. Nas cidades brasileiras quinhentistas o pregão ocorria no pelourinho, local onde se afixava o marco da cidade em pedra, também o local para a aplicação de castigo aos condenados. Com o advento das artes gráficas, os atos impressos substituíram os manuscritos e o pregão oral. A comunicação de óbitos antes de ser acolhida na imprensa passou por uma fase mural, afixada nas portas das casas enlutadas ou nas funerárias e até repartições públicas e notariais. (ISSLER, 2004)

Hoje, essa comunicação ritualística dos óbitos já foi novamente alterada, tornando-se mais eficaz: a informação é transmitida em tempo real; isto é: ao mesmo tempo em que acontece. E não necessitamos mais de mediadores específicos (mensageiros, pregoeiros, estelas, jornalistas) para tornar o óbito público. No entanto, nossa sociedade industrial capitalista produziu, dentre outros aspectos, um fenômeno curioso com relação aos nossos instintos mais básicos, e principalmente a morte, tratada com tanta naturalidade anteriormente: de início, foi o sexo o grande tabu, o assunto proibido. À medida que a interdição em torno da sexualidade foi se relaxando, com a força dos movimentos sociais de igualdade, da libertação das mulheres e da aceitação da prática sexual não apenas como fim reprodutivo, a morte foi se tornando uma coisa inominável. A obscenidade foi transferida para os fatos relacionados com o nosso fim, não mais com o início da vida, uma autêntica inversão de papéis. Atualmente, assim como a iniciação informática por parte das crianças é precoce, pois já nascem com máquinas e computadores ao seu redor, existe a 58

preocupação de iniciá-las quanto antes nos “mistérios da vida”, nos mecanismos do sexo e da concepção, nascimento e, não muito depois, na contracepção (MARANHÃO, 2008; 9-10). Porém, é necessário ocultar das crianças, sistematicamente, a morte e os mortos, silenciando ou fantasiando, metaforizando o diálogo diante de suas indagações igual como nossos pais faziam quando perguntávamos como é que o bebê é colocado dentro da barriga da mamãe. Aqui há uma inversão. A vida era um mistério e a morte, velha conhecida. Hoje, como desejamos adiar a morte, esta se tornou um tabu, enquanto o sexo, o início da vida, já conhecido de todos, faz parte dos temas inseridos na agenda pública. Deslocamos o conceito de tabu, embora ele permaneça como algo que deve ser evitado, como uma conversa que é constrangedora de se iniciar e sempre remeta às atividades básicas e inerentes à nossa própria existência: o sexo e, agora, a morte, como bem colocou Philippe Ariès, em entrevista publicada na revista francesa Critère (n°. 13, 1975), citando um trecho do livro História da Morte no Ocidente (1975):

Comme l'acte sexuel, la mort est désormais de plus en plus considérée comme une transgression qui arrache l'homme à sa vie quotidienne, à sa société raisonnable, à son travail monotone, pour le soumettre à un paroxisme et le jeter alors dans un monde irrationnel, violent et cruel. Comme l'acte sexuel chez le marquis de Sade, la mort est une rupture. Or, notons-le bien, cette idée de rupture est tout à fait nouvelle. Dans nos précédents exposés, nous avons voulu au contraire insister sur la familiarité avec la mort et avec les morts. Cette familiarité n'avait pas été affectée, même chez les riches et les puissants, par la montée de la conscience individuelle depuis le XIle siècle. La mort était devenue um événement de plus de conséquence; il convenait d'y penser plus particulièrement. Mais elle n'était devenue ni effrayante, ni obsédante. Elle restait familière, apprivoisée. Désormais, elle est une rupture. Cette notion de rupture est née et s'est développée dans le monde des phantasmes érotiques. Elle passera dans le monde des faits réels et agis. Bien sûr, elle perdra alors ses caractères érotiques, ou du moins ceux-ci seront sublimés et réduits dans la Beauté. Le mort ne sera pas désirable, comme dans les romans noirs, mais il sera admirable par sa beauté: c'est la mort, que nous appellerons romantique, de Lamartine en France, de la famille Brontë en Angleterre, de Mark Twaîn aux Etats-Unis. (Critère, 1975. Ed. 13)17

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Ariès fala que, como o ato sexual, a morte é cada vez mais considerada como uma transgressão que arranca o homem da sua vida cotidiana, de sua razoável vida em sociedade, de seu trabalho monótono, para lhe submeter a um paroxismo e lhe jogar em um mundo irracional, violento e cruel. Como o ato sexual em Marquês de Sade, a morte é uma ruptura. Note bem, essa idéia de ruptura é nova. Em nossas exposições precedentes, nós quisemos – ao contrário – insistir na familiaridade com a morte e com os mortos. Essa familiaridade não havia sido afetada, mesmo no caso dos ricos e poderosos, pela elevação da

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A morte, não o sexo, é agora o tabu que secretamente violamos; a pornografia da morte excita-nos. Aquela nossa predileção por programas e filmes que exibam terríveis e cruéis espetáculos pode hoje ser satisfeita como nunca. Mesmo que não se tenha, propriamente, uma predileção pessoal por esses assuntos, é praticamente impossível deixar de vê-los quando nos são disponibilizados, salvo alguns poucos casos onde há uma fobia ou aversão pessoal por tais acontecimentos. Fora isso, a maioria das pessoas não pode deixar de assistir a um pouquinho que seja do noticiário com o assassinato, do filme em cartaz com poucas, mas refinadas cenas de tortura – intercaladas, sempre, com algumas de sexo. “Contudo, voltando do cinema para casa, a ficção se desfaz e retornamos à realidade da morte – a nossa própria ou daquele ente querido – que é novamente uma rigorosa punição” (MARANHÃO, 2008; 10-11). Edgar Morin também fez esta ligação, salientando que essa transferência de tabus fez parte da crise cultural mundial acontecida nos anos 60 – exatamente quando o sexo começava a se libertar da obscuridade, o que fez

[...] ressurgir, uns após os outros, os grandes Recalcados. O penúltimo foi o sexo. O último é a morte. É claro que, assim como o sexo, no seu próprio desvelar, foi remitificado, redominado, embora de outro modo, reexplorado e reintegrado, [...] assim a morte será de novo, e de modo diferente, explorada e mitificada, e veremos aparecer uma nova espécie de tanatófagos. Mas o regresso da morte é um grande acontecimento civilizacional e o problema de conviver com a morte vai inscrever-se cada vez mais profundamente em nosso viver. E isso vai levar-nos a um modo de viver de dimensão simultaneamente pessoal e social. Mais uma vez, o caminho da morte deve levar-nos mais fundo na vida, como o caminho da vida nos deve levar mais fundo no da morte. (MORIN, 1976; 11)

De cinquenta anos para cá, houve uma ruptura histórica nas atitudes do homem ocidental diante da morte e do morrer. Evidentemente, muitos traços ainda lembram os

consciência individual desde o século XII. A morte se tornou um evento com mais conseqüências; era preciso pensá-la mais particularmente. Mas ela não havia se tornado nem assustadora nem assombrosa. Ela continuava familiar, domesticada. Agora, é uma ruptura. Essa noção de ruptura nasceu e se desenvolveu no mundo dos fantasmas eróticos. Ela se passará no mundo dos fatos reais. Com certeza, ela perderá seu caráter erótico, ou ao menos este será sublimado e reduzido na Beleza. A morte não será desejável, como nos romances negros, mas será admirável por sua beleza: é a morte, que nós chamaremos de romântica, de Lamartine na França, da família Brontë na Inglaterra, de Mark Twain nos Estados Unidos. Tradução livre de Renata Gambarra.

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antigos costumes, alguns ainda mantidos simplesmente porque o são, e os costumes não são explicados, apenas seguidos e repassados adiante, o que os deixam vazios em seu sentido original, mas, de acordo com Philippe Ariès,

On ne peut pas vraiment dire que nous assistons à l'heure actuelle à un défoulement véritable en Occident. On ne parle de la mort que dans les milieux assez restreints de ceux qui s'intéressent aux sciences humaines. Mais il ne s'agit pas encore, il s'en faut de beaucoup, d'un intérêt populaire pour la mort. (ARIÈS, 1975)18

A morte, tão presente e tão doméstica no passado, torna-se vergonhosa, interditada, pois os mortos não tem mais espaço na nossa sociedade ocidental; não podemos nos dar ao luxo de cultuá-los regularmente, ao modo dos orientais. Temos apenas um dia, em todo o nosso calendário de 365 dias, onde expressar a dor e o luto por alguém que partiu é considerado normal, socialmente aceitável dentro dos nossos parâmetros. Em outras ocasiões, fora aquelas diretamente conseguintes à própria morte e aos ritos funerários, é costumaz ouvir dizer que a vida continua e que temos de “levar a bola pra frente”... Não deixamos mais as pessoas sentirem seus processos de luto, não as deixamos pensar mais na morte do próximo, pois não é mais saudável, a tristeza não é mais algo necessário ao aprendizado humano. Queremos, a todo custo, fazer o enlutado esquecer o luto e manter boas recordações daquele que se foi, pois a morte dele deixou de ser natural para ser algo monstruoso. Daí, o costume de algumas pessoas não quererem ver o defunto: encaram a visão da pessoa querida morta como algo pejorativo e não natural. Essa observação é supérflua apenas nos casos de morte prematura ou acidental, extremamente traumáticas, onde, realmente, essa visão do cadáver só contribui para o aumento do sentimento de inconformidade. Hoje, após a confirmação do óbito, o hospital entrega o defunto para a família, que o repassa a uma organização especializada - a funerária -, que, cada vez mais, assume os encargos de uma morte: necropsia, sepultamento, questões de seguro social, herança... Assim, vamos abstraindo o trato com os mortos e assumimos o papel de meros espectadores.

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Na entrevista à revista Critère, P. Ariès diz que não se pode realmente “dizer que assistimos agora a uma catarse verdadeira no Ocidente. Falamos da morte apenas no caso de pequenos círculos dos que se interessam por ciências humanas. Mas não se tornou ainda, e falta muito para isso, de um interesse popular pela morte”. Tradução livre de Renata Gambarra

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Reforçamos a idéia de que somos nós, os vivos, os que agora procuram os mortos, e que, através das multimidialidades, sua memória é cada vez mais fortalecida através da manutenção dos tópicos ou simplesmente por sua disponibilidade ilimitada para consultas. Desta forma, A alegoria do trem fantasma articula, com apoio de seres imaginários, uma concepção medrosa da existência. Em seu livro Os vivos e os mortos, Jean-Claude Schmitt (1999; 243) cita o adágio: “o morto agarra o vivo” que, na Idade Média, cumpria a função de significar a sucessão, dos bens e do poder, de pai para filho. Hoje o sentido do adágio mudou e o autor propõe a sua inversão: “o vivo é que agarra o morto”, afinal, são os vivos que atribuem aos mortos uma existência. Jean Delumeau em sua História do Medo no Ocidente (1989: 85), quando cita o mesmo adágio, acrescenta que a crença do morto que agarra o vivo não fica restrita apenas ao poder do morto sobre o vivo que recebe sua herança, mas conforme exemplifica, na própria “dança macabra” o esqueleto surge invencível e arrasta à força pessoas de qualquer idade e condição social, todos estão incluídos na mesma dança. (CARVALHO, 2002)

Com relação ao luto depois dos funerais, segundo os novos costumes, não devemos manifestar nossas dores publicamente. “As expressões sociais, como o desfile de pêsames, as ‘cartas de condolências’ e o trajar luto, por exemplo, desaparecem da cultura urbana”. Anunciar ou demonstrá-lo, sentindo-o, exige autocontrole do enlutado para que elas não perturbem as outras pessoas, já que, hoje, o luto é desagradável, assunto extremamente privado e que deve ser escondido, como fazíamos com relação à masturbação.

Para mais, a expressão das emoções funerárias, moldada num ritual definido e ostensivo, pode ou transbordar, ou ignorar as emoções reais provocadas pela morte , ou ainda conceder-lhe um sentido desviado. Assim, a ostentação da dor, própria de certos funerais, destina-se a provar ao morto a aflição dos vivos, a fim de garantir a benevolência do defunto. Em certos povos é a alegria que é de bom uso nessas ocasiões: visa mostrar tanto aos vivos como ao morto que este é feliz. Mas já é possível pressentir que os esgares da dor simulada implicam uma emoção de origem que aproveita hoje o enfraquecimento dos rituais fúnebres para se furtar à cerimônia: é o “na intimidade”. (MORIN, 1976; 27)

Essa intimidade foi remodelada com o advento da virtualidade e da instantaneidade. Embora permaneçamos, na maioria, dentro de nossas casas quando nos 62

deparamos com situações de perda, utilizamos hoje uma ferramenta que, em segundos, torna público o luto que timidamente expressamos: o Orkut. Os recados deixados nas páginas dos mortos são uma releitura dessas “emoções funerárias”, como colocou Morin. Apenas acontece que a nossa sociedade tende a aceitar a tristeza como a verdade absoluta nesses casos: é inconcebível que alguém esteja feliz com a morte de um ente querido – aí, certamente, teríamos outras implicações, a morte teria de ser um alívio ou a promessa de alguma melhora na vida daquele que está feliz. Quase não vemos palavras alegres nas condolências, embora possamos perceber que, nos recados deixados para os mortos em suas páginas de recados, é constante a tentativa de enaltecêlos, o que corresponde ao adágio popular que afirma: “depois de morto, todo mundo é bom”. Ao mesmo tempo, na contramão dessas novas convenções sociais onde o luto é considerado vergonhoso, no Orkut, as pessoas fazem questão de demonstrá-lo, ferindo a prática de escondê-lo. É necessário destacar, ao lado do próprio nome, em letras capitais, que se está em luto; muitas vezes colocamos a palavra antes mesmo do próprio nome, pois o indivíduo enlutado é, destarte, diferente dos demais, e merece ser destacado antes mesmo de configurar-se a si mesmo como indivíduo. É como se, estando em luto, participasse de um grupo seleto, embora constantemente renovado, de pessoas que estão partilhando aqueles mesmos sentimentos tão execrados pelo público em geral. Demonstrá-lo através da denominação do próprio nome é fazer parte de mais uma comunidade virtual, dentre tantas outras observadas no Orkut. Na figura 11 temos o exemplo deste tipo de conduta:

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Figura 11: Lista de pessoas com a palavra “luto” precedendo seus nomes no Orkut.

Para Morin (1976), o luto é uma instituição tão arcaica e universal quanto os funerais e “são regidas pelo horror da decomposição do cadáver”:

Desse horror resultam todas as práticas que o homem recorre, desde a pré-história, para apressar a decomposição (cremação e endocanibalismo), para a evitar (embalsamamento), para a afastar (corpo transportado para outro local ou fuga dos vivos). A impureza do corpo em decomposição determina [...] o tratamento fúnebre do cadáver. (MORIN, 1976; 28)

O autor segue salientando, ainda, Robert Hertz (1906) que revela: “o período de luto corresponde à duração da decomposição do cadáver.” Segundo alguns costumes, a “impureza do morto é a sua putrefação” e o tabu de impureza da morte se estende os parentes, que são obrigados a portar um sinal característico que os qualifique como familiares de alguém que foi recentemente morto (e, portanto, ainda está se decompondo) ou a ocultar-se (MORIN, 1976; 28), privando-se do convívio social para que a morte, que se acredita ser contagiosa, não migre para outras famílias. Acreditamos que este tipo de comportamento ainda persiste, apenas de forma mais amena e diversa. 64

Podemos portar, individualmente, receios quanto à morte e, ao mesmo tempo, discuti-la na Internet e fazer questão de destacá-la, como explicamos acima. O luto no meio virtual não deixou de ser um signo: é praticamente obrigatório adicionar tal palavra (luto) em sua página pessoal, em adição de imagem negra no lugar da foto do avatar e expressões em homenagem ao falecido. Desta forma, no povoado meio virtual, o enlutado não se esconde, muito pelo contrário: revela-se.

Para um ser pensante, não é a morte, categoria geral e indefinida, que coloca um problema, mas o fato de que ele, sujeito pensante, morre – o fato de que ‘eu’ morro. No dizer de Jankélévitch (1954:55-6), ‘morrer não é tornar-se outro, mas vir a ser nada ou, o que quer dizer o mesmo: transformar-se em absolutamente outro, porque, se o relativamente outro é o contraditório do mesmo, se comporta em relação a este como não-ser em relação ao ser’. Ora, como poderia um sujeito imaginar-se inteiramente outro, absolutamente outro, sem que o resultado dessa especulação fosse, para o sujeito, permanecer radicalmente ele mesmo? (RODRIGUES, 2006; 17)

Seguindo este raciocínio, percebemos que a impossibilidade de imaginar a própria transformação em não-ser é extremamente debatida nas comunidades, pois, principalmente no mundo virtual, os perfis, as representações de nós mesmos, permanecem. No Orkut, a representação do ser pensante continua intacta, ela apenas não “evolui”, continuará a mesma até que não mais exista. A única coisa que evolui no perfil do morto é a quantidade de recados, que ele não mais gerencia. Não podemos afirmar que esses recados cessarão, pois, mesmo depois de morto, seu perfil poderá ser alvo das chamadas mensagens automáticas, ou spams, enviados indiscriminadamente através de códigos específicos para todos os que fazem parte da rede social de algum indivíduo. Como é automático, o spam não identifica qual dos perfis é administrado por alguém, pois isso ainda não é possível. De acordo com o professor e escritor Joaquim Brasil Fontes (2004, apud REZENDE & BARBOSA: 2007; 2), a disparidade entre “animado” e “inanimado” possibilitou a indicação de objetos materiais a partir da palavra corpus – aquilo que é visível -, em oposição ao que é do domínio dos sentidos. Em latim, a palavra designava a oposição entre corpo e alma, e é a partir daí que nasce a palavra cadáver, ainda presente em diversas línguas modernas, como podemos observar no inglês (corpse) e no francês (com a expressão levée du corps – literalmente, levantamento do corpo, 65

preparação do defunto) (REZENDE & BARBOSA: 2007; 2). Fontes também traz à tona a raiz indo-européia de corpus: krp, que significa “forma” e, em certos contextos, o “cadáver”, “corpo” adquire, para a consciência do latim, o sentido de “objeto em sua organização visível”. Assim, podemos observar o desenvolvimento da palavra corpo na mistura aos significados da morte. A cultura ocidental enxerga a morte como castigo ou punição; não é à toa que é utilizada nas sentenças criminais como a penalidade máxima. O conceito de morte no Ocidente relaciona-se a uma ruptura, já que tendemos a negar a idéia de impermanência. Neste caso, é curioso abordar questões existenciais de finitude quando as novas tecnologias da comunicação, como as comunidades virtuais, ‘recortam os corpos mortos’, estabelecendo um novo tipo de formalização da morte social que implica outra dimensão da realidade (ibidem; 3). De acordo com as mesmas autoras:

Como falar da morte como ausência do corpo, quando o corpo digital traz à tona sua presença em qualquer lugar, a qualquer hora, bastando uma conexão à web? As novas tecnologias da informação parecem contribuir para uma ressignificação da morte nas sociedades ocidentais a partir da digitalização do ‘corpo morto’, como manutenção de um laço de interatividade, presença e lembrança de um sujeito então ausente. Experiências que utilizam o ‘corpo morto’ na Internet, como as comunidades virtuais de mortos do Orkut, indicam, a nosso ver, as transformações no comportamento humano diante de uma presença de morte, a partir das tendências articuladas pelas tecnologias digitais de comunicação e informação, sob o império das imagens. Numa sociedade marcada pelo ritmo das imagens e pautada pelo discurso da busca da eternidade, acreditamos que a informacionalização seja uma nova via de construção e manutenção da vida. Na sociedade midiatizada estabelecem-se novos parâmetros de produção e relação, definem-se novas espacialidades, produzem-se novos homens, constitui-se não apenas uma nova vida, mas uma ‘nova morte’ (REZENDE & BARBOSA: 2007; 3).

As novas tecnologias da informação parecem contribuir para a construção de um significado completamente novo acerca da morte nas sociedades ocidentais. Isso só acontece a partir da digitalização do ‘corpo morto’, o que oferece a possibilidade de manutenção de um laço de “interatividade, presença e lembrança de um sujeito então ausente” (REZENDE & BARBOSA: 2007; 3). No entanto, mesmo que nossos rituais funerários tenham sofrido alterações ao longo dos anos, é importante observar que eles se mantiveram no seio da sociedade e 66

privar alguém desses mesmos rituais é sinal de extremo desrespeito ou de total desconsideração. De acordo com Rodrigues (2006; 21), “Os funerais são ao mesmo tempo, em todas as sociedades (...) uma crise, um drama e uma solução: em geral, uma transição do desespero e da angústia ao consolo e à esperança.” A partir daí, percebemos a necessidade de identificar e ornamentar sepulturas e, mais tarde, manter ativos perfis do Orkut: a manutenção da memória. Se fossem capazes de responder, a maioria dos donos dos perfis inativos do Orkut gostaria que sua memória fosse preservada através dali, como revela pesquisa idealizada pela integrante Bruja, realizada a partir do dia 22 de fevereiro de 2009. Para efeitos de amostragem, definimos contabilizar as respostas disponibilizadas até o dia 22 de março de 200919, totalizando 141 integrantes da PGM, como explicitado no gráfico seguinte:

Gráfico 13: Sobre a exposição do próprio perfil na PGM.

É possível encontrar diversas referências à PGM na Internet, sobretudo em Blogs, em que seus autores refletem sobre o tema, tomando-o com curiosidade ou então o condenando categoricamente. Muitos desses blogueiros realizaram entrevistas com 19 Primeira página contabilizada: Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=993780&tid=5305580221955128925&na=3&nst=175&nid=9937805305580221955128925-5314974938783504278, acesso em 22.03.2009. Última página contabilizada: http://www.orkut.com.br/Main#CommMsgs.aspx?cmm=993780&tid=5305580221955128925&na=3&nst=175&nid=9937805305580221955128925-5314974938783504278, acesso em 22.03.2009.

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integrantes da PGM, e as opiniões colhidas por eles são muito interessantes, pois, no ambiente da comunidade, não é de bom tom partilhar essas impressões tão pessoais acerca do envolvimento com a PGM. No Blog Jornal Tira Gosto20, uma usuária diz que o estranhamento à morte de pessoas próximas persiste quando da exibição desses perfis na PGM, e “não há distanciamento”. A usuária também acredita que esta seja apenas mais uma forma de evolução comunicacional, já que, “com a internet (e principalmente o Orkut) as pessoas não ligam mais para dar os parabéns, não fazem mais visitas para saber como está a família, um simples “scrap” resolve tudo”. Para ela, o mesmo comportamento se repete com a morte: “antes ficávamos sabendo através de notas de falecimento do jornal, alguém ligava pra te avisar... hoje em dia basta entrar no Orkut para saber quem faleceu. A dor da perda acaba sendo a mesma”. Ela também acredita que o tabu em torno da discussão da morte diminuiu com a Internet e as pessoas que antes estranhavam seu hábito de olhar obituários on-line hoje participam das mesmas comunidades sobre o assunto. Ela também diz que a Internet é uma facilitadora. “quantos de nós tem tempo para ficar uma hora na igreja em uma missa?” Para ela, a facilidade do envio do “scrap” é mais adequada ao nosso ritmo de vida e a família receberá a condolência “em cinco minutos”. Outro entrevistado, no mesmo blog, afirma que o trágico sempre “atraiu olhares” e que a possibilidade de um contato direto com outros indivíduos curiosos faz com que esse interesse fique mais aguçado, “apenas o modo de se abordar o tema mudou, se tornou mais dinâmico”. Já no Blog Os Humanos do Orkut21, o entrevistado foi o próprio criador da Profiles de Gente Morta, o analista de sistemas Guilherme Dorta, que afirmou: “o que choca mesmo é o ‘de repente’, o ‘num minuto sim, noutro não’’. O blogueiro segue, inclusive, listando as mortes que foram mais discutidas na época de sua pesquisa e finaliza: “tudo o que gera medo tende a gerar atração [...] conhecer é uma forma de controlar, [...] espécie de incorporação daquilo que nos escapa e nos submete irremediavelmente.” Mas, de fato, a referência mais interessante à comunidade Profiles de Gente Morta disponível na Internet é o blog Linhas Mortais22, projeto da Professora Valéria Geremia, da Faculdade Integrada do Ceará (FIC). Ela criou esse blog para a disciplina

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Disponível em: http://www.jornaltiragosto.com/blog/?p=110. “Orkut: a vida após a morte é aqui!” acesso em 22.10.2008. Disponível em: http://oshumanosdoorkut.blogspot.com/, acesso em 22.10.2008. 22 Disponível em: http://www.linhasmortais.blogspot.com/, acesso em 26.02. 2009 21

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de Produção e Edição de Textos para Revista do Curso de Jornalismo da FIC, e o tema obrigatório nas matérias produzidas pelos seus alunos é A Morte. A matéria sobre a “inclusão digital dos mortos”, chamada Orkut: há vida após a morte tem o psicólogo Carlos Roger Sales da Ponte23 como entrevistado. Ele afirma que o interesse pela morte é tão presente nos humanos porque “somos finitos e nada podemos contra isso”. Sobre a conduta dos integrantes da PGM, ele conclui que, por tratarem abertamente sobre o tema, “há certo gosto por isso. E só se pode falar de gosto por aquilo que nos dá gosto”. Relacionando a visita aos perfis de falecidos com o velório, o psicólogo afirma que “É uma adoração ao que foi e não é mais. Uma maneira de manter a memória.” Quanto ao interesse pelo assunto, Rodrigues (2006) demonstra que, no Brasil, existem diversas formas de morrer (morte ‘matada’, ‘morrida’, de velhice...) e que cada uma de suas versões provoca, nos que ficam, uma “particular reação emocional”. Em todos os casos, existem maneiras de comportar-se. Se a morte foi natural, não é necessário procurar culpados e os questionamentos resumem-se à causa, que é sempre apontada: “morreu de enfarte’, de ‘nó-nas-tripas’, de ‘fraqueza’, de ‘desgosto’ (...)” (2006; 26). Na cultura brasileira, classificar a morte é fundamental, pois, diante da notícia do óbito, é costumaz perguntar-se: ‘de quê?’. “Em seguida, se se tratar de um morto não muito próximo, tecerá alguma referência elogiosa à sua pessoa: ‘que pena, ele era tão bom...”. Neste gráfico24, podemos observar que os integrantes da PGM vêm de todos os estados brasileiros:

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Psicólogo, Mestre em Filosofia pela UFC e professor de Filosofia e Psicologia da Faculdade Integrada do Ceará (FIC) 24 Enquete disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommPollResults.aspx?cmm=993780&pct=1187777093&pid=99914173 5, acesso em 30.07.2009

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Gráfico 14: A comunidade Profiles de Gente Morta tem participantes de todos os estados brasileiros.

Na PGM, a exemplo de toda comunidade virtual, o que as pessoas conhecem das outras são as representações de si que são expressas no perfil através de imagens, vídeos, depoimentos, comunidades, frases e definições de gostos. É a partir daí que as pessoas tiram informações para tecerem tais comentários diante de uma morte. Mas, como esse tipo de ‘conhecimento’ é superficial e, justamente por ser uma representação daquilo que seu autor pensa de si mesmo, não é possível tirar conclusões próprias a partir de experiências compartilhadas com aquele indivíduo, simplesmente porque elas não existiram; até a sua morte, aquela pessoa não existia para aqueles que irão comentar sua partida. Então, julgamentos de valor acontecem com freqüência, pois todas as informações que as pessoas possuem sobre o morto são aqueles que ele mesmo disponibilizou. Philippe Ariès (1977:86-7) nos conta que os funerais comportavam quatro fases fundamentais: a primeira, mais espetacular e única dramática, consistia na expressão da dor, imediatamente após a morte: “os assistentes rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e os cabelos, ralavam o rosto, beijavam apaixonadamente o cadáver, caíam desmaiados e, no intervalo de suas transes, faziam elogios ao defunto” Se essa encenação ao redor da morte sempre existiu e sempre se tratou de um ritual, como tantos outros que possuímos, porque é tão difícil aceitar a transferência e 70

renovação dessas expressões de luto no campo virtual, se já levamos praticamente todos os outros aspectos da nossa vida para lá? Pedimos comida virtualmente, compramos, simulamos necessidades fisiológicas em jogos, fazemos até sexo, que, durante muito tempo, foi o grande tabu. Agora, porque tratar a entrada da morte neste campo de forma tão reservada, às vezes preconceituosa? Em enquetes25 realizadas com 412 e 166 membros, respectivamente, entre os dias 30 de julho e 10 de agosto de 2009, foi possível ter uma idéia de que freqüentar perfis de pessoas mortas e discutir sobre elas não é algo passageiro e que é possível perceber diversas formas com que as pessoas, em geral, reagem ao saber que se é integrante de uma comunidade que pesquisa profiles de pessoas mortas:

Gráfico 15: Tempo de permanência na comunidade PGM

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Disponível em: http://www.orkut.com.br/Main#CommPollResults.aspx?cmm=993780&pct=1248973991&pid=1715378844, acesso em 10.08.2009.

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Gráfico 16: Reação sobre a participação na PGM

Ora, se “carregamos” nossas vidas para o campo virtual com tanta eficácia, nada mais justo que carregarmos também a morte, experiência individual suprema. Tratamos as novas mídias como formas individuais de expressão e parecemos esquecer que esses espaços são, de todo, públicos e estão vulneráveis à opinião alheia. Em outros momentos, esse discernimento de “espaço público” torna-se tão presente que tendemos a nos ocultar mais ainda, mas a divulgação de nossas idéias permanece. Nem anulam o pensamento nem a morte. Rodrigues (2006; 110) nos lembra que era comum reunir-se em cemitérios, tanto nas cidades quanto no campo; inclusive, eram locais de festa com danças representativas da morte: “a pessoa que conduzia a dança representava a morte e os participantes a seguiam, fazendo gestos e caretas, formando uma espécie de procissão que fazia diversas vezes o circuito das sepulturas.” Sobre a utilização e a convivência harmoniosa entre vivos e mortos, ele salienta que

Esta familiaridade com o que antes e depois no Ocidente se considerou como objeto digno de expulsão – significa que, para os espíritos da época, os mortos não precisavam ser distinguidos por uma deferência especial. Hoje, essa familiaridade pode nos parecer indecente e pornográfica. Entretanto, nessa fase da Idade Média as pessoas freqüentavam e habitavam os cemitérios sem se impressionar

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absolutamente, sem se incomodar com a proximidade das grandes fossas comuns que ficavam escancaradas até que se enchessem, sem se perturbar com as exumações, misturando-se às cerimônias fúnebres que aí se verificavam. A visão e o cheiro do cemitério não impediam absolutamente que aí se localizasse o forno comunal de pão: a proximidade entre alimentos e cadáveres mal enterrados, exumados, expostos – que causaria extremo nojo em nossos contemporâneos – deixava os homens medievais insensíveis (RODRIGUES, 2006: 110).

A PGM seria uma tentativa de retomada desse comportamento, de refamiliarização com a morte? Com certeza nos é muito difícil imaginar uma interação tão íntima com os mortos, mas podemos pensar que esta poderia ser uma tentativa de reconciliação. Ao pesquisar, ao ler, ao procurar saber quem foi aquela pessoa por trás daquele perfil, estamos interagindo com ela.

A consciência não consegue pensar o morto como morto e por isso não pode se furtar a lhe atribuir certa vida. A morte definitiva não é determinada pela realidade natural mais que pelas instituições sociais: o defunto conserva ainda, por algum tempo, determinados poderes e direitos, mais ou menos duradouros segundo as diferentes culturas. (...) Os mortos não estão fora da circulação das mensagens humanas: a morte não corta os canais de comunicação com o morto, embora imponha novos meios e novos códigos (RODRIGUES, 2006; 28-29).

Rodrigues (2006; 30) prossegue nos relatando com clareza sobre a “A ambigüidade da situação comunicacional do morto-ainda-vivo”, citando os costumes de certas civilizações tribais, onde o cadáver participa até de encenações:

Entre os mitsogo do Gabão (Maertens, 1979:158), um dançarino carrega os cadáveres sobre seus ombros, fazendo piruetas, ambos envolvidos em uma vestimenta única, ao som de aclamações: ‘o morto anda’ – enquanto uma voz na floresta imita a do defunto, ao som de aplausos: ‘o morto fala!’ (RODRIGUES, 2006; 30).

Em seguida, podemos afirmar: “sim, o morto fala”, através de mediadores que lhe cedem a boca e o corpo. O morto fala diretamente, através até de iniciativas mais concretas, como se acredita em Madagascar, que os defuntos podem aparecer através de silhuetas estranhas, assoviar e até jogar pedras. Os mortos também se comunicam por

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Ruídos nos túmulos, explosões de gases, fogos-fátuos, algumas vezes com o objetivo significacional bastante definido (por exemplo, o túmulo de Silvestre II crepitava segundo se acreditou, cada vez que um papa fosse morrer): existe uma linguagem dos túmulos como existe uma linguagem da arte (RODRIGUES, 2006; 30).

“Os mortos falam por suas metáforas e por suas metonímias” (RODRIGUES, 2006; 30); neste caso, devemos nos lembrar um pouco da idéia que Dostoievski nos passa em seu romance O Idiota, colocando verdades de toda a qualidade na boca de Hippolit, jovem moribundo. Ele diz: “Ao morto é permitido dizer tudo”. Lembremos que, em sua época, Dostoievski ainda vivia a morte residencial, próxima (como não vivenciamos mais); é certo que ele não restringia o poder de suas palavras apenas às palavras finais, no leito de morte; é preciso ressaltar que essa afirmação de capacidade ilimitada de ‘dizer verdades’ do morto foi transferida para os dias de hoje, quando nos deparamos com os perfis pessoais do Orkut, onde o próprio defunto colocou as informações que ali estão. Rodrigues lembra a importante contribuição de Frazer (apud RODRIGUES, 2006; 30), que listou certas proibições que objetivavam “proteger os vivos das sombras, ou proteger as sombras contra a ação dos vivos”, e compara esses rituais:

As crenças que exprimem temor dos mortos-sombra são da mesma natureza daquelas que exprimem medo das sombras dos vivos, pois nessas últimas os homens vêem freqüentemente uma dimensão de morte. Assim, deve-se evitar que a sombra seja projetada sobre os alimentos, proteger-se de projetar sombra sobre um morto, de encontrar sombra de mulheres grávidas. As mulheres devem cuidar de não serem fecundadas por sombras (RODRIGUES, 2006; 30).

E o que é a idéia de alma senão a idéia de uma sombra? E, quando pensamos em coisas virtuais (visto que a alma é uma delas) não pensamos exatamente nas sombras? E, ao mundo dos mortos, também não chamamos de mundo das sombras? Portanto, quando queremos dizer que algo é funesto (agourento, sinistro, mortal. HOUAISS, 2008; 425), também utilizamos a sombra como definição principal. Embora também possa ser usada para designar coisas menos mórbidas, a sombra é sempre reflexo de algo, é sempre vestígio de uma coisa, ou parte dela, mas nunca um todo. E não é exatamente isso que os perfis do Orkut são? Sombras das pessoas que, um dia, sentaram em frente a um computador e passaram para aquele banco de dados virtual as impressões que tinham de si mesmos. Tudo o que ficou ali foi uma impressão, sombra 74

rarefeita do que aquela pessoa é ou foi em vida, porque não é possível descrever-se, definir-se de maneira alguma através de caracteres ou imagens, muitas vezes posadas e não-espontâneas. O perfil é uma sombra, sombra que toma vida independentemente da vontade de seu genitor, como no conto de Hans Christian Andersen, onde, numa noite quente, a sombra de um jovem bem-sucedido é projetada para dentro da casa da Poesia e de lá sai como homem. A sombra visita seu antigo dono, agora como homem de sucesso e de posses, e, aos poucos, este se torna servo daquele. Sobre o simbolismo da sombra, Chevalier (1982; 842-843), nos esclarece sobre sua representação:

A sombra é considerada por muitos povos africanos como a segunda natureza dos seres e das coisas e está geralmente ligada à morte. No reino dos mortos o único alimento é a sombra das coisas, leva-se aí uma vida de sombra (Negritos Semang). Entre os índios do norte do Canadá, no momento da morte, a sombra e a alma, distinta uma da outra, abandonam, ambas, o cadáver. Enquanto a alma ganha o reino do Lobo26, a oeste, a sombra permanece nas proximidades da tumba. É ela que mantém as relações com os vivos, e é, portanto, a ela que são destinadas as oferendas colocadas sobre as tumbas. A alma pode retornar e, unindo-se à sombra, constituir um novo ser; as pessoas que nascem assim pela segunda vez sonham às vezes com sua vida anterior. Num grande número de línguas indígenas da América do Sul, a mesma palavra significa sombra, alma, imagem (METB). Para os iacutos, a sombra é uma das três almas do homem; é respeitada e proíbe-se que as crianças brinquem com elas (Harva, 182); os tungúsios evitam pisar na sombra de outra pessoa. Os gregos celebravam os sacrifícios para os mortos ao meio-dia27, a hora sem sombra (Frazer, 290). Segundo uma tradição, o homem que vendeu sua alma ao diabo perde com isso sua sombra. O que significa que, por não se pertencer mais, ele deixou de existir enquanto ser espiritual, enquanto alma. Não é mais o demônio que faz sombra sobre ele; ele não tem mais sombra, porque não tem mais ser. Toda manifestação da realidade divina - e assim é a criação aos olhos do crente – é considerada, no Islã místico, como a sombra de deus, lua negra, meio dia obscuro. Toda forma determina os limites do ser, não passa de uma sombra projetada, oriunda de uma luz superior que ela oculta, ao mesmo tempo que a revela. (...) A análise junguiana qualifica de sombra tudo o que o sujeito recusa reconhecer ou admitir e que, entretanto, sempre se impõe a ele, como, por exemplo, os traços de caráter inferiores ou outras tendências incompatíveis (Jung, 168-173). (...) Um conto de Andersen, A Sombra, descreve a vida de um individuo 26

Hades, o senhor dos Infernos (Krappe, 226), possui uma capa de pele de lobo; as orelhas do deus da morte dos etruscos também são de lobo e, segundo Diodoro de Sicília, é também sob a forma de lobo que Osíris ressuscita para ajudar a mulher e o filho a vencerem seu irmão malvado. 27 Meio dia, a hora em que já não há mais sombra, é Selo da Profecia, significa a luz em sua plenitude, na tradição bíblica. Ver Deus face a face, segundo Orígenes, é vê-lo à luz do meio-dia, instante sagrado, parada no movimento cíclico, antes do rompimento do frágil equilíbrio entre a ascensão e o declínio da própria luz. O momento sugere uma imobilização da luz em seu curso, o único momento sem sombra, uma imagem da eternidade.

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dominado pelos caprichos ferozes da Sombra, equivalente do reflexo ou do duplo28 (CHEVALIER, 1982; 842-843).

Pois é exatamente através dessa sombra que nós projetamos que seremos conhecidos no mundo virtual e, depois da nossa partida, que serão feitos julgamentos de valor (DURKHEIM, 1970). Como mostra um comentário na PGM:

Figura 12: Integrante fala sobre os julgamentos de valor comumente exercidos na PGM.

Ao voltarmos à idéia de “sombra projetada”, nos lembramos do mito de Orfeu, também citado por Nunes (2001):

Orfeu – cuja etimologia não está comprovada, aponta para a raiz orpho, “privado de”. Hipótese plausível e influenciada pela existência de orphanós, cujo sentido primeiro é também o de “privado de”, a exemplo de órfão -, inconformado com a morte da esposa Eurídice, desce ao Hades, reino dos mortos, para buscá-la. Encanta a todos com a sua voz divina a ponto de Plutão e Perséfone concordarem em lhe devolver a amada. Havia apenas uma condição: ele seguiria à frente, Eurídice seguiria seus passos. Orfeu, em nenhuma hipótese poderia olhar para trás. Tomado pela impaciência, “o cantor olhou para trás, transgredindo a ordem dos soberanos das trevas (...) viu Eurídice, que se esvaiu para sempre numa sombra (...) (BRANDÃO, 1001: 197). 28

As religiões tradicionais concebem geralmente a alma como um duplo do homem vivo, que pode separar-se do corpo com a morte dele, ou no sonho, ou por força de uma operação mágica, e reencarnar-se no mesmo corpo ou em outro. A representação que o homem faz, assim, de si mesmo, é desdobrada.

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Chevalier (1982) ressalta a face persuasiva e determinada de Orfeu: Orfeu se destaca sempre como o músico por excelência que, com a lira ou com a cítara, apazigua os elementos desencadeados pela tempestade, enfeitiça as plantas, os animais, os homens e os deuses [...]. Orfeu se revela em cada um dos traços de sua lenda como o sedutor, em todos os níveis do cosmo e do psiquismo: o céu, a terra, o oceano, os infernos, o subconsciente, a consciência, a supraconsciência; dissipa as cóleras e as resistências; enfeitiça. Mas, no final, fracassa em trazer sua bem-amada dos infernos, e seus próprios despojos, despedaçados, são espalhados num rio. (CHEVALIER, 1982; 662-663)

A Internet é tão poderosa quanto Orfeu e falha no mesmo propósito: não consegue nos devolver nossos mortos. Da mesma forma que Eurídice tornou-se uma sombra ao ser revista por Orfeu, as pessoas nos conhecerão através dessa impressão, dessa sombra que deixamos. Pois não são só as coisas viventes que projetam sombras: qualquer objeto é capaz de fazê-lo, é só colocá-lo contra a luz - e a morte, no inconsciente coletivo, é extremamente o oposto da luz, quando a pensamos a fundo. Embora também pertença ao coletivo a idéia da luz ou do túnel de luz que as pretensas experiências de quase morte relatam, é sempre à sombra que a morte nos remete, pois tudo o que desconhecemos é obscuro. Apesar da sombra sempre mover-se atrás de algo que vive, é possível projetá-la através de memórias, posto que ela própria é uma sombra: incompleta, embora certa. Nunes (2001) ainda salienta que

[...] o herói não recategoriza o desejo da presença do que já não existe, escolha que o leva à morte violenta. Sua cabeça, rio abaixo, ainda murmura o nome de Eurídice, como eco, à procura. Esse movimento de busca deve ser construído por meio das novas conexões e recategorizações, por seu turno, reordenando os memes, redefinindo o meio ambiente em que se encontram. Virão outras escolhas e decisões vinculadas à emoção que sustenta a prudência. Parece também ser assim a semiose da memória no corpo-mídia e nos corpos da mídia, em sua desmesura ou em sua justa medida, desvelando a evolução dos memes de afeto. (NUNES, 2001; 152-53)

Estamos, a todo tempo, a procurar e catalogar perfis de pessoas mortas, a reviver o mito de Orfeu, constantemente à procura de Eurídice, já pertencente ao reino dos mortos. Ao expor esses perfis, estamos ludibriando Hades e Perséfone, da mesma forma: trazemos os mortos à luz, mas, na verdade, eles já se tornaram sombras. Sobre 77

este tema, Rodrigues (2006), nos lembra das tentativas que empreendemos para mantermos comunicação com os mortos:

Tentativas de silenciar o silêncio através de palavras: Os mortos ‘falam’ através dos possuídos. Os mortos ‘ouvem’ as preces. (...) tentativas de silenciar o silêncio através do silêncio: talvez para evitar que o morto fale por seu intermédio, aquele que lhe é próximo deve freqüentemente calar-se; é o silencio imposto à pessoa enlutada. Por isso, não é raro encontrar cadáveres com a boa costurada (navajo) e sobreviventes provisoriamente condenados ao silencio: algumas viúvas africanas só saem em público munidas de uma espécie de sineta para prevenir as pessoas de não lhe dirijam a palavra. Por isso, em muitos lugares, silencia-se o nome do defunto. Entre os guajiro (Perrin, 1979) quando um indivíduo morre, os outros estão proibidos de pronunciar seu nome. Mas hoje os guajiro admitem que se pronuncie o nome do morto, sob a condição de precedê-lo do qualificativo ‘defunto’, que põe o morto em seu lugar. Compreende-se que o nome está associado àquele que o porta, se é uma parte constitutiva da identidade social da pessoa e se a palavra, como disse Roland Barthes (1971:183), é o ‘antônimo rigoroso da morte’ – pronunciar o nome de um defunto é, além de uma forma de entrar em contato com ele, um meio de torná-lo vivo, ou ainda, o que pode ser grave, um modo de evocá-lo (RODRIGUES, 2006; 78).

Sobre esta “sacralidade” do nome, Mônica Rebecca Ferrari Nunes (2001) falou com grande propriedade ao narrar a inauguração do método artificial de memorizar, que trataremos no capítulo seguinte, e afirmou que:

No universo sagrado e mítico, palavra e objeto designado identificam-se completamente. Nomear é dar vida, trazendo à memória. A exemplo da crença esquimó de que corpo, alma e nome são os formadores do homem ou, ainda do próprio ritual do batismo cristão, pois o recémnascido só passa à existência como filho de Deus ao ser batizado, recebendo um nome sob a memória do nome de Deus: ‘ o nome é pronunciado sobre a água batismal, com o que toma posse dela e a preenche, de modo que o neófito é imerso, na verdadeira acepção da palavra do nome do Senhor”. (CEASSIRER, 1985: 72) Do mesmo modo, entre os aprestos mágicos levados pelos egípcios ao morrer, encontra-se o conhecimento dos nomes do guardiães dos portões da morte. Os defuntos devem saber o nome exato de todos os instrumentos que os guiarão até o reino dos mortos: botes, remos, mastros... São inúmeras as constatações do papel desempenhado pela magia do nome/palavra junto às sociedades arcaicas: rituais iniciativos de tribos australianas em que ocorrem trocas de nomes; temores conduzindo alguns homens a fugirem da evocação do nome dos mortos, ou mesmo de assonâncias com o nome-segredo, uma vez que, ao ser chamado pelo nome, o morto torna-se presente. (NUNES, 2001; 34)

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Revivemos os mortos ao pronunciarmos, ao digitarmos seus nomes ao buscar o perfil de alguém no Orkut; no lugar da disposição da mesa de convidados do nobre Escopas (como trataremos a seguir), para evitar equívocos, temos o apoio das imagens e outras características que não se aplicariam à memória pessoal, pois não conhecemos aqueles indivíduos. Usamos pequena parte de nossa memória, pois é necessário aprender apenas o nome. Se ele está diretamente associado com aquele que o porta e se no Orkut encontramos alguém (ou o seu perfil) através de uma busca por nome (pois os outros atributos são apenas eliminatórios – os chamados filtros), este nome é a palavra chave, sem a qual não poderíamos concluir nosso intento. Podemos dizer que esse tabu com o pronunciamento do nome do qual tratou José Carlos Rodrigues (2006) não existe, na virtualidade. Aliás, é necessário que ele seja pronunciado (ou escrito), pois, assim, mais pessoas terão condições de procurá-lo. Aqui nos lembramos de mais uma peculiaridade envolvendo os mortos e seus nomes, descrita por Chevalier (1982) em seu Dicionário de Símbolos. De acordo com eles, os homens que cavam a tumba devem permanecer calados e também

Não podem virar-se, nem andar para trás, assim como os homens de um cortejo fúnebre não podem se virar: forças invisíveis estão presentes e poderiam ficar feridas com uma palavra pronunciada em vão ou irritadas por terem sido percebidas, furtivamente, por cima do ombro. (SERVIER, 1962; 148)

Assim, devemos concordar com os autores quando eles concluem: “Orfeu é o homem que violou a proibição e ousou olhar o invisível” (CHEVALIER, 1982; 663).

3.3 Memória [...] a memória, fenômeno material e corpóreo, psíquico e ainda fenômeno de cultura, enquanto categoria é um modo especial de presentificar a vida em muitos atos e formas específicas do lembrar, que pode vir do re-cordar, ao re-lembrar ou evocar e daí por diante. A memória biológica se desenvolve num terreno em que tudo é o jogo dinâmico entre seleção, codificação, transferência. E então tudo será memória e seu par complementar – o esquecimento (NUNES, 2001:11).

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Hoje, a Internet apropriou-se com firmeza da sua maior e mais importante característica: a mobilidade. Uma mesma informação pode passar por diversos tipos de mídia com apenas algumas alterações:

A cada novo suporte no qual se depositam os signos projetados além da nossa memória “natural”, a cada veículo comunicativo criado que possa, porventura, expandir, reprimir ou simplesmente não provocar qualquer efeito em nosso modo de representar e mediar o mundo, a reação coerente é acreditar na superação imediata da linguagem e suporte que precedem as formas nascentes de comunicação e, não raro, asseverar que o homem está a perder sua ‘humanidade’. [...] Conhecemos, igualmente, as mudanças sensoriais e perceptivas que a invenção da tipografia proporcionou ao mundo simultâneo da oralidade (McLUHAN, 1977), assim como seus temores: a memória agora impressa atrofiaria a antiga aprendizagem de cor (cordis/ pelo coração/), explicação de ordem aristotélica, uma vez que, para o filósofo grego, é o coração o órgão da memória (ARISTÓTELES, De Memória et Reminiscentia, 449, 29-30). O crescimento dos meios de produção da linguagem, aptos a armazenar e conservar os signos fora do cérebro, atestaria, aparentemente, a inutilidade dos grandes sistemas de memória ou, quem sabe, da própria memória, uma vez que esta discussão se alastra pela história, e, ainda hoje, podemos ouvir muitos ruídos a bradar contra a velocidade com a qual as tecnologias representam-nos os signos visuais, sonoros, verbais... Roubando a memória humana. (NUNES, 2001; 30)

Sim, podemos dizer que estes signos “roubaram” a memória humana, mas este seria um pensamento um tanto pejorativo, embora real. É melhor que os consideremos como ‘extensão’ dela: é através da lembrança primeira, originada no cérebro, que é desencadeada a busca pelos dados armazenados virtualmente. Vivemos a cultura do descontínuo (SANTAELLA, 2003), pois, quando absorvido pelas mídias – e hoje qualquer coisa é passível dessa absorção – o assunto passa a ser volátil, é criado para desaparecer, correlacionando-se imensamente com o nosso próprio destino mundano – viver para morrer. A informação vive, entretanto, de uma forma um pouco mais cruel: é o interesse, é a venda, é quanto aquele acontecimento pode fornecer que ditará sua sobrevivência, pois a mídia é seu sustentáculo, é a sua Parca Morta, sempre vigilante, sempre a postos para cortar o fio tênue que dá vida àquela notícia. Em Roma, as Parcas (que equivalem às Moiras na mitologia grega) eram três deusas: Nona (Cloto), Décima (Láquesis) e Morta (Átropos). Elas determinavam o curso da vida humana, decidindo questões como vida e morte, de maneira que nem Júpiter (Zeus) podia contestar suas decisões. Nona tecia o fio da vida, Décima cuidava 80

de sua extensão e caminho; Morta cortava o fio. Eram também designadas por fates, daí o termo em inglês para destino ter esse mesmo nome (fate). É interessante notar que em Roma se tinha a estrutura de calendário solar para os anos e lunar para os atuais meses. A gravidez humana é de nove luas, não nove meses; portanto, Nona tece o fio da vida no útero materno, até a nona lua; Décima representa o nascimento efetivo, o corte do cordão umbilical, o início da vida terrena, o individuo definido, a décima lua. Morta é a outra extremidade, o fim da vida terrena, que pode ocorrer a qualquer momento29 (grifos nossos). E somos nós, telespectadores, cada vez mais usuários, que contribuiremos para a continuidade daquela notícia nos meios tradicionais. De acordo com pesquisa realizada com 165 integrantes da PGM, a televisão tem papel importante nas discussões realizadas nos tópicos da comunidade:

Gráfico 17: Integrantes da PGM acham que apenas as mortes chocantes são mais discutidas

Mas, em contrapartida, somos um pouco como Zeus: mesmo que aquela notícia caia, utilizando-se do dizer jornalístico, podemos mantê-la viva na virtualidade, pois, nesse campo, a opinião pessoal pode transformar-se em jornalismo open source ou, mais timidamente, em extensos tópicos dentro das comunidades relacionadas àquele

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Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Parcas, acesso em 29.06.2009

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assunto, como é o caso da Profiles de Gente Morta e, felizmente, ela nos facilita muito no trabalho de rememorar certos casos, o que poderia ser considerado, nos dizeres dos gregos antigos, como memória artificial (YATES, 1975), aquela que é obtida através de técnicas (NUNES, 2001: 29). Para exemplificarmos esta técnica, é interessante valermonos do arquétipo que o orador latino Marcus Tulius Cícero (106 a.C. – 43 a.C) narrou em De Oratore (55 a.C.):

[...] o poeta Simônides foi chamado ao banquete de Escopas, um nobre da Tessália, para compor e recitar uma ode. O poeta canta um poema lírico para seu anfitrião, porém inclui uma passagem em honra a Castor e Pólux, filhos de Júpiter. Ao final da apresentação, Escopas, ressentido, concorda em pagar apenas metade do valor e diz a Simônides para pedir o restante do pagamento aos deuses. A seguir, um servo avisa Simônides que duas pessoas o esperam do lado de fora. Já na rua, o poeta não vê ninguém, e o palácio desmorona soterrando Escopas e os demais presentes. Simônides foi capaz de identificá-los, pois lembravase do lugar em que os comensais estavam sentados e, assim, inaugura os princípios da memória artificial: as lembranças das imagens, necessárias à memória, e um princípio de organização dessas imagens: os lugares. (grifos da autora) (NUNES, 2001; 29)

Tratando-se de pessoas, lugares e acontecimentos, lembrando do poeta Simônides, podemos pensar que a PGM seria o local onde nós adotamos esse papel de enumerar aqueles que estavam presentes no banquete – no banquete da vida.

Desde o surgimento da mnemotécnica clássica, ainda nos primórdios do território da Hélade, a organização da memória artificial nasce com a elaboração da morte (Para o semioticista da cultura Ivan Bystrina (1995), a cultura, sob o aspecto de somatória de códigos que organizam textos, nasce para superar simbolicamente a morte. A morte passa a ser considerada um dos textos fundantes da cultura). Afinal, é para nomear, ou seja, identificar os mortos sob os escombros do palácio do nobre Escopas, que Simônides cria o sistema de lugares e imagens. A memória artificial nasce sob o signo do luto, no sentido freudiano da elaboração de perdas essenciais (Freud, 1917). O nome pronunciado opera a passagem do desconhecimento à lembrança: ‘lembrar-se, em francês, se souvenir, significaria um movimento de vir de baixo: sousvenir, vir à tona o que estava submerso’ (BOSI, 1994;46)”. A emersão do que estava soterrado pelo desconhecimento/esquecimento, revela, em sentido lato, evidentemente, uma forma de magia. A intersecção entre vida/memória/nome/morte ocorre em diversos textos culturais. (NUNES, 2001; 34) (grifos nossos)

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Mas, na Internet, há sempre a possibilidade de rever e rediscutir certos assuntos, pois não há mediador entre individuo e informação: eles estão diretamente interligados. As impressões pessoais são levadas em conta, mas uma contínua produção de notícias pela mídia é indispensável na sobrevivência de um tópico, como foi o caso da Eloá: enquanto o seqüestro ainda estava em curso e após seu término, a imprensa explorou assuntos diretamente ligados ao acontecimento, como o namoro na adolescência, os crimes passionais, a doação de órgãos, outros casos de comoção nacional, as táticas policiais, as técnicas de negociação, a arma utilizada pelo bandido, a polêmica do retorno de uma refém libertada ao cativeiro e demais temas que abordarei no capítulo 4. Enquanto o caso esteve na imprensa, constantemente ligado a esses subassuntos, o tópico na comunidade Profiles de Gente Morta teve muitos acessos. Depois disso, apenas algum curioso casual procura-o para perguntar de eventuais novidades. Sobre a morte e a memória, Rodrigues (2006; 89) nos conta que

A morte real completa só acontece quando o morto é esquecido, quando não há mais ninguém para sacrificar em sua intenção, quando não encontra mais suporte no mundo concreto. Então, a individualidade do morto desaparece e se dissolve na coletividade dos mortos – anonimamente, inidentificavelmente: as almas se misturam como as peças dos esqueletos em um ossuário (RODRIGUES, 2006; 89).

Assim, podemos classificar como um índex dos mortos já postados na PGM a comunidade PGM – Já foi Postado? Lá, cada indivíduo permanece anônimo embora já tenha sido conhecido pelos integrantes. Apenas aqueles que se interessam por ele, especificamente, poderão acessá-lo, assim como só quem sabe onde um túmulo fica pode visitá-lo. Só quem se lembrar de seu nome poderá vê-lo, porque ele já se misturou aos outros mortos – seu tópico não é mais comentado, portanto, não aparece mais no rol de tópicos em aberto – é como se ele tivesse sido esquecido pela maioria. Com o tempo, até aqueles que têm simpatia pelo seu caso, em especial, o esquecerão. Assim, ele morrerá, mas de forma diferente: é só seu nome ser mencionado novamente, em algum lugar, em algum assunto, que ele será exumado, pois sua permanência no mundo virtual é, de certa forma, mais definitiva que no mundo real – seu perfil não apodrecerá, suas fotos não desbotarão, as palavras que ele ou outras pessoas escreveram continuarão lá, guardadas, até que algo acabe com o Orkut. Mesmo que seu perfil seja deletado – por conhecidos ou pela administração do Orkut, o tópico onde sua morte foi discutida será 83

mantido, e sua morte poderá ser lembrada a qualquer momento por um dos mais de 60 mil integrantes da comunidade, conforme nos mostra a Figura 13:

Figura 13: Página inicial da comunidade PGM – Já foi Postado?

De acordo com o estudioso Larry Squire (1987), o problema do esquecimento pode ser resumido como perda de acesso à memória (pois nem tudo o que vivenciamos nem pode ser armazenado nem se perde completamente), e lembra também do “represamento de lembranças, como já afirmava Sigmund Freud, ou, de outro modo, o esquecimento significa uma verdadeira perda de informação armazenada” (NUNES, 2001; 148). De alguma forma, a PGM busca combater essa perda de informação armazenada através da constante discussão sobre diversas mortes que, inevitavelmente, vão ligar-se à outras, anteriores, e suscitar novos apontamentos sobre estas. Isto se faz, principalmente, através da visitação e comentários nos perfis dos falecidos. De acordo com Morin (1976), “é no auge desse terror que aparecem, nas nossas sociedades, o 84

catecismo e a promessa divina, que correspondem à promessa que os pais fazem: ‘tu não morrerás’”. Para nós, a manutenção da memória realizada pela PGM é uma forma nova de manter essa promessa. Quanto à constante visitação ou comentários sobre uma morte em particular, Rodrigues (2006; 89) diz que

A duração da vida da individualidade não é a mesma para todos (Thomas, 1976): certos mortos privilegiados permanecem nomeados e identificados, às vezes são transformados em gênios, santificados ou divinizados (RODRIGUES, 2006; 89).

Na PGM, isso acontece com relação à estranheza da morte e com sua divulgação. Quanto mais estranha e divulgada ela tenha sido, maior seu caráter de sublimação – seja para o bem ou para a maledicência. E, sempre que algum episódio semelhante acontecer, este primeiro caso será lembrado – o que pode ser mostrado nas comunidades em homenagem conjunta – João Hélio e Isabella Nardoni, por exemplo, duas crianças mortas de forma trágica – e assim por diante. No início de 2008, a menina Isabella Nardoni, de seis anos, morreu após cair do sexto andar do prédio onde seu pai e sua madrasta moravam. A televisão acompanhou todo o caso, desde os primeiros momentos, até a virada: pai e madrasta teriam arremessado a menina. A comoção foi nacional, e, automaticamente, surgiram perfis e comunidades no Orkut para homenagear a menina, dar forças à mãe, Ana Carolina Oliveira, e agredir verbalmente o pai e a madrasta. Na PGM, o tópico sobre Isabella teve de ser excluído, devido ao grande número de desentendimentos entre os integrantes ao expressarem suas opiniões próprias. A partir dos estudos para a elaboração deste trabalho, afirmamos que essa identificação acontece por motivos arrolados às representações do corpo e da identificação pessoal na mídia, principalmente em face aos processos de luto, assuntos muito bem expostos por Nunes (2001):

Nos artefatos do corpo-mídia não é diferente: a mesma progenitura emocional deve assegurar a transmissão de memes de afeto e de efeito dos memes, gerando, nesse caldo coevolutivo, a informação na mídia secundária e terciária que ordena a memória cotidiana. A evolução é

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“remendona”, nas palavras de Damásio (1996), não começa do zero, já disse Jacob (1981). Logo, se a transmissão ao vivo de grandes tragédias encena o luto midiático e a melancolia primordial secretada do tempotecnológico, as arqui-representações e os procedimentos neurobiológicos e psíquicos da memória já se comportam, na mídia, como fenótipo escondido: a memória, concebida como traço evolutivo, confunde o ninho e o ovo: o efeito de melancolia nas imagens empobrecidas. Em face das grandes tragédias, do luto delirante, a fala infinita revela a incapacidade de recategorizar, de evoluir em imagens criativas. A obsessão do melancólico, atrabílis que congela os fluxos da informação. É Rosenfield que afirma que a reação à perda de um objeto pode significar a necessidade de se criarem novas conexões neurais. Recorre à Lorenz para narrar que após a morte, entre parceiros de patos e gansos, os animais vagam dias e dias à procura do parceiro desaparecido. (NUNES, 2001; 151)

Podemos afirmar também que estamos de alguma forma refazendo este caminho: passamos dias à procura do ente perdido, virtualmente, à cata de rastros deixados por ele que sirvam para nos consolar, diminuir nossa perda. Como a permanência de um perfil no site de relacionamentos independe da manutenção de um ser vivo por trás do teclado, o que resta é uma impressão virtual do que aquele usuário foi em vida. Não foi este o caso da menina Isabella, que não possuía perfil no Orkut e foi representada pela mãe, que contabilizou mais de cem mil recados em sua página. Morin classifica o horror da morte como fator principal para a “perda da individualidade”.

A dor provocada por uma morte só existe se a individualidade do morto tiver sido presente e reconhecida: quanto mais o morto for chegado, íntimo, familiar, amado ou respeitado, isto é, “único”, mais a dor é violenta; não há nenhuma ou há poucas perturbações por ocasião da morte do ser anônimo, que não era “insubstituível”. (MORIN, 1976; 31)

Todo perfil cadastrado no Orkut é público. Se seu dono morrer, por conta da curiosidade sobre a morte, o perfil torna-se ainda mais visado, ainda mais público. Aproveitando-se dessa vizinhança com os mortos ou com representantes diretos deles (como foi o caso da mãe da Isabella Nardoni) vivenciada no Orkut, há quem desabafe sua dor, “deixando recado” para a pessoa em sua página de recados; há quem tenha medo de continuar a ver o perfil da pessoa morta e, por isso, o exclui da sua lista de contatos; há também quem insista que o fato de mandar recados para a pessoa morta é 86

atitude mórbida. Estas práticas se repetem tanto para pessoas conhecidas como para as completamente alheias a nosso convívio social material. Assim como na vida real, é possível manifestar-se de várias maneiras diante deste assunto, no Orkut. A diferença é que, como o perfil criado só poderá ser apagado se outra pessoa, além do falecido, possuir a senha de sua conta ou se a família entrar em contato com a administração do site, pelo Google, e solicitar sua exclusão alegando seus motivos pessoais, é possível “continuar a existir virtualmente”, através dos rastros que você deixou em vida. No entanto, são muitos os casos onde esses perfis não são excluídos, seja por desconhecimento da senha ou por desinformação da família e amigos. Então esse perfil permanece lá, intacto, como um registro fiel de quem foi aquela pessoa, dos amigos que conheceu, dos sentimentos que experimentou através da rede de relacionamentos. O Orkut tornou-se um grande centro de troca de informações em tempo real e, por isso, serve, inclusive, como fonte de matérias e acervo de fotografia para jornalistas, por exemplo. Assim, o conteúdo do Orkut pode interferir na prática dos profissionais das mídias tradicionais. Este é um dado importante em nossa análise, que perpassa pelo crivo das relações entre a televisão e a Internet, e que tem o Caso Eloá como um dos mais expressivos dos últimos anos, como trataremos a seguir.

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4. Caso Eloá Vinhetas chamejam a telinha com movimentos de rotação e sons de guerra, palavras de ordem como “plantão” e correlatos introduzem a presentidade eletrônica: câmeras imediatamente dispostas no local dos acidentes, informações e personagens “chegando agora aos estúdios”. Acidentes aéreos, morte de personalidades públicas, desabamentos, explosões, surpresas que esgarçam um pouco mais a imaturidade humana, quando transmitidas “ao vivo”, contrariam, estranhamente, o efeito de efemeridade evocado pelo tempo presente da transmissão imediata. (NUNES, 2001; 142)

Assim, com vinhetas urgentes, “entrevistas exclusivas”, “imagens nunca exibidas” e outras palavras de ordem exaustivamente transmitidas ao vivo que o Brasil conheceu Eloá Cristina Pimentel, de quinze anos, Lindemberg Fernandes Alves, de 22 e Nayara Rodrigues, também de 15 anos de idade, personagens principais de mais um “drama da vida real” retratado durante mais de um mês na televisão e nas demais mídias. O jornalista Marcio Campos (2008) conta, num livro lançado com menos de dois meses do trágico término do seqüestro, como foram os momentos antes, durante e depois daquele que foi o mais longo cárcere privado do país. Ele estava no local dos acontecimentos, cobrindo o crime para a emissora Record. Havia menos de um mês Lindemberg tinha encerrado o namoro de dois anos e sete meses com Eloá. No início, ela tinha doze anos e ele dezenove. Os pais da menina não queriam que eles namorassem, mas, como ela insistiu muito, eles cederam. Eloá fora agredida por Lindemberg em outras ocasiões, uma delas em público, num ponto de ônibus. Os vizinhos acompanhavam as discussões do casal, que aconteciam no térreo do prédio onde a jovem morava e o rapaz sempre se mostrava agressivo. Ele queria proibir a menina de freqüentar casamentos, festas familiares e de sair com os amigos. No dia 13 de outubro de 2008, Lindemberg teria convidado o irmão de Eloá, Douglas, para uma volta de moto. Deixando o rapaz em um determinado local, sabendo que ela estaria sem os pais em casa, ele voltou. Foi quando a surpreendeu com os amigos, recém chegados do colégio, prontos para fazerem uma tarefa em grupo. Lindemberg já estava armado com um revólver calibre 32. Testemunhas contam que ele não aparentava estar alcoolizado ou drogado, mas que ameaçou a menina de morte e

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que pretendia se matar em seguida, e também se utilizou de tortura psicológica, dizendo que mataria um dos amigos para que Eloá sofresse. Em diversos aspectos, o livro de Márcio Campos assemelha-se aos programas jornalísticos televisivos, pois os intertítulos estão divididos como blocos de um programa de televisão – as informações “se repetem” como se fizessem parte de uma “chamada” que é cortada constantemente pelos intervalos comerciais. Acreditamos que o formato adotado pelo autor tenha se espelhado no que foi anteriormente utilizado pela televisão durante a cobertura do caso, o que corrobora para a hipótese de que a televisão influencia, atualmente, os demais meios de comunicação. Entre outras coisas, Marcio narra a participação da imprensa no desenrolar do caso, comentando passagens dos bastidores das gravações do local, comentando até o momento em que Lindemberg disparou contra os cinegrafistas. Ele comenta e transcreve trechos da conversa entre o sequestrador e Luiz Guerra, repórter do programa A Tarde É sua, da Sonia Abrão.

Durante o almoço, nossa equipe de produção e alguns poucos colegas conseguem os números dos telefones que são usados por Lindemberg para realizar as negociações. É claro que, como jornalistas, todos pensam em dar o tão sonhado ‘furo’ de notícia, sair na frente, ligar primeiro e falar com o seqüestrador. Mas não é isso que manda o manual de reação de um departamento de jornalismo responsável. E assim determinou a direção de jornalismo da emissora, nenhum repórter, produtor ou apresentador estava autorizado a ligar para os números de telefones usados para negociar a rendição do criminoso e a liberação da vítima. Mas alguns órgãos de imprensa pensaram o contrário. Na Rede TV, pouco depois das duas da tarde, para surpresa de muitos e principalmente da policia, o programa “A Tarde É Sua”, apresentado por Sônia Abrão, anuncia uma entrevista exclusiva com Lindemberg Alves (CAMPOS, 2008; 39).

No primeiro contato, quem conversa com o seqüestrador é o repórter Luiz Guerra. A conversa é gravada e inicialmente ele não se apresenta como jornalista e só a partir da insistência de Lindemberg é que se identifica. O repórter afirma que ligou para auxiliá-lo, mas Lindemberg ainda não adquiriu confiança. Está receoso em relação à conversa e pergunta mais uma vez se está ao vivo. O repórter pergunta sobre a Nayara, que havia sido libertada na noite anterior, e Lindemberg responde que agiu por desespero. Ele ainda ameaça os policiais, dizendo que eles não devem se aproximar do apartamento. No desenrolar da conversa, que dura mais de dez minutos, o repórter ainda 89

consegue falar com Eloá, que diz que ama os pais e que está fraca. É o único registro da voz da menina. Mais tarde, a própria apresentadora conversa com o seqüestrador e pede que ele a liberte. Os policiais alegariam mais tarde que tentaram prosseguir com as negociações nesses horários, mas que o telefone de Lindemberg sempre estava ocupado. A ligação de Sônia ainda é interrompida por cinco vezes. Lindemberg ainda conversaria com repórteres do Jornal Nacional e do SP Record, da TV Record. Campos (2008; 49) narra a entrevista do Comandante da Tropa de Choque da Polícia Militar Paulista e superior do GATE (Grupo de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar), Eduardo Félix, ao apresentador José Luís Datena. O policial afirma que essas conversas com a imprensa atrapalharam as investigações, e disse que era uma irresponsabilidade muito grande.

Eduardo: - Desde segunda-feira fornecemos informações à imprensa por meio de coletivas. Esse fato em especial fez com que houvesse um atraso, já estava acertado com o rapaz que a moça iria almoçar e nós fornecemos o almoço dela. Ia almoçar e em seguida ela iria sair e ele iria se entregar para nós. Isso foi um acordo entre ele, o negociador e o irmão da vítima. O que ocorre, após a entrevista, ele de certa forma até agora não quer mais saber disso. Ele fala: eu vou sair quando eu quiser. Datena: - Quer dizer que a primeira entrevista atrapalhou? Eduardo: - Exatamente! (CAMPOS, 2008; 50).

Como forma de negociar mais concretamente com Lindemberg a liberação de Nayara Rodrigues, amiga de Eloá que continuava refém no dia 14 de outubro, a polícia desligou a energia do apartamento e, para religá-la, a adolescente foi libertada. Em entrevista à repórter Renata Ceribelli, do Fantástico, duas semanas após o término do seqüestro, a jovem conta que Lindemberg ficou nervoso, dizendo que “eles estão achando que com isso eles vão me vencer pelo cansaço, por falta de água, por falta de luz, essas coisas. Desse jeito, eles não vão me vencer”, mas, no fim, libertou a garota porque se identificou com ela, que não via o pai há mais de um ano, e Lindemberg também tivera um pai ausente. “Mas ele deixou bem claro para mim que não era por causa da luz. Segundo ele é porque ele tinha prometido para o meu pai e para a minha avó que ia me soltar”. No dia 14 de outubro de 2008, Nayara foi libertada por Lindemberg e continuou a auxiliar as negociações e deu depoimento à polícia. Mas, no dia 16, ainda não se sabe 90

por qual motivo, a menina voltou ao apartamento enquanto conversava com Lindemberg ao telefone, a pedido da polícia, e foi dominada pelo sequestrador, voltando a ser refém. Até o dia 17 de outubro, uma sexta-feira, o apartamento foi invadido, Nayara foi baleada no rosto a Eloá na cabeça e na virilha. Lindemberg, após muita confusão, foi dominado pela polícia e preso.

4.1– “Acho que vai ter morte”

Qual a ligação deste seqüestro com a comunidade Profiles de Gente Morta? Primeiro, precisamos entender os motivos para que este caso tenha sido debatido de forma tão exaustiva e por que se tornou tão interessante para grande parte da população brasileira. Entendemos que este interesse tornou-se mais forte a partir do momento em que a televisão encarregou-se de mostrar, de tempos em tempos, interrompendo a programação, flashes sobre o desenvolvimento do caso, entrevistas exclusivas com o seqüestrado e com as vítimas, configurando o que Nunes (2001) pode correlacionar com o personagem Funes, o Memorioso, de Jorge Luis Borges, que tinha a estranha capacidade de absorver todos os detalhes de todas as coisas, mesmo as mais insignificantes:

Os tempos mortos desenham o “mundo abarrotado de pormenores imediatos” da memória absoluta de Funes, personagem de Jorge Luís Borges. Mundo em que o “presente era intolerável de tão rico e tão nítido” (BORGES, 1995:113). Memória sem respiração. Asfixia por imagens, depoimentos, repetições ao infinito. A esta memória que tudo quer guardar pelo acúmulo e desmesura, corresponde o lento tempo do luto. Apropriação do passado – sorvido no lapso de tempo que remonta à perda do objeto – em suas dobras de presente imediato e de futuro, predito na escolha e decisão de cada tomada, cada plano, cada procedimento técnico, ainda que muitas vezes, míope. (NUNES, 2001; 142)

A adolescente Eloá Pimentel teve sua morte “anunciada” no tópico aberto na comunidade Profiles de Gente Morta para debater seu seqüestro que já durava quarenta e oito horas. A primeira providência nestes casos de divulgação nacional e ainda nãoresolvidos é procurar o perfil das pessoas envolvidas na polêmica. Todos os 91

participantes disponíveis da comunidade dedicam-se a descobrir o perfil em questão, através de um link, e o divulgam para quem mais tiver interesse em visitá-lo. Convém notar que, neste universo híbrido em que as informações nos chegam através dos meios de comunicação de massa (como a TV) e dos meios interativos (como a Internet), todas as mídias concorrem para conferir veracidade aos acontecimentos divulgados. Com um tópico aberto enquanto o seqüestro ainda ocorria e não se sabia, ao menos, a dimensão que o caso tomaria, as palavras da pessoa responsável pela abertura do OFF (tópico que não dispõe de um perfil, comumente usado para debater assuntos ligados à comunidade) podem parecer proféticas:

Figura 14: Primeiras postagens do tópico que discutiu o sequestro e a morte de Eloá.

A integrante que inaugurou o tópico disse que não queria ser pessimista, mas “pelo que está passando acho que vai ter morte”. Logo em seguida, com apenas algumas horas a mais de investigação dos integrantes da comunidade, o perfil de Eloá foi encontrado e, a partir daí, copiado e comentado por todos os que acompanhavam o caso. Até aquela quinta-feira, 16 de outubro de 2008, de acordo com Márcio Campos, o caso de cárcere privado mais longo do Brasil tinha também acontecido em São Paulo, 92

quando um homem manteve uma mulher e duas crianças sob sua custódia durante cinqüenta e seis horas, enquanto tentava escapar da polícia depois de ter praticado um assalto (CAMPOS, 2008; 55). Podemos afirmar que este é um caso desconhecido do grande público, pois, com certeza, não fui divulgado constantemente pelas mídias simplesmente por ter sido o mais duradouro; este fato é pouco relevante para manter-se uma discussão durante meses, como aconteceu com a Eloá. Não sabemos deste caso porque a imprensa não o divulgou e porque não houve um esforço conjunto para que o assunto se transformasse em diversos outros, como aconteceu com Lindemberg, Eloá e Nayara. Será que foi porque todos os envolvidos eram muito jovens ou por que houve uma morte, em frente às câmeras? Podemos apenas supor que um pouco de cada um desses fatores contribuiu para a transformação deste caso em assunto de comoção nacional, mas o fato de que cerca de trinta mil pessoas30 acompanharam o velório e o enterro da menina pôde ser comprovado através das fotos disponibilizadas por essas mesmas pessoas no Orkut. Podemos ver, abaixo, imagens do perfil original de Eloá, que ficou sendo administrado por uma amiga enquanto ela ainda estava no cativeiro, e, em seguida, imagens dos perfis fakes criados logo após a longa exposição do caso na mídia brasileira:

Figura 15: Perfil original da Eloá, mantido por amiga quando ela já estava seqüestrada31.

30 Disponível em: http://www.tudoagora.com.br/noticia/9701/ENTERRO-DE-ELOA---Veja-muitas-fotos-do-velorio-esepultamento-do-corpo-de-Eloa-Cristina-Pimentel.html, acesso em 31.07.2009. 31 Disponível em: http://planetabizarro.files.wordpress.com/2008/10/orkut-1.jpg?w=500&h=411, acesso em 10.08.2009. O endereço do perfil original de Eloá, http://www.orkut.com.br/Main#Profile.aspx?uid=6378834505363002726, já não existe mais.

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Figura 16: Perfil fake de Eloá.

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Figura 17: Perfil fake da Eloá com fotos retiradas do perfil original e fotos do velório e do enterro.

Figura 18: Fotos do álbum do perfil fake da Eloá com fotos de seu velório

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Figura 19: Fotos do álbum do perfil fake da Eloá com fotos de seu enterro

Figura 20: Perfil fake da Eloá

Como pudemos perceber, os perfis fakes dedicados à Eloá, em sua homenagem ou não, ilustram uma contradição. As fotos da adolescente no caixão, da mãe e do irmão chorando, dos amigos sendo consolados e de outros tantos curiosos acompanhando o desfecho deste caso trágico, corrompem a idéia inicial do perfil: como o original foi excluído pela amiga Nayara, que possuía a senha, cópias dele tiveram que ser feitas para

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sanar o apetite do povo por informações textuais e audiovisuais sobre a menina. Sobre os motivos para tal interesse, podemos observar que

Ademais, a efervescência ritual provocada por uma morte varia de acordo com a importância social do defunto. Como Robert Hertz (1970) observou, a morte não se limita a por fim à existência corporal. Ela destrói ao mesmo tempo o ser social investido sobre a individualidade física, ao qual a consciência coletiva atribui uma maior ou menor dignidade. A morte de uma pessoa adulta significa normalmente dor e solidão para as pessoas que sobrevivem à ela: verdadeira chaga que põe em perigo a vida social. É diferente, e mais branda, em geral, a reação que a morte de crianças produz na consciência coletiva. Na realidade, a comunidade investiu nelas pouco mais que esperança. Não chegou a lhes imprimir sua marca. Não se reconhece nelas e por isso sente-se pouco atingida. Tudo se passa como se tratasse de uma morte menor, de um fenômeno infra-social”, para conservar a expressão de Hertz (1970:80). (RODRIGUES, 2006; 20).

Sobre as mortes infantis, Morin (1976) também afirmou que “nas sociedades arcaicas, a morte da criança – na qual se perdem, contudo, todas as promessas da vida – suscita reação fúnebre muito fraca”. As observações de Hertz e de Morin são válidas, mas parecem colocar a “esperança” que a criança representa como uma coisa inferior. Neste caso, poderemos concordar com seu entendimento apenas quando a morte acontece por causas naturais, não importando a idade do bebê ou da criança ou adolescente. A imprensa insiste mais em casos infantis clamando o contrário: devemos prolongar nosso lamento justamente por não serem indivíduos corrompidos por nós - e suas mortes são frutos dessa corrupção – seja por falta de atendimento médico, responsabilidade paterna, atenção de empregados, etc. A morte natural ‘morreu’, pois sempre arranjamos novas roupagens para escondê-la. Como já foi explicitado anteriormente, a PGM é movida pela curiosidade de seus participantes sobre temas que sejam ligados direta ou indiretamente à morte, o que não significa que todos eles sejam abertamente discutidos na comunidade. Fora à exposição contínua de perfis de recém-falecidos, alguns integrantes gostam de discutir esses assuntos anexos, e, para tal, devem abrir um tópico OFF, designando-o por esta nomenclatura antes de sugerir o tema para a discussão que se seguirá.

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No tópico aberto para discutir o seqüestro de Eloá, o formato da postagem sugerida pela moderação da comunidade não foi seguida, mas isso não foi levado em conta por causa da proporção que o caso tomou em poucas horas. Em seguida, diversos outros integrantes da comunidade passaram a monitorar as notícias sobre o seqüestro e a especular sobre as possíveis reações que Eloá, Nayara ou Lindemberg poderiam ter dentro do cativeiro, conforme ilustra a Figura 21:

Figura 21: Integrante da PGM sugere como Eloá poderia se comportar no cativeiro. Em 10.11.2008

Em sequência, o perfil de todos os envolvidos, inclusive dos meninos que foram libertados no início do seqüestro foram descobertos, como nos mostra a imagem abaixo:

98 Figura 22: Integrantes da PGM listam os perfis dos envolvidos no seqüestro.

Figura 23: Tópico da PGM lista as notícias relacionadas ao Caso Eloá

Por causa da descoberta de seus perfis pessoais no Orkut, os envolvidos no sequestro de Eloá foram bombardeados com recados e pedidos de amizade de pessoas completamente desconhecidas. Isso fez com que Nayara Rodrigues e seu namorado, Iago Vieira de Oliveira, mudassem a aparência de seus perfis constantemente:

Figura 24: Perfil original de Nayara Rodrigues em 23.10.2008.

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Figura 25: Novo perfil de Nayara Rodrigues em 30.11.2008

Figura 26: Novo perfil de Nayara Rodrigues em 26.03.2009

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Figura 27: Perfil de Iago Vieira de Oliveira, namorado de Nayara Rodrigues em 01.12.2008

Figura 28: Perfil de Iago Vieira de Oliveira em 26.02.2009

A partir dessas descobertas, diversos temas afloraram no tópico, dentro da PGM, e também em outras comunidades do Orkut, o que contribuiu para a disseminação de perfis fakes e comunidades em homenagem à Eloá e Nayara, conforme expresso nas imagens abaixo:

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Figura 29: Comunidade “Eloá Cristina Pimentel (vida)”

Figura 30: Comunidade “Caso Eloá [OFICIAL] LUTO!”

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Mas, também, houve quem se expressasse de maneira completamente diversa, demonstrando, através de atitudes agressivas, o seu pensamento pessoal sobre o caso. Foi assim que surgiram perfis fakes e comunidades também para Lindemberg Alves, como podemos verificar nas imagens abaixo:

Figura 31: Perfil fake de Lindemberg Fernandes Alves em 28.10.1008

Figura 32: Página de recados do perfil fake de Lindemberg Fernandes Alves em 28.10.2008

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Mas, dentre essas tentativas de “falsificação”, a que mais se destacou foi a de um perfil que estaria sendo administrado por um suposto primo de Lindemberg:

Figura 33: Perfil do suposto primo de Lindemberg Alves em 25.11.2008

De início, o responsável pelo suposto perfil de Lindemberg, seu pretenso primo, Thiago Fernandes, apenas demonstrava revolta pela solidariedade das pessoas com relação à Eloá e proferia diversos xingamentos ao referir-se à menina; defendia a atitude do “primo”, dizendo que todos erram na vida e que era possível encontrar outras pessoas, no Orkut, que “odeia ela e fico (sic) feliz com a sua morte”, como vimos na figura acima. Após alguns dias, começou a circular um perfil com o nome de Lindemberg que estaria sendo administrado por este mesmo “primo”. Então, as agressões à Eloá e Nayara foram aumentando: 104

Figura 34: Perfil fake de Lindemberg administrado por seu “primo”

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Uma das coisas que mais chamou a atenção das pessoas que estavam emocionalmente envolvidas no caso Eloá foi a criação deste tipo de álbum no perfil fake de Lindemberg, intitulado “Só a Morte nos Separa”:

Figura 35: Álbum de fotos do perfil fake de Lindemberg com imagens de Eloá

Nos dias seguintes, a quantidade de pessoas visitando o perfil citado foi imensa. Quem fez questão de informar esse volume foi o próprio administrador do perfil, que se vangloria sobre este assunto na imagem seguinte:

Figura 36: Administrador do perfil fake de Lindemberg expõe a quantidade de visitas que vem recebendo

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Figura 37: Administrador do perfil fake de Lindemberg “agradece” a grande quantidade de visitas

Nesta imagem podemos comprovar, também, que, além de visitas de pessoas revoltadas com a atitude do administrador do perfil, existem também vários pedidos de amizade, o que corrobora a hipótese de identificação social com o seqüestrador e de utilização do assunto para chacota, como pode perceber, também, nas comunidades abaixo:

Figura 38: Comunidade “Força Lindemberg tamos com vc!” (sic)

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Figura 39: Comunidade “Eloá tá queimando no Inferno”

Figura 40: Comunidade “Eloá tá queimando no Inferno”

Figura 41: Comunidade “Eloá tá queimando no Inferno”

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A propagação de tais comunidades serviu de matéria prima para discussões sobre os diversos assuntos que listarei em seguida, tanto dentro quanto fora dos ambientes virtuais. O que observamos aqui é que esses assuntos foram percebidos, a princípio, pelos integrantes da PGM, depois pelos outros integrantes do Orkut e, mais tarde, pelos programas de televisão, que os exploraram, gerando outras discussões semelhantes dentro dos tópicos, na virtualidade. Pode-se afirmar que a sociedade, em geral, ficou surpresa pela premeditação do seqüestrador e pelo fato dos envolvidos no crime serem tão jovens.

O luto fazendo seu percurso: cadernos e cadernos especiais; falas infindas; representações repetidamente encouraçadas. Evoluindo devagar, empobrecidas, apáticas, à procura... , compartilhando a ambigüidade de seu par, a melancolia, o luto torna-se eufórico, transforma-se em êxtase. Seguem a profecia e a vidência: função prognóstica da informação jornalística. (NUNES, 2001; 152)

Nesta parte, nos é atraente destacar, a partir das afirmações acima, a importância da mídia televisiva e dos programas jornalísticos na continuidade da discussão sobre o seqüestro da Eloá Pimentel, com diversos temas suscitados e constantemente discutidos pela imprensa: 1. O próprio seqüestro: como atitude de desespero; 2. Relacionamentos na adolescência; 3. O cárcere privado mais longo no país, 4. Psicologia: formas de lidar com sentimentos de posse, de amor exacerbado, de ciúmes em demasia; 5. A morte de uma pessoa jovem, 6. A polícia: envolvimento e atuação no caso, erros e acertos, procedimentos para garantir a segurança de um envolvido e retorno improvável para o cativeiro para auxiliar nas negociações; 7. A doação de órgãos: procedimentos, pessoas que estão na fila para receberem doações no Brasil, o sistema brasileiro de receptação desses órgãos, o preconceito e as idéias pessoais que impedem a doação; 8. O velório: a grande quantidade de curiosos, as pessoas que tiravam fotos da jovem no caixão; 109

9. O enterro: acompanhado por milhares de pessoas e pela imprensa; 10. A violência contra a mulher no Brasil e no mundo; 11. O Orkut. É interessante observar como um caso pode suscitar tantos subsídios jornalísticos, tantos temas secundários que podem ser abordados à exaustão pelas mídias, para que o assunto principal – o seqüestro – não deixasse de render audiência. Neste sentido, podemos recorrer às palavras de Nunes (2001), onde ela nos fala que

O parágrafo hipocrático, então, parcialmente se altera: aqui, a língua não está paralisada, diferentemente, profere e profere. Gera hipóteses sobre as causas do acidente, busca em dados menores o motivo para intervenções de repórteres, testemunhas, autoridades. Porém, a cobertura “ao vivo” dos acidentes dramáticos e espetaculares, esta, sim, paralisa a energia informativa, favorecendo a metáfora atrabiliar. “Quando o medo e a tristeza persistem muito tempo, é um estado melancólico (HIPÓCRATES, Aforismas, vi seção, 569, 23)”. (NUNES, 2001; 142)

Desta forma, podemos afirmar que a participação da TV, em primeiro lugar, colabora para a continuidade da discussão de casos dramáticos na virtualidade, como foi o da Eloá. Por possuir uma capacidade maior de acesso às informações, às pessoas e às instituições ligadas à esse tipo de acontecimento, as empresas jornalísticas são responsáveis pela produção inicial de material para a continuidade de um assunto. Percebe-se, desde o início, que outros assuntos podem ser gerados a partir daquele primeiro – tendo-o sempre em mente – indentificando-se uma busca por outras correlações. Sobre este assunto, Rebecca Ferrari Nunes, além de tudo, nos lembra o raciocínio de Rodrigues (2006), ao citar o interesse pela morte como substituto pelo interesse no sexo, como tratamos anteriormente, e também nos diz que esse comportamento pode ser classificado como

Libido arraigada. Luto delirante, no sentido atribuído à estrutura do delírio da qual nos fala Henry Atlan (1992) referindo-se ao fechamento dos sistemas comunicativos. Estranho modo comunicativo. Estranho modo de a promessa de velocidade (a emissora opera “ao vivo”) tornase imobilidade e extensão dos corpos, marcadores biográficos, estendidos no silencioso fragor dos destroços. A atração mórbida pelas grandes tragédias, pelo luto do outro é apropriação simbólica do tempo apocalíptico, certifica Baitello (1996a). Durante as coberturas “ao vivo”, sobreposições de tempos somadas à construção da memória

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pela ubris, desmesura, apontam a memória como texto evolutivo ambivalente: o lento tempo do luto tornando o mundo pobre e vazio e, simultaneamente, indiciando o projeto utópico de superação da morte, tarefa que a mídia desempenha com esmero. (NUNES, 2001; 142)

Aqui, podemos salientar que, mesmo para os que contribuíram ativamente para a discussão sobre o Caso Eloá na comunidade Profiles de Gente Morta, o seqüestro e todos os assuntos decorrentes dele já estavam saturados. Para tanto, visto também a quantidade de ofensas e outras formas de desrespeito observadas no tópico sobre a Eloá, a moderação da PGM montou uma enquete, entre os dias 21 e 22 de outubro de 2008 para decidir se o tópico deveria ou não ser mantido, uma discussão acirrada com a participação de 587 membros. No fim, com 44% dos votos (259 pessoas), o tópico foi mantido, como mostra a figura abaixo:

Figura 42: Resultado da enquete sobre a manutenção do tópico da Eloá na PGM.

Hoje, com o assunto já saturado e esgotado, o tópico ainda persiste, mas é alimentado, exclusivamente, pelas informações que a mídia, sobretudo a televisão, disponibiliza. Como o caso já se deu por encerrado, com a prisão de Lindemberg, que aguarda julgamento, as pessoas agora se ocupam com outros casos, outros crimes, outras mortes. Mas, como pudemos constatar, a existência do tópico, mesmo que inativo, serve para a manutenção da memória, como já discorremos acima. Podemos comprovar essa afirmação também através de comentários tecidos por integrantes da PGM durante o desenvolvimento do caso, quando as pessoas questionavam a existência de um tópico para discutir um seqüestro que, até então, ainda não tinha mortos. 111

Figura 43: Integrante da PGM questiona a existência do tópico sobre o seqüestro de Eloá em 14.10.2008

Figura 44: Integrante da PGM responde ao questionamento sobre a existência do tópico da Eloá em 14.10.2008

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Figura 45: Integrantes comentam a importância da manutenção do tópico em 19.11.2008

Então, se salientarmos a importância dos meios digitais na manutenção da memória humana, na preservação dos memes de afeto (NUNES, 2001), podemos afirmar que constantemente retornamos ao mito de Pandora, à caixa, em seu sentido original, firmemente à espera para guardar e revelar-nos todos os sentimentos que experimentamos através da discussão de casos como este e de diversos outros. Podemos afirmar também que estamos utilizando a Internet e ferramentas por ela disponibilizadas, como o Orkut, para levarmos a vida real, a vida palpável, para campos virtuais, a fim de procurarmos entender seus meandros.

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Considerações Finais A comunidade Profiles de Gente Morta é reflexo da curiosidade do homem com os assuntos relacionados à morte. Aproveitamos a possibilidade de filtrarmos nossos interesses sem a necessidade da intermediação de um jornalista ou profissional da comunicação para nos fornecer detalhes sobre as desgraças do dia, através da Internet. Com o desenvolvimento do Orkut, essa independência tornou-se maior ainda, pois, além do próprio site ter se tornado fonte para os próprios jornalistas, podemos comprovar, a sós, todas as informações que foram retiradas de lá. O Orkut é a fonte ideal, pois conta as mesmas versões dos fatos igualmente para todos. Já na PGM, com as contribuições dos próprios integrantes, é possível utilizar-se do material produzido pela mídia especializada, mas, novamente, de forma mais complexa: como as informações são encontradas com muito mais rapidez e eficácia, podemos compará-las e comentá-las em tempo real, e isso ajuda na produção de mais conteúdo ainda. Se, normalmente, tudo o que acontece tem potencial para virar notícia, imagine com a colaboração de milhares de produtores, calmamente sentados na frente de seus monitores avaliando e comentando sobre as avaliações e comentários de outras pessoas, sobre diversos assuntos ao mesmo tempo. Com essas ferramentas, a curiosidade é apenas refinada. Essa curiosidade refinada pode servir tanto para a evasão da realidade, da obrigação e da responsabilidade e para o estabelecimento de novas relações interpessoais, mas este último objetivo tornou-se pouco comum com o desenvolvimento das próprias ferramentas que o beneficiavam. Assim, os temas que nos causam curiosidade, assim como nos ambientes reais, podem servir de tema de conversa, relaxar, aliviar, ativar emoções, estimular ilusões, oferecer orientação, confirmar o saber cotidiano e muitas coisas mais. A única diferença é que a Internet e, em especial, o Orkut, oferece essa troca de impressões, essa discussão em tempo real, o que contribui para seu refinamento. A utilização desse feedback otimizado é um processo normal e, cada vez mais, terapêutico. No entanto, é preciso observar duas limitações (CONTRERA, 2002; 13-14): 1) as mensagens midiáticas só desempenham essa função, temporalmente, de maneira transitória; e 2) que todo consumo midiático excessivo é perigoso, e é provável que apresente efeitos nocivos. Podemos afirmar, aqui, que o uso dos meios pode ser também ‘disfuncional’ para o indivíduo, que acaba por transferir-se 114

para aquela realidade e, tomando-a como principal, acaba por imergir-se nela, deixando de distinguir quais são as reais formas de relação. Mas, como já expomos neste trabalho, esta “transferência” é um reflexo dos tempos em que vivemos e já foi preconizado por diversos estudiosos na área comunicacional, como McLuhan, Maffesoli, Santaella, Rodrigues... O comportamento observado hoje, nos meios virtuais, é apenas uma extensão do comportamento real. Apenas a impessoalidade da máquina contribui para a exploração de assuntos mais delicados, e a morte configura o de tratamento mais difícil. Protegidos pelas máquinas podemos sanar nossa curiosidade e, ao mesmo tempo, nossos anseios. A idéia da morte acompanhou o homem em toda a sua trajetória evolutiva; hoje, a transferência ou a apropriação dos rituais de luto e representações da morte pela Internet também ocorreram em caráter semelhante, com a transformação em tabu e pelo distanciamento social proporcionado pela comunicação virtual e suas facilidades. Quando não temos mais tempo, para lembrar nossos mortos e fazer-lhes visitas em seus túmulos de pedra, a Internet apresenta-nos uma alternativa: podemos prestar as nossas homenagens, e reverenciar a sua memória, no mundo virtual do Orkut.

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