Monografia - UMBANDA EM ALEGRETE - ORIGENS E FUNDAMENTAÇÃO

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CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES CURSO DE HISTÓRIA

BOLÍVAR SCHLOTTFELDT MARINI

UMBANDA EM ALEGRETE ORIGENS E FUNDAMENTAÇÃO

ALEGRETE/RS/BRASIL

2010

BOLÍVAR SCHLOTTFELDT MARINI

UMBANDA EM ALEGRETE ORIGENS E FUNDAMENTAÇÃO

Monografia apresentada à Banca Examinadora da Universidade da Região da Campanha – Campus Universitário de Alegrete, como requisito parcial para a obtenção do grau de Licenciado em História.

Orientador (a): Prof.º Edson Romário Monteiro Paniagua.

Alegrete, 03 de dezembro de 2010.

UNIVERSIDADE DA REGIÃO DA CAMPANHA CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE ALEGRETE CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO, COMUNICAÇÃO E ARTES CURSO DE HISTÓRIA A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova o trabalho de conclusão. UMBANDA EM ALEGRETE ORIGENS E FUNDAMENTAÇÃO Elaborado por: BOLÍVAR SCHLOTTFELDT MARINI Como requisito parcial para obtenção do titulo de Licenciado em História

____________________________________ Prof.º Luis Felipe Shervenski Coordenador do Curso ____________________________________ Prof.º Edson Romário Monteiro Paniagua. Orientador

Comissão Examinadora ____________________________________

____________________________________

____________________________________

Alegrete, 03 de dezembro de 2010.

Refletiu a luz divina Com todo seu esplendor É do reino de Oxalá Onde há paz e amor Luz que refletiu na terra Luz que refletiu no mar Luz que veio de Aruanda Para todos iluminar A Umbanda é paz e amor É um mundo cheio de luz É a força que nos dá vida É a grandeza nos conduz. Avante filhos de fé, Como a nossa lei não há, Levando ao mundo inteiro A Bandeira de Oxalá! Levando ao mundo inteiro A Bandeira de Oxalá!

(Hino da Umbanda)

RESUMO

Esta pesquisa sobre a Umbanda começou com o objetivo de identificar as raízes africanas da Umbanda e a representatividade social que esta religião por ventura poderia ter trazido aos seus adeptos, mas ao longo do desenvolvimento as evidências mostraram que esta religião não possui apenas raízes africanas, mas também indígenas, católicas, kardecistas e exotéricas, representando a síntese das principais religiões que fizeram parte da fundamentação da sociedade brasileira e, justamente por isso, é chamada de “religião tipicamente brasileira”. Também se comprovou que a Umbanda nunca se privou da participação social e política, em especial durante a década de 40, no regime do Estado Novo. Quanto à presença da Umbanda em Alegrete, foi descoberta a descendência do ritual praticado na cidade, que é dos terreiros de Porto Alegre (da mesma forma que as outras religiões afrobrasileiras aqui existentes). Também foram obtidos dados comprobatórios de que a Umbanda já se fez muito mais presente na vida dos alegretenses do que hoje em dia. Outro elemento estudado foi a mutação do ritual umbandista, frente às mudanças pelas quais a sociedade passou. Ao longo do trabalho são apresentados trechos de entrevistas com Pais de Santo e Caciques de Umbanda alegretenses, dando suporte teórico à pesquisa bibliográfica efetuada. Palavras-chave: Umbanda, religião, Orixá, Alegrete.

ABSTRACT

This research about Umbanda started with an objective, identify the Umbanda’s African roots and the means of social representation that this religion gave to their disciples, but over the time, the evidence showed that the roots of Umbanda aren’t only African, but also indigenous, Catholic, Exoteric and Kardecists to, representing the synthesis of the major part of the religions that formed the base of Brazilian society and because that it’s called a "typical Brazilian religion". Also was proved that Umbanda never deprived itself from the social and political participation, especially during the 40s, among the regime of “Estado Novo”. About the presence of Umbanda in Alegrete, was discovered the progeny of the ritual in this city, which cames from the “terreiros” of Porto Alegre (in the same way as the others africanBrazilian religions here). As well, datas who comprove that Umbanda has been done much in the life of alegretenses than today were also obtained. Another factor studied was the mutation of Umbanda’s ritual, in front of the changes of the society. Along the research, were showed parts of interviews with “Pais de Santo” and Umbanda “Caciques” of Alegrete, supporting the theoretical search performed. Keywords: Umbanda, religion, Orixá, Alegrete.

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Foto de Zélio Fernandino de Moraes. ........................................................ 18 Figura 2: Pintura mediúnica retratando o Caboclo das Sete Encruzilhadas, realizada pelo médium vidente Jurandy em 1949. .................................................................... 21 Figura 3: Iluminura medieval de um Ouroboros. ....................................................... 30 Figura 4: Principais rotas de tráfico de escravos. ...................................................... 46 Figura 5: Ogum (esquerda) e São Jorge (direita). Exemplo de sincretismo religioso. .................................................................................................................................. 50 Figura 6: Interior do Bazar Santa Rita de Cássia, uma loja contemporânea de produtos de religião afro-brasileira. ........................................................................... 54 Figura 7: Foto de Araci Baez no seu túmulo no cemitério municipal de Alegrete. ..... 58 Figura 8: Foto de uma placa depositada junto ao túmulo de Araci Baez em virtude de graças alcançadas. ................................................................................................... 59 Figura 9: Foto de duas placas depositadas junto ao túmulo de Araci Baez em virtude de graças alcançadas................................................................................................ 60 Figura 10: Final da passeata do dia de Yemanjá (02 de fevereiro), ano desconhecido. ........................................................................................................... 62 Figura 11: Imagem do Xangô peregrino, ano de 1985. ............................................. 62 Figura 12: Imagem do Xangô peregrino sendo conduzida pelo carro de bombeiros pelas ruas da cidade, ano de 1985. .......................................................................... 63 Figura 13: Identidade de Médium filiado à AURAFA. ................................................ 64 Figura 14: Carteira de identidade da AFROBRAS. ................................................... 64

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 8 1 AS ORIGENS DA UMBANDA NO BRASIL ........................................................... 11 1.1 ETIMOLOGIA DA PALAVRA ............................................................................... 13 1.2 A UNIÃO DE TODAS AS BANDAS ..................................................................... 14 1.3 ZÉLIO FERNANDINO DE MORAES E O CABOCLO DAS SETE ENCRUZILHADAS .................................................................................................... 18 1.4 UMBANDA E SOCIEDADE ................................................................................. 22 1.5 A RELEVÂNCIA DA UMBANDA NO ESTADO NOVO ........................................ 24 1.5.1 Contexto Histórico ......................................................................................... 24 1.5.2 Umbanda e política......................................................................................... 25 2 O UNIVERSO MÍSTICO UMBANDISTA SOB UMA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA .................................................................................................................................. 27 2.1 COSMOVISÃO AFRICANA ................................................................................. 27 2.1.1 Exu, Orixá da Trapaça .................................................................................... 33 2.1.2 Ogum, um Orixá Popular ............................................................................... 34 2.1.3 Ossanha e os Fundamentos das Ervas ........................................................ 35 2.1.4 Iansã, uma Rainha de Vários Reis ................................................................ 37 2.1.5 As esposas de Xangô .................................................................................... 39 2.1.6 Ibêji, a Inocência que Vence a Morte ............................................................ 40 2.2 O ITÃ E A EDUCAÇÃO RELIGIOSA ................................................................... 42 2.3 A DIÁSPORA AFRICANA ................................................................................... 43 2.3.1 Contexto Histórico ......................................................................................... 43 2.3.2 Escravos Africanos no Brasil – A adaptação a um meio exótico .............. 45 2.4 O SINCRETISMO – ATRIBUIÇÕES E PERMUTAS DE SIGNIFICADO ............. 48 2.5 ADAPTAÇÃO DO RITUAL – MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS ......................... 53 3 EXPANSÃO, A UMBANDA CHEGA AO RIO GRANDE DO SUL ......................... 57 3.1 A UMBANDA EM ALEGRETE ............................................................................. 58 3.1.1 Organização e Regulamentação (de 1981 ao momento presente) ............. 61 CONCLUSÃO ........................................................................................................... 66 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 67

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho constitui-se em uma análise da trajetória da Umbanda no Brasil, a sua difusão para o estado do Rio Grande do Sul, focando, de forma mais específica, no município de Alegrete, além de analisar a maneira como essa religião criou vínculos com vários setores da sociedade. Através de uma pesquisa de cunho documental, bibliográfico e investigativo, constatou-se que a Umbanda não é apenas uma religião afro-brasileira. Ela é africana ademais todas as suas outras influências, que são: o Kardecismo, o Catolicismo, o Candomblé (da mesma forma que todos os cultos das nações africanas), o animismo nativo indígena e certos ritos esotéricos de origem européia. Aprofundando-se na questão social da Umbanda, percebe-se que ela, como elemento agregador, serviu aos interesses da classe governante em certos momentos da história do Brasil. Porém, em outros momentos, também foi perseguida e discriminada por outras ordens religiosas que veem, nessa manifestação espiritual, uma corruptela do que se espera de uma religião. Claros exemplos disso são as críticas dirigidas à Umbanda pela doutrina Espírita, que antigamente a considerava uma manifestação baixa ou atrasada da sua própria doutrina, ou mesmo pelo Catolicismo, que desacredita a Umbanda da sua capacidade. Além disso, é claro, há a crítica das seitas neopentecostais que, mais seriamente do que o descrédito do Catolicismo, dirigem contra a Umbanda a carga de ser a sua antagonista, demonizando as entidades dos rituais afro-brasileiros (generalizando a todas as religiões afro, não tão somente à Umbanda) além de se apropriarem de sua linguagem. No decorrer deste trabalho, as informações foram dispostas de forma cronológica, porém entremeadas por contextualizações e comentários que facilitam a compreensão do conteúdo. Com essa disposição das informações, observa-se a

9

clara tentativa de fazer os conteúdos dialogarem entre si, estendendo a análise para o campo da antropologia, bem como a idéia de construir um conhecimento fruto da comparação metódica. Este trabalho também se propõe a estudar o lado simbólico da Umbanda e os processos que levaram o ritual umbandista ao formato que possui atualmente. Nesse ponto, estudou-se cada um dos elementos que deram origem à Umbanda. A começar, a relevância das diferentes levas de escravos africanos que chegaram ao Brasil, no movimento humano que ficou conhecido por “diáspora africana”, e a forma como esses contingentes humanos de diferentes nações africanas foram recriando, em terras brasileiras, os seus cultos ancestrais, substituindo o que encontravam aqui por elementos endêmicos da África. Em meio a essas trocas simbólicas, também se averiguou a influência indígena no tocante à estreita relação entre os nativos e os escravos africanos, nos primeiros anos de escravidão, fato que facilitou aos africanos adquirirem o conhecimento acerca dos elementos nativos da nova terra, elementos estes que possibilitaram a realização de seus cultos no Brasil. Outro elemento é o Catolicismo, que se misturou aos cultos afro-brasileiros primordiais pela necessidade de tornar viáveis os cultos religiosos dos escravos, visto que os mesmos eram proibidos de manifestar as suas religiões. Sendo assim, desenvolveu-se um sincretismo 1 entre os santos católicos e as divindades africanas, para que os escravos pudessem dar continuidade à prática do seu culto de maneira velada. Outro fator estudado foi o Kardecismo, que participou do processo de fundamentação da Umbanda como religião e emprestou algumas terminologias também, como a palavra médium, usada para designar adeptos e líderes de terreiro 2

, a definição do processo de possessão mediúnica, etc. Além da contribuição

prática do Espiritismo, também se estudou a estigmatização imposta por ele à Umbanda, como já foi supracitado. Realizou-se uma breve explanação da influência de ritos esotéricos europeus na Umbanda, visto que esses ritos foram sendo adicionados à Umbanda

1

Fusão entre religiões diferentes ou mesmo a influência de uma religião sobre outra. Nome comumente usado para designar o sacerdote umbandista. Sinônimo de cacique, mentor, dirigente, etc. Dá-se preferência a esta nomenclatura do que o termo “pai-de-santo”, mais comumente usado no Candomblé e no Batuque. 2

10

de maneira gradativa, fruto da interpretação de seus sacerdotes e devotos. Quanto a isso, muitas vezes, essas interpretações não coincidem com a real consumação dos fatos. Também, foi revisado o processo de expansão da Umbanda pelo Brasil e como isso foi facilitado pela existência de práticas rituais similares ao longo do país, que foram sendo incorporadas ao contexto da Umbanda, contribuindo no processo de formulação que resultou na Umbanda que conhecemos hoje. Acresceu-se a esse trabalho, uma explanação sobre a história da Umbanda em Alegrete, como ela se estabeleceu e como se organizam as casas de religião na cidade. Para esta parte do trabalho, foi usada a metodologia investigativa e documental, entrando em contato com os sacerdotes umbandistas, adeptos do culto e com a diretoria da Associação de Umbanda e Religião Africana de Alegrete, AURAFA. Com acesso à leitura paleográfica, combinada às entrevistas com pessoas ligadas à Umbanda, realizou-se esta parte do trabalho. Este trabalho não tem a pretensão de criar uma opera omnia 3 da Umbanda, tampouco o registro definitivo dessa religião em Alegrete, mas sim, fazer as ligações entre os fatos, aclarando, dessa forma, assuntos até então negligenciados mesmo pelos seus próprios adeptos. Pretende-se, também, dar início a um registro formal de uma religião conhecida pela transmissão oral da sua tradição, impedindo que as corruptelas geradas pelo passar do tempo causem uma má interpretação do significado das práticas religiosas e de seus dogmas.

3

Do latim = obra completa.

11

1 AS ORIGENS DA UMBANDA NO BRASIL

Quando Oxalá fundou a Umbanda Senhor Ogum tomou conta do congá Veio Oxum, veio Iansã, veio Iemanjá, Veio a Jurema para trabalhar A caboclada iluminou todo terreiro E Oxalá abençoou Oi Saravá, seu Ogum Megê Deste terreiro ele é o protetor

(Ponto cantado de abertura de trabalhos na Umbanda)

Por mais que, com o passar do tempo, a Umbanda tenha se dividido em várias linhas doutrinárias 4, as origens desta religião remetem a um conjunto de práticas ligadas a várias religiões e seitas, como o Kardecismo, a pajelança indígena, o esoterismo de origem européia, o culto das nações africanas e o Catolicismo popular 5. Essas práticas populares vão ganhar o status de religião em um momento relativamente recente da nossa história, mais precisamente, no Rio de Janeiro, da virada do século XIX ao XX 6. Muito já se falou sobre as origens da Umbanda e não são raras as especulações tendenciosas acerca da maneira como ela foi codificada, até por que, o campo da religião sempre foi marcado por discussões entre grupos que alegam ser os detentores da verdade absoluta. Tais discussões, às vezes, propagam

4

Em relação às linhas doutrinárias da Umbanda, podemos destacar as seguintes: Umbanda Tradicional (segue os preceitos de Zélio Fernandino de Moraes), Umbanda Popular (anterior à fundação formal da Umbanda Tradicional, também chamada de macumbas ou Candomblé de caboclos), Umbanda branca ou de mesa (de influência Espírita), Umbanda cruzada (variação que mistura elementos dos cultos das nações africanas, como o Candomblé e o Batuque) Umbanda Esotérica (baseada nos preceitos de Oliveira Magno, Emanuel Zespo e W. W. da Matta) Umbanda Iniciática (descende da Umbanda Exotérica, porém com influência indiana oriental, foi criada pelo Mestre Rivas Neto), Umbanda de caboclos (com forte influência da pajelança indígena) e Umbanda de Pretos Velhos (com destaque ao culto dos ancestrais africanos). Existem ainda outras linhas, porém suas características específicas não são suficientemente claras para que se criasse uma denominação. 5 Diz-se das práticas católicas que são mescladas a elementos da cultura popular e do folclore. 6 OLIVEIRA, José Henrique Motta de. Das Macumbas à Umbanda. 1.ed. Limeira, SP: Editora do Conhecimento, 2008. p. 91.

12

imprecisões quanto à real origem da Umbanda, gerando todo tipo de má interpretação dos fatos. A manutenção da fé, muitas vezes, necessita de nomes, marcos fundacionais,

marcos

históricos,

entre

outros,

não

somente

para

manter

credibilidade, mas também para facilitar a compreensão da mitologia que se cria em torno das religiões. Devido a isso, existe um mito criacional que indica o Rio de Janeiro da virada do século passado como o local de nascimento da Umbanda, porém, estudando a maneira como se construiu o ritual umbandista e o contexto religioso do Rio de Janeiro do século XIX, até meados do século XX, levantam-se indícios de que a Umbanda é produto de uma construção gradativa e que o mito criacional da Umbanda (que será melhor detalhado ao longo deste trabalho) apenas serviu para oficializar uma série de práticas que já existiam há muito tempo. Percebe-se, então, que nem sempre uma religião é fruto da ação de um fundador, de um indivíduo que recebeu a incumbência divina de dar início e disseminar tal doutrina. Há casos em que os rituais vão sendo construídos ao longo do tempo, como resultado de diversos fatores sociais, políticos, filosóficos e antropológicos, como um costume característico de um grupo que gradualmente é disseminado e ganha novos parâmetros. Nesse ponto, observa-se, no cotidiano da prática religiosa, uma cisão quanto à interpretação das origens da Umbanda. Existem os que buscam uma explicação mística para o processo de formulação da Umbanda (dentre estes, existem os adeptos da Umbanda Exotérica e da Umbanda Iniciática), como também existem os que procuram a análise histórica do mesmo processo. Em princípio, este trabalho não se ocupará em estudar a Umbanda Esotérica, por esta ser fruto de uma construção permeada de especulações e comparações forçadas, além do recorrente uso do viés da confirmação 7.

7

Termo para expressar o erro sistemático ou tendenciosidade.

13

1.1 ETIMOLOGIA DA PALAVRA

Segundo a Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana

8

, o vocábulo

umbanda é de origem banto (angolana), presente tanto no dialeto umbundo 9, quanto no quimbundo10, significando “arte de curandeiro”, “ciência médica”, “medicina”. Já o termo que designa o curandeiro praticante da medicina espiritual é mbanda (em umbundo) ou kimbanda (em quimbundo), não confundir com o vocábulo moderno Quimbanda que, no Brasil, passou a dar nome a uma subdivisão do culto da Umbanda. Isto sustenta a opinião de que a Umbanda nasceu das práticas medicinais alternativas usadas pelas camadas mais pobres da população, uma vez que várias gírias e expressões populares advêm dos dialetos bantos. As línguas de matriz banto (em especial, o umbundo e o quimbundo) contribuíram em grande parte para o vernáculo do português brasileiro, palavras como sunga, bunda, neném, cachimbo, xodó, dodói e tantas outras que poderia ser feita outra monografia acerca da contribuição banto à nossa língua. O que se ressalva disso é a origem social dessas expressões, uma vez que nasceram na comunidade afro-descendente e, com o tempo, foram sendo assimiladas pela língua portuguesa. Outras acepções feitas à etimologia da palavra Umbanda são mais permeadas de significado esotérico. Durante a década de 40, havia dentro da comunidade umbandista, um desejo de disseminar a Umbanda por outros setores da sociedade brasileira, porém um fator representava um entrave às pretensões desse grupo, este fator era a própria herança afro-indígena da Umbanda. Não é de se esperar que uma sociedade estruturada dentro do modelo cristão católico aceitasse de bom gosto uma religião fruto das escalas mais humildes e que era herdeira de uma forte tradição africana e indígena. Dessa forma, tentou-se remover os resquícios das práticas religiosas tidas como “atrasadas”, numa tentativa de afastar a Umbanda do seu passado original. Assim, surgiram teóricos como o umbandista Diamantino Oliveira Fernandes

11

, que

propôs uma relação mística da Umbanda com a tradição religiosa da antiga Índia. O

8

LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo, SP: Selo Negro.

2004. p. 663. 9

Língua falada pelos Ovimbundos, um grupo étnico angolano. Língua falada pelos Ambundos, um grupo étnico angolano, da mesma forma que os Ovimbundos. 11 Cf. OLIVEIRA. 2008, p. 115. Apud. FERNANDES, Diamantino Coelho. 1942, p. 23 10

14

termo Umbanda representava para Fernandes a apócope de “Aum-Bandhã”, do sânscrito, “princípio divino”. Tal idéia não apresenta dados tangíveis e acaba tecendo uma relação forçada entre duas culturas, desconsiderando as evidências linguísticas das nomenclaturas de origem banto. Além disso, é uma tentativa eurocêntrica de corromper o significado original não só da palavra, como de toda uma tradição ancestral. No meio popular, há ainda quem defenda que a palavra Umbanda queira significar “a união de todas as bandas”, a palavra banda, nesse contexto, significa o mesmo que “linha”, quando se fala a respeito das “linhas” de espíritos (linha de Oxalá, linha de Ogum, Linha de Iemanjá, linha de Oxum, linha das Almas, etc.). Ou mesmo “bandas” como as diferentes linhagens de espíritos que compõem o panteão umbandista (africanos, indígenas, europeus).

1.2 A UNIÃO DE TODAS AS BANDAS

Compreender a Umbanda é compreender a sua natureza. A Umbanda funciona como elemento agregador de uma série de práticas populares, não apenas práticas religiosas, mas também da medicina popular. Os chás, benzeduras e receitas de saúde são recursos recorrentes na sociedade brasileira, principalmente nas classes mais pobres, que precisam recorrer à medicina alternativa disponível, mediante a falta de acesso a cuidados médicos. Mas qual é a origem dessas práticas? A resposta está nos habitantes nativos das terras brasileiras. Mesmo com todo o esforço catequético europeu para aculturar os indígenas e eliminar todo e qualquer traço de sua cultura, muitos elementos culturais foram perpetuados e estão de tal forma entremeados na nossa cultura que já não sabemos separá-los da cultura européia. É difícil precisar os rituais das religiões indígenas como eles ocorriam no passado12. Para montar um paralelo com o passado, é preciso recorrer às anotações dos padres jesuítas, devido a sua estreita relação com os indígenas. Dentre essas anotações, acham-se alguns elementos similares aos que se presencia hoje em qualquer casa de Umbanda. A exemplo, o ritual em que o sacerdote Umbandista asperge a água das quartinhas sobre as pessoas, com o objetivo de limpá-las de

12

OLIVEIRA. 2008, p. 36.

15

energias negativas. Este ritual é bastante semelhante a um ritual indígena descrito por José Henrique Mota de Oliveira, em seu livro “Das Macumbas à Umbanda”: Consiste em encher grandes potes de barro, proferindo secretamente algumas palavras à sua superfície e soprando dentro delas fumo de petun. Depois, untando-se com um pouco de pó que guardam em casa, os índios põe-se a dançar. Finalmente, o feiticeiro, tomando um ramo de folhas, que mergulha nos potes, asperge, como os mesmo, a companhia. Isso feito, toma cada qual dessa água em cuias com ela banhando a si e a seus filhos.13

A atual visão dos praticantes da Umbanda sobre as entidades indígenas (caboclos), no entanto, é uma caricatura romantizada, em parte pelos romances indianistas, mas marcadamente pela tradição oral e pela imagem idílica do índio orgulhoso, valente e aculturado pela prolongada convivência com o europeu. O Catolicismo também se mostra presente no mapa genético da Umbanda e não é de se estranhar que seja assim. No Brasil colonial, o Catolicismo não era uma escolha, era a religião oficial do Império. A Igreja funcionava como elemento legitimizador do poder do Imperador e da estrutura de trabalho que mantinha a sociedade brasileira. O discurso cristão associava o trabalho escravo com o sofrimento de Jesus para criar uma cultura de conformação entre os escravos. Não é apenas no sincretismo religioso (que será mais bem detalhado no seguimento deste trabalho) que se mostra a influência católica na Umbanda, o uso de velas para as entidades e as próprias estátuas de santos católicos são pequenos exemplos dessa influência. No processo de catequese, a Igreja encontrou mais pontos de convergência entre a sua cultura e a cultura dos negros do que com a dos índios, isso porque há um monoteísmo latente

14

na religião nos negros yorubás, pois mesmo havendo

vários Orixás, todos estes estão submetidos à lei de uma entidade maior, que não é um orixá, mas sim, o criador de todos eles, chamado Zambi ou Olorum. A cultura religiosa africana ainda forneceu muitas características que ajudaram a compor a atual roupagem da Umbanda. Presentes no Brasil desde o século XVI, os africanos contribuíram com boa parte das nomenclaturas usadas nos rituais de Umbanda e, nesse ponto, chega-se a uma configuração bastante

13

Idem. Ibidem. p. 37. Apud NÓBREGA, Manoel. Informações da terra do Brasil. Apud MÉTRAUX, 1979, p. 73. 14 OLIVEIRA. 2008, p. 47.

16

interessante. A língua utilizada no culto é preponderantemente o banto

15

, porém os

conceitos religiosos são, muitas vezes, yorubanos. Vemos isso no culto aos Orixás, que são entidades específicas do povo Yorubá, em rituais de Umbanda (de predominante ancestralidade Angolana). Semelhante a todas as adaptações que os ritos exógenos sofreram para adequar-se à realidade brasileira, o Kardecismo francês vai desenvolver novas características ao se disseminar pelo Brasil16, características estas que são mais influentes na Umbanda que o próprio Catolicismo. Mesmo que a doutrina idealizada por Allan Kardec mais se assemelhe a uma ciência do que a uma religião, a cultura popular vai se encarregar de modificar alguns conceitos do Kardecismo tradicional, gerando um “Espiritismo abrasileirado”. O Kardecismo defende o princípio da reencarnação, no qual nosso espírito é imortal e, quando nossos corpos físicos morrem, ele segue reencarnando em outros corpos em busca de aprimoramento, uma vez que recebemos de volta os resultados de nossas ações passadas. Essa teoria é embasada por experiências científicas efetuadas por Kardec, estando muito distante do conceito de religião hoje difundido, mesmo assim, ao se disseminar pelo Brasil, na segunda metade do século XIX17, o Kardecismo encontrou grande aceitação nas camadas mais pobres (em parte, devido à sua premissa de que as vidas futuras guardam recompensas àqueles que sofreram nesta vida), o que acarretou em uma adequação da doutrina pela população adepta, trazendo o Kardecismo mais próximo à sua realidade e aos seus anseios. Essa configuração sócio-religiosa é a responsável pela formulação da Umbanda, pois temos uma herança indígena e africana mesclada à sociedade, e esta, por sua vez, alicerçada no catolicismo. Este catolicismo popular brasileiro pode ser considerado quase uma experiência politeísta (grosseiramente comparando), já que cultua uma profusão de santos (cada santo correspondendo a uma cura ou benção específica) e é praticado, muitas vezes, de maneira desarticulada à igreja, como um culto doméstico. Assim, o já existente sincretismo entre os orixás africanos e os santos católicos, as práticas curativas populares e a mecânica dos processos mediúnicos vão ser os ingredientes originadores da Umbanda.

15

A exemplo: Umbanda, curimba, omolocô, dendê, etc. OLIVEIRA. 2008, p. 62. 17 Idem. Ibidem. p. 63. 16

17

Mas como ocorreu o encontro desse universo religioso africano com o Espiritismo? Observando que o primeiro é pertencente aos negros que trabalhavam na zona rural, enquanto o segundo é uma religião marcadamente urbana, esse encontro vai ocorrer quando do êxodo rural proporcionado pelo fim da escravidão 18, onde os negros da zona rural vão buscar um substituto à religião cultuada por eles no campo. Assim, no Rio de Janeiro, os negros migrados dos Candomblés de Caboclos19 da zona rural vão descobrir o Espiritismo como uma religião dotada de similaridades com os seus antigos costumes, dessa interação vão surgir os catimbós20 e as macumbas21, ambos de ascendência afro-indígena, figurando como práticas populares e sem uma rigidez ritualística. Em primeira instância, esse proto-ritual umbandista não possuía uma homogeneidade (ainda hoje não há como defender uma homogeneidade absoluta da Umbanda). No Rio de Janeiro, entre os séculos XIX e XX, as macumbas sofreram um profundo preconceito religioso, inclusive, por parte do Espiritismo. Ainda que houvesse inúmeras semelhanças entre ambos, a macumba foi rotulada de “baixo Kardecismo”, pois segundo os espíritas mais ortodoxos, os espíritos guias dessas práticas eram “atrasados” espiritualmente se comparados aos do Espiritismo. Em meio a esse contexto, as práticas religiosas supracitadas foram se unificando e, com o tempo, ganhando corpo dentro de um processo de bricolagem, como defende Malandrino22, onde cada parte integrante do novo complexo religioso conserva as estruturas de sua origem. Com isso, ocorreram os primeiros atritos entre elas e o espiritismo. De um fato bastante pitoresco, envolvendo estes lados é que teve origem o mito de criação da Umbanda. Uma história que já foi muito romantizada, mas que guarda informações de como eram as relações entre as religiões no Brasil na virada do século passado, além de como as práticas, até então conhecidas como macumbas, transformaram-se na Umbanda que conhecemos hoje.

18

OLIVEIRA. 2008, p. 75. Variante do Candomblé da Nação Angola, permeado de elementos indígenas e do espiritismo popular (LOPES. 2004, pg. 162), 20 Prática espírita afro-indígena de raiz banto. Caracteriza-se por passes, defumações e banhos (LOPES. 2004, pg. 179). 21 Do dialeto quicongo, makumba, plural de kumba, que significa “feito miraculoso”. Possui características similares ao catimbó (LOPES. 2004, pg. 405). 22 MALANDRINO, Brígida Carla. Umbanda: mudanças e permanências. São Paulo, SP: PUC/SP. 2006. p. 95. 19

18

1.3 ZÉLIO FERNANDINO ENCRUZILHADAS

DE

MORAES

E

O

CABOCLO

DAS

SETE

Mesmo que seja alvo de inúmeros questionamentos, o mito de criação da Umbanda serve como marco de fundação para os atuais umbandistas e, também, para explicar a origem das características pelas quais a Umbanda ficou conhecida. Como

anteriormente

mencionado,

a

palavra

Umbanda

inicialmente

designava uma série de práticas e rituais com grande adesão popular entre as camadas mais pobres da sociedade. Porém, quando essas práticas se unificaram em torno de uma religião? A versão mais aceita, que é ensinada em praticamente todos os terreiros, é a da história de Zélio Fernandino de Moraes, um médium carioca que viveu entre o século XIX e o século XX. O que segue, é um relato sobre o médium Zélio Fernandino de Moraes e a maneira como ele fundou a Umbanda. Esta história foi contada pelo médium Genaro Araújo, sacerdote de Umbanda, residente na cidade de Alegrete, Rio Grande do Sul. O relato tem embasamento teórico no livro Das Macumbas à Umbanda23.

Figura 1: foto de 24 Fernandino de Moraes.

23

24

Zélio

OLIVEIRA. 2008. p. 91.

Fonte: Disponível em:
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