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May 20, 2017 | Autor: Dantas Neto | Categoria: History, Historia, Books, Livros, Editoras nacionais
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA CURSO DE HISTÓRIA

FRANCISCO DANTAS SOUZA NETO

CIRCULAÇÃO DE PALAVRAS E PRODUÇÕES DE IDENTIDADES ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA COLEÇÃO MOSSOROENSE: NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO LIVRO EM MOSSORÓ/RN (1982 – 2006)

MOSSORÓ 2016

FRANCISCO DANTAS SOUZA NETO

CIRCULAÇÃO DE PALAVRAS E PRODUÇÕES DE IDENTIDADES ATRAVÉS DAS PÁGINAS DA COLEÇÃO MOSSOROENSE: NOTAS PARA UMA HISTÓRIA DO LIVRO EM MOSSORÓ/RN (1982 – 2006)

Monografia apresentada à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN – como requisito obrigatório para o título de licenciado em História Orientador (a): Profª Dra. Paula Rejane Fernandes

MOSSORÓ 2016

Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. Souza Neto, Francisco Dantas Circulação de palavras e produções de identidades através das páginas da coleção mossoroense: notas para uma história do livro em Mossoró/RN (1982 – 2006) / Francisco Dantas Souza Neto. - Mossoró, RN, 2016. 85 f. Orientador(a): Profa. Dra. Paula Rejane Fernandes Monografia (Licenciatura em História) Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. 1. Livros. 2. Mossoró - Coleção Mossoroense. 3. Identidades . 4. Família Rosado I. Fernandes, Paula Rejane. II. Universidade do Estado do Rio Grande do Norte. III.Título. UERN/ BC

CDD 306

Bibliotecário: Aline Karoline da Silva Araújo – CRB - 15/783

Dedico esse trabalho aos meus pais, seu Jose e dona Edineide, por todo o amor, carinho, paciência e apoio em minha vida, tanto acadêmica quanto pessoal. À minha irmã, por todas as conversas e momentos de descontração. E a minha tia, Graça, pelo amor, por todo o suporte moral e as felizes influências. Esse trabalho é de vocês.

AGRADECIMENTOS

Os agradecimentos constituem a parte em que o autor tem uma certa liberdade na escrita que a sua pesquisa científica, de certa maneira, limita. Ainda assim, não é um espaço que faz justiça aos nomes e instituições que estiveram presentes ao longo dos meus quatro anos de curso. Considero a importância de cada uma dessas pessoas como uma parte essencial do que sou hoje, enquanto pessoa e profissional. Nossas experiências, sejam elas boas ou ruins, nos fornecem sabedorias que podemos levar para toda uma vida: nós escrevemos e nos reescrevemos de maneira constante, pois a vida nos exige essa capacidade de transmutação de si e de compreensão do outro. Este trabalho é fruto de uma trajetória que se iniciou no meu segundo ano do curso de História, e devo explicar que tudo nele contido advém de minhas pesquisas, das orientações com professores ao longo desse tempo, das indicações recebidas – algumas seguidas, outras nem tanto – e de conversas com amigos e colegas. Portanto, agradeço de maneira geral a todos os professores que participaram da minha trajetória acadêmica até aqui, a todos que se dispuseram a essa prática apaixonante do ensino e que me incentivaram nessa busca pelos caminhos da História. Agradeço ao Departamento de História, na figura dos professores Lindercy Lins e Francisco Linhares, que se mostraram profissionais dedicados, estando sempre presentes ouvindo os estudantes, reformando o departamento e expandindo nosso ambiente científico. Os mesmos agradecimentos se estendem ás técnicas administrativas Lidiane Mendonça e Aryanne Queiroz, que com habilidade e paciência também buscavam ajudar os estudantes. Agradeço ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), que durante um período de dois anos esteve financiando um projeto de iniciação à pesquisa científica a qual tive a felicidade de fazer parte enquanto bolsista. Agradeço ao professor Rafaell Medeiros, que me auxiliou na minha prática docente. Nossas conversas, sempre incentivadoras, foram importantes para a dimensão que adquiri da docência, e que de maneira indireta me ajudou neste trabalho. Agradeço ao professor André Victor Cavalcanti Seal Cunha, pelas conversas sobre o meu tema e alguns encaminhamentos, mais ainda por se mostrar uma pessoa acessível e pelas ajudas no campo de estágio e os incentivos de sempre.

Agradeço à professora Manuela Aguiar, que acolheu minha pesquisa e pontuou questões sobre minha escrita. Com muita e sensibilidade para com seu aluno, ela nos soube passar um exemplo de profissional que procura dedicar-se a todos. Agradeço ao professor Fabiano Mendes, por ter me escolhido como um dos bolsistas do projeto a qual retirei o tema que hoje exploro. Ele acreditou no meu trabalho e na minha escrita, e com muita paciência e sabedoria me passou um pouco do que é ser um docente compromissado. É um profissional preocupado em extrair o melhor dos seus alunos, tendo por várias oportunidades me ajudado com conversas e incentivado em tempos difíceis. Agradeço aos colegas de curso com quem tive o prazer de trabalhar/conversar: Caio Vitor Falconieri, por sempre me proporcionar conversas divertidas sobre os mais variados temas (a maioria sobre gibis), e por ter sido um grande amigo nessa reta final do curso; Soraya Avelino, que com tanto carinho se mostrou mais uma pessoa muito especial; a Luan Victor, pessoa de bem; Agradeço à Celia Cristina, que com tanta energia e compreensão, sabe contagiar todos a sua volta com esse jeito tão. Agradecimentos também aos colegas, Ana Karizia, Russiane Torres, Kaio Clisman e ao “trio” que tive a felicidade de conhecer: Jucinete Lopes, Ramona Lindsey e Rafaela Ramos, amigas que espero levar para a vida toda. Os agradecimentos se estendem à Gleicigene, pelas boas conversas sempre reflexivas; a Pedro Vinícius, pessoa simples e de coração puro, que certamente será um grande profissional; e a Sinara Botelho, que dividiu comigo a paixão pelo rock, que também compartilhou das minhas risadas e das minhas quedas; Agradeço também a Rafaella Costa e a Ramon Vitor, duas pessoas que tive a felicidade de conhecer e que também deixaram suas marcas em quem sou hoje. Agradecimentos ao motorista do ônibus, Darlon, por ser uma pessoa de bem e compromissado com seu ofício. Agradeço também a Saulo Lucas Morais, uma pessoa que passei a conhecer melhor já na minha reta final da graduação, mas se mostra como um ser humano admirável. Há uma força em ti que é inegável, uma vontade de conhecer o mundo e de fazer mais por ele. Eis o que admiro tanto em você. Muito obrigado, amigo. Agradeço a minha orientadora, a professora Paula Rejane Fernandes, que prontamente aceitou orientar esse trabalho. Mesmo sendo algo operacionalizado a distância, a senhora sempre esteve presente durante a feitura do trabalho, além de ter me fornecido um caminho a qual eu achava ter perdido: o da autonomia. Reencontrei uma liberdade a qual em parte devo a senhora. Suas pontuações não apenas melhoraram meu texto e minha pesquisa, mas me forneceram outros olhares, outras estradas para percorrer, quem sabe, em algum futuro próximo.

Agradeço sua atenção, a sensibilidade, a paciência e o espaço para que eu reaprendesse a autonomia. Muito obrigado. Não poderia, claramente, terminar esses agradecimentos sem mencionar o apoio incondicional da minha família. Agradeço ao meu tio Geovanio, e por extensão à sua esposa Neide, por terem, em diversas ocasiões, me acolhido em sua casa com tanto carinho; agradeço ao meu tio Amarildo e as minhas tias Cizinha, Chaguinha e Mundaci, também pelo acolhimento e o imenso carinho que recebi e recebo constantemente. Um dos maiores agradecimentos que posso fazer é para você, Robson. Você foi o meu grande e melhor amigo durante todos esses anos. Não posso descrever algo que faça justiça de como é bom ser seu amigo, da boa energia que você passa a todos, da simplicidade, da humildade que se faz presente com você por perto. Em todos os momentos duros dessa caminhada, você não saiu do meu lado uma única vez. Você foi um presente do curso, e espero que possamos manter-nos unidos por mais muitos anos, meu amigo. Sem tentar ser injusto, acredito que o maior presente que esse curso de História me deu foi uma única pessoa, com um sorriso encantador, um jeito singular de se expressar, uma forma original que balança o meu mundo. Susana, você foi minha “protetora” (And after all. You're my...), foi a pessoa que me deu várias razões, e que dentro de um mundo repleto de “stranger things” no final se tornou a minha única razão verdadeira, o único sorriso em que eu pensava, a única pessoa que eu sabia que não iria desistir de mim... a única pessoa que me confortava. Obrigado por ter permanecido por perto, obrigado por ter sido, em muitos momentos, uma casa para mim. Por fim, e são os atores mais importantes de toda a minha trajetória, agradeço aos meus pais, José Dantas e Edineide Martins, a minha Tia Graça Dantas e a minha irmã Ana Paula. A minha tia funcionou como uma espécie de “segunda mãe”. O apoio moral, os incentivos e o carinho que recebi dela foram em partes os propulsores para que eu conseguisse chegar nesse local hoje (e também os puxões de orelhas, que faz parte). Ela ajudou a formar o meu caráter, me influenciou na escolha de ser professor, e sinto que nada do que eu possa dizer faz justiça a presença dela em minha vida. Um grande obrigado, minha segunda mãe. E quanto a minha irmã, é a pessoa com quem eu conto, com quem eu converso, com quem eu assisto filmes de terror no sábado à noite. É a pessoa a quem eu gosto de fazer medo quando ocorre algum apagão, mas é a pessoa que eu amo e que me apoia incondicionalmente em tudo o que faço, e o que posso fazer é tentar retribuir.

Assim, eu sou filho da terra, sou filho do campo. Sou filho de duas pessoas que muito provavelmente pouco entendem o que faço na universidade: sou filho de um agricultor e de uma ASG de uma escola; sou filho de duas pessoas amorosas, de duas verdadeiras forças da natureza, que ao longo de suas vidas fizeram o possível por seus filhos; sou filho de pessoas que não tiveram a mesma oportunidade que eu estou tendo, mas que moveram o que podiam mover para me ajudar a chegar nesse lugar hoje. É através dos meus pais que sou este ser, com minhas falhas, mas também com minhas vitórias. Eles me forneceram mais do que o material: me abraçavam, compartilhávamos as lágrimas, mas também os ganhos e esperanças. São as únicas duas pessoas para quem eu sei que devo algo, e que sempre deverei algo. O sentimento, o amor que sinto por eles é algo imensurável. Mesmo com minhas perturbações, ambos se mostraram resistentes com muita ternura e um amor inimaginável. Eles, verdadeiramente, são a minha casa. Obrigado, seu José e dona Edineide.

Certa ocasião ouvi um cliente habitual da livraria de meu pai comentar que poucas coisas marcam tanto um leitor como o primeiro livro que realmente abre caminho para o seu coração. As primeiras imagens, o eco dessas palavras que pensamos ter deixado para trás, nos acompanham por toda a vida e esculpem um palácio em nossa memória ao qual mais cedo ou mais tarde – não importa os livros que leiamos, os mundos que descobrimos, o quanto aprendamos ou nos esqueçamos – iremos retornar. (ZÁFON, Carlos Ruiz. A Sombra do Vento. 2007, p.11)

RESUMO: Este trabalho é resultado das pesquisas realizadas sobre a editora Coleção Mossoroense, criada no ano de 1949 por Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia (1920 – 2005), na cidade de Mossoró (RN), no contexto da chamada “batalha da cultura”. Essa pesquisa está inserida no campo da História Cultural, no qual adquirimos o olhar da História do livro. Para tanto, um dos nossos objetivos é analisar como foi montada a ideia de “país de Mossoró”, uma expressão criada pelo mentor da Coleção Mossoroense, através do processo de editoração da coleção e, assim, de seus livros e autores. Buscamos compreender essas nuances internas e externas sobre a editora, abordando suas diferentes fases e os comentários de escritores, geógrafos, historiadores e outros intelectuais sobre essa movimentação editorial em Mossoró. Para essa empreitada, nossa fonte de pesquisa foi majoritariamente as chamadas “plaquetas”, pertencentes à série “B” da Coleção – que está distribuída em 10 séries, de “A” a “J” – e alguns livros da série “C”, utilizando-se enquanto aporte teórico autores como Robert Darnton, que se constitui enquanto a principal referencia, e Roger Chartier. Dessa documentação, foi extraído o recorte temporal, que vai de 1982 a 2006. Assim, questionamos sobre o imaginário de Mossoró enquanto terra da “liberdade, do conhecimento e da resistência”, imagens estas que a Coleção perdurou ao longo do tempo. E nesse ponto, destacamos as estratégias políticas da família Rosado, uma vez que se apropria das memórias da cidade como forma de legitimar seus projetos políticos. Dessa maneira, mostramos que não podemos estudar a Coleção Mossoroense dissociada das questões de espetacularização da política na oligarquia Rosado. Portanto, procuramos mostrar a dimensão de poder cultural e político do livro e de uma editora como esta, considerada como o maior apanhado de títulos do país.

Palavras chaves: Livros, Mossoró, Coleção Mossoroense, identidades, Família Rosado.

ABSTRACT

This academic work results from the researches realized on the Coleção Mossoroense publishing house, created in 1949 by Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia (1920 – 2005), in the city of Mossoró (RN), on the context of the named “battle of culture”. This research is inserted in the field of cultural History, on which we acquire the view of history of the book. Therefore, one of our goals is to analyze how was crafted the idea of “Mossoró country”, an expression created by Coleção Mossoroense’s mentor, through the collection’s editing process and, in this way, by his books and authors. We seek to comprehend these internal and external nuances about the publishing house, discussing it’s many different phases and writers’, geographers’, historians’ and other intellectuals’ comments about this editorial movement in Mossoró. For this quest, our research source was mostly the called “plaquetas”, belonged to the “B” series of the collection – which is distributed in 10 series, from “A” to “J” – and some books from the “C” series, using as theoretical contribution authors as Robert Darnton, who is the main reference, and Roger Chartier. From this documentation, was extracted the temporal cut, which goes from 1982 to 2006. In this way, we enquire ourselves about Mossoró imaginary as the land of the “freedom, knowledge and resistance”, images which the Collection endured along the time, molding the characteristics of Mossoró. And at this point, we emphasize the strategies and political operations of the Rosado family, once it appropriates the city’s memories as a way to justify its political projects. This way, we show that we cannot study the Mossoroense Collection separated from the questions of the spectacularizing of politician in Rosado oligarchy. Therefore, we seek to show the dimension of cultural and political power of the book and a publishing house like it, considered the greatest compilations of titles in the country.

Key-Words: Books, Mossoró, Coleção Mossoroense, identities, Rosado Family.

SUMÁRIO

1 – INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 13 2 – NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA COLEÇÃO MOSSOROENSE ........................... 18 2.1 A força do livro, o poder do escrito: o circuito comunicacional ................................ 21 2.2. As páginas de uma editora ......................................................................................... 28 2.3. Questões sobre a História regional ............................................................................ 32 3 – COLEÇÃO MOSSOROENSE: ESPAÇOS, LITERATURA, PODER E MEMÓRIAS .................................................................................................................................................. 35 3.1 – O poder da literatura e do livro na construção subjetiva do espaço ........................ 35 3.2 – Lugares e domínios da Família Rosado .................................................................. 40 3.3 – Um possível intercâmbio entre a cultura popular e a cultura letrada em Mossoró . 44 3.4 – Espaço de comentários: a coleção mossoroense vista pelo outro ........................... 46 4 – CIRCULAÇÃO DAS PALAVRAS, PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS: VINGT-UN E A EDIFICAÇÃO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL .............................................. 55 4.1. – Mediações editoriais, comunicação e circulação na Coleção Mossoroense .......... 55 4.2. – Vingt-Un: entre o intelectual e o “ajuntador de papeis” ......................................... 61 4.3. – Os atores, os autores e as palavras: personagens e narrativas da Coleção ............. 68 4.4. – Independência? Liberdade? Eis o país de Mossoró ............................................... 73 5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS ..........................................................................................79

6 – FONTES E BIBLIOGRAFIA .........................................................................................82

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1 – INTRODUÇÃO

Em 2001, o espanhol Carlos Ruiz Zafón publicou a obra “A Sombra do Vento” (La Sombra Del Viento, no original), um enredo no qual o autor explora o mundo da Barcelona no ano de 1945, girando em torno do “cemitério dos livros esquecidos”, um local abandonado que funciona como uma espécie de depósito para obras literárias, na esperança de que alguém descubra esse local. Daniel Sempere, de 11 anos de idade, é o personagem que dá o tom à obra, um garoto angustiado pela morte da mãe. O pai o leva até o cemitério dos livros esquecidos, onde Daniel encontra a obra “A Sombra do Vento”, de Julián Carax. Em um determinado ponto da obra de Zafón, Daniel Sempere nos descreve uma sensação que sentia ao folhear aquele livro esquecido:

Passo a passo, a narrativa se estilhaçava em mil histórias, como se o relato penetrasse numa galeria de espelhos, e sua identidade produzisse dezenas de reflexos díspares e ao mesmo tempo um só. [...] Página por página, deixe-me levar pelo sortilégio da história e seu mundo, até que o hálito do amanhecer acariciou a minha janela, e meus olhos cansados deslizaram pela última página. Estendi-me na penumbra azul da madrugada com o livro sobre o peito e escutei o som da cidade adormecida pingando sobre os telhados salpicados de púrpura. O sono e a fadiga queriam me derrubar, mas eu resistia a entregarme. Não queria perder o encantamento da história nem dizer ainda adeus aos seus personagens.1

Podemos destacar desse fragmento a subjetividade presente entre o leitor, o livro e o ato da leitura. Zafón soube captar essa dimensão nessas breves linhas destacadas, pois existe uma conexão inerente entre o sujeito e o livro, que não é apenas o processo de leitura em si, mas também a maneira como os sujeitos leem e interpretam o espaço a sua volta, de como se comunicam uns com os outros. Assim, se tomarmos que os livros são meios de produção, material e imaterial, adquirimos a sua dimensão histórica, e que portanto podem ser problematizados e localizados no tempo e no espaço. Obras como a do espanhol Zafón, nos ajuda a compreender um outro aparato para os livros: aqueles que são esquecidos pelo tempo. Suas leituras são perdidas, assim como a memória de seus autores. Dessa maneira, muito embora tenha um “cemitério” para os livros na obra aqui descrita, eles claramente não morrem, pois de uma forma ou de outra, eles repovoam os imaginários quando invocados novamente, quando são finalmente reencontrados.

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ZAFÓN, Carlos Ruiz. A Sombra do Vento. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

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Assim, “A Sombra do Vento” tem características que lembram um pouco o objetivo do presente trabalho, mesmo que não operacionalizadas no mesmo caminho uma vez que não trabalhamos com a ideia de “esquecimento”, mas sim que os livros são produções despertadoras de imaginários sociais. Trabalhamos com a Coleção Mossoroense, no qual ao longo dos últimos meses, estivemos estudando sobre o seu processo de editoração na cidade de Mossoró, os atores envolvidos, a presença da família Rosado e do seu criador, Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia. A editora foi criada em 1949, em Mossoró, Rio Grande do Norte, como parte do contexto da chamada “batalha da cultura”, momento no qual procurava-se desenvolver a cultura mossoroense, através da criação do boletim bibliográfico, da biblioteca e do museu municipal. Esse projeto fazia parte do campo político criado pelo irmão de Vingt-Un, Dix-Sept Rosado (1911-1951), então prefeito de Mossoró na época. É nesse contexto que a família Rosado começa a consolidar seu nome, e que Vingt-Un cria essa editora para publicar documentos, registros históricos, geográficos e literários sobre Mosssoró e a região nordeste em geral, funcionando como uma espécie de intelectual que busca simbolizar e consolidar o poder da família a qual pertence. O nosso estudo procurou trazer uma perspectiva, se não inovadora, ao menos um tanto diferenciada sobre outros estudos que tratam a Coleção Mossoroense e os Rosado: o olhar adotado aqui foi o presente na História Cultural, mais precisamente na História do livro e da leitura. Lançamos algumas perguntas que procuramos analisar ao longo do texto, no qual procuramos observar como seu deu esse desenvolvimento editorial na cidade, e de como a Coleção comunicou suas produções para outros espaços. Mais ainda: de como a Coleção Mossoroense e Vingt-Un Rosado foram os responsáveis por criar a imagem de “país de Mossoró”, ou seja, como seus livros, produções literárias e acadêmicas, ressaltavam o espaço mossoroense e a família Rosado. Pode parecer uma tentativa deveras difícil tentar abarcar toda uma história que compreende a segunda metade do século XX, período de mais atividade da Coleção. Procurando realizar delimitações, o nosso recorte espacial é a cidade de Mossoró. Mas nesse ponto deixemos claro a abertura para analisar o quanto que a coleção circulou em outros espaços fora da cidade, comunicando a imagem de Mossoró e da família Rosado, que nos dá a ver o nível de alcance da editora e do porquê ela é conhecida como o maior apanhado de títulos do país. Quanto ao nosso recorte temporal, ficou limitado aos anos de publicação das plaquetas2 e

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São pequenos livretos, como será mais exposto ao longo do trabalho.

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dos livros, que correspondem respectivamente à série B da Coleção Mossoroense, sendo nossa principal documentação, e a série C. Ou seja, esse recorte vai de 1982 a 2006, anos em que nossas fontes de pesquisa foram publicadas, mas também devemos deixar claro um ponto: há plaquetas, como a de América Rosado, intitulada “Repercussões da Coleção Mossoroense”, datada de 1995, que traz comentários das décadas de 1960 e 1980, por exemplo. Essa plaqueta em específico é uma reunião de textos que exaltam a figura de Vingt-Un, sendo que a própria América foi uma das responsáveis por ajuda-lo nessa empreitada cultural. O ponto é que o recorte da documentação obedeceu aos seguintes critérios: plaquetas e livros que comentavam sobre a Coleção Mossoroense; que exaltavam e remetiam à imagem de Mossoró enquanto país e as que falavam sobre a Família Rosado. Nesse ponto de recorte, trabalhamos com o conceito de “comentários”3, uma vez que diferentes intelectuais comentaram sobre a editora: jornalistas, historiadores, literatos, geógrafos. Muitos deles amigos de Vingt-Un, o que criava uma espécie de círculo subjetivo e de favores entre os mesmos. Trabalhar com esse conceito de comentários nos indica uma série de projeções sobre uma criação, que podem ser também conflitadas, mas sempre nos leva a pensar os motivos do que mobilizou algum intelectual a escrever seu texto falando sobre uma editora como a Coleção Mossoroense. Com isso, espera-se extrair essa dimensão de reconhecimento do espaço do outro, e não menos importante, analisar o poder simbólico dos Rosado. Logo no primeiro capítulo, intitulado de “Notas sobre a História da Coleção Mossoroense”, há uma exposição sobre os principais pontos sobre a criação da “cidade enquanto país”, e da importância da coleção para o desenvolvimento cultural da urbe. É um capítulo no qual procura-se mesmo operar com a ideia de início, mostrar as principais ideias que nortearão o trabalho. No tópico “A força do livro, o poder do escrito: o circuito comunicacional”, fazemos um rápido balanço sobre a História do livro, numa discussão mais teórica-metodológica. Em “Páginas de uma Editora”, aprofundamos nosso estudo sobre a coleção e suas diferentes fases. Por fim, fazemos uma discussão sobre a relevância da história local/regional em “Questões sobre a História Regional”. Já o segundo capítulo “Coleção Mossoroense: espaços, literatura, poder e memória”, buscamos estabelecer, primeiramente, a relação entre o espaço e as sensibilidades, entre território e literatura, mostrando como a Coleção Mossoroense pode ter moldado os espaços da

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Os comentários que coletamos são de escritores e jornalistas variados, que publicaram na Coleção e que falavam sobre as ações culturais e políticas de Vingt-Un Rosado, tais como Jaime Hipólito Dantas, Dorian Jorge Freire, Caio Cesar Munis, Raimundo Nunes, Jorge Amado e outros.

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cidade através dos livros. O primeiro tópico “O poder da literatura e do livro na construção subjetiva do espaço” nos fornece exatamente essa dimensão, no qual problematizamos algumas poesias e o contorno que fazem da cidade de Mossoró, através de duas plaquetas: uma escrita por Beatriz Bandeira, “Mossoró e outras poesias”, e outra de José Leite, chamada “Despedida e outras poesias”. Em “Lugares e domínios da Família Rosado” tentamos questionar como essa força oligárquica construiu seu nome na cidade. No terceiro tópico “Um possível intercâmbio entre a cultura popular e a cultura letrada em Mossoró”, fazemos uma pequena discussão sobre como esses conceitos podem ser compreendidos e transmitidos para o espaço mossoroense, enquanto que no último tópico intitulado “Espaço de comentários: a coleção mossoroense vista pelo outro”, fazemos um pequeno apanhado de comentários e estabelecemos uma leitura para analisar como esses autores olhavam a editora. O terceiro e último capítulo “Circulação das palavras, produção de significados: Vingt-un e a edificação de uma identidade cultural”, procura trabalhar mais com o conceito de identidade, partindo inicialmente de nossas leituras do historiador Durval Muniz de Albuquerque Junior em “A Invenção do Nordeste”, em Stuart Hall em seu “A Identidade Cultura na pós-modernidade” e em Manuel Castells com “Poder da Identidade”. O primeiro tópico “Mediações editoriais, comunicação e circulação na Coleção Mossoroense”, tenta operacionalizar nas maneiras de circulação dos livros da coleção, e a importância do editor. Em “Vingt-Un: entre o intelectual e o ‘ajuntador de papeis’”, o tópico é específico para tratar sobre as imagens construídas acerca de Vingt-Un Rosado, enquanto o grande herói da cultura mossoroense ou como se considerada apenas um “ajuntador de papeis”. Em “Os atores, os autores e as palavras: personagens e narrativas da Coleção”, procuramos evidenciar os primeiros e principais escritores publicados pela Coleção, e como estabelecem essa relação com a editora. Por fim, no quarto e último tópico “Independência? Liberdade? Eis o país de Mossoró”, somos levados a pensar sobre a espetacularização do espaço e do porque Mossoró era levada ao status de país, que no caso modifica sua composição identitária. Para a feitura desse trabalho, uma vez que trabalhamos com a História Cultural, nos valemos de leituras dos historiadores Robert Darnton e Roger Chartier. O primeiro nos auxilia para entender melhor a dimensão comunicativa dos livros, das reações dos leitores e do próprio campo de História da leitura, se mostrando um pouco mais aberto para nossa pesquisa, e portanto com pontos mais norteadores. Em relação ao Chartier, buscamos nele o seu esquema conceitual: apropriação, representações e circulação, como maneira de entender o processo de editoração. Ainda nele, atentamos para a questão de mudança de suporte dos livros e da

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recepção da obra, sendo duas bases importantes no qual partimos nossos estudos. Deve-se salientar que, mesmo com as diferenças epistemológicas claramente presentes entre os dois historiadores, o nosso objetivo no momento não é estabelecer esse diálogo, mas estabelecer um sistema de apropriação conceitual de ambos, que se mostram indispensável para pensar o livro, a leitura e suas trajetórias. Para compreender de forma mais ampla o conceito de comunicação e meio de produção, foi importante ler alguns textos de Raymond Williams, mesmo não sendo o ponto norteador do trabalho. Dialogamos também com a historiadora brasileira Sandra Jatahy Pesavento para pensar essa ligação entre o sensível e o território, e também para reforçar essa individualização da cidade através da criação de seus mitos. Portanto, o presente trabalho se insere como uma necessidade de pensar a história local de Mossoró, na maneira que a editora, seus livros e escritores, se empenharam em construir identidades para si e para suas espacialidades, pensando o contexto político com o domínio da família Rosado, seus projetos e estratégias de mando. A perspectiva adotada através da História do Livro, nos concede caminhos mais abertos para pensar sobre as produções da editora e de como alguns meios intelectuais mossoroenses a receberam.

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2 – NOTAS SOBRE A HISTÓRIA DA COLEÇÃO MOSSOROENSE

Lemos os livros e os queimamos, por medo que sejam encontrados. Não compensava microfilmá-los; estávamos sempre viajando, não queríamos enterrar o filme para voltar mais tarde. Sempre haveria o risco de sermos descobertos. O melhor é guardá-los na cabeça, onde ninguém virá procurálos. Somos todos fragmentos e obras de história, literatura e direito internacional. Byron, Tom Paine, Maquiavel ou Cristo, tudo está aqui.4 5

Em Fahrenheit 451 , romance distópico publicado em 1953, o autor Ray Bradbury criou uma sociedade na qual a posse de livros é considerada ilegal, e quando encontrados são queimados pelos bombeiros. Os indivíduos que optaram pelo refúgio dessa sociedade opressora, desenvolveram técnicas capazes de memorizar uma série de livros, todo o seu amplo conteúdo, cada pequena palavra, e assim perpetuar essas memórias para as próximas gerações, isso até que o livro seja novamente autorizado e essas memórias possam ser transcritas. Após o ato de memorização, os indivíduos que viviam à margem da sociedade queimavam os livros para que não fossem encontrados e retaliados. Bradbury escreveu essa obra no início da Guerra Fria, e, assim como consta no posfácio, tentou expor seu apreço por livros e bibliotecas. Mas o autor acabou por, também, realizar uma crítica à sociedade americana seu tempo cujas as características principais eram o hedonismo e a supressão do pensamento reflexivo. Esse exemplo inicial nos permite pensar e investigar o papel do livro na construção cultural e social de um espaço determinado. O que se procura expor é a importância dos processos de leitura e do livro em si como partes do sistema comunicacional de uma sociedade. O que entendemos por esse conceito advém de leituras de historiadores como Raymond Williams e Robert Darnton, uma vez que o quadro comunicacional poderia ser essa esfera em que os meios de produção podem ser material e imaterialmente reproduzidos, ou seja, os livros fazem parte deste circuito que tentamos expor, assim como os leitores, os editores, o campo de ideias, práticas e estratégias de diferentes sujeitos. Nesse ponto, o historiador norte-americano Robert Darnton nos alerta que "os meios de comunicação possuem uma história, mas que os historiadores a negligenciam"6. Além da evidente autocrítica, o trecho serve para salientar o quão significante a pesquisa sobre

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BRADBURY, Ray. Fahrenheit 451. São Paulo. 2. ed. Globo, 2002. BRADBURY, Ray. 2002. 6 DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 5

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os meios de comunicação (televisão, cinema, música, rádio, e o próprio livro) podem ser úteis para o alargamento do campo da História, dando a ver uma leitura na maneira como os homens se apropriam das linguagens que conflitam no seu cotidiano e, a partir disso, de como representam a si e ao outro. Através dessas breves linhas escritas, intentamos construir uma base para o estudo sobre a Coleção Mossoroense, no qual procuramos inseri-la no quadro comunicacional, por uma perspectiva da história do livro. Criada por Jerônimo Vingt-un Rosado Maia, em 1949, a coleção é considerada o maior apanhado de títulos publicados no país, tratando basicamente de temas relacionados ao Estado do Rio Grande do Norte, mais precisamente centrado na cidade de Mossoró/RN. Destarte, a Coleção Mossoroense, além de compor uma página de suma importância para a construção cultural da urbe a qual se insere, se mostra como uma ferramenta para o conhecimento sobre os espaços da cidade, da maneira como ela se representa, ou seja, de como compõe o quadro do “país de Mossoró”, nos lançando alguns questionamentos: como Vingt-Un Rosado, os escritores e seus textos desenvolveram caminhos para pensar sobre Mossoró? Como constroem para a cidade esse campo de autonomia? Entendemos essas questões como essenciais para a construção da problematização do presente trabalho. Assim, a editora não foi responsável apenas por criar um emaranhado de livros, mas de fornecer subsídios para que a cidade de Mossoró desenvolvesse um sistema identitário ao longo da segunda metade do século XX. Não podemos esquecer que essa identidade está profundamente ligada ao nome da família Rosado, importante oligarquia política local, que também projetou seu nome e formas de influência através dos escritos da editora. Dessa maneira, os livros da Coleção, além de se prestar à uma missão de desenvolvimento cultural da urbe, são linguagens que, idealizadas por homens, não podem fugir do campo político. Na esteira sobre o que pensamos a respeito de identidade, inicialmente empregamos o que o Stuart Hall dissertou em sua obra, no qual deixa claro em suas primeiras páginas que este é um conceito complexo de se entender na ciência social contemporânea, uma vez que há elevado fluxo de informações e as circulações de práticas discursivas e estruturas imagéticas diversas que evidenciam ainda mais o caráter plural e descentralizado do conceito. Considerando essa aceleração da identidade, que interpretamos das páginas escritas por Hall, devemos ressaltar a relação que grupos formais como a Família Rosado e um projeto editorial como o da Coleção Mossoroense criam um sentido de unificação dos sujeitos com o contexto maior – criando e reforçando os terrenos das simbolizações da tríade a qual Mossoró é

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conhecida entre sua população (resistência, conhecimento e liberdade). De acordo com Hall O fato de que projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade então, costura (ou, para usar uma metáfora médica, ‘sutura’) o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis.7

Esses discursos propagados pelos escritores reunidos por Vingt-Un Rosado fizeram com que Mossoró começasse a ser pensada como terra em que há uma unificação identitária, nas imagens de resistência e da liberdade - com a sua população também perpetuando essa representação - tendo como ponto de partida marcos históricos para a cidade: a abolição da escravidão em 30 de setembro de 1883, cinco anos antes da Lei áurea; o primeiro voto feminino ocorrido em território brasileiro, pela professora Celina Guimarães Viana, em 1927; e a resistência ao bando do cangaceiro Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, em 1927. Esses acontecimentos, celebrados mesmo em dias atuais8, nos mostram o poder da memória na emancipação de um determinado espaço, construções que perduram e repovoam constantemente o imaginário popular. Pensamos assim que a Coleção Mossoroense não apenas registrou esses fatos, mas se apropriou deles, os amplificou, os colocou em circulação de maneira que os espaços de registros e dos escritos estivessem em constante remodelação, seja para um desenvolvimento cultural ou para criar uma espécie de atração para o nome dos Rosados. As páginas que seguem neste primeiro capítulo têm como características principais abordar três pontos de suma importância durante a pesquisa, passando primeiramente por uma discussão sobre o campo da História do livro, inserida no contexto maior da História Cultural; abordar de maneira mais abrangente os percursos da editora estudada e, por fim, questionar sobre a produção a respeito da História local. 2.1. A força do livro, o poder do escrito: o circuito comunicacional

A leitura não se desenvolveu em uma só direção, a extensão. Assumiu muitas formas diferentes entre diferentes grupos sociais em diferentes 7

HALL, Stuar. A identidade Cultural na Pós-Modernidade. DP&A Editora; 10ª Ed. Muito através de festividades como o “Chuva de balas no País de Mossoró”, realizado anualmente desde 2003, no mês de junho, como forma de enaltecer a resistência ao bando do cangaceiro Lampião e, assim, continuar enaltecendo a imagem de “bravura” do espaço. 8

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épocas. Homens e mulheres leram para salvar suas almas, para melhorar seu comportamento, para consertar suas máquinas, para seduzir seus enamorados, para tomar conhecimento dos acontecimentos de seu tempo, e ainda simplesmente para se divertir.9

No trecho, o historiador norte-americano Robert Darnton nos explica sobre o caráter plural da leitura e do livro. Desde a criação da imprensa pelo alemão Johannes Gutemberg, na década de 1450, até os chamados Ebooks, o livro vem se perpetuando e criando um campo para que as palavras possam traduzir os anseios e inquietações humanas no tempo e no espaço. Assim, a leitura não desempenha apenas um caminho, mas vários, dependendo do contexto maior a qual está inserido e de quem a manuseia. Há assim pontos de subjetividade inerentes, mais ainda: informações e pensamentos diversos que circulam constantemente, que se comunicam e transformam os campos da História humana. A criação da imprensa de Gutenberg, tida pelo historiador francês Roger Chartier como uma “revolução de Gutenberg”10, fez com que houvesse uma mudança em termos de uma cultura escrita. Embora, em primeiro momento, a imprensa estivesse limitada à uma reprodução de manuscritos religiosos, é inegável que seu desenvolvimento proporcionou um alargamento nos horizontes de pensamento humano em termos tecnológicos. O próprio contexto da época, considerando as mudanças sociais e econômicas a partir do século XV na Europa, possibilitou uma modificação no campo intelectual, principalmente se considerarmos a efervescência do movimento renascentista. Pensar na história do livro e dos processos de leitura é assim remeter à criação de Gutenberg, por uma modificação na disseminação da escrita e nas maneiras de leitura, nos levando até uma poderosa transformação social das mentalidades coletivas. No renascimento, a expansão de ideias libertárias se tornou ainda maior, bem como o incentivo à uma cultura letrada: mesmo aqueles que continuaram analfabetos, tinham algum acesso à prática da leitura através de um ato de ler em voz alta, fazendo assim com que esse conhecimento pudesse ser transmitido oralmente, remodelando visões e posições dentro da sociedade. Assim, o homem comum não estava completamente distante das práticas de leitura. Aprendemos que o livro, de uma forma ou de outra, chega até ele. Nesse ponto, porém, não devemos esquecer da cultura do manuscrito, presente essencialmente na idade média. Nesse período, os manuscritos eram basicamente limitados ao

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DARNTON, Robert. História da Leitura. In: Burke, Peter (org). A Escrita da História: Novas Perspectivas: São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 217. 10 CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP,1998. p. 7

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poder dos clérigos, no qual a Igreja teve um papel importante por preservar textos da antiguidade clássica. A cópia do manuscrito estava entre os principais deveres dos monges, e todas as grandes abadias possuíam um local chamado “scriptorium”, que basicamente significa “um local para escrever”, onde todos os elementos necessários eram preparados: os rolos de pergaminhos e suas ilustrações, por exemplo. Estas últimas tinham uma certa importância para termos de ornamentação na estrutura do escrito. Posteriormente, os rolos foram substituídos pelo “códex” (ou códice) como suporte de escrita, se constituindo como tábulas de madeira, bastante usados na antiguidade, sendo este já substituído pelo livro. Destarte, essas questões que perpassam a própria história sobre o livro, seus suportes e materialidade, são de suma importância para compreender como os homens estabeleceram seus diversos circuitos comunicacionais. O livro não está assim dissociado dos modos de produção de um tempo determinado: ele é uma forma de comunicar, de representar, de induzir, captar, envolver, investigar. O texto possui esse caráter de força sob o indivíduo, como nos coloca Roger Chartier:

[...] quer se considere o carácter todo-poderoso do texto, e o seu poder de condicionamento sobre o leitor – o que significa fazer desaparecer a leitura enquanto prática autónoma – quer se considere como primordial a liberdade do leitor, produtor inventivo de sentidos não pretendidos e singulares – o que significa encarar os actos de leitura como uma coleção indefinida de experiências irredutíveis umas às outras.11

No trecho em destaque, Chartier nos mostra o poder do texto no condicionamento da autonomia no leitor. Há assim o que podemos interpretar como uma espécie de conexão e, ao mesmo passo, conflito: entre o próprio poder e liberdade do escrito e as nossas experiências exteriores que nos fornecem novos subsídios para entender o que está sendo lido. O leitor é, como bem posto pelo historiador francês, um “produtor inventivo”. Enquanto o escrito age sobre ele, é também um sujeito que reinterpreta o texto e o compartilha, fazendo que novas representações possam surgir. Dessa maneira, pensamos que ele também tem sua força sob o texto, não apenas ao comunica-lo para o outro, mas introduzindo uma percepção subjetiva, que pode mudar as intenções do autor. Assim, do momento em que o escrito vem a público, o livro deixa de ser apenas um objeto presente entre a relação “autor-editor”. O público passa a ser o ponto chave, o alvo, que

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CHARTIER, Roger. Textos, impressos, leituras. In: A História Cultural: entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 121.

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nos mostra o quantitativo e qualitativo da obra, que por sua vez apresentar os pontos de recepção e comentários sobre o texto. Esse circuito comunicacional é assim bem mais ampliado, não ficando apenas na esfera burocrática e administrativa de uma editora que recorta o livro da maneira que se encaixe dentro das lógicas de lucro, mas agora também presente na esfera popular, ampliando o que concebemos como cultura letrada, atraindo novos leitores ou afastando-os. O fenômeno do livro é assim de tal forma complexo que vai além da triagem “autoreditor-leitor”. Voltando um pouco para o objeto do presente trabalho, intentamos mostrar que a Coleção Mossoroense não é somente um grande apanhado de títulos, mas sim obras que auxiliaram na constituição de imagens históricas para o seu lugar social, no caso a cidade de Mossoró. As representações criam e recriam esse sistema de comunicação, ampliam a identidade da editora e, por consequência, do seu espaço, principalmente quando pensamos que os livros da Coleção Mossoroense eram distribuídos de maneira gratuita, enviado para diversas universidades e bibliotecas, o que compõem um quadro de fácil acesso à população e para interpretações variadas acerca de seus próprios marcos históricos. De tal forma, inserida no campo da História Cultural, o estudo sobre a História do Livro e dos processos de leitura vem sendo cada vez mais explorados para compreender esses marcos. A leitura tem assim os seus próprios “mistérios”, tem sua própria História, que saí desde a questão de suporte do escrito, passando pelas maneiras de ler, até o ponto de conexão com o passado do livro e do seu autor com o contexto do tempo presente de quem o lê. O homem desenvolveu técnicas de comunicação para dizer algo, para significar esse algo, mais ainda: para ressignificar suas práticas cotidianas. A leitura é assim um modo de preencher o tempo, de administrá-lo. Roger Chartier, por exemplo, é um dos principais nomes no que tange à História do livro, e mais precisamente às questões de suporte e suas transformações. Em “Desafios da Escrita”, o historiador francês opera nos ensaios do seu livro as maneiras como o mundo digital intervêm nas práticas de leituras e na comunicação entre os sujeitos. A propósito da mudança de suporte, ele deixa claro a alteração na ordem dos discursos e das linguagens com as novas maneiras de textualidade eletrônica, que nos provoca novas conexões com os textos e sua disseminação. Os processos de digitalização de livros e obras históricas e literárias se mostra hoje como aporte essencial para a manutenção do texto. Sobre isso, Chartier nos diz o seguinte:

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É essa ordem dos discursos que se transforma profundamente com a textualidade eletrônica. É agora um único aparelho, o computador, que faz surgir diante do leitor os diversos tipos de textos tradicionalmente distribuídos entre objetos diferentes. Todos os textos, sejam eles de qualquer gênero, são lidos com um mesmo suporte (a tela do computador) e nas mesmas formas (geralmente as que são decididas pelo leitor). [...] O que se torna mais difícil, contudo, é a percepção da obra copo obra. A leitura diante da tela é geralmente descontínua, e busca, a partir de palavras-chave ou rubricas temáticas, o fragmento textual do qual quer apoderar-se [...] sem que necessariamente sejam percebidas a identidade e a coerência da totalidade textual que contém esse elemento. Num certo sentido, no mundo digital todas as entidades textuais são como bancos de dados que procuram fragmentos cuja leitura absolutamente não supõe a compreensão ou percepção das obras em sua identidade singular.12

O campo da História do Livro nasceu através da busca dessas questões: de posições ideológicas, das mentalidades coletivas, das maneiras de organização da cultura popular, sua reação à cultura dominante. Nesse debate historiográfico, como já explicitamos, dois historiadores tomaram papeis com algum pioneirismo: Roger Chartier e Robert Darnton. O primeiro tem suas pesquisas mais voltadas para o campo cultural do social, empreendendo questões interpretativas e conceitos como práticas, representação e circulação; enquanto que Darnton está mais ligado à uma questão social do cultural, buscando inserir a literatura no campo maior das comunicações. Destarte, não compete a este presente trabalho evidenciar ou problematizar prováveis embates entre ambos os intelectuais, uma vez que são historiadores consolidados e com posições epistemológicas que mesmo diferenciadas, auxiliam na expansão do conhecimento sobre o livro, o texto e a escrita em suas devidas particularidades. Assim, Chartier trabalha com a maneira de como os livros são circulados, nos suportes que modificam os sentidos do texto, com a materialidade do impresso e o conjunto de representações que se constroem e são postas a circulação. Sua metodologia no território da História cultural é assim uma espécie de resgate de áreas como história econômica, social e demográfica, como o próprio francês afirma quando fora entrevista por Darnton13. A questão referente à Darnton é a sua ideia de entender as formas de compreensão do texto pelo sujeito de maneira um pouco mais aberta ao social e ao comunicativo, ver a sua interiorização, ou seja, de como ocorria a leitura e de como as obras eram manejadas, e também introduzir com mais espaço os pontos sobre o papel dos editores e os quadros entre diferentes 12

CHARTIER, Roger. Desafios da Escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2012. Roger Chartier entrevistado por Robert Darnton. Matrizes. Ano 5 – Nº 2 Jan/jun. 2012 – São Paulo: Brasil. p. 159-177. 13

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agentes que perfazem desde a feitura do texto quanto ao seu momento de editoração. Enquanto Chartier trabalha com o conceito de “recepção”, Darnton opera com uma teoria de “reação do leitor”, presente em “O Beijo de Lamourette”, como forma de destacar documentos que mostrem os leitores em exercício. Porém, como falado anteriormente, há entraves para os historiadores do livro:

Em suma, há de ser possível desenvolver uma história, bem como uma teoria da reação do leitor. Possível, mas não fácil, pois os documentos raramente mostram os leitores em atividade, modelando o sentido a partir dos textos, e os próprios documentos também são textos, o que requer interpretação. Poucos têm uma riqueza tal que possa fornecer um acesso, mesmo que indireto, aos elementos cognitivos e afetivos da leitura, se um ou outro caso excepcional talvez não seja suficiente para se reconstruírem as dimensões internas dessa vivência.14

Tentar recuperar uma História da leitura e do livro, o que por consequência nos leva a pensar nos hábitos dos leitores, é em si uma tarefa árdua para qualquer pesquisador do campo. Isso se dá, em partes, porque a maior quantidade de registros exclui a participação popular, recusa a maneira como os homens comuns, destituídos de grandes palácios e do poder político de seu local, leu e interpretou a obra, ou seja, de como esse sujeito (que é por finalmente o que a História quer capturar) recepcionou e comentou a obra em seu tempo. Destarte, operacionalizar com os processos de recepção nos mostraria questões de cunho qualitativo e quantitativo da obra: qual foi seu público alvo; nível de tiragens e vendas; críticas sobre o texto; reações coletivas; as práticas dos setores letrados e de como foi disseminado para áreas não letradas da população; em qual local a obra fora mais aceita; como o autor foi discutido; as relações de poder da época; as visões de mundo produzidas; de como inquietou as estruturas locais; os julgamentos derivados dessas interpretações. Há assim uma série de perguntas que esses registros, em sua maioria apagados da História ou quando existentes estão de difícil acesso ao pesquisador, que poderiam nos auxiliar na recuperação do início de uma cultura popular letrada, insatisfeitas com os aparatos políticos, econômicos e sociais de seu tempo. A leitura funciona assim não apenas como uma representação da realidade, mas também como criação de um mundo fantástico no qual os indivíduos poderiam simplesmente encontrar-se numa espécie de ponto de refúgio, que tanto

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DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p.171

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poderia ser individual ou coletivo, no qual as práticas de leitura seriam compartilhadas, e assim passadas de uma geração à outra. Muito embora as práticas do leitor comum não estejam ainda tão abertas para registro, o historiador italiano Carlo Ginzburg conseguiu, em sua obra mais conhecida chamada “O Queijo e Os Vermes”, publicada em 1976, recuperar partes da vida de um moleiro da cidade de Friuli no século XVI. Domenico Scandella, mais conhecido como Menocchio, nasceu em 1532, em Montereale, uma pequena aldeia da cidade. Procurando mostrar uma pesquisa sobre um “homem comum”, como diz no prefácio à edição inglesa, Ginzburg pode resgatar algumas das condições em que vivia Menocchio, desde suas leituras, pensamentos e sentimentos, até o contexto social e suas prisões pela Inquisição. A investigação do autor, no estudo de um indivíduo e suas excentricidades, desembocou numa pesquisa maior sobre a cultura camponesa, isso no período de disseminação da imprensa e de novas ideias, estas que chegaram até Menocchio. Para o protagonista de O Queijo e os Vermes, o mundo tinha origem na putrefação, como afirma em testemunho ao Santo Ofício:

Eu disse que segundo meu pensamento e crença tudo era um caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite, e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos.15

Propondo uma análise micro-histórica, Ginzburg problematiza a relação do moleiro friulano Menocchio com o seu contexto, com a cultura escrita, na maneira de apropriação das leituras e de como estás influenciavam na formulação de suas ideias. A postura adotada pelo historiador italiano delineia clara adoção à cultura popular, como já mencionado, investigando mais precisamente a vida de um indivíduo, mas que ligado a um contexto maior, acaba por explicar processos históricos em curso. O Queijo e os Vermes é, assim, a obra que passa a ser referência no que tange o estudo da cultura popular, do cotidiano e da relação intrínseca entre as classes ditas subalternas e a cultura construída pelas classes dominantes, em um jogo de imposições de valores, de influências e circularidades16. O historiador italiano também nos fornece em seu 15

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.p. 36-37 José D’Assunção diz que a obra “fala dos mecanismos de rivalidade e solidariedade que atravessaram esta peculiar sociedade italiana e que ficaram registrados nos inquéritos inquisitoriais – quando as testemunhas inquiridas pelos inquisidores silenciam, quando comprometem Menocchio propositalmente, quando o comprometem sem querer; quando o próprio Menocchio fala de seus diálogos com os indivíduos de sua aldeia expondo suas reações diversas; ou ainda, finalmente, pelo próprio fato de Menocchio ter sido poupado da primeira vez com apenas uma ligeira punição e levar anos até cair de novo nas malhas do Santo Ofício, apesar 16

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discurso alguns rastros de leituras realizadas por seu maior personagem, as narrativas a qual passou e os modos de como leu. Afinal, estamos falando de um sujeito com ideias que certamente fogem dos padrões de ordem da época, no qual falava abertamente suas opiniões, que o levava a ser considerado um herético perante o poder clerical. Assim, podemos inferir que suas leituras, que auxiliavam na formação do seu campo de ideias, foram essenciais para a formação de sua figura um tanto enigmática, ao mesmo tempo falatório, questionador e obstinado na defesa de suas posições. Como afirma Robert Darnton:

Ginzburg descobriu que Menocchio havia lido uma grande quantidade de narrativas bíblicas, crônicas e livros de viagem do tipo que existe em muitas bibliotecas aristocráticas. Menocchio não se limitou simplesmente a receber as mensagens transmitidas pela ordem social. Ele leu de um modo agressivo, transformando os conteúdos do material à sua disposição em uma visão radicalmente não cristã do mundo. Se essa visão pode ser atribuída a uma tradição popular antiga, como afirma Ginzburg, é uma questão a ser discutida; mas Ginzburg certamente demonstrou a possibilidade de se estudar a leitura como uma atividade entre as pessoas comuns há quatro séculos.17

Esse estudo aqui mencionado, de feitura do historiador italiano, nos apresenta como é possível que um sujeito, pertencente a uma dita cultura popular, se aproprie de conceitos e passagens de livros para formular uma própria visão – por sinal, radicalizada – de mundo, que embora possa ferir o tradicionalismo clerical, ao final são posições de um personagem histórico, que dá a ver sua própria subjetividade de leitura na formação do seu espaço social. Destarte, o relato dos leitores e sua experiência com o escrito, autores e até mesmo com uma editora, dado de maneira tanto objetiva quanto subjetiva, direta e indireta, é uma das chaves para compreender a criação de uma nova comunicação no mundo moderno. Estudar sobre os livros nos fornecem esse aparato no qual há uma convergência de diversos campos que demonstra o poder do escrito na História. A pesquisa de Darnton é o principal exemplo, abordando uma visão mais ampla da literatura e de como essa História dos Livros tem relação com a história das comunicações. Para ele a literatura é “um sistema de comunicações que se estende dos autores e editores até os leitores, passando pelos tipógrafos e livreiros”18

de aparentemente ter prosseguido durante todos estes anos na sua falastranice herética”. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.. p. 159. 17 DARNTON, Robert. História da Leitura. In: Burke, Peter (org). A Escrita da História: Novas Perspectivas: São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 205 18 DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos da França revolucionária. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.187

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Acreditamos haver assim uma autonomia da História do Livro dentro do emaranhado – e as vezes complicado – campo da História. Retomando as palavras do próprio Darnton, o historiador nos diz que essa área começou a ter “seus próprios periódicos, centros de pesquisa, conferências e circuitos de palestras. Congregou tanto os mais velhos do clã quanto os mais jovens radicais”19, demonstrando esse caráter que faz o livro não apenas ser lido, mas ser buscado de maneira mais profunda para explicar determinada formação cultural.

2.2. As páginas de uma editora

Muito já se falou e debateu sobre a Coleção Mossoroense nos últimos anos. Essas páginas procuram investigar alguns pontos do nosso objeto de pesquisa, perpassando suas trajetórias na segunda metade do século XX. Assim, o nascimento da Coleção, em 1949, está inserido num contexto da chamada “batalha da cultura”, no qual foram realizados investimentos para a edificação cultural de Mossoró, através da construção da Biblioteca e do Museu Municipal da cidade20, liderados por Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia, ao lado de outros nomes da cultura local. O prefeito da época era Dix-sept Rosado, ligado à União Democrática Nacional (UDN), no contexto de Pós-Estado Novo21. Nesse campo de construção para novas práticas culturais é que nasce a Coleção Mossoroense, com o objetivo de registrar textos, documentos e pesquisas sobre a história local e o Estado do Rio Grande do Norte, abordando temas como a seca, agricultura no semiárido, marcos históricos da cidade, sobre universidades e instituições locais e outros. Com o objetivo de efetuar uma melhor organização e controle, a Coleção foi dividida em 10 séries, de “A” a “J”, ficando assim: A – Folhetos de grande formato B – Plaquetas C – Livros 19

DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. P.123 20 Hoje, Biblioteca Municipal Ney Pontes e Museu Lauro da Escóssia, respectivamente 21 De acordo com Bruno Balbino, “as principais forças partidárias do Rio Grande do Norte se localizaram, principalmente, em torno de três partidos principais: o Partido Social Democrático (PSD), liderado por George Avelino; a UDN, com José Augusto Bezerra de Medeiros, Dinarte Mariz e Juvenal Lamartine à frente; e o Partido Social Progressista (PSP), chefiado por Café Filho. Nesse período, as organizações partidárias se agruparam em alianças e coligações, prática permitida pela legislação, a exemplo das campanhas para o Governo do estado do Rio Grande do Norte, em 1947, e das disputas pelas prefeituras municipais, em 1948. Nesse momento, a UDN e o PSP se uniram, formando o bloco dos Coligados para fazer frente ao PSD nas campanhas para o Governo estadual e municipal.” COSTA, Balbino Aires. As Batalhas dos Rosados: política e cultura em Mossoró-RN (1948-1967). OPSIS, Catalão, v. 12, n. 1, p. 146-163 - jan./jun. 2012

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D – Cordéis E – Periódicos F – Memorial dos Mossoroenses G – Falas e Relatórios dos Presidentes da Província do RN H – Cadernos de Areia Branca I – Cadernos de Carnaúba dos Dantas J – Ruas e Patronos de Mossoró (Dicionário) Pesquisando nas séries “B” e “C” da Coleção, onde estão localizadas as principais obras para a cidade, nota-se também a presença de poesias e textos literários com temáticas diversas, muitos destes também enaltecendo a imagem do “país de Mossoró”, termo este associado como criação do próprio Vingt-Un. A criação e o desenvolvimento da Coleção Mossoroense não estiveram assim dissociadas das questões políticas locais. Ao longo da segunda metade do século XX, o nome da família Rosado esteve assim ligado como sinônimo de “poder” local, uma oligarquia que remodelou os espaços sociais, culturais e econômicos da cidade, e que mesmo em dias atuais guarda seus resquícios. Há assim uma perpetuação do imaginário, tanto aquele que a própria família e/ou grupo político cria para si, quanto aqueles da qual se apropria. Assim, não devemos ver a construção da editora como inserida unicamente numa espécie de “batalha cultural”22, mas interpretando também como uma movimentação de enaltecimento da cidade e pelo crescimento de um nome e de uma família política. Ao longo de sua trajetória, a Coleção Mossoroense passou por três fases distintas, que dá a ver leituras diferentes sobre sua história: nos modos qualitativo e quantitativo, nos grupos orquestrados e nas decisões editoriais de Vingt-Un, nas mudanças internas e externas, nos modos de produção, nas próprias transformações culturais da cidade, na apropriação de ideias e disseminação das mentalidades coletivas, nas maneiras como o livro circula e o texto ressignifica os espaços. Estes e mais pontos são importantes para entender esses processos de como a editora fora recepcionada, comentada, debatida ao longo de sua história. Em primeiro momento, a coleção teve o patrocínio da Prefeitura Municipal de Mossoró, durante o período que vai de sua criação até o ano de 1973, tendo 25 anos de duração. De acordo com uma plaqueta escrita por Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia Neto, em agosto de 2002, durante esse primeiro tempo foram editados 293 títulos, com a média anual de 11. O segundo tempo da editora esteve sob operação da Escola Superior de Agricultura de

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O próprio sentido dessa “batalha cultural” está repleto de uma simbologia política, do mando da família Rosado.

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Mossoró23, em conjunto com a Fundação Guimarães Duque. Esse período dura 21 anos, compreendendo os anos de 1974 à 1994, no qual foram editados 1.888 títulos, com média anual de 90. Com relação ao patrocínio da Fundação Guimarães Duque, a mesma plaqueta escrita por Jerônimo Maia nos relata um episódio que dá a ver a forma de condução dos interesses de seu avô, Vingt-Un.

Quando viajava a serviço da ESAM, meu avô sempre fazia uma caçada em busca de recurso para publicar livros. Além de defender os muitos interesses da Escola. O mais longo ‘chá de cadeira’ foi o que lhe deu Djalma Nina Rodrigues, chefe de gabinete do INCRA, ‘chá de cadeira’ que durou 06 horas, mas naquele dia, ele semeou uma amizade com o presidente Lourenço Vieira da Silva, que carreou para a escola de Mossoró tantos benefícios.24

O terceiro tempo começa assim em 1995, com a criação da Fundação Vingt-Un Rosado, que até 2005 havia editado 1932 títulos, numa média anual de 193 publicações. A questão de funcionamento da fundação é um ponto interessante: em tempos atuais, até a feitura do presente trabalho, a Fundação se vê fragmentada e os títulos da Coleção estão salvaguardados no Museu Lauro da Escóssia. A crítica principal é a ausência de apoio do poder municipal para com a cultura letrada, tanto em termos de um local adequado para os livros quanto de pessoal qualificado. Interpretamos uma desconsideração em relação aos documentos históricos em Mossoró, que se preservados podem ser usados para novas pesquisas acadêmicas, e mais ainda para problematizar as memórias sobre o local. Assim, podemos até mesmo começar a questionar outro título a qual Mossoró se apropria: “Capital da Cultura”. É contraditório que essa chamada terra da cultura não tenha consciência da amplitude de sua cultura letrada. Os diferentes escritores reunidos por Vingt-un durante esse quadro temporal reforçaram o sentido de expressões criadoras de uma identidade cultural para Mossoró, mas através de seus livros. Entendemos então que o texto, e a sua consequente leitura, são assim apreciados e ressignificados por diferentes sujeitos no tempo, não estando dissociados das relações de poder, uma vez que a escrita é em si um ato político, uma forma de expressar uma insatisfação com algum sistema. O livro pode ser assim uma forma de combate, de

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Antes ESAM, hoje, com a federalização em 2005, passou a ser Universidade Federal Rural do Semi-Árido, UFERSA 24 ROSADO, Jerônimo Vingt-Un. Três tempos da Coleção Mossoroense. Fundação Guimarães Duque. (Coleção Mossoroense, Série “B”, Nº: 2166, Agosto de 2002).

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aceitação, disseminação ou de favorecimento a grupos sociais determinados. As publicações da Coleção Mossoroense perfazem assim os interesses de um grupo, o que certamente modifica a relação que o escritor e sua obra desenvolvem com o leitor e com a sua concepção dos espaços que o cercam. Há regimentos internos – como a divisão feita em dez séries, de “A” a “J”, uma organização rígida de numeração das obras, no formato diferenciado dos livros no que condiz às plaquetas, que são pequenos livretos, a publicação de trabalhos tanto acadêmicos quanto literários, ou seja, mostrando uma certa característica editorial plural – algumas particularidades e formas de se comunicar com a sociedade que não escapam a uma organização a uma editora como a Coleção Mossoroense e a um tipo de instituição formal como a Fundação Vingt-Un Rosado. Estas questões perpassam também sobre a complexidade e os conflitos de sua formação literária com relação à Mossoró.

[...] os grupos especializados são os únicos que se ajustam facilmente na categoria familiar de sociedade aberta ou plural. Esses grupos podem, adequadamente, ser descritos em termos de associação livre no seio de uma diversidade cultural aceita de maneira geral, muito embora se deva registrar que, mesmo aqui, em muitos casos, a diversidade é instituída por essas iniciativas, mais do que preparadas para elas, e que, nos casos de determinados ramos de uma arte, as iniciativas frequentemente implicam algum conflito local significativo.25

Entendemos que a Coleção Mossoroense não está dissociada das relações sociais de produção, constituindo uma forma de trabalho humano no tempo, com suas modificações internas e externas, especificamente submetida à três instituições diferentes em sua trajetória e, portanto, produzindo – quantitativa e qualitativamente – de maneira diferenciada. A coleção, enquanto uma instituição de obras diversas separadas por diferentes séries, é assim um meio de não apenas destacar as conquistas de Mossoró, mas de estabelecer um vínculo, uma conexão com os leitores e entre eles para com o seu lugar. Essas práticas dão a ver uma leitura sobre os modos de recepção – deslocando o significado comum do termo para o de “comentários”, como falamos – das obras, de como elas eram pensadas em seu momento de publicação e a uma dinâmica interpretativa durante o tempo feita por diferentes sujeitos. Vingt-Un se mostrou assim como o principal idealizador de uma série de livros, ricas documentações históricas, que fornecem uma representação não apenas sobre suas ideias para 25

WILLIAMS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

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a cultura, mas para si mesmo. Como nos explica Paula Rejane Fernandes, Vingt-Un se projetou através da Coleção Mossoroense, desenvolveu um “exercício autobiográfico”26 tanto no espaço privado quanto no público. Nas palavras da historiadora, por meio da Coleção, Vingt-Un “publicou obras sobre si mesmo, sobre sua família, sobre Mossoró e sobre o semiárido”27. Essas questões serão melhor expostas nas próximas páginas.

2.3. Questões sobre a História Regional

O campo da História durante o século XX e início do XXI, é marcado por uma série de abordagens, métodos, modos de ver e fazer. Hoje, podemos facilmente falar numa história das mentalidades, das Ideias, de uma “Nova História Cultural”, da chamada História antropológica, do urbano, do cotidiano e vida privada ou uma “Psico-História”. Numa abertura à interdisciplinaridade, partindo através da primeira geração dos Annales, a História se vê muitas vezes aliada à Geografia, Psicologia, Sociologia e outras disciplinas que diversificam ainda mais o campo de estudo e as fontes do historiador. Inserido nesses métodos de abordagem, o estudo sobre os espaços tem se mostrado como profícuo para compreender a história da cultura de um período, a maneira como a cidade é representada, e de como seus habitantes remodelam os espaços através da criação de imaginários. As próprias modificações urbanas dão a ver as necessidades dos homens de organizar de uma forma específica, de construir memórias sobre seus espaços. Dessa maneira, partindo dessas breves características, lembramos que mesmo com o diversificado campo da História, muitos são os historiadores que ainda realizam críticas com referência à ausência de pesquisas em História local, o que não deixa de ser uma necessária autocrítica. O presente escrito busca, mesmo que de maneira superficial, resgatar alguns pontos sobre a História da cidade através da Coleção Mossoroense, também perfazendo um interesse nosso de que os acontecimentos locais possam ser mais problematizados. Tomar a perspectiva local e/ou regional, significa assim ter um olhar micro-histórico, efetuando um recorte no qual possa executar suas pesquisas de maneira mais intensa. No rastro dos estudos de Carlo Ginzburg, percebemos assim que todo historiador carrega consigo a

26

FERNANDES, Paula Rejane. A Escrita de si do intelectual Jerônimo Vingt-Un Rosada Maia: arquivos pessoais e relações de poder na cidade de Mossoró (RN) – 1920 – 2005. Vitória, 2014. Tese (doutorado) Universidade Federal do Espírito Santo. p. 90 27 Idem. p. 90

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imagem do detetive, sendo o “ogro da lenda”28 como nos diz Marc Bloch. Muito da pesquisa em História essa outra forma de observar a comunidade. De acordo com José D’Assunção:

Mas, de qualquer modo, o interesse central do historiador regional é estudar especificamente este espaço, ou as relações sociais que se estabelecem dentro deste espaço, mesmo que eventualmente pretenda compará-lo com outros espaços similares ou examinar em algum momento de sua pesquisa a inserção do espaço regional em um universo maior (o espaço nacional, uma rede comercial).29

Destarte, esses pontos nos mostram a interdisciplinaridade inerente entre História e Geografia, através de conceitos como “espaço”, “território”, “localização”, “região”. De maneira não apenas física, mas também propondo a circulação de um imaginário social e político, o espaço é reconstruído, um lugar ressignificado por pessoas e grupos que nele participam. A cidade pode funcionar como um ponto de alimentação para a memória e para a disseminação de um capital cultural. Desse ponto, devemos ressaltar a atuação da família Rosado na constituição geográfica da cidade, como abordado por José Lacerda Alves Felipe em suas pesquisas. Para ele, os Rosados se apropriaram das memórias do espaço mossoroense, de maneira que projetassem seus nomes e poder político, e ainda protegesse o espaço. O pesquisador buscou compreender os processos que levaram uma elite política a “reinventar”30 Mossoró através da apropriação desses marcos históricos e do uso da memória. De acordo com o autor Para os Rosados a memória é instrumento político que os mesmos usam para alavancar sentimentos de rebeldia, de resistência e de amor á liberdade, mas também, para impor conformidades e criar uma idéia de que eles são os predestinados pelas forças do passado a gerir essa sociedade e viabilizar os sonhos dos ancestrais que pensaram Mossoró como um centro cosmopolitano. 31

As identidades circulam e conflitam no cotidiano do local, com suas movimentações internas que estão sempre inseridas num conjunto maior, e elementos nem sempre estáticos. Produções culturais são vistas e ocultadas; o tempo é ainda mais maleável: controla e é controlado. A política se esbarra nos arranha-céus, pois os textos são circulados, apreendidos. O 28

BLOCH, Marc. Apologia da História, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. p. 153 30 FELIPE, José Lacerda Alves. A (RE)invenção do lugar: Os Rosados e os “País de Mossoró”. In: ROSADO, Carlos Alberto de Souza, MAIA, Isaura Amélia de Souza Rosado (Org). Os Rosado em Tese. Natal: Normalize: SerGraf, 2001. (Coleção Mossoroense, Série “C”, v. 1230) 31 Idem. p. 21 29

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discurso dos grupos não é mais o mesmo quando dito na praça: está do lado de fora, passível de repressões e interpretações. Esse meio constrói o homem, e este cria o seu meio. Isto é, ao historiador atento ao regional, observa-se para a interação “homem-espaço”. Para José D’Assunção Com a operação historiográfica, os estatutos se transfiguram, os objetos se deslocam. É desta maneira que o historiador se apropria de um espaço que até então não lhe pertencia, constituindo-o finalmente em seu território – produto de determinados poderes estabelecidos não apenas por ele, mas também pela sociedade que fala através de seu discurso para muito além do próprio historiador que o enuncia.32

Estudar sobre uma instituição, no caso a editora Coleção Mossoroense, significa também ampliar e, ao mesmo passo, reduzir o olhar, observando o espaço não apenas como físico, mas como lar do sensível, de devaneios, do racional e de mentalidades coletivas. Mas também não esquecer os jogos políticos e a invisibilidade do poder que circula na espacialidade. Quanto ao segundo capítulo que segue, procuraremos abordar mais sobre dois pontos: a relação entre espaço e subjetividade, através da literatura e de como a Coleção Mossoroense moldou os espaços da cidade de origem; e o papel da família Rosado, seus domínios e campos de influência que perfazem a necessidade de emplacar o seu nome para outros espaços, o que nos dá a ver como a Coleção fora recepcionada entre alguns meios intelectuais.

BARROS, José D’Assunção. História, região e espacialidade. Revista de História Regional 10(1): 95-129, Verão, 2005 32

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3 – COLEÇÃO MOSSOROENSE: ESPAÇOS, LITERATURA, PODER E MEMÓRIAS.

Na longa história das comunidades humanas, sempre esteve bem evidente essa ligação entre a terra da qual todos nós, direta ou indiretamente, extraímos nossa subsistência, e as realizações da sociedade humana. E uma dessas realizações é a cidade: a capital, a cidade grande, uma forma distinta de civilização.33

3.1. O poder da literatura e do livro na construção subjetiva do espaço.

Entendemos que uma construção espacial não passa apenas por questões geométricas, delimitações territoriais e pontos edificados por uma arquitetura, mas que também está, como já mencionamos, ligada às sensibilidades. Ao longo do tempo, diversas obras literárias foram importantes construtoras para uma imagem sobre o espaço34, pois a literatura nos fornece essa dimensão imaginativa que remodela as espacialidades, o concreto, o que é pensado como real que se torna, nas páginas escritas, algo pessoal e subjetivo. Através dos livros, da visão do autor e de uma intervenção editorial, podemos muitas vezes ver a cidade pensada como um lugar em que as emoções entram em colisão e de desejos que se esbarram, o que nos leva a criação de mitos, imaginários e identidades. Podemos assim pensar tanto no imaginário criado sobre o espaço geográfico quanto aquele que recorre à um campo de simbolismos. Como tentaremos demonstrar, a Coleção Mossoroense não está dissociada desses pontos. A cidade é assim um espaço material que nos dá a ver uma leitura sobre seu tempo, suas formações urbanas que nos levam de volta até o campo simbólico arquitetado pelo homem. Através da literatura, construímos esses arquétipos, no qual o indivíduo passa por um processo de invenção e reinvenção do seu local social através do tempo. O trabalho que aqui apresentamos está inserido num campo que nos fornece essa dimensão de interação do sensível com o urbano, que no caso é a História Cultural. Sandra Jatahy Pesavento foi, por exemplo, um dos grandes nomes que nos mostrou essa possibilidade das maneiras sensíveis de representar o real. De acordo com o pensamento da autora, cidades imaginárias são construídas através da literatura. A historiadora nos diz que “estas urbes 33

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 11. 34 Nesse ponto, acreditamos ser importante citar Jorge Amado e o clássico “Capitães da Areia”, representando espaços da cidade de Salvador e questões sociais da época. Não esquecemos de autores como Graciliano Ramos e José Lins do Rego, que nos fornecem, cada um a seu modo específico, retratos sobre um espaço nordestino e a vida do homem sertanejo, sua autonomia e fraquezas, em “Vidas Secas” e “Fogo Morto”, respectivamente.

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transfiguradas, desejadas ou temidas, verossímeis ou fantásticas, que apontam para outros mundos, os dos sonhos e pesadelos, constituem uma forma de leitura sensível da realidade”.35 Os livros e a literatura carregam, assim, o poder do escrito, de transportar a mente humana para as criações de um mundo fantástico e assim moldar uma realidade determinada. O espaço não é apenas percebido, mas pode ser sentido pelo sujeito em sua integralidade. Nos remetendo ao trabalho do filósofo e poeta francês Gaston Bachelard (1884-1962), o espaço possui sua poética, ele é vivido, é um “instrumento de análise para a alma humana”36. Em suas palavras, "O espaço compreendido pela imaginação não pode ficar sendo o espaço indiferente abandonado à medida e reflexão do geômetra. É vivido. E é vivido não em sua positividade, mas com todas as parcialidades da imaginação".37 Estes breves apontamentos nos levam a tratar da importância que escritos da Coleção Mossoroense tiverem na influência de uma formação imagética sobre a cidade de Mossoró, localizada no oeste do Estado do Rio Grande do Norte. Podemos inferir que não estamos tratando apenas de uma editora, mas de um modo de produção imaterial, uma vez que é produtora de sentidos sobre o outro e o seu local de origem, no imaginário sobre as memórias de marcos históricos. Destacamos aqui um fragmento da poesia “Mossoró”, com autoria de Beatriz Bandeira, presente em uma das plaquetas pertencentes à série B da Coleção, publicada em 2002. Nos diz o seguinte:

Mossoró, Mossoró, predestinada aurora, Pioneira de lutas precursoras Castigada e sofrida sentinela De históricas vigílias38

Essa breve passagem do poema em destaque nos demonstra a imagem de uma cidade pioneira e batalhadora, que mesmo com seus sofrimentos e castigos, nos aponta uma luz de liberdade em meio a seus conflitos. A poesia é, assim, uma arte que nos dá a ver a leitura de uma Mossoró que passou por várias provas para pensar-se como independente. Mais ainda: nos

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PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades imaginárias: literatura, História e sensibilidades. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Janeiro/ Fevereiro/ Março de 2009 Vol. 6 Ano VI nº 1 ISSN: 1807-6971 36 BACHELARD, Gaston. A Filosofia do não; o novo espírito científico; Poética do Espaço. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores). p.197 37 BACHELARD, Gaston. 1978. p.196 38 BANDEIRA, Beatriz. Mossoró e outras poesias. Fundação Guimarães Duque. Coleção Mossoroense. Série “B”. Número “2249”. 2002.

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dá a ler uma história que aparentemente necessita ser glorificada, reconhecida em outros lugares e intensificada. A própria autora do poema destaca, numa carta que está presente na mesma plaqueta (que é direcionada tanto a América quanto a Vingt-Un Rosado, mostrando a relação subjetiva entre autor-editor), que sente a cidade de Mossoró em estado de “ebulição, vibrando, fermentando”, indagando se é uma simples impressão de uma época de festejos do período ou, em suas palavras, “uma realidade de cada dia”. Isso nos mostra que muito pode ser retirado de apenas alguns versos, estes que demonstram um pensamento do autor – que no caso, já confirmado através dessa carta – da convicção de uma Mossoró próspera, com muito ainda para ser explorada. Em outra plaqueta intitulada “Despedidas e outras poesias”39, escrita pelo apodiense José Leite (Bacharel em Direito) e publicada em 1992, destacamos mais uma poesia com o nome de “Mossoró-RN”. O autor dedicou essa poesia a sua “querida Mossoró, no 102º aniversário da libertação dos escravos na cidade”.

Mossoró! Terra do Sol! Mossoró! Carnaubal! Mossoró! Terra de escol! Mossoró! Terra do Sal! Mossoró! Várzea e Chapada! Terra de Santa Luzia! Uma Terra Abençoada, Crescida com altaneria. Mossoró! Terra feliz! Terra onde Souza Machado Plantou a sua raiz Em um chão abençoado Mossoró! De água profunda! Mossoró! Do clima quente! Terra onde o petróleo abunda! Terra onde a água é fervente! Mossoró! Bela cidade! Mossoró! Terra querida! Mossoró! Da liberdade! Onde a escravidão foi banida. Mossoró! De oitenta e três! Mossoró! Que, em mutirão, 39

LEITE, José. Despedida e outras poesias. Coleção Mossoroense. Série “B”. Número “1155”. 1992.

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em setembro, e de uma vez, proclamou a abolição. Mossoró! Vento Nordeste! Que aparece toda tarde e fustiga o calor agreste que açoita toda a cidade Mossoró! Um simples rio! Mossoró! Poeira e pó! Mossoró! Calor e Frio! Mossoró! Mossoró! Mossoró!

O escrito de José Leite retoma claramente o processo histórico que culminou na abolição dos escravos no dia 30 de setembro de 1883, cinco anos antes da Lei Áurea.40 Na cidade, a propaganda abolicionista já havia começado um ano antes, em 1882, de acordo com Vingt-Un, sendo que em 6 de janeiro de 1883 foi fundada a Sociedade Libertadora Mossoroense por Joaquim Bezerra da Costa Mendes.41 A revisitação do acontecimento no poema apresentado reforça a imagem de Mossoró enquanto terra da liberdade, o que pode fazer com que a população tome para si algum sentimento de orgulho para com seu espaço, considerando que é uma data até hoje enaltecida na memória da cidade.42 Assim, pensá-la enquanto terra da libertação auxilia na construção de uma emancipação diante de outros povos e regiões, pois marcos históricos determinados podem ser apropriados por sujeitos como forma de legitimar seu discurso de posse sobre a memória, de fornecer bases argumentativas para salientar, ainda mais, o poder territorial sobre o outro. Esse acontecimento faz parte de sua formação identitária, está em seus registros, na cidade do passado que tende a retornar no presente, através da busca por testemunhos como o de José Leite, que embora de maneira subjetiva, produz uma imaterialidade que ressalta seu lugar e ajuda na manutenção de tradições, “na rememoração das vivências passadas, no mundo das coisas ditas”43.

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Há algumas cidades que realizaram o mesmo feito. A questão é que Mossoró não foi a primeira, no qual podemos questionar o que se pensa sobre “pioneirismo” na cidade. Foi no Ceará, mais precisamente na cidade de Redenção, que ocorreu a primeira abolição de escravos antes da Lei Áurea. Porém, a própria coleção tem, em seu vasto acervo, um número bastante considerável de textos que exaltam esse episódio em Mossoró, sendo Raimundo Nonato como um dos principais escritores. 41 ROSADO, Vingt-Un. Mossoró – Vingt-Un Rosado.2ª Ed. Fundação Vingt-Un Rosado: Mossoró, 2006. 42 Cito alguns exemplos: A construção e manutenção de lugares como o “Memorial da Resistência”, homenageando aqueles que estiveram presentes na resistência ao bando de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião – que até hoje figura como uma espécie de “símbolo” na percepção do outro sobre o Nordeste. 43 PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidade, espaço e tempo: reflexões sobre a memória. Fragmentos de cultura. Goiânia; V. 14, n. 9, p. 1595-1604, set. 2004

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O poema nos fornece também uma leitura sobre aspectos geográficos, tais como a terra árida e o clima do Nordeste. No ponto “e fustiga o calor agreste/que açoita toda a cidade”, Mossoró aparece como um personagem capaz de afastar esse clima quente da região, que maltrata seu povo. Uma visão profundamente heroica, que nos leva a pensar essa cidade enquanto um corpo ainda mais autônomo e aproximando-se de uma forma bela e perfeita. Ao chamá-la de “bela cidade/terra querida”, José Leite remete a pontos de uma construção estética do espaço, de um sentimento de pertencimento a um lugar. O poema constrói Mossoró enquanto uma espécie de lar, exaltando, também, enquanto terra abençoada e forte. Ainda sobre José Leite, é importante salientar outra característica presente em seu escrito: os aspectos econômicos mossoroenses, destacando-a não apenas como a terra do sal, mas também do petróleo. A cidade possui um dos principais pontos de extração de petróleo, sendo considerado como um dos maiores do Rio Grande do Norte. Há destaque também no campo da produção salineira, sendo responsável por boa parte da produção em território brasileiro. Destarte, acreditamos que a poesia destacada nos apresentou painéis para uma cidade, formas de ler e sentir uma região. Aspectos geográficos, econômicos, políticos e sociais são assim transformados em versos como uma maneira de reinterpretar o local através de uma outra linguagem, talvez mais acessível, pois uma poesia pode ser recitada, e isso nos remetendo aos modos de leitura do passado: uma leitura compartilhada, uma leitura que poderia chegar até aqueles que não pertenciam à uma cultura letrada, pois esses também são formadores da identidade local. O que buscamos com esses fragmentos é mostrar como escritos da coleção significaram o território mossoroense, edificando um espaço tanto para si quanto para a sua cidade. Diversos autores, de suas próprias maneiras, escreveram e disseram sobre seu lugar de fala. A coleção mossoroense pode ser assim pensada como uma instituição social, cultural, política e econômica, que durante um tempo forneceu uma estabilidade para os autores organizados por Vingt-Un Rosado vincularem textos literários e de cunho histórico, articulando também seus respectivos nomes, para serem não apenas lidos, mas conhecidos em outro contexto. Dessa forma, explorando Michel de Certeau, podemos debater aqui sobre o lugar social do sujeito: sua fala não está dissociada de seu tempo e local, ou seja, das características que o englobam, que permite e proíbe o que é dito, havendo assim um conjunto de práticas e de articulações dos termos e alterações espaciais, de uma linguagem à outra, que concernem ao autor organiza-las. Referindo-se a um dos ofícios do historiador, Certeau nos diz o seguinte:

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Ele pode transformar em cultura os elementos que extrai de campos naturais. Desde a sua documentação (na qual ele introduz pedras, sons etc.) até seu livro (em que plantas, micróbios, geleiras adquirem o estatuto de objetos simbólicos), ele procede a um deslocamento da articulação natureza/cultura. Modifica o espaço, da mesma forma que o urbanista, quando integra o campo no sistema de comunicação da cidade, o arquiteto quando transforma o lago em barragem, Pierre Henry quando transforma o rangido de uma porta em tema musical, e o poeta que altera as relações entre ‘ruído’ e ‘mensagem...’ Modifica o meio ambiente através de uma série de transformações que deslocam as fronteiras e a topografia interna da cultura. Ele ‘civiliza’ a natureza – o que sempre significou que a ‘coloniza’ e altera.44

Assim, destacamos que a palavra aqui é “alteração”: embora o fragmento esteja profundamente relacionado ao ofício do historiador e a técnicas específicas, pode muito bem ser transmutado até o campo dos literatos – como no caso dos autores das poesias aqui apresentadas – e para outros profissionais. Pois as poesias apresentaram marcos históricos locais em sua própria forma, deslocando-os para outras linguagens, fazendo com que o espaço, antes geométrico, matemático e profundamente físico, pudesse ser mostrado de maneira sensível, ainda que ressaltando uma imagem individualizada de Mossoró.

3.2. Lugares e domínios da Família Rosado

Como já exploramos, não se pode falar da criação da editora Coleção Mossoroense sem discorrer sobre o seu criador Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia. Ou, no caso, podemos até mesmo falar em “criadores”. Pois, nesse sentido, a família Rosado45 se constituiu ao longo do tempo como a principal oligarquia política da cidade de Mossoró – e assim a entendemos como os “criadores” de algo – expandindo suas relações de poder da esfera municipal, elegendo prefeitos da cidade, caminhando também em esferas maiores, a nível estadual e nacional. Os Rosados são assim conhecidos, estudados e criticados ao longo do tempo. Mas de toda forma, seu poder sobre o espaço, mais especificamente atuante em Mossoró, é efetivo. Assim como qualquer grupo político fortificado, busca defender seus interesses enquanto reveste a bandeira de preservação do bem estar social para a região. Assim, o poder, que quanto

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CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p.49 Uma pequena nota sobre os nomes de alguns dos filhos de Jerônimo Rosado é que correspondem aos números em língua Francesa, como “Dix-sept Rosado”, “Vingt-Un Rosado”, “Dix-huit Rosado”, sendo que o patriarca começou esse “processo de numeração” a partir de Tercio Rosado, seu terceiro filho, utilizando o Latim e o Francês. 45

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mais invisível mais funcional torna-se, atravessa os bairros da cidade, modifica os endereços, os nomes das ruas, os títulos das instituições, coordenando a uma reinvenção imagética do território. Somos assim levados a pensar no poder do “nome”, na força da partícula que se apropria de características históricas do seu local para financiar seus feitos. As memórias sobre os marcos históricos de Mossoró certamente não passaram despercebidas pelos Rosados. A criação de uma editora como a Coleção Mossoroense demonstra não apenas a necessidade de reunir essas memórias, documentos, mas de estabelecer um vínculo com os mesmos e assim passando o resultado dessa conexão para a população local, enaltecendo-os e criando a imagem de “país de Mossoró”. Destarte, talvez a própria população, ao se apropriar desse termo através de festas cívicas e outras comemorações ou até mesmo no seu cotidiano, reforça, em segundo plano, o poder dos Rosados. A família chegou em Mossoró no século XIX, com o farmacêutico paraibano Jerônimo Rosado. Na cidade, ele ocupou o cargo de intendente e presidente da intendência. Foi apenas no processo de redemocratização, no contexto pós-Estado Novo, que os filhos de Jerônimo, ou os “enumerados”, alçaram no cenário do poder político, ocupando cargos desde 1946, como mostra José Lacerda Alves Felipe46, configurando-se como uma das maiores forças políticas da cidade. Nesse caso, Jerônimo Rosado assumiu o cargo de intendente municipal e de presidente da intendência. Mais tarde, com a continuação do mando político Rosado, seus filhos procuraram se apropriar do nome de seu pai para perpetuar o sentido de continuidade. Podemos inferir que é em 1948 que começa uma série de construções intelectuais com o objetivo de desenvolver a produção cultural mossoroense, tais como a criação da biblioteca e do museu municipal e da própria Coleção Mossoroense. Nesse sentido, de acordo com Francisco Vanderlei de Lima:

Quando analisamos os esforços de realização cultural, com a criação da biblioteca municipal pública, museu municipal e um boletim bibliográfico, à semelhança do que constata Micelli, percebe-se que em Mossoró, na arregimentação de intelectuais para trabalhar nas instituições criadas pelos Rosado, não se configurou somente uma preocupação com a educação e a cultura; criar instituições de domínio intelectual traduz estratégias

FELIPE, José Lacerda Alves. A (RE)invenção do lugar: Os Rosados e os “País de Mossoró”. In: ROSADO, Carlos Alberto de Souza, MAIA, Isaura Amélia de Souza Rosado (Org). Os Rosado em Tese. Natal: Normalize: SerGraf, 2001. (Coleção Mossoroense, Série “C”, v. 1230) 46

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agregadoras de uma elite cultural na cidade. Nesse sentido, o vínculo às instituições transformou-se uma ligação à família.47

Essas instituições criadas pelos Rosado traduzem suas práticas, suas estratégias políticas para reforçar seu campo de atuação, estabelecendo essa conexão com o sujeito que delas usufrui. Interpretamos, então, que se torna indissociável ler algo da Coleção Mossoroense sem estar, de alguma maneira, ligado a um conjunto de normatizações dos Rosado: seja criticandoa ou aceitando-a. Entendemos que os livros da Coleção têm um objetivo cultural, mais ainda aqueles que ressaltam os nomes da oligarquia Rosado. Interessante nessa produção intelectual, foi notar a presença de textos que abordavam a família de maneira consideravelmente negativa, mas que ainda assim eram divulgados. Nesse ponto, destacamos que talvez o objetivo maior é realizar o espetáculo para os Rosado, ou seja, disseminar posições positivas e negativas, mas que tenham como centro “O Rosado”, como maneira de ser amplamente conhecido.48 Mostra-se um desafio problematizar a família Rosado, tão explorada ao longo do tempo por outros pesquisadores, mas que ainda assim chama a atenção por promover estratégias que perduram seu poder, mesmo quando não está, necessariamente, ocupando algum cargo político. O imaginário permanece rodeando os espaços da cidade, com a força de comparar estatutos e ações políticas. Destarte, a articulação de um imaginário comporta, de acordo com Sandra Jatahy Pesavento, “crenças, mitos, ideologias, conceitos, valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social. Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito”49. Ou seja, o sistema imagético produzido sobre a família estudada tem assim essa função de organização, de visualizar seus conflitos estabelecidos de outra maneira, de entender sentidos diversos sobre o real. O campo simbólico retorna ao real, ressignificando as práticas políticas e seus domínios. Sobre esse ponto de práticas políticas, Ana Maria Bezerra Lucas diz que a chegada da família Rosado ao poder do governo estadual foi dada de maneira precoce, considerando que a extensão do micro para o macro, ou seja, do poder local para o nível estadual, tornou-se mais comum apenas no período militar. Ao falar da projeção política, a autora diz que “os Rosado conseguiam na década de cinquenta, uma rápida e efêmera projeção estadual, com a eleição de 47

LIMA, Francisco Vanderlei. A polis circense: poder local e espetacularização do político em Mossoró/RN. João Pessoa/PB. Tese de Doutorado. UFPB, 2006. 48 Ver os trabalhos de FERNANDES, Paula Rejane. A Escrita de si do intelectual Jerônimo Vingt-Un Rosada Maia: arquivos pessoais e relações de poder na cidade de Mossoró (RN) – 1920 – 2005. Vitória, 2014. Tese (doutorado) Universidade Federal do Espírito Santo. FELIPE, José Lacerda Alves. A (re)invenção do lugar: os Rosado e o país de Mossoró. Revista Território. Rio de Janeiro, Ano VI, nº 10, p. 33-49, jan/jun, 2001. 49 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. 2ª Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. p.43

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Dix-sept Rosado para o governo do Estado [...]”50. De tal forma, interpretamos alguma “extemporaneidade” da família, que se deslocou no poder de maneira mais afrente que outras. Um dos pontos para a consolidação do domínio dos Rosado está no fator econômico, devido às indústrias de extração de gipsita, e suas relações com outras famílias, tanto a nível local quanto regional.51 Assim, as condições financeiras amplamente favoráveis e a capacidade de estabelecer boas conexões foram características que, digamos, estabeleceram seus primeiros campos de política e, partindo disso, levou a criar novos domínios, tanto geográfico quanto simbólico. Nos valemos novamente das palavras de José Felipe:

Portanto, para o grupo político e as elites citadinas e regionais que lhes davam apoio político, o medo de perder a capacidade de equilibrar o seu tempo, deixando de ser os controladores do cronômetro social dessas comunidades, era um risco real, e inverter essa tendência econômico-política remetia os Rosados e seus aliados para os caminhos da paixão, ou através das contendas eleitorais, ou, ainda, recorrendo ao imaginário e todos os seus rituais.52

Para não perder o controle social e político sobre o espaço, era assim necessário recorrer aos pontos de subjetividade da comunidade, aos rituais que perfazem seu tempo e caracterizam um povo determinado. Para os Rosado, bastava transformar o território mossoroense em um “lugar de memória”, ou seja, em um local no qual todos pudessem estabelecer um vínculo com seu passado de bravuras, dos ditos grandes feitos e das tradições. A intenção é manter essas memórias vivas, que permanecem atuais de alguma forma. De acordo com texto clássico de Pierre Nora:

A Memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. [...] A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente.53

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LUCAS, Ana Maria Bezerra. O mandonismo Rosadista em Mossoró. In: ROSADO, Carlos Alberto de Souza, MAIA, Isaura Amélia de Souza Rosado (Org). Os Rosado em Tese. Natal: Normalize: SerGraf, 2001. (Coleção Mossoroense, Série “C”, v. 1230) 51 NASCIMENTO, Lerisson. Notas sobre o poder local: A Família Rosado e a política em Mossoró/RN. Caderno de Campo: Revista de Ciências Sociais. Nº 12 (2009) 52 FELIPE, José Lacerda Alves. A (RE)invenção do lugar: Os Rosados e os “País de Mossoró”. In: ROSADO, Carlos Alberto de Souza, MAIA, Isaura Amélia de Souza Rosado (Org). Os Rosado em Tese. Natal: Normalize: SerGraf, 2001. (Coleção Mossoroense, Série “C”, v. 1230). p. 30. 53 NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, (10), dez, 1993.

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Os Rosado são assim mantedores das tradições locais, os conservadores de círculos e que se apropriam das memórias, dos feitos do passado de Mossoró como forma de prestar a sua própria imagem de revolucionários do presente. São capazes de inventar e reinventar estas mesmas tradições, de mantê-las vivas para que possam também serem eternizados nas memórias do lugar: eles definitivamente não têm o interesse de romper com o passado. Aqui, seria interessante apontar as palavras do historiador inglês Eric Hobsbawm, em “A Invenção das Tradições”, quando nos diz o que significa uma “tradição inventada”: Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade com um passado histórico apropriado.54

Essas tradições podem ser vistas através das páginas da Coleção Mossoroense. Notas diversas sobre marcos históricos, ressaltados através de diferentes estruturas e linguagens – em trabalhos acadêmicos, literatura, poesia, contos etc, sendo que o mesmo processo histórico pode ganhar uma abordagem estrutural diferente, o que não deixa de ser um caso de imposição da repetição do acontecimento. A Coleção pode assim ser visualizada como esse meio de ligação simbólico dos Rosado no arriscado jogo temporal entre passado e presente, ou seja, uma espécie de “túnel” que, além de projetar o nome de uma oligarquia e produzir documentos históricos, faz com que essa mesma família operacionalize com o passado da cidade de acordo com seus interesses e formalize suas instituições e domínios no presente.

3.3. Um possível intercâmbio entre a cultura popular e a cultura letrada em Mossoró

Trabalhar com os termos de cultura popular e o de cultura letrada pode, as vezes, ser deveras complexo, mais pela multiplicidade de conceitos que aparecem no vasto campo de operacionalização historiográfica. Porém, entendemos que ambos são importantes para o presente estudo, uma vez que podemos começar a verificar, através da Coleção Mossoroense, esse intercâmbio existente entre estas culturas distintas, no qual, dependendo das problemáticas levantadas, podemos ser lançados para novas formas de ver as práticas culturais mossoroenses

54

HOBSBAWM, Eric. RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. p. 10

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– ou até mesmo da existências de novas delas – bem como suas influências na editora aqui trabalhada. Podemos inferir partindo de nossos estudos, que a Coleção Mossoroense a distribuição de seus livros, realizados de maneira gratuita, propuseram o início de uma edificação da cultura letrada no seu local. Dessa maneira, propomos que o projeto da Coleção de desenvolvimento dessa cultura letrada leva como consequência o abarcamento da cultura popular da cidade, uma vez que o poder da oligarquia Rosado atinge toda a população, de uma forma ou de outra. Assim, recorremos a um texto de Roger Chartier “Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico”55, publicado num seminário em 1992. O escrito chama atenção pelas duas categorias que aborda a cultura popular: a primeira a concentra com autonomia e no caminho inverso de uma lógica imposta pela cultura letrada; e o segundo está relacionado às relações de força, ou seja, da cultura popular dependente da cultura letrada. Interpretamos que os Rosado fazem parte dessa postura erudita, de estabelecer essa conexão com o popular e prestar esse sistema de dependência com a cultura das massas. Portanto, nos termos de Chartier, o que mais poderia caracterizar a relação das intenções políticas dos Rosado com a população de Mossoró seria a segunda categoria. A dificuldade aparece na articulação do popular com o erudito em relação à coleção através do objetivo da própria editora na circulação do texto e do seu discurso político de dominância. A cultura popular de Mossoró pode assim ter se apropriado das práticas discursivas da cultura erudita, talvez num sentido de imposição dessas práticas do segundo grupo em relação ao primeiro, este que por sua vez vê sua identidade sendo fragmentada. E assim nos perguntamos para quem servia a Coleção Mossoroense, quais os agentes que recebiam suas obras, como funcionava esse intercâmbio com a população, ou seja, de como as construções intelectuais de um grupo político e por consequência de uma editora, chegavam até o povo. Identificar o intento da editora em desenvolver a cultura letrada da região está, aparentemente, bem definida em sua proposta: fazer com que mais pessoas conheçam a sua própria cultura, desenvolvam esse sentimento de orgulho pelo seu local através do escrito. A questão que não fica exatamente clara em nossas leituras está na relação da editora diretamente com o povo, com uma cultura menos abastada, mas que através das leituras que tivemos e demonstramos nesse trabalho, parece ter sido um instrumento político controlado pelos Rosado,

55

CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Revista Estudos Culturais, Rio de Janeiro, Vol 8, nº 16, 1995, p. 179-192

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com a “partícula do nome” impondo suas práticas. Talvez seja importante destacar uma pequena parte do texto de Chartier para elucidar essas questões:

O destino historiográfico da cultura popular é portanto ser sempre abafada, recalcada, arrasada, e ao mesmo tempo, sempre renascer das cinzas. Isto indica, sem dúvida, que o verdadeiro problema não é tanto datar seu desaparecimento, supostamente irremediável, e sim considerar, para cada época, como se elaboram as relações complexas entre formas impostas, mais ou menos constrangedoras e imperativas, e identidades afirmadas, mais ou menos desenvolvidas ou reprimidas.56

Assim, não podemos pesquisar sobre essa relação da editora com a cultura letrada e isolar como a cultura popular recebeu e recebe esses feitos. Afinal, elevaram Mossoró imageticamente ao status de “país”, termo que ao longo do tempo foi transmutado em diferentes formas e conteúdos, sendo que a própria população mossoroense parece se apropriar desta liberdade que o termo “país” a concede (retomando espetáculos como o “Chuva de Balas no País de Mossoró”, por exemplo), pensando-se como autônoma em relação até mesmo à capital do Estado, Natal. A identidade coletiva popular se presta assim ao uso e a uma reutilização de termos e memórias do espaço, que reforçam a imagem de uma cultura unificada em Mossoró, ou seja, de uma cidade (ou país, no imaginário) bem vista, moderna.

3.4. Espaço de comentários: a coleção mossoroense vista pelo outro

Uma cidade se individualiza com relação às outras, ela personifica atitudes e modos de existir, dos homens e do meio ambiente, transformando-se no tempo, alterando a superfície do seu espaço, mas, apesar de todas as transformações que, inexoravelmente sofre, uma cidade deve encontrar seus deuses.57

A abordagem do tópico que segue foi o que, basicamente, norteou o início dessa pesquisa, pois ao manejar os livros da Coleção Mossoroense, notamos uma enormidade de escritos que possuíam poucas páginas. Alguns até mesmo possuíam uma única folha de texto, o que nos levou a pensar sobre quais os motivos que levavam autores a escreverem apenas uma página, e mais ainda: qual o motivo que levava a editora a publicá-la? Esses e outros questionamentos, que procuraremos diluir nas páginas que seguem, foram de grande valia para

56

Idem. p.181. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades Visíveis, Cidades Sensíveis, Cidades Imaginárias. Revista Brasileira de História. São Paulo, ANPUH, vol. 27. n. 53, Jan-jun., 2007. 57

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a ideia do trabalho, uma vez que nos proporcionou uma nova dimensão na leitura da Coleção, de Vingt-Un Rosado e da cidade de Mossoró. As chamadas “plaquetas” se constituem assim como a principal fonte do nosso intento, pois nesses livretos diversos autores – da literatura, geografia, história e etc. – deixaram suas respectivas marcas sobre aspectos de Mossoró e região, e ainda sobre Vingt-Un Rosado e a própria editora. Podemos falar assim na existência de comentadores sobre as produções culturais da editora, que muitas vezes poderiam funcionar como idealizados e receptores do conteúdo. Ao escrever sobre a Coleção Mossoroense, estavam não apenas participando do campo de estratégias intelectuais dos Rosado, mas dando a ver leituras sobre uma realidade social concreta: a editora estava sendo classificada, dividida de maneira interna e externa inserida dentro desse mundo social específico. Destarte, ao realizar comentários sobre os livros, estamos nos propondo não apenas ao papel de personagens que recepcionam e funcionam como críticos da obra, mas para decifrar códigos do mundo social, como nos diz Roger Chartier “são estes esquemas intelectuais incorporadores que criam as figuras graças às quais o presente pode adquirir sentido, o outro torna-se inteligível e o espaço ser decifrado”.58 Ainda na esteira dos comentários e das formas de recepção do livro, podemos citar o conceito do historiador Robert Darnton, o de reação do leitor, que se mostra por uma perspectiva diferente daquela apresentada por Chartier – sendo este mais culturalista que o primeiro. Darnton nos leva a uma aproximação com o social, demonstrando a dimensão histórica da leitura em diferenças períodos. Porém, o historiador também alerta um fator de suma importância para aqueles que se debruçam sobre a questão da construção dessa reação do leitor:

Em suma, há de ser possível desenvolver uma história, bem como uma teoria da reação do leitor. Possível, mas não fácil, pois os documentos raramente mostram os leitores em atividade, modelando o sentido a partir dos textos, e os próprios documentos também são textos, o que requer interpretação. Poucos têm uma riqueza tal que possa fornecer um acesso, mesmo que indireto, aos elementos cognitivos e afetivos da leitura, e um ou outro caso excepcional talvez não seja o suficiente para se reconstruírem as dimensões internas dessa vivência. Mas os historiadores do livro já trouxeram à luz grandes quantidades de informações sobre a história externa da leitura.59

58 59

CHARTIER, Roger.1988, p.17 DARNTON, Robert. 2010, p. 171.

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No fragmento em destaque, Darnton alerta para o que se constitui como ainda o principal entrave aos historiadores do livro: a busca pela reação dos leitores ao texto, pois em muitos casos os registros são poucos ou quase inexistentes, de difícil captura da sensibilidade, de um processo de subjetivação de si e do seu espaço, principalmente se estamos falando dos modos de leitura em uma cultura popular. De certa forma, como já evidenciamos no primeiro capítulo, o italiano Carlo Ginzburg, que embora não seja um historiador das práticas de leitura, obteve êxito ao realizar essa tarefa de reação, tendo acesso à documentação que mostrava as ideias e as leituras de Menocchio, o excêntrico personagem de “O Queijo e os Vermes”60, que o auxiliou a pintar esse quadro de um sujeito em conflito com as ideias do seu tempo. No caso específico da Coleção Mossoroense, procuramos, nessa pesquisa, trabalhar com a ideia de “comentários”: ver o que diferentes autores de áreas diversas escreveram sobre a editora e seu criador. Inicialmente, a proposta seria trabalhar com os processos de recepção dos seus livros na cidade de Mossoró/RN, mas está se mostrou uma tarefa árdua para o estágio de graduando – em termos de tempo e recursos – e os documentos pareciam demasiadamente escassos para a feitura temática, muito embora não deixe de ser uma grande possibilidade de pesquisa futura. Por esse sentido, também somos levados a pensar sobre as dimensões de criação do texto, o que leva determinado autor a escrever e uma editora a realizar essa publicação, pois há questões de conflito no processo criativo e nas intenções do texto com as próprias intenções de um grupo maior. De acordo com Chartier:

[...] é preciso, portanto, reconhecer a tensão importante entre as intenções explícitas ou implícitas, que levam a propor um texto a leitores numerosos e as formas de recepção deste texto, que se estendem, frequentemente, a registros completamente diferentes.61

Destarte, o estudo sobre esses processos de comentários e repercussões sobre a Coleção Mossoroense nos fornece essa dimensão da mobilidade literária na cidade e de como está atinge outros espaços, o que nos leva a trata-la como um meio de comunicação: ao passo em que se desenvolve no seu local, comunica suas produções, o nome dos Rosado e de Mossoró para outros lugares62. 60

GINZBURG, Carlo. O Queijo e os Vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. CHARTIER, Roger. Cultura Popular: revisitando um conceito historiográfico. Revista Estudos Culturais, Rio de Janeiro, Vol 8, nº 16, 1995, p. 179-192 62 A presença da Coleção Mossoroense na 11ª Bienal Internacional do Livro, realizada em São Paulo no ano de 1990, também elucida uma vontade de seus organizadores de mostrar essas produções em outros locais. De 61

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América Rosado, esposa de Vintg-Un, escreveu uma plaqueta intitulada “Repercussões da Coleção Mossoroense”, publicada em 1995. Em seu escrito, ela destaca que a coleção editou livros de interesse nacional, sendo seus títulos bem procurados pelas universidades brasileiras, com edições presentes na Universidade de São Paulo (USP) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo. Entre os depoimentos abarcados por América Rosado, destaca-se o de Jaime Hipólito Dantas, jornalista e escritor, que fora um dos primeiros nomes publicados pela Coleção

É de ver que com pouco essa fauna editorial emplacará seus 41 anos de existência e ninguém dirá que não seja algo de espantar em termos já nem se diga de Mossoró ou de Nordeste, mas até de Brasil. E mais digno de nota ainda é que quem deu início a essa luta há 37 anos é o mesmo herói que a frente dela o encontra e que não é outro senão Vingt-Un Rosado (O Poti, 01.06.1986).63

O texto remete à ampliação da editora, não mais limitada ao espaço mossoroense, mas abarcando o país de maneira geral. Outro ponto: Jaime Hipólito Dantas, assim como muitos outros, não mede esforços para ressaltar a representação de Vingt-Un enquanto um herói. Muitos os escritores que ainda produziram esse imaginário sobre Vingt-Un, que será explorado um pouco mais à frente, mas que de antemão nos lembra a proposta tradicionalista da História do século XIX: de estudar os feitos dos ditos grandes homens. Como percebemos, os Rosado não estão dissociados dessa proposta tradicionalista. Seguindo essa linha, ainda na mesma plaqueta escrita por América Rosado, temos o seguinte comentário de Raimundo Nunes, datado de 1985:

Fato inédito na história editorial brasileira: Sem dotações orçamentárias regulares, sem fundos de destinação específica, sem qualquer outra forma de financiamento ou doação disciplinada em lei ou regulamento, Vingt-Un comanda uma fabulosa massa de publicações. Já se aproximando de oitocentos títulos editados, disseminando cultura regional. A ‘Coleção Mossoroense’ e a ‘Fundação Guimarães Duque’ que dirige com a proficiência do mestre, a probidade do justo, a obstinação do idealista, atestam a portentosa tarefa realizada e ao mesmo tempo inconclusa, porque sua pertinência não respeita obstáculos e seu ideário desconhece fronteiras.64

acordo com Paulo Medeiros Gastão, a missão “seria levar a Coleção Mossoroense para ser exposta e divulgada da forma mais abrangente que poderíamos conceber. A coragem estava acima de nossas possibilidades” (Série “B” – Número 824 – Ano: 1990). Uma narrativa quase idílica. 63 ROSADO, América. As Repercussões da Coleção Mossoroense. ETFRN/UNED de Mossoró (Coleção Mossoroense, Série “B”, Nº 1291, Agosto de 1995). 64 ROSADO, América. 1995, p.4

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As linhas anteriores se referem ao que podemos chamar de um segundo tempo da coleção65, mas dá a ver um certo caráter “todo poderoso” do texto, como diz Chartier, ou seja, um caráter todo poderoso da editora e do imaginário da coleção sobre alguns círculos intelectuais. Possibilita uma leitura externa sobre o seu contexto de inserção, da importância de estudo das editoras e dos seus projetos que mobilizam sujeitos na identificação com o espaço. No caso específico da Coleção Mossoroense, em muitos casos títulos foram editados mesmo com a ausência de adequações financeiras e recursos de pessoal para tal intento, como pode ser visto mais recentemente no terceiro tempo da Coleção, quando estava nos domínios da Fundação Vingt-Un Rosado desde a década de 1990. Mesmo sendo um período de grande produção66 diversos problemas estruturais da Fundação Vingt-Un Rosado e o descaso do poder público.67 O fragmento mais uma vez remete à imagem de Vingt-Un enquanto o herói solitário da cultura mossoroense que desconhece o significado da palavra “limite” e leva a pensar sobre a autonomia e força da editora, com o autor destacando seus feitos como exclusivos na história editorial brasileira, deixando de lado até mesmo construções de editoras como a Civilização Brasileira e a Brasiliense, por exemplo, que também foram de grande destaque no cenário nacional durante o século XX, principalmente no contexto repressivo do golpe-civil militar que assolou o território brasileiro em 1964.68 Assim, o autor Raimundo Nunes aborda a Coleção de uma maneira ainda mais individualizada, interpretação esta que temos de vários outros autores que transportaram a editora de Mossoró para uma ilha imaginária, um campo discursivo que impera silenciosamente sobre todos os demais. Esse aspecto individual não persegue apenas a editora em si. Vejamos o seguinte:

Faz pouco fui indagado sobre a Coleção Mossoroense. Não houve dúvidas sobre a resposta: é obra de um só homem. Sem pararelo no Nordeste e talvez no Brasil. Com esta coletânea, praticamente se confunde seu criador e mantenedor. São mais de 1.700 títulos sob a égide da persistência, do amor ao livro, da responsabilidade de quem sabe que tem que acordar vocações, que 65

Como já abordamos no primeiro capítulo. Ver o primeiro capítulo, tópico 2.3 “as páginas de uma editora”. 67 É necessário explicar que boa parte do acervo da Coleção Mossoroense está hoje alocada no Museu Municipal Lauro da Escócia, bem como todo o acervo pessoal de Vingt-Un Rosado. O problema é a ausência de estrutura e de pessoal qualificado para lidar com os livros. Lembrando que este trabalho foi escrito e apresentado no ano de 2016, onde até o momento o poder público municipal não havia se manifestado sobre o estado dos livros da Coleção. 68 Por esse viés, um trabalho que tem sido um suporte para nossas pesquisas é a tese de Andréa Lemos Xavier Galucio, “Civilização Brasileira e brasiliense: trajetórias editoriais, empresários e militância política”. 66

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apresentar soluções para a caatinga, além de historiar suas estiagens [...] (Caatinga, Esam, 1990).69

Esse depoimento de Marcos Antonio Filgueira explica bem esse caráter individual. A coleção mossoroense, interpretamos, passa a ser a criação de um único homem, e não de um grupo de escritores, de pessoas nos bastidores que figuram como empresários, consumidores e produtores do material da coleção, dos responsáveis pelas criações das políticas editoriais e etc. O tom individualizante do depoimento de Raimundo Nunes nos leva a questionar a editora diferenciada das demais, como uma espécie de “ilha” imaginária criada pelos Rosado, mas que opera para comandar conjunturas intelectuais. Passa a ser, também, a grande porta-voz das secas no Nordeste brasileiro, no sentido de que reúne grandes documentos sobre esse fenômeno climático na região, e nesse ponto, ainda é pertinente a proposição do geografo brasileiro Aziz Nacib Ab’Saber (1924-2012), de que a coleção é uma referência no estudo sobre as secas no Nordeste. Nelson Werneck Sodré (1911-1999), muito embora não tenha falado diretamente sobre a Coleção, deixou o seguinte comentário em carta para Milton Pedrosa: “É espantoso que você tenha sido reeditado em Mossoró e que lição de cultura dá a velha cidade”70. Nesse caso, a frase do historiador brasileiro ajuda a ressaltar a imagem de Mossoró enquanto terra ou “capital da cultura”, no qual a sua disseminação auxilia nesse jogo simbólico e como forma de consagrar ainda mais Vingt-Un. E como já fora problematizado, o processo de editoração está profundamente ligado ao desenvolvimento cultural de Mossoró, ao reforço dessa edificação discursiva e imagética ao longo do tempo. Raimundo Nonato, por sua vez, prefere destacar Vingt-Un enquanto um historiador e proletário, como um professor mossoroense, o “amigo da cidade e porta-voz de seus problemas de publicação, agente dos seus livros e dos seus trabalhos de pesquisa”71. A primeira imagem, de Vingt-Un enquanto proletário, de certa maneira entra em contradição não apenas com o tradicionalismo de orientação direitista dos Rosado, mas também com a própria imagem do herói. Ele nos diz o seguinte:

O grande historiador Vingt-Un Rosado, o homem milagre, o operário das letras mossoroenses, o feiticeiro das grandes iniciativas com que consolidou, 69

ROSADO, América. As Repercussões da Coleção Mossoroense. ETFRN/UNED de Mossoró (Coleção Mossoroense, Série “B”, Nº 1291, Agosto de 1995). p. 02. 70 Idem. p.03 71 ROSADO, Vingt-Un. Minhas Memórias da Batalha da Cultura: Livro III. Fundação Vingt-Un Rosado. Coleção Mossoroense. Série “C”, Volume. 1174. Abril de 2001.

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no tempo e no espaço, as histórias da batalha da cultura, a grande, esplendida realização, que nem todos os mortais podem aspirar (Rio, 1987)

De certo, Vingt-Un desempenhava no imaginário social dos escritores e amigos abarcados por ele, essa arquitetura do vasto empreendedor dos espaços, o que poderia lhe valer diversas profissões, ainda que não no sentido formal: seu colegas escritores o nomeavam em diferentes profissões, ainda que o próprio não se considerasse nenhuma delas. Por esse sentido, a Coleção Mossoroense, por sua vez, poderia ser visualizada como o local em que as relações subjetivas eram dadas, uma vez o próprio Vingt-Un publicava escritores que, em alguns casos, não eram aceitos por outras editoras72, e tiveram até mesmo o seu primeiro texto publicado através da coleção, como foi o caso de Jaime Hipólito Dantas, Dorian Jorge Freire, José Lacerda Alves Felipe, Raimundo Soares de Brito, Lauro da Escóssia73 e etc. Interpretamos assim que esses comentários tem um viés de retribuição de favores, uma faceta que esconde uma intenção maior, porém decifrável. No entanto, é importante frisar que mesmo com os comentários positivos, mesmo sendo a editora com maior número de títulos publicados no país, a Coleção Mossoroense começou a demonstrar problemas internos já na década de 1990, quando estava sob a égide da Fundação Vingt-Un Rosado. Interpretamos isso a partir das leituras dos jornalistas Dorian Jorge Freire (1933-2005) e Caio César Munis. O primeiro publicou sobre uma possível “Morte” da Coleção Mossoroense, em texto originalmente lançado em 1994 através do jornal Gazeta do Oeste, e posteriormente em formato de plaqueta com o título A Morte da Coleção Mossoroense, em 1997. Nele, tece alguns comentários sobre o discurso de Vingt-Un para a XX Noite da Cultura de Mossoró: Mataram aos poucos e muitos a cultura, segundo Vingt-Un. Executaram o Museu da Memória para que fosse tudo esquecido. Depois atingiram com a metralhadora giratória a notável Coleção Mossoroense, retirando-lhe o papel. Botaram na rua as Academias Mossoroenses de Letras e Norteriograndense de Ciências e a União Brasileira de Escritores – e fez-se ouvir a frase nazista: ‘quanto eu ouço a palavra cultura, saco logo meu revólver’. Acéfala a Fundação Guimarães Duque, que não é bom homenagear cabeças. Apelou-se inutilmente para os governos municipal e estadual, para o irmão de Dix-Sept aqui, ali para o filho de Otto e neto de Felipe Guerra. Inutilmente... Nem a comunidade da cultura, a inteligência, respondeu ao ultraje. Preferiu encolher-se e ficar com sua indiganaçãozinha escondida. Cadê o protesto das duas Academias, do 72

Embora não seja regra ou um sistema de exclusividade, pois alguns eram publicados em outras editoras. ROSADO, Vingt-Un. Alguns comentários sobre a Coleção Mossoroense. Coleção Mossoroense, Série “C”, nº 1166. 1992 73

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ICOP, da Universidade, nada, necas. ‘A Morte da Coleção Mossoroense não comoveu Mossoró’. Sequer foi sabida por Mossoró. Assim termina uma obra que surpreendia os povos civilizados.74

Interpretamos que o relato demonstra a insatisfação com as instituições na maneira de condução do campo cultural mossoroense. Porém, não devemos deixar em branco o radicalismo e um romantismo caracteristicamente exacerbado, até mesmo pelo uso do termo “morte”, o que seria até mesmo um descredito ao poder de circulação dos livros, como se os produtos culturais não passassem por diferentes formas ao longo do tempo. Ou seja, o livro não morre, mas muda de formato: o texto permanece pois tem esse caráter poderoso sobre nossas práticas, além de necessitarmos dele para orientação no tempo. Retomamos a obra de Ray Bradbury, Fahrenheit 451, no qual cada parte do livro é memorizado por indivíduos que vivem fugindo da repressão de sua sociedade específica. Esse exemplo tomado pode muito bem mostrar a capacidade de transmutação do texto e do suporte do livro. Falar em morte da obra é prematuro, é por finalmente adquirir a perspectiva teleológica e linear: o livro não tem início, meio e fim. E sim autores, leitores e interpretações. Já em janeiro de 2001, Caio Cezar Munis publica o texto Coleção Mossoroense: é hora de parar? no qual destaca a trajetória de Vingt-Un à frente da coleção, delegando culpabilidade à população de Mossoró, aos intelectuais e os homens da cultura que não valorizam os livros de sua terra, o povo que não sabe reconhecer os seus heróis. Aqui, interpreta-se que sua narrativa consegue ser um pouco mais radical que a apresentada anteriormente, mas ainda assim de suma pertinência na análise de como os escritores e outras pessoas por trás da coleção pensavam sua relação com a cidade. Sobre essa “hora de parar”, destacamos a seguinte parte:

É assim, as vezes, que vejo a luta do professor Vingt-un Rosado à frente da sua Coleção Mossoroense, essa que tem repercussão nacional e internacional, que é reconhecida por alguns veículos do centro-sul do País, mas que muitos mossoroenses tentam convencer- me de que nem sabem que existe. Não saber da existência da Coleção Mossoroense, em Mossoró, é não saber que esta é a maior coleção de títulos publicados no Brasil (mais de 3000 publicações), é ignorar que mais de 1200 escritores têm seus trabalhos

74

FREIRE, Dorian Jorge. A Morte da Coleção Mossoroense. Fundação Vingt-Un Rosado. (Coleção Mossoroense, Série “B”, Nº 1422, Setembro de 1997)

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publicados bem aqui, embaixo dos seus narizes. É, em suma, virar as costas para a sua própria cultura, e isso é inadmissível.75

Não deixa de ser um paradoxo interessante no que corresponde à esfera cultural, com mais precisão aos processos de leitura. Os livros, ao menos de acordo com a fala do Caio César Muniz durante aquele período, são bem mais reconhecidos fora de Mossoró. Evidente que é um escrito também romantizado, exaltando a imagem de Vingt-Un, aqui caracterizado como maior que a cidade. Mas atentamos que a coleção aqui estudada pode ser lida como uma das responsáveis por cunhar a ideia de Mossoró enquanto um país, por prestar a uma individualização que, também paradoxalmente, à comunica para outros espaços vizinhos. Os entraves em sua produção evidenciam o esquecimento não dos heróis, mas de escritos que auxiliaram na formação cultural do espaço. Mas devemos salientar que os livros sobrevivem. Os mais diversos escritos são deslocados de seu lugar, e sua materialidade76 carrega um poder de convencimento capaz de produzir outros discursos e modificar o arranjo de sociabilidades determinadas. São sempre partilhados, dando a ver um conflito entre estratégias literárias que perfaz um circuito complexo de escritores, editores e leitores. Assim, novamente recorremos a Chartier, quando o historiador francês nos diz que “o que é necessário reconhecer são as circulações fluidas, as práticas partilhadas que atravessam os horizontes sociais”.77 O capítulo seguinte, que pretende ser o último do presente trabalho, tem por objetivo abordar os pontos sobre esse esquema conceitual de circulação, apropriação e representação presentes em Chartier e que nos auxiliam para entender o processo de editoração da Coleção, nos levando também a questionar as construções identitárias sobre o “país de Mossoró” e a participação de Vingt-Un na edificação da cultura local. Destarte, procuraremos evidenciar as contradições entre o “homem ajuntador de papeis” que se dizia ser, e o intelectual, historiador e herói da cultura mossoroense que um círculo de amigos, escritores e acadêmicos construíram para a imagem dele. Tais pontos nos ajudam a entender as identidades da espacialidade mossoroense. 75

MUNIZ, Caio César. Coleção Mossoroense: É Hora de Parar? Fundação Vingt-Un Rosado. (Coleção Mossoroense, Série “B”, Nº 1911, Janeiro de 2001) 76 Esse ponto abarca questões relacionadas às formas de mediação editorial, mais precisamente na forma de divulgação do texto ao público, que pode ir do impresso à digitalização, o que também modifica a maneira como entendemos nossas produções no tempo. Aqui, talvez mister divulgar a importante relação da informática com a História no que concerne à digitalização de livros, ao compartilhamento deles em arquivos chamados “pdf”, ou “Portable Document Format” (Formato Portátil de Documento). 77 CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 134.

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4 – CIRCULAÇÃO DAS PALAVRAS, PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS: VINGTUN, SEUS LIVROS E A EDIFICAÇÃO DE UMA IDENTIDADE CULTURAL Cada livro, cada volume que você vê, tem alma. A alma de quem o escreveu, e a alma dos que o leram, que viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro troca de mãos, cada vez que alguém passa os olhos pelas suas páginas, seu espírito cresce e a pessoa se fortalece. [...] Cada livro que você vê aqui foi o melhor amigo de um homem.78

4.1. Mediações editoriais e circulação na Coleção Mossoroense Como Zafón escreveu, cada livro é o melhor amigo de um homem. O indivíduo busca em si e no outro, formas de representar o seu mundo e prestar um significado às suas experiências. Os livros, a literatura e as práticas de leitura funcionam como pontos condutores na formação de novas subjetividades, na sustentação de ideias coletivas e individuais, no constructo de projetos políticos – como vimos no caso da família Rosado – na representação de determinado espaço, na denúncia de aspectos sociais e econômicos de um tempo... ou simplesmente como fonte de diversão. Mas para que possa ser apreciado pelo público, todo e qualquer livro e autor passam por mediações editoriais, que perfazem os campos internos e externos da obra, questões estas que também possuem suas dimensões históricas, uma vez que o editor é uma figura construída durante as revoluções industriais do século XIX, mais precisamente nos anos de 1830 – havia “editores” antes, muito embora não fossem caracterizados como tal, ganhando essa alcunha apenas no oitocentos. De acordo com Roger Chartier, “trata-se de um profissão de natureza intelectual e comercial que visa buscar textos, encontrar autores, liga-los ao editor, controlar o processo que vai da impressão da obra até a sua distribuição”.79 A imagem do editor, assim como descrita por Chartier, une assim uma composição de empresário com intelectual, pois também precisa estabelecer essa relação de jogos com o mercado, com outros editores e empresas, ou seja, reconhecer as campanhas administrativas em seu ofício. Mas ao mediar o livro entre o autor e leitor, perfaz também a figura do intelectual, que não se limita na formatação do texto, mas em adicionar ou retirar de sua estrutura e conteúdo. Mesmo a atividade de edição possui um lugar social, que permite e também proíbe. No caso, é o editor que passará a ser uma espécie de detetive da obra que tem em mãos, e com

78 79

ZÁFON, Carlos Ruiz. A Sombra do Vento. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p.09 CHARTIER, Roger. A Aventura do Livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP,1998. p. 50

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um olhar macro e micro, realiza a análise da obra prestes a ganhar uma circulação. Afinal, o seu nome também está veiculado ao livro. Ao pensar sobre a imagem do editor em nossa temática, logo nos remetemos à VingtUn Rosado a frente da Coleção Mossoroense. Ele foi o idealizador da editora, responsável por unir autores em seus círculos e auxiliar numa disseminação da cultura letrada em Mossoró. Os textos da Coleção compreendem as mais diversas temáticas: da agricultura, geografia, folclore, arqueologia, biografias, economia, poesia e contos, até chegar aos trabalhos acadêmicos e os documentos históricos e literários da região. Percebemos o caráter plural de Vingt-Un durante essa necessidade de abarcar conteúdos e prestar uma mobilidade literária para o seu espaço. Enquanto editor do maior apanhado de títulos do país, Vingt-Un age assim como um interventor, um mediador, ou como o “editor da caatinga”, como se refere Geraldo de Margela Fernandes em seu texto80. O editor é assim aquele responsável por edificar uma forma ao texto, por construir um suporte, não apenas intelectual, mas material, e assim participando na formação de significados. Destarte, a mediação editorial comporta da materialidade do texto, até a intervenção direta no mesmo, em caso de introduzir ou retirar virgulas, pontos, parágrafos e etc. Quem nos demonstra isso em seu discurso é Chartier. Em suas palavras: [...] o processo de ‘publicação’ dos textos implica sempre uma pluralidade de espaços, de técnicas, de máquinas e de indivíduos. Portanto, trata-se antes de tudo de encontrar quais foram as diferentes decisões e intervenções que deram aos textos impressos suas diferentes formas materiais.81

Há outros sujeitos por trás da Coleção da Coleção Mossoroense, muito embora a figura de Vingt-Un seja a de grande destaque. Podemos comentar até mesmo as ações de sua esposa, América Rosado, em escrever para a Coleção e em reunir textos com comentários fazendo alusão ao trabalho de Vingt-Un82. Ou seja, América poderia funcionar como um importante suporte intelectual para o exercício prático de Vingt-Un Rosado, uma espécie de força que operacionalizava nos bastidores de editoração, não tendo um papel tão secundário na empreitada organizada por seu marido. Esse processo de editoração até o momento da publicação também passa por sistemas de patrocínio, ligações com empresas e pessoas com alguma influência, o que perpassa os três 80

FERNANDES, Geraldo de Margela. Vingt-Un: um editor da caatinga. In. FELIPE, José Lacerda Alves (org).Vingt-Un: o intelectual e o cidadão. Natal/RN: EDUFRN, 2004. 81 CHARTIER, Roger. Desafios da Escrita. São Paulo: Editora Unesp, 2012. 82 ROSADO, América. As Repercussões da Coleção Mossoroense. ETFRN/UNED de Mossoró (Coleção Mossoroense, Série “B”, Nº 1291, Agosto de 1995).

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tempos da coleção mossoroense.83 Destacamos o segundo tempo da coleção, quando esteve sob a égide da Fundação Guimarães Duque. Em uma plaqueta intitulada “Alguns comentários sobre a Coleção Mossoroense”, de 1992, o próprio Vingt-Un diz que ela foi a responsável pela “movimentação editorial de Mossoró”84, denunciando a inexistência do quadro pessoal da Fundação. Em seu texto, ele descreve o seguinte:

A FGD tem um presidente há 12 anos, sem salário, exatamente como os dois conselhos que constituem a Fundação, o conselho técnico científico, que elege o presidente e o conselho de curadores. O quadro de pessoal da Fundação Guimarães Duque simplesmente não existe. Dois funcionários da Escola, Raniele Alves da Costa (faz o 2º grau) e Ana da Conceição Juvencio da Rocha (não concluiu o 1º grau) estão cedido à fundação. [...] A coleção Mossoroense aproveita as sobras de tempo.85

Essa movimentação editorial passa também por suas dificuldades, desde a parte de recursos de pessoal até o financeiro, como podemos ver de acordo com o relato de Vingt-Un. Ele nos mostra que mesmo com muitos intelectuais caracterizando a coleção como ofício de um único homem86, havia claramente outros colaboradores e instituições formais por trás da construção da Coleção Mossoroense enquanto essa editora com certo porte na cidade de Mossoró. Mesmo com as limitações presentes, a coleção Mossoroense continuava seus processos de circulação, aproveitando as “sobras de tempo” nas palavras de seu mentor. Assim, ao longo de seu tempo, mesmo com os constantes entraves, muitos foram os autores que tiveram seu primeiro texto editado e publicado na Coleção. De acordo com pesquisa feita por Caio César Muniz, foram cerca de 300 escritores87. Na mesma plaqueta, escrita por Vingt-Un Rosado, ele nos diz “que o primeiro livro é como o primeiro amor, ninguém o esquece”88. Essa dimensão subjetiva que os relatos de e sobre Vingt-Un nos fornecem pareciam estar bem consolidadas no projeto editorial da Coleção Mossoroense, especialmente por não tratar o livro como “coisa para o mercado”, algo apenas materialmente produzido, mas possuidor de significados e produtor de imaginários. Interpretamos que o livro, para Vingt-Un, não era um objeto, mas um 83

Essas questões foram debatidas durante o primeiro capítulo. ROSADO, Vingt-Un. Alguns comentários sobre a Coleção Mossoroense. Coleção Mossoroense, Série “C”, nº 1166. 1992 85 ROSADO, Vingt-Un. 1992, p.3 86 Como pode ser visto no último tópico do capítulo anterior. 87 A qual também já destacamos alguns nomes no último tópico do capítulo anterior, tais como João Batista Cascudo Rodrigues, Benedito Vasconcelos mendes, o próprio César Muniz e etc 88 ROSADO, Vingt-Un. A Coleção Mossoroense e sua História de 56 anos de teimosia. Fundação Guimarães Duque. Série “B”, Número “2711”, junho de 2005. 84

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produto cultural que se eterniza nas mentes de seu editor e do escritor, mas principalmente do seu público que receberá essas novas memórias escritas. No entanto, deve-se salientar que entre editor e autor existe um circuito de comunicações amplo e complexo, que passa por influências intelectuais até os estados sociais e econômicos do contexto, chegando no campo publicitário e das políticas editoriais, do copyright, ou seja, das propriedades e direitos do autor, até os deveres e intervenções diretas e indiretas do editor. São questões internas que perfazem o interesse de publicação e disseminação da obra, e que estão intimamente ligadas a esse circuito comunicacional. Para Robert Darnton, por exemplo, esse circuito começa nessa relação que vai de autor ao editor, chegando ao impressor, aos distribuidores e aos vendedores, e por fim no leitor. Para o historiador, o leitor é o sujeito que encerra esse circuito devido ao campo de influência que operacionaliza no autor, antes e depois do processo de escrita. Pensamos, então, que os estágios de transmissão de um texto são demasiadamente amplos, porém necessários para entender as formas como as obras eram postas a uma circulação. Nesse caso, Darnton nos descreve o seu exemplo quando estudo a história editorial de Questions sur I’Encyclopédie, de Voltaire: Pode-se estudar o circuito de sua transmissão em qualquer ponto – por exemplo, no estágio de composição, quando Voltaire deu forma ao texto e orquestrou sua divulgação para promover sua campanha contra a intolerância religiosa, conforme mostraram seus biógrafos; no estágio de impressão, em que a análise bibliográfica contribui para estabelecer o número de edições; ou no ponto de sua penetração nas bibliotecas, onde, segundo estudos estatísticos de historiadores literários, as obras de Voltaire ocupavam uma parcela impressionante do espaço nas estantes.89

Darnton nos ajuda a entender esse circuito criado pela Coleção Mossoroense90 em seu local de origem, mas também em outros espaços, uma vez que como já falamos a editora também se fez presente fora de Mossoró91. Dessa maneira, atentemos para a necessidade de frisar que os livros da coleção eram distribuídos de maneira gratuita – além de enviados para universidades e bibliotecas – e que apenas em ocasiões mais especiais como as chamadas “noite

89

DARNTON, Robert. O Beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 128 90 Mesmo que hoje, durante esta pesquisa, nós não tenhamos acesso ao complexo de documentos que Darnton teve ao estudar a obra de Voltaire, uma vez que consideramos desde o início de nossa pesquisa a impossibilidade de trabalhar com a parte do “leitor” da cultura popular, de qual sua reação diante dos textos. Como expomos no segundo capítulo, recortamos e trabalhamos com a ideia de comentários e de como os intelectuais pensaram a coleção e seu editor. 91 Ver os dois primeiros capítulos deste trabalho, no qual essa ideia é também desenvolvida.

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da cultura”92 que eles eram vendidos, e ainda assim por preços módicos. Levantamos, partindo de nossas leituras, o provável caráter doutrinário do projeto de Vingt-Un a frente de uma editora: no sentido de reforçar ainda mais características de um local específico. Lembramos também que o próprio Vingt-Un enviava livros para seus amigos mais próximos, reforçando assim os seus círculos de amizade, o que também poderia significar um esforço em termos de proveitos políticos para a sua editora. Mas, provavelmente, dentro desses aspectos de circulação, um dos pontos que mais chama atenção na história de editoração da coleção mossoroense foi Vingt-Un ter, por diversos momentos, realizado empréstimos financeiros para continuar o processo de funcionamento de sua coleção e assim continuar lançando autores e suas produções. Não à toa é um sujeito pensado com tamanha obstinação por muitos dos que conviviam com ele, e mesmo considerando que os livros da coleção não forneciam algum retorno financeiro. Como mostramos, a transmissão dos livros não tinha apenas uma faceta cultural, mas também econômica e política. Essa circulação modificava a dinâmica social de um espaço cultural, considerando que as próprias Noites da Cultura foram criadas no final do segundo para o início do terceiro tempo da Coleção e como forma de promover os novos títulos editados e funcionando também como uma maneira do grande público ter acesso às obras, além de prestar algum sustento para um período em que a editora começava a produzir sinais de desgaste. A circulação do escrito impresso é produtora de sentidos plurais e singulares, e mais ainda: constroem as representações. No caso, para entender melhor esse conceito de circulação, vamos até a pesquisa de Chartier, que está mais alocada no Antigo Regime. Ele busca compreender como nos séculos XVI a XVIII, essa circulação “modificou as formas de sociabilidade, autorizou novos pensamentos, transformou as relações com o poder”.93 Não tão diferente no caso da Coleção, uma vez que ao enviar livros para fora do Estado, também está criando um novo sistema de circulação que remodela os poderes da família Rosado e de como Mossoró passa a ser conhecida por alguém ou um grupo de pessoas que não estão identificadas com as práticas culturais e uma identidade do Nordeste, historicamente estereotipada94.

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Eventos que começaram a serem realizados ainda no período em que a Coleção Mossoroense estava patrocinada pela Fundação Guimarães Duque, e que continuaram com a criação da Fundação Vingt-Un Rosado. Uma forma de ressaltar a cultura mossoroense, vender os livros da Coleção e ainda lançar ao público os novos títulos da editora. 93 CHARTIER, Roger. O Mundo como representação. Revista Estudos Avançados, 11(5),1991. 94 Como muito bem trabalho por Durval Muniz de Albuquerque Junior em “A Invenção do Nordeste e outras artes”, nascente de sua tese de doutorado na década de 1990 e desde então se tornando uma referência para estudar o fenômeno da construção identitária da região, em seus aspectos espaciais e sensíveis.

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A Coleção não fez circular apenas os seus livros, mas forneceu outros modos de leitura para uma história da região, ou ao menos disseminando-a, ultrapassando grupos sociais específicos e hierarquias, pois de acordo com Chartier, “o que é necessário reconhecer são as circulações fluidas, as práticas partilhadas que atravessam horizontes sociais”.95 Nesse sentido, continuamos seguindo as palavras do historiador francês para explicar esse complexo mundo do texto e do leitor, quando o mesmo nos fala sobre os contrastes e a sua necessidade de reconhecimento para a pesquisa nesse campo:

Contrastes igualmente entre as normas de leitura que definem, para cada comunidade de leitores, usos do livro, modos de ler, procedimentos de interpretação. Contrastes, enfim, entre as expectativas e os interesses extremamente diversos que os diferentes grupos de leitores investem na prática de ler. De tais determinações, que regulam as práticas, dependem as maneiras pelas quais os textos podem ser lidos, e lidos diferentemente pelos leitores que não dispõem dos mesmos utensílios intelectuais e que não entretêm uma mesma relação com o escrito.96

Os contrastes podem gerar uma outra série de categorias: as representações. Representar algo é, de acordo com Pesavento, a “presentificação de um ausente: é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência”.97 As representações estão carregadas de simbolismo, ou seja: as páginas de um texto da coleção mossoroense pode dizer muito mais, e uma única página de agradecimento de um autor a outro, presente na série “B”, no caso sendo uma plaqueta, pode transmitir um sentido oculto, jogos de poder, enfrentamentos e etc. Vamos a um exemplo do poder presente na estrutura e no conteúdo de um livro da coleção, que no caso destacamos uma plaqueta da série “B” intitulada “Gilberto Freyre e Mossoró”98. Rapidamente criamos um sistema de ideias sobre o título, que de uma forma ou de outra causa uma representação, pois na força, em primeiro momento, a reconhecer socialmente aquela produção, nos mobiliza a uma legitimidade intelectual e pensamos “qual a relação que Gilberto Freyre estabeleceu com a cidade de Mossoró?”. No entanto, ao realizar a leitura da plaqueta escrita por Vingt-Un, identificamos três pontos: a relação de Freyre não foi diretamente com Mossoró, mas com Vingt-Un, quando este recebeu das mãos de Freyre a Medalha do Mérito da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais; de que Gilberto Freyre 95

CHARTIER, Roger. Textos, impressos, leituras. In: A História Cultural: entre Práticas e Representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988. p. 134. 96 CHARTIER, Roger. O Mundo como representação. Revista Estudos Avançados, 11(5),1991. p.179 97

ROSADO, Vingt-Un. Gilberto Freyre e Mossoró. Fundação Vingt-Un Rosado. Série “B”, Número: 2719, Julho de 2005. 98

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não esteve realmente em Mossoró – embora tenha sido convidado, não compareceu por motivos de saúde, de acordo com Vingt-Un – mas sim o seu filho, Fernando Freyre; e por último, a plaqueta destaca as ações de Fernando Freyre em solo mossoroense. Esse exercício de crítica à fonte nos leva a dois pontos: a Coleção Mossoroense não construiu apenas a representação da “cidade enquanto nação independente”, mas desde o título até o formato dos seus livros, procura provocar quem deles se apropria. A plaqueta sobre Gilberto Freyre parecia ter dois objetivos: fortalecer a identidade e o campo intelectual de Mossoró utilizando o nome de um dos maiores interpretes do Brasil; e o outro, provavelmente o mais evidente, de trazer a luz um outro feito de Vingt-Un, que carrega o nome “Rosado”. Portanto, temos todo um conjunto de práticas culturais que perfazem as partes internas e externas da Coleção. Uma editora como essa, no porte de considerada a maior em número de títulos do país, não está dissociada dos meios comunicativos de produção, operando até numa espécie de reinvenção destes, uma vez que a Coleção Mossoroense é responsável também por espetacularizar sua cidade como um país. 4.2. Vingt-Un: o intelectual e o “ajuntador de papeis”

Jerônimo Vingt-Un Rosado Maia. Além do nome, além de ser considerado como o grande intelectual da família Rosado, foi o responsável por cunhar o termo “país de Mossoró”, e por dissemina-lo na coleção mossoroense. Provavelmente, dissertar que Vingt-Un era uma figura enigmática seria cair no lugar comum da fala sobre alguma personalidade política e social, mas de toda forma inevitável: sem santifica-lo, é preciso dizer que ele carregava consigo uma série de contrastes, que nos levava a pensa-lo como o obstinado editor e escritor, do mantedor da cultura mossoroense e intelectual incansável – como muitos o caracterizam – ou simplesmente como o “ajuntador de papeis”, como ele mesmo se representava. Estivemos diluindo sua imagem durante os últimos capítulos, mas o nosso propósito específico aqui é mostrar essas várias facetas do mesmo homem, na maneira como se representava e era representado, não como forma de continuar uma edificação de si, mas sim para mostrar o homem por trás do emaranhado de livros. Vingt-Un Rosado parecia ser um sujeito de muitos adjetivos, porém dois deles nos chamam a um cuidado de análise: o de amigo e o de “instituição”. Ernani Rosado, sobrinho de Vingt-Un, em texto intitulado “Vingt-Un Rosado, o amigo”, toma uma posição substancialmente subjetiva, caracterizando o criador da Coleção como “uma instituição

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indelevelmente inserida na paisagem cultural e científica do Rio Grande do Norte, tal sua gama de realizações”. O grau de parentesco, o qual o próprio autor destaca, é certamente um ponto para escrever algo dessa forma. Mas a palavra chave que se configura aqui é a de “instituição”: a sua imagem passa a ser uma espécie de costume, uma estrutura inerente ao social, adquirindo funções que ultrapassam a de um indivíduo comum, ou da figura de um editor. A construção de sua imagem é tamanha que ela não cabe em uma cidade, mas sim no “país de Mossoró”. Estamos falando aqui de um indivíduo que navegava entre contrastes diversos, entre o “intelectual” que o projetaram, o editor obstinado e o herói mossoroense. No entanto, há também as narrativas que o sujeito constrói para si mesmo, ou seja, uma espécie de exercício autobiográfico. Sobre esse ponto, a Paula Rejane Fernandes nos diz que Vingt-Un Rosado realizou esse exercício através da Coleção Mossoroense, construindo seu autorretrato.99 A historiadora destaca um texto presente no livro IV da série “Minhas memórias da Batalha da Cultura”, estruturando-se na base de perguntas e respostas. É interessante observar no relato de Vingt-Un sobre si que ele busca, mesmo que de maneira minimalista, desconstruir os títulos a qual muitos autores durante o tempo projetaram para ele: o de historiador, antropólogo, arqueólogo, cientista social, escritor e etc. Busca assim edificar a imagem de um homem simples, que apenas estava a serviço da cultura e não pelo provável sucesso. Na análise do texto que referenciamos, Vingt-Un diz que é apenas um “amigo de papeis velhos”100, mas também reforça a imagem do trabalhador pela cultura mossoroense. Seus relatos mostram a operação dessa força persistente para que a cidade de Mossoró passasse por um processo de reconhecimento do outro. E embora qualificasse sua inteligência como “medíocre”101, era esse o homem que aos poucos procurava reconfigurar os espaços culturais da cidade, não apenas através da própria Coleção Mossoroense, mas também com o seu sonho de criar uma Universidade em Mossoró, o que acorreu através da Escola Superior de Agricultura de Mossoró, a ESAM, fundada em 1967, a qual foi diretor. Vingt-Un deixa claro o seguinte sobre a instituição: “diria que ela nasceu da minha obstinação”102. A ESAM foi fundada durante o período da ditadura civil militar no Brasil (1964-1985), e no caso mais precisamente durante o governo de Arthur Costa e Silva (1899-1969), com mandato de 1967 a 1969. Foi durante esse período que foi criado o Ato Institucional número 5 FERNANDES, Paula Rejane. Vingt-Un Rosado: o “ajuntador de papeis”. Revista Escrita da História. Ano I – vol. 1, n. 2, out./mar. 2014-2015. 100 ROSADO, Vingt-Un. Minhas Memórias da batalha da Cultura (Livro IV). Fundação Vingt-Un Rosado. Série “C”, Volume 1175. Abril de 2001. 101 ROSADO, Vingt-Un. 2001, p. 152 102 Idem. p. 150. 99

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(AI-5), considerado como um dos mais repressivos do regime militar devido a suspensão de direitos políticos, atuação na censura dos meios de comunicação, cassação de mandatos e a tortura como arma ainda mais fortificada pelo Estado. Nesse interim, muitos foram os intelectuais que procuraram o exílio como o único caminho viável. Esse ponto do governo Costa e Silva deve ser destacado para entender esse contexto de criação da ESAM, uma vez que o próprio Vingt-Un também menciona o governante da época em seu auto retrato, comentando a vinda dele à Mossoró. Vingt-Un escreveu o seguinte comentário:

O presidente Costa e Silva, que teve pecados a nível nacional, mas foi insuperado na História de Mossoró, como o seu maior benfeitor, viria, trazido por Dix-Huit para inaugurar a Escola de Agronomia e os muitos trabalhos que este realizava aqui no Rio Grande do Norte. O presidente chegaria a 13 de dezembro, mas só pôde faze-lo a 22. Foi uma linda festa e o presidente não se conteve e lavou o rosto com água mineral e termal que chegava das lonjuras dos mil metros do arenito açu inferior, lá perto do Japão.103

Vingt-Un não parecia ser o tipo de intelectual que procurava ser módico em seus relatos, buscando ser bastante detalhista, ao mesmo passo que um tanto crítico e estratégico quando necessário. Ressalta os “pecados” de Costa e Silva frente ao contexto social e político brasileiro, mas logo em breve deixa claro as contribuições do governo para o Estado. Vingt-Un aproveitou assim a boa aliança existente entre Dix-Huit Rosado, que também auxiliou na fundação da ESAM, para trazer Costa e Silva à cidade, um ocorrido que muito pode nos levar a questionar qual era a relação entre as oligarquias políticas do Rio Grande do Norte com a ditadura militar: qual era o alcance de espetacularização do político exercido pelos Rosado a nível Estadual e, porque não perguntar, também Nacional? Assim, mesmo que seja uma questão para ser melhor problematizada em outra pesquisa, nos perguntamos como essa ideia do “país de Mossoró” se manteve durante esse período repressivo de nossa História, ou seja, de como os Rosado desenvolveram seus espaços e alianças políticas. Destarte, com esses pontos em mente, Vingt-Un criava seus próprios lugares e representações, que poderiam complementar ou não com os lugares sociais criados para ele. Mesmo não sendo, era um homem que transitava entre diferentes profissões, embora não tivesse formação em nenhuma delas, mas o seu imaginário enquanto um “servidor” da cultura

103

Idem. p. 152.

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mobilizava os demais a sua volta para o mesmo intento: para pesquisar cientificamente, selecionar, classificar, realizar divisões temáticas, mas que perfizessem Mossoró. Dessa maneira, ele estabelecia um critério de seleção em relação à sua editora. Enquanto editor, e retomando questões propostas no primeiro tópico deste capítulo, Vingt-Un funcionava assim como um interventor: embora buscasse auxiliar os autores menos experientes, havia o que poderia e o que não seria publicado na coleção mossoroense, e mesmo na aprovação do texto, poderia haver limitação não apenas em sua estrutura, suporte e meio de vinculação, mas também no conteúdo. Nas palavras de Paula Rejane Fernandes, era Vingt-Un que escolheria o que seria ou não produzido:

E, por meio do seu processo de seleção, indicava e apresentava os autores e os assuntos que deveriam ser lidos. Neste exercício de escolha, Vingt-un também se colocava como um intelectual, pois, foi o seu olhar que filtrou o que era interessante ou não. E ao fazer isso, ele criava o seu lugar dentro da academia e dentro da cidade de Mossoró e aos poucos ia sendo construído o seu lugar de intelectual preocupado com a ciência e com a cidade.104

Vingt-Un pode ser imaginado como um homem dos lugares, sempre estando em um processo de si mesmo, no qual passava por uma constante mudança pois assim suas próprias criações exigiam isso. Se descrevia como o homem que saia de porta em porta buscando livros para doações, que doava os títulos da Coleção e que tinha pouco a oferecer em termos estritamente políticos – no qual deixa claro sua honestidade105 –, mas muito em termos intelectuais – a seu autorretrato nos ajuda a entender como ele se representava enquanto uma espécie de “soldado” da cultura mossoroense. Dessa forma, muitos foram os relatos de outros escritores e intelectuais que agradeciam a Vingt-Un por terem recebido livros da Coleção Mossoroense, o que reforçava esse círculo subjetivo nos bastidores da coleção, com consequências no processo de editoração e quais textos poderiam ser ou não publicados. Para ilustrar essa questão, temos o escrito “Vingt-Un: em outros depoimentos”, uma compilação feita por América Rosado, no qual buscava-se destacar a figura de Vingt-Un diante dessa rede de amizades criada.

FERNANDES, Paula Rejane. Vingt-Un Rosado: o “ajuntador de papeis”. Revista Escrita da História. Ano I – vol. 1, n. 2, out./mar. 2014-2015. 105 “Perdi a eleição para prefeito em 1968. Foi um bem que me fizeram. Tinha prometido realizar mil obras e terminaria o mandato de pé no chão. Devo ao Ministro Aluizio Alves esta gentileza.”, contou ele em: ROSADO, Vingt-Un. Minhas Memórias da batalha da Cultura (Livro IV). Fundação Vingt-Un Rosado. Série “C”, Volume 1175. Abril de 2001. 104

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Assim, os favores de Vingt-Un eram também retribuídos, em sua maioria, por intermédio de textos publicados na Coleção, numa estratégia editorial que mostrava o interesse de ressaltar ainda mais o imaginário de seu criador. Eram questões subjetivas que perpassavam os interesses editoriais de produção, ou seja, uma troca de favores que poderia estabelecer um ritmo diferenciado para a Coleção Mossoroense, que assumia uma forma no momento de escolher quais as obras a serem publicadas. Esse círculo de amizades e trocas mutuas parecia ser uma característica em Vingt-Un, o que reforça a imagem de “mecena”106, a qual a sua esposa, América, o intitulou em uma das plaquetas: ele funcionava como uma espécie de patrocinador da arte de escrever e publicar livros. E assinalamos que, mesmo havendo um homem por trás de uma editora, havia um grande suporte ao lado do próprio Vingt-Un. América Rosado, sua esposa, desempenhou um importante papel na produção intelectual, seja auxiliando Vingt-Un ou produzindo para a própria coleção. O papel intelectual de América é importante no sentido de entender os seus motivos para expor relatos: para criar memórias, eternizar o herói, reinventar os espaços da editora, criar Mossoró para a cultura. Como destacamos em suas duas obras aqui trabalhadas, ela fez uma reunião de textos ressaltando a imagem de Vingt-Un. Destacamos aqui o relato do bibliotecário e professor Edson Nery da Fonseca (1921-2014), que diz o seguinte: Meu caro Vingt-Un Rosado, muito lhe agradeço os livros – quantos livros! – que teve a bondade de me enviar durante o ano passado. Ainda recentemente, em debate na Universidade Federal da Paraíba, apontei Mossoró como exemplo a ser seguido por todas as bibliotecas municipais do Brasil. Brevemente lhe enviarei uns trabalhos meus que acabam de sair mas dos quais os editores não me enviaram exemplares.107

Além do estabelecimento de um vínculo social e político, esse relato, datado de 1980, aponta Mossoró como um exemplo de cidade a ser seguida em termos da criação de políticas para o desenvolvimento de uma cultura letrada. O texto de que Mossoró era uma cidade exemplar em termos culturais ganhou o seu próprio lugar social inserido no discurso do outro, tamanha as políticas exercidas pela família Rosado, e no campo intelectual especificamente por Vingt-Un, que seu palco de influências se estendeu e criou uma espécie de “personalidade” cultural para a cidade. Esse estado era bem visto, tal como no relato do escritor Américo de

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ROSADO, América. As Repercussões da Coleção Mossoroense. ETFRN/UNED de Mossoró (Coleção Mossoroense, Série “B”, Nº 1291, Agosto de 1995). 107 ROSADO MAIA, América Fernandes (org). Vingt-Un: em outros depoimentos. Coleção Mossoroense. Volume: CCXXXII, 1982.

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Oliveira Costa (1910-1996), agradecendo a doação de livros da coleção que ampliaram seu acervo “particular de estudos a respeito desse fabuloso e estranho país que é a tua terra de Mossoró”108. Ou seja, já na década de 1980, quando a presente obra organizada por América Rosado foi publicada, a imagem de “país de Mossoró” já parecia estar relativamente bem consolidada em alguns meios. Cunhada pelo próprio Vingt-Un Rosado, a expressão “País de Mossoró”, que de uma certa maneira guia a nossa pesquisa, é algo demasiadamente enigmático, complexo de ser explorado, isso por alguns motivos. Primeiramente, estamos falando de uma cidade localizada geograficamente no Oeste potiguar, no interior do Rio Grande do Norte, com uma população estimada, isso no ano de 2016, em cerca de 291.937 pessoas, de acordo com números do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)109, mas que se quer desligada da República Federativa do Brasil. Historicamente, carrega consigo os imaginários de uma terra libertadora, acolhedora e que nada teme. Essa construção imagética perdurou, o que nos leva ao segundo ponto: hoje, falar “país de Mossoró” se tornou algo comum entre a população, muito embora ocorra de poucos conhecerem sua origem. Em entrevista concedida à revista Preá, sob o título “o realizador de sonhos” e publicada em setembro de 2003, Vingt-Un explora mais dessa questão do “país” – embora não utilize propriamente o termo – o pioneirismo no estudo a respeito da existência de petróleo em Mossoró, seu amor por América, a criação da ESAM, sua paixão por livros e o seu pouco tempo na política. Falando sobre a ideia de criar a coleção, ele diz de maneira sucinta “O museu estava funcionando, a biblioteca também. Aí eu disse: ‘Todo museu faz publicações’. Então inventei a Coleção Mossoroense.”110 Durante essa entrevista, é perguntado a Vingt-Un sobre o nível de reconhecimento da Coleção, se ele acha que no Rio Grande do Norte ela tem a devida importância. Responde com uma única frase: “Aqui no RN... Acho que não”111, o que nos dá subsídios para pensar que o mesmo homem responsável por colocar em circulação a imagem da cidade enquanto país, não viu reconhecimento em seu próprio lugar, mas sim de fora. Sobre esse ponto, Vingt-Un destaca um ocorrido:

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ROSADO MAIA, América Fernandes (org), 1982, p. 31 De acordo com as informações extraídas em < http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=240800&search=rio-grande-do-norte|mossoro> Acessado em: 03/12/2016. 110 PREÁ: Revista de Cultura. O realizador de sonhos: entrevista com Vingt-Un Rosado. Natal/RN, Fundação José Augusto, setembro de 2003. p. 42 111 PREÁ: Revista de Cultura, 2003. p. 43 109

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Só não publico quando não tenho dinheiro, o que é muito freqüente. Vou lhe contar uma história dos ricos daqui de Mossoró: Minha esposa estava fazendo um mutirão, arrecadando valores em dinheiro a partir de 10 reais. Então, um homem, que é talvez um dos mais ricos de Mossoró, disse: – ‘Coleção Mossoroense?... Nunca ouvi falar nisso. Em que você vai empregar esses 10 reais?’ Ela desligou o telefone.

Esse trecho nos leva a uma reflexão sobre o que nos diz Vingt-Un e o próprio papel da Coleção Mossoroense em seu local, mas que também demonstra uma ausência de conhecimento sobre as produções culturais em Mossoró, que auxiliavam na sustentação histórica e geográfica da região. Se representando enquanto o maior apanhado de títulos do país, apreciado por diferentes escritores e intelectuais no Brasil, não obtinha um espaço de reconhecimento no seu próprio lugar, o que não deixa de ser contraditório e uma perda para o fortalecimento da identidade local, isso considerando uma cidade que vende a bandeira da cultura e do progressismo. Observamos esse alcance no outro, no que está fora de Mossoró, quando analisamos uma carta do escritor Jorge Amado (1912-2001), com quem Vingt-Un também desenvolveu uma relação afetuosa. Essa carta também está presente no compêndio organizado por América Rosado, e foi escrita em abril de 1982, ainda quando a Coleção estava sob o seu segundo tempo, ou seja, sob o domínio da Fundação Guimarães Duque.

Caro amigo Vingt-Un Rosado: Há muito estou para lhe escreve, transmitindo-lhe meus agradecimentos pelos livros – em geral excelentes – editados pela benemérita Fundação Guimarães Duque, que o querido amigo me tem enviado. [...] Aproveito para renovar ao caro amigo a expressão de minha estima e admiração.112

Essa carta endereçada para Vingt-Un, de um dos maiores escritores de nossa literatura, ajuda a explicitar o quão grande era edificada a imagem do editor da Coleção Mossoroense, na sua rede de conexões amplas e fluídas, no qual observa-se um respeito mútuo. E embora não esteja presente explicitamente no discurso de Jorge Amado, Mossoró está presente nas entrelinhas: a identidade intelectual de Vingt-Un vem sendo construída de maneira indissociável ao da própria Coleção Mossoroense113 e da própria cidade de Mossoró. Interpretamos que o sujeito não está assim apenas ligado ao seu lugar, mas em muitos casos se projeta como o próprio lugar. Essa é a uma construção identitária, que também se vê presente 112 113

ROSADO MAIA, América Fernandes (org), 1982, p. 139 ROSADO MAIA, América Fernandes (org), 1982, p. 67

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em outras formas de relato, tais como os sonetos. Em 1980, Cosmo Lemos criou um soneto dedicado à Vingt-Un, a qual reproduzimos:

Vingt-Un Um nome escrito, hoje, em toda parte Onde estiver um NORTERIOGRANDENSE, Falando ao professor de “ENGENHO E ARTE”, Mandando abraço ao MOR Mosssoroense. É um nome de MESTRE que convence Pelo exemplo sem fuga, sem descarte, na missão do dever que a si pertence cumprindo, sempre atento, cada encarte da função, com o AMOR À HUMANIDADE. Traz, dentro de si a chama da verdade Iluminando a fé em seu caminho. Receba assim meu parabém sincero, Numa extensão aos seus, que muito os quero, GENTE, AFINAL, QUE É SEU REAL CARINHO.

O objetivo do soneto era oferecer as devidas felicitações que o autor pensou que VingtUn era merecedor, autor este que também recebeu doações114 do organizador de livros. VingtUn era esse mestre humanista, com um carinho pelas páginas impressas, apaixonado pelo livro em si, na “missão do dever que a si pertence”, carregando o nome de um dos responsáveis pelo desenvolvimento da cultura letrada em sua região. Portanto, não parecia ser o homem que fugia do que pensava ser seu dever, e embora não se considerasse um escritor (por não saber escrever, ele dizia), ao menos se considerava um “ajuntador de papeis velhos”.

4.3. Os atores, os autores e as palavras: alguns personagens e narrativas da Coleção

Muitos foram os autores que tiveram seus primeiros escritos publicados pela Coleção Mossoroense. Como já destacamos no segundo capítulo, em uma pesquisa realizada foram cerca de 300, número este corroborado pelo próprio Vingt-Un na entrevista à revista Preá. De acordo com o próprio mentor da coleção, o primeiro trabalho a ser publicado pela Coleção foi

“Recebi emocionadamente uma biblioteca de livro, que foi lida e meditada, numa imensa admiração pelo seu valor trescalante de humanismo, lutando pela grandeza de sua terra e de sua gente”. ROSADO MAIA, América Fernandes (org), 1982, p. 71 114

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“Família Camboa”, autoria de Francisco Fausto115, que ao lado da história de Mossoró escrita pelo próprio Vingt-Un, configuraram-se como as publicações que abriram as portas da coleção em 1949. Só depois que apareceu o “Notas e documentos para a História de Mossoró”, escrita por Câmara Cascudo , tendo sua primeira edição no ano de 1955. Em outubro de 1999, Caio César Muniz publicou uma plaqueta116 com a lista de todos os 350 autores que a Coleção Mossoroense teve a responsabilidade de publicar os seus primeiros escritos. Se trata de diferentes estilos de escrita, temáticas que nem sempre estão ligadas à Mossoró, mas que eram publicadas por Vingt-Un, prestando assim um significado plural para o projeto de sua editora. Destacamos o caso de Jaime Hipólito Dantas, presente na lista organizada por Muniz, que publicou desde trabalhos acadêmicos, no qual mencionamos o “Justa causa para demissão do emprego”117, até contos como “aprendiz de camelô” e documentos para a História da imprensa em Mossoró. Assim, esses personagens buscam o seu lugar no cenário editorial crescente na cidade de Mossoró, no qual muitos advindos de outras cidades. A Coleção Mossoroense criava assim um ambiente editorial propício para a circulação de textos diversos, para que outros escritores que não estivessem localizados em Mossoró pudessem ver suas produções sendo comentadas e apreciadas de alguma forma. Vingt-Un era visto como o editor que fornecia oportunidades, sendo muitas vezes lembrado como alguém que publicava tudo o que lhe enviavam. Ele nos fala que “há um pouco de verdade nisso”, e logo levanta as limitações:

Com esse procedimento, nós editamos Dorian Jorge Freire, Jaime Hipólito Dantas, João Batista Cascudo Rodrigues... Há dezenas de pessoas do melhor nível, mas, de vez em quando, alguém me pergunta: – Mas como é que você publica isso?! Eu digo: – Deixe, esse é mais fraco, depois vem um melhor. Muitos dizem: – Eu nunca vi um editor publicar tudo que recebe... Mas é verdade. Eu só não publico quando não tenho dinheiro. Dizem que eu publico também muita plaqueta. Mas olhe, são dois mil folhetos publicados contra mil livros. Há plaquetas que trazem coisas importantes.118

Em seu discurso, Vingt-Un levanta os pontos financeiros como os entraves para a publicação, como já ressaltamos anteriormente. Mas é interessante notar o tamanho de aceitação

Vingt-Un o descreve da seguinte forma: “nosso grande historiador, um homem nascido aqui, de instrução primária, mas muito inteligente, grande prefeito de Areia Branca. O livro dele é muito precioso.” Revista Preá 116 MUNIZ, Caio César. A Coleção Mossoroense publicou o primeiro título de 350 autores. Fundação VingtUn Rosado. Série “B”, Número: 1745, 1999. 117 DANTAS, Jaime Hipólito. Justa causa para demissão do emprego. Coleção Mossoroense, Série “B”, Número “288”, Mossoró, 1974. 118 PREÁ: Revista de Cultura, 2003. 115

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que a Coleção Mossoroense desenvolvia, sendo que a própria qualidade e a imagem da editora poderia ser comprometida por alguns desses escritos, e nesse caso sendo introduzido as possíveis intervenções, ou seja, as mediações editoriais: entre o autor e o seu texto, há um editor que opera com uma nova visão. A de Vingt-Un, por exemplo, poderia ser a de mostrar Mossoró para o maior número de pessoas, de construir uma memória para a cultural da cidade. Ainda sobre seus primeiros personagens publicados, destacamos as narrativas119 de Dorian Jorge Freire. Ele foi um dos principais jornalistas de nossa região e um nome no que diz respeito ao jornalismo no RN, começando seu ofício no jornal O Mossoroense, tendo trabalhado posteriormente no Tribuna do Norte e no Diário de Natal e até mesmo na Editora Abril. Foi um dos grandes defensores dos projetos da Coleção Mossoroense120. Sobre Vingt-Un, disse o seguinte “é a figura mais voltada para a cultura. Fez editora sem igual no país”121. Sobre as obras que tiveram maior tiragem, Vingt-Un destaca o livro “Secas contra Secas”, de Felipe Nery de Brito Guerra, obra bastante procurada por acadêmicos e estudiosos do fenômeno da seca no nordeste. A própria coleção, em seu escopo temático embora bastante diverso, tem uma ênfase em texto sobre a seca. Na mesma entrevista à Revista Preá, Vingt-Un diz já ter editado mais de setecentas obras sobre seca122, o que demonstra tamanho comprometimento com a temática no semiárido. O livro de Felipe Guerra é assim a grande referência na coleção para analisar como os sertanejos, os agricultores lidavam com o fenômeno climático. Vingt-Un diz que as tiragens de cada livro ficavam em torno de 200 exemplares, mas que para algumas obras havia uma tiragem muito maior, com cerca de três mil exemplares. Isso foi possível graças ao apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Vingt-Un diz que:

Consegui esse dinheirinho com o CNPq e fiz alguns livros com tiragens altas. Distribuí o livro de Felipe Guerra, “Seca contra seca”, que é um clássico, por tudo quanto é biblioteca, universidades, pesquisadores, instituições, o que tornou Felipe conhecido no Brasil. Só não é muito conhecido no Rio Grande do Norte.123

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Usamos esse termo no sentido metafórico, de explorar as várias facetas, de estilos, formas e conteúdos, dos autores aqui em destaque, não no sentido de expor acontecimentos (ou fatos) de maneira linear, mas apenas como forma de contar algo. 120 Como mostrado no segundo capítulo. 121 FREIRE, Dorian Jorge. Vint Rosado é o maior. Fundação VIngt-Un Rosado: Coleção Mossoroense, Série “B”, Número “1929”, 2011. 122 PREÁ: Revista de Cultura, 2003. p. 43 123 PREÁ: Revista de Cultura, 2003. p.43

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Novamente somos lançados a pensar que as produções literárias, geográficas e históricas obtinham maior reconhecimento fora de Mossoró, o que nos leva a refletir sobre o papel da população na manutenção de uma memória sobre os seus espaços, no cuidado com os discursos históricos que podem ser apropriados por grupos para legitimar suas estratégias. Destarte, identificamos um nível de acriticidade da população frente à circulação de sua própria cultura. Os autores e seus escritos, mesmo que de maneiras diferenciadas entre si, buscavam construir esse campo em que a cultura material e imaterial de Mossoró pudesse ser orquestrada, disseminada, visualizada. A Coleção Mossoroense, ao reunir essas narrativas, carregava consigo uma responsabilidade deveras hercúlea, transmutada nos mais de quatro mil títulos já publicados: a necessidade de apreender Mossoró em suas diferentes escalas, em seus vários hábitos, de fazer ressurgir seus grandes marcos históricos. Esse ponto nos leva até a “construção de passados”, idealizado por Vingt-Un: marcos históricos que, reescritos nas páginas da Coleção, legitimaria determinado projeto editorial e político. Nesse espaço, Vingt-Un destacou outro autor que diz ter sido importante editar: João Batista Cascudo Rodrigues (1934-2009). Ele foi um advogado, escritor e professor. Mas o seu principal feito foi a fundação da então Universidade Regional do Rio Grande do Norte (URRN) em 1968, hoje Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Na Coleção, de acordo com Vingt-Un publicou cerca de 73 títulos, entre eles um livro sobre Augusto Tavares de Lyra, “Augusto Tavares de Lyra – uma vida meritória.”, presente na série C. Sobre a relação de Cascudo Rogirgues com a Coleção, Vingt-Un descreve:

Reitor imortal e maior mossoroense vivo, eis João Batista Cascudo Rodrigues. Educação e cultura têm sido a própria existência do grande homem. Coubeme dizer do seu relacionamento com a Coleção Mossoroense, que eu criei, com o apoio de Dix-sept em 1949. As dissertações da Universidade levavam invariavelmente o timbre da Coleção Mossoroense. Foi uma maneira de Cascudo nos projetar. Nas noites da Cultura, Cascudo era sempre uma presença rica, de muitas informações, mas excedeu-se na sua generosidade Ozelitiana organizando comemorações em Natal, Brasília e Rio de Janeiro dos 70 anos de Vingt-Un.124

Como mostrado, o próprio reitor da então URRN contribuiu, indireta e diretamente, com Vingt-Un e a Coleção Mossoroense. Monografias e artigos acadêmicos das universidades locais ROSADO, Vingt-Un. João Batista Cascudo e a Cultura – Coleção Mossoroense. Fundação Vingt-Un Rosado. Série “B”, Número “2571”, 2004. 124

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eram também materiais publicados pela Coleção, isso além dos chamados “currículos vitae” – um outro tipo de documento disseminado em alguns títulos, principalmente da série “B”, no qual muitas plaquetas traziam apenas o currículo de algum indivíduo, no qual podemos até mesmo criticar qual era realmente a funcionalidade, o objetivo literário ou histórico por trás da publicação desses currículos. Não podemos esquecer de mencionar outros próprios membros da família Rosado que deixaram suas marcas na Coleção. Aqui, nos chamou atenção duas plaquetas da série “B”: uma por Sandra Rosado, “Pronunciamento sobre a Coleção Mossoroense”, e outra de Laíre Rosado, “Discurso sobre a coleção mossoroense”. Os dois discursos foram proferidos no dia 22 de setembro de 1999, porém em locais diferentes (a primeira proferiu na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte, enquanto que Laíre discursou no plenário da câmara dos deputados). Interessante notar que os textos são circulados num período em que, de acordo com os escritos já explorados de Caio César Muniz e Dorian Jorge Freire, a coleção começa a ter alguns sinais de descaso. Acreditamos que o próprio ato de Vingt-Un em reafirmar que recorreu a agiotas para obter uma quantia financeira que mantivesse o nível de publicação125 demonstra essa vulnerabilidade da coleção e a ausência de apoio do poder público, também reforçando sua imagem como soldado da cultura. Para se ter uma ideia, destacamos o seguinte da fala de Laire:

A Coleção Mossoroense representa o pioneirismo e a bravura do povo de Mossoró, cidade que libertou os escravos cinco anos antes da Lei Áurea, que combateu e expulsou o temido bando de Virgulino Ferreira, o Lampião, e que, pela primeira vez na história do Brasil, deu a uma mulher, a professora Celina Guimarães Viana, o direito de votar. Graças ao trabalho abnegado do professor Vingt-Un Rosado, que conta apenas com doações financeiras e amigos e parentes, e quase nenhum apoio dos órgãos governamentais, cerca de trezentos autores, a maioria deles sem acesso às editoras convencionais, tiveram oportunidade de publicar suas obras.126

O relato tem a marca característica dos Rosado: se apropriar de processos históricos de seu lugar para fazer valer o seu discurso. Além de ressaltar Mossoró, ressalta o próprio nome, ainda que realize uma crítica válida sobre a ausência de órgãos públicos no incentivo editorial. Portanto, questionamos o seguinte: de 1983, quando Jerônimo Dix-huit Rosado Maia retornou ao poder do município de Mossoró, até 2004, quando foi encerrada o terceiro mandato (e o segundo consecutivo) de Rosalba Ciarlini, algum nome relacionado à família Rosado esteve 125

PREÁ: Revista de Cultura, 2003. p. 43 ROSADO, Laire. Discurso sobre a Coleção Mossoroense. Fundação Vingt-Un Rosado. Série “B”, Número 1753, 1999. 126

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no poder da cidade de Mossoró, e foi ao final da década de 90 que apareceram escritos da própria coleção denunciando o descaso com a Fundação Vingt-Un Rosado, que estava se fragmentando aos poucos e vivendo das “sobras do tempo”. Nos perguntamos: onde constava as colaborações da família Rosado em relação à coleção Mossoroense durante esse período? O pensamento de que o poder do nome já estava bem consolidado foi maior e, portanto, não era mais necessário utilizar a cultura como arma e estratégia política? Questões de um tempo presente que deixamos como ponte para a reflexão, para a própria relação de usos e desusos da alta escala dos Rosado com o campo intelectual mossoroense. Embora perfaçam os interesses deste trabalho, as questões de tempo, da própria temática maior que procuramos tratar e a documentação escassa nos impossibilitam de responde-las de maneira imediata. Mas acreditamos que textos como os de Caio César Muniz e Dorian Jorge Freire nos forneçam um caminho para pensar as respostas, que no caso nos revela a própria contradição do momento político e cultural de Mossoró.

4.4. Independência? Liberdade? Eis o país de Mossoró

O que estivemos escrevendo nas páginas anteriores nos mostra como o texto tem esse caráter poderoso de moldar ideias e espaços. A Coleção Mossoroense é um exemplo vivo disso, uma editora que perdurou e se adaptou aos seus tempos, mas que deu a ver uma imagem e símbolos para pensar Mossoró enquanto “país”. Ao sair da esfera de cidade e pensa-la enquanto uma unidade federativa, entramos num terreno de espetacularização da política e da cultura, uma complexa rede de representações que circulam dentro e fora de Mossoró. A fundação de Mossoró – não propriamente enquanto cidade – remonta a meados do século XVIII, como aponta Vingt-Un quando nos diz que “até 1772, Mossoró não passava de uma simples fazenda”127. De acordo com Vingt-Un, a data coincide com a construção da capela de Santa Luzia, fazendo com que o espaço urbano de Mossoró se desenvolvesse em torno da edificação da igreja, constituindo-se como um patrimônio para a cidade. A catedral e a praça serviram, nas palavras do editor da coleção mossoroense, como pontos de partida para a cidade. Ele diz que “foi com a capela de Santa Luzia que nasceu o povoado de Mossoró”128. Em 1842, o povoado foi incorporado à Vila de Princesa e Comarca de Assú (antes, o povoado pertencia à Freguesia de Apodi), tornando-se uma divisão administrativa menor, ou 127 128

ROSADO, Vingt-Un. Mossoró – Vingt-Un Rosado.2ª Ed. Fundação Vingt-Un Rosado: Mossoró, 2006. p. 21 ROSADO, Vingt-Un. 2006, p. 21

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seja, uma Freguesia, que alçou ao desmembramento de Assú em 1852. No ano de 1884, o padre Antônio Joaquim Rodrigues passa a ser o novo administrador do local, mudança que causou insatisfação popular, pois era de ampla vontade a continuação no comando do padre Joé Antonio Lopes da Silveira, aparentemente bastante ressaltado entre a população local. Sem muitas agitações, segue-se com o padre Antônio Joaquim empossado em sua Freguesia.129 Apenas em 15 de março de 1852 que o povoado de Santa Luzia foi elevado à categoria de Vila, sendo no mesmo ano realizadas as primeiras eleições para vereadores e juízes de paz. Foram escolhidos como presidente da câmara o padre Antônio Freire de Carvalho e como vicepresidente João Batista Souza.130 Através do livro de Vingt-Un e de nossas pesquisas, interpretamos que foi na segunda metade do século XIX que Mossoró começou a se desenvolver, tanto em termos políticos quanto sociais, e tendo participações a nível nacional mesmo enquanto vila. Um exemplo disso está na maneira como Vingt-Un descreveu a participação da então vila na Guerra do Paraguai (1864-1870), comentando que o período de 1865 a 1868 foi o de maior turbulência da espacialidade mossoroense

Foi este período um dos mais agitados da vida do município. As guerras então sustentadas pelo Brasil contra o Uruguai e o Paraguai trouxeram dias bem difíceis às populações sertanejas. Os nossos avós não compreendiam a necessidade de recrutamento militar, surgindo, daí, incidentes bem desagradáveis. Mossoró foi teatro de muitas ‘caçadas’ por parte da polícia. Para tentar uma solução satisfatória é que o vigário Rodrigues pedia, na igreja, aos pais que tivessem vários filhos que mandassem ao menos um para os campos de batalha.131

Esse fragmento pode ser apropriado para reforçar a história de Mossoró em três aspectos: o primeiro, o de glorificação dos homens mossoroenses, que figuraram enquanto heróis ao pegar em armas e não temer o combate, construindo as imagens da bravura para a sua vila; e o segundo, ao ser escrito e comentado pelo editor da Coleção Mossoroense, a memória desse episódio pode ser ressignificada, posto em outro lugar uma vez que fora apropriada por um grupo político como os Rosado. E o terceiro, é que a própria lei do recrutamento militar foi

Sobre esse episódio, Vingt-Un descreve o seguinte “O novo vigário encontrou a povoação em situação bem triste. Egressa de uma luta de sangue, sendo fortíssimas as competições partidárias, Mossoró apresentava ao padre Antônio Joaquim um espetáculo desolador. A sua atitude conciliatória tudo venceu, porém”. Idem. p. 26 130 Vingt-Un também escreve a lista dos primeiros vereadores e seus suplentes, no qual deixamos aqui apenas os nomes dos vereadores: Tenente coronel Miguel Arcanjo Guilherme de Melo; Vicente Gomes da Silveira; Florêncio Medeiros Cortes; Alferes Francisco Bertolo das Virgens; Luiz Carlos da Costa Júnior. Idem. p.27-28 131 Idem. p.39 129

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amplamente questionada por mulheres no ano de 1875, nas páginas conhecidas como “Motim das mulheres”, no qual a população feminina se levantou contra os ditos da cidade. O episódio da guerra do Paraguai ocorreu ainda enquanto vila, mas foi em 9 de novembro de 1870, através da lei n. 620, que essa vila foi alçada à categoria de cidade, isso no período da regência do Tenente-Coronel Luís Manoel Filgueira e seu vice José Alexandre Freire de Carvalho. Vingt-Un novamente retorna ao comentar o papel de Antônio Joaquim Rodrigues, quando menciona que este, ao retornar da cidade de Natal e ser bem recebido, teria dito “fiz disto aqui cidade”132. Passamos por esses episódios históricos e geográficos de Mossoró para melhor ilustrar como esse povoado, freguesia, vila e cidade é pensada, hoje, no imaginário coletivo, enquanto “país”. Essa construção perfaz os interesses do ofício de um historiador: não exatamente em entender as origens ou estudar o passado unilateralmente, mas as transformações das comunidades humanas no tempo e no espaço. Pois estamos falando de pessoas que remodelaram sua terra e seus desejos, como diz Marc Bloch, “a obra de uma sociedade que remodela, segundo suas necessidades, o solo em que vive é, todos intuem isso, um fato eminentemente histórico”.133 Estamos assim propondo o exercício de que todo historiador é o velho ogro da lenda: “onde fareja carne humana, sabe que ali está a sua caça”134. Com essas questões em mente, passamos a criticar os conceitos presentes ao invocar o termo “país de Mossoró”. Estamos falando das esferas de liberdade, independência e autonomia que os sujeitos pertencentes a esse círculo constroem para si e representam para o outro. A linguagem teatral através do espetáculo “Chuva de Balas no País de Mossoró” grifa, anualmente, o sentido de resistência do povo mossoroense, ressignifica a memória do enfrentamento ao bando de Lampião e mantém viva a denominação de Mossoró enquanto país, termo apropriado pelo coletivo e repassado para as próximas gerações. Mesmo que não seja um país em seu sentido concreto, essa identidade inventada está, aparentemente, bem consolidada no espaço das mentalidades coletivas, não sendo relevante as fronteiras, os limites geográficos: Mossoró passa a ser uma ilha imaginária industrializada, fruto dos jogos de poder através dos enfrentamentos oligárquicos. É cidade, é país e é a “capital da cultura”, como também é consagrada entre sua população. Há uma necessidade de estar dissociada de Natal, e de construir seus próprios polos econômicos, ser a própria roda giratória

132

Idem. p.42 BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p.53 134 BLOCH, Marc. 2001, p.54 133

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do poder. Em suma, é uma região individualizante que procura operacionalizar para ser reconhecida pelo outro, e nesse ponto a Coleção Mossorroense teve um papel fundamental. Essa identidade que Vingt-Un Rosado edificou para Mossoró enquanto país também a desvincula da região Nordeste, muito embora o próprio projeto editorial da Coleção esteja intimamente ligado com as características geográficas e históricas de nossa espacialidade. Ao editar a Coleção, Vingt-Un está também promovendo o seu “sagrado país de Mossoró”135, mas esta identidade parece transitar entre o seu próprio local e uma ideia de nação, ou comunidade imaginada, para usar o termo de Benedict Anderson. Há assim uma distinção peculiar em como imaginamos Mossoró, e nas palavras de Anderson “as comunidades se distinguem não por sua falsidade/autenticidade, mas pelo estilo em que são imaginadas”.136 Como aponta Durval Muniz, essas novas práticas e demarcações criam o cenário de desnaturalização da região. Ao caracterizarmos a cidade enquanto nação, caminhamos por um terreno movediço, pois a questão da identidade do local está lançada nesse aspecto de eterna transmutação. Assim, uma região “se divide em quinhões diferentes para os diversos vencedores e vencidos; assim, a região é o botim de uma guerra”.137 No caso de Mossoró, estamos falando de uma cidade controlada politicamente por uma forte oligarquia, por um sistema político conservador que disfarçado de progressista. Essas relações de poder não estão, de forma alguma, distantes de como pensamos e modelamos a região enquanto autônoma. Assim, de acordo com Durval “o próprio Nordeste e os nordestinos são invenções destas determinadas relações de poder e do saber”138, interpretamos que a cidade de Mossoró e a sua população, na segunda metade do século XX, foram reinventadas como espaço e sujeitos com regimentos próprios, com um sistema libertário que os produziu como nação. Numa plaqueta publicada em 2003 sob o título “Mossoró: cidade-país inimitável”, escrita por Jerônimo Dix-sept Rosado Maia Sobrinho, ele ressalta os aspectos da natureza mossoroense. Num momento de seu discurso, ele indaga “As nuvens de Mossoró, vocês já prestaram atenção às nuvens de Mossoró? Não existem iguais”139, mostrando não apenas em sua narrativa o discurso apaixonado pelos ares da cidade, mas claramente exercer a contínua construção identitária apelando aos aspectos geográficos. ROSADO, Vingt-Un. Mossoró – Vingt-Un Rosado.2ª Ed. Fundação Vingt-Un Rosado: Mossoró, 2006. p.9 ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 33 137 ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras artes. 5ª Ed. São Paulo: Cortez, 2011. p.36 138 ALBUQUERQUE JÚNIOR. Durval Muniz. p.31 139 MAIA SOBRINHO, Jerônimo Dix-sept Rosado. Mossoró: cidade-país inimitável. Fundação VIngt-Un Rosado: Mossoró, 2003. Série B, Nº 2386. 135 136

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Nesse aspecto, temos os conceitos de “identidade” trabalhados por Manuel Castells. O autor procura dividi-la em três categorias: identidade legitimadora, de resistência e a de projeto. A primeira, em suas palavras, é “introduzida pelas instituições dominantes da sociedade no intuito de expandir e racionalizar a sua dominação em relação aos atores sociais”140; a segunda, está relacionada aos personagens que buscam criar um sistema de identidades que façam oposições à lógica de grupos dominantes. E o terceiro caso, ocorre quando há uma apropriação, pelo povo, de qualquer material cultural, com a necessidade de redefinir o seu campo identitário e, “ao fazê-lo, buscar a transformação de toda a estrutura social”141. O esquema conceitual de Castells se enquadra no projeto identitario da família Rosado e da Coleção Mossoroense em redefinir e mostrar Mossoró enquanto terra da liberdade, enquanto o país da resistência e da sabedoria. Aqui, identificamos que a identidade legitimadora e a identidade de projeto correspondem aos exercícios da Família Rosado e às atividades intelectuais do próprio Vingt-Un frente à Coleção Mossoroense: a oligarquia Rosado é vista como a instituição dominante, racional e que busca reproduzir modos de dominação cultural, modificando as próprias estruturas de uma sociedade civil, enquanto que a população mossoroense se apropria das estruturas e conteúdos disseminados pela Coleção, atuam na redefinição da sua identidade coletiva e transformam seu espaço social. A identidade de projeto, de acordo com Castells, “produz sujeitos”142. Ainda na esteira de construção das identidades, Castells levanta questões pertinentes:

A principal questão, na verdade, diz respeito a como, a partir de quê, por quem, e para quê isso acontece. A construção de identidades vale-se da matériaprima fornecida pela História, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso. Porém, todos esses materiais são processados pelos indivíduos, grupos sociais e projetos culturais enraizados em sua estrutura social, bem como em sua visão de tempo/espaço.143

A construção da identidade de Mossoró enquanto “país” se valeu assim de todas essas visões expostas por Castells, tendo como um “ponto de partida” os documentos históricos e geográficos arquitetados pela Coleção Mossoroense e o desejo intelectual de Vingt-Un de projetar Mossoró além daquele seu limitado espaço, o que pode ser configurado como uma CASTELLS, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999. – (A era da informação: economia, sociedade e cultura. Vol. 2). p. 24. 141 CASTELLS, Manuel. 1999, p.24 142 CASTELLS, Manuel. 1999. p. 26 143 CASTELLS, Manuel. 1999. p. 23 140

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espécie de “fantasia pessoal” – uma vez que o próprio “ajuntador de papeis” já deixou claro sua “batalha” pela cultura mossoroense. E esses pontos não estão desligados dos micros poderes, existentes na esfera coletiva e individual, que circulam através dos grupos e de seus projetos. Seguindo as palavras de Castells, todos esses materiais foram processados pelo poder da família Rosado, como forma de manter o exercício do mando em sua região, passar o seu nome para o outro e remontar as estruturas de tempo e espaço na cidade de Mossoró.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dessa forma, Vingt-Un se inscreve no cotidiano da cidade, como baliza ou como centro de uma ordem simbólica, o ícone familiar que representa conscientemente o seu papel uma teatralidade global onde a Coleção Mossoroense e seus rituais é um ato em que Vingt-Un reconhece a si e aos outros e é reconhecido por todos.144

Em Fahrenheit 451, Ray Bradbury construiu uma narrativa distópica, no qual os livros eram um instrumento ideológico contra o Estado autoritário, e todas as pessoas estavam, por consequência, proibidas de ler, questionar ou ter alguma edição em casa. Em a “Sombra do Vento”, o espanhol Zafón trabalha com sua ideia romântica dos cemitérios dos livros esquecidos, e de que cada livro é um amigo do homem. Romances escritos em tempos diferentes, por autores diferentes e que expressão contextos sociais diferentes, mas com algo em comum: o livro. Não tratado como um objeto, um produto do mercado, mas como produtor de sentidos e um suporte para novas palavras, personagens e narrativas. Para Vingt-Un, o primeiro livro desperta o mesmo sentimento que o primeiro amor: não há como esquece-lo. O mentor do maior apanhado de títulos do país se mostrava como um homem obstinado em suas atividades, um sujeito perseverante que trabalhava pela cultura mossoroense, sendo representado por muitos como o “herói da batalha da cultura de Mossoró”. Mas chegamos às considerações de que ele era um homem de várias facetas, que exercia várias profissões no campo ilusório, mas que se considerava apenas um “ajuntador de papeis”. Essas contradições de sua imagem nos ajudam a perceber o quanto de poder ele conseguia reunir em torno de si e de seu projeto editorial. Assim, a trajetória da Coleção Mossoroense se insere nesse breve quadro discutido nas páginas anteriores. Suas publicações criaram um circuito comunicacional que não apenas foi responsável por distribuir a imagem do “país de Mossoró” individualizando a cidade, mas também de comunicar essa esfera cultural para outros locais. Vingt-Un, o mentor ou “mecena”, como chamado por América Rosado, foi o principal articulador desses textos, num exercício que também tinha claras proporções políticas e ideológicas. A Coleção Mossoroense foi assim a responsável por representar Mossoró para o outro, mais ainda para comunicar a imagem da cidade enquanto nação independente através de seus textos. É uma editora sem fins lucrativos, mantida através de diferentes tempos e contextos

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FELIPE, José Lacerda Alves (org).Vingt-Un: o intelectual e o cidadão. Natal/RN: EDUFRN, 2004. p.84

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sociais e políticos. Esses três tempos da coleção (Prefeitura de Mossoró, Fundação Guimarães Duque e Fundação Vingt-Un Rosado) nos leva a pensar sobre os seus níveis de produção – com destaque para o segundo e o terceiro tempo, que foram os mais elevados – sobre os autores publicados e as escolhas editoriais de Vingt-Un – não publicava apenas se não houvesse os recursos financeiros para tal empreendimento. Dessa maneira, como diz Lacerda Felipe, VingtUn se inscreve nos cenários sociais de Mossoró, bem como a própria Família Rosado. A oligarquia aqui tratada foi responsável por abordar a coleção Mossoroense como uma espécie de túnel do tempo, como já falamos, sendo uma forma de apropriação de marcos históricos locais e ressignifica-los de acordo com os poderes e o lugar de fala dessa família. Na esteira do que diz Castells, os Rosado foram responsáveis por edificar uma identidade legitimadora, que perdura as estruturas culturais de dominação. E, no momento em que opera nessa ressignificação dos processos históricos, inventar e reinventa as tradições, estabelecer as práticas e não romper com o passado. O tempo passado funciona para a oligarquia Rosado como um instrumento de defesa para suas políticas, uma ferramenta saudosista que opera no silêncio, que torna o poder mais efetivo no plano de controle da população e dos regimes de verdade criados. Consideramos através de nossas pesquisas, que a Coleção Mossoroense não tem um reconhecimento em seu local de origem, embora tenha sido a principal responsável pela emergência de uma cultura letrada em Mossoró, e por ter disseminado uma nova construção identitária para a cidade através dos textos – onde entra o que Chartier nos diz sobre “o caráter todo poderoso do texto”. A Coleção, ao longo da segunda metade do século XX, criou um novo espaço imagético para Mossoró: os autores organizados em torno de Vingt-Un Rosado – responsável por lançar o primeiro texto de muitos deles – produziam obras que retratavam aspectos da cultura, economia, geografia, política e social de Mossoró e da região Nordeste. O empenho se mostrava em representar as manifestações da região. Ao mesmo passo, esses escritos individualizam a cidade, criaram essa ilha imaginária e arquitetaram um novo conjunto de práticas culturais, que ao chamar Mossoró de “país”, desconhecem fronteiras geográficas, mesmo que instituídas no plano simbólico – de toda forma, plano em que tudo se vê permitido. O objetivo do nosso trabalho era mostrar essas várias facetas da Coleção Mossoroense e do homem por trás do seu processo de editoração. É inegável que é uma editora que edificou novos significados e reconstruiu palavras no tempo e no espaço, atuando como uma fonte de suma importância para entender os aspectos históricos e geográficos da região, muito embora se veja hoje bastante fragmentada e pouco reconhecida. Assim, salientamos que a Coleção está

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hoje, em 2016, alocada no Museu municipal Lauro da Escóssia, sendo que a própria Fundação Vingt-Un Rosado já praticamente fechou suas portas. Tanto o acervo pessoal de Vingt-Un Rosado quando os livros da Coleção encontram-se, até o momento de feitura deste trabalho, no Museu, não havendo políticas de conservação do material ou recursos materiais e de pessoal qualificado para reorganizar os títulos. Em termos de uma política de conservação dos títulos, em meados de 2014, um grupo de pesquisa do departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), do campus central, esteve afrente para coletar títulos das séries “B” e “C” da Coleção e proceder com a digitalização dos mesmos. Até o momento, todos os títulos da série “B”, que corresponde às plaquetas, foram devidamente digitalizados, e posteriormente serão disponibilizados para consulta pública. Isso demonstra, além da mudança necessária de suporte do texto (do físico ao eletrônico, digital) uma necessidade de conservar documentos históricos importantes para a região, política está que o município de Mossoró deveria estabelecer para com um acervo que edificou a imagem da cidade. Portanto, a presente pesquisa se configurou como uma necessidade de pensar e repensar os caminhos desta editora, considerada o maior apanhado de títulos do país, com números sendo transportados para diferentes centros acadêmicos e auxiliando a pesquisa de seus estudantes, conhecida em outros locais, mas aparentemente pouco em Mossoró, o que não deixa de ser uma contradição: uma vez que o projeto da própria Coleção e a de Vingt-Un, interpretamos, estava estritamente ligado ao enaltecimento da sua cidade, em trabalhar pelo conteúdo cultural de sua espacialidade. Mas, a Coleção Mossoroense não constitui uma espécie de “cemitério de livros esquecidos”. Na verdade, até o próprio Záfon nos mostra que não há exatamente um cemitério, pois os livros e as narrativas que carregam são incapazes de morrer. O texto e o autor são figuras que, embora sofram suas variações de acordo com o tempo, eles se perpetuam, continuam vivos nos descaminhos da História, criando pontos de refúgio e recriando os imaginários.

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