Montemuro e Paiva. Centro de interpretação e informação

May 22, 2017 | Autor: Lúcio Cunha | Categoria: Geoturismo, Serra do Montemuro, Geopatrimónio, Rio Paiva, Castro Daire
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O CONCELHO

FICHA TÉCNICA TÍTULO MONTEMURO E PAIVA, CENTRO DE INTERPRETAÇÃO E INFORMAÇÃO EDIÇÃO CÂMARA MUNICIPAL DE CASTRO DAIRE COORDENAÇÃO EON, INDÚSTRIAS CRIATIVAS, LDA · GLORYBOX, LDA TEXTOS ANTÓNIO CRESPI · ANTÓNIO VIEIRA · HELDER VIANA · JOÃO INÊS VAZ · LÚCIO CUNHA · PAULO ALMEIDA · PEDRO RIBEIRO · PEDRO SOBRAL DE CARVALHO · RAQUEL VILAÇA DESIGN GRÁFICO CATARINA SOUSA CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS DAVID GUIMARÃES · JOÃO INÊS VAZ · JOÃO PEDRO PINTO · JOÃO PETRONILHO · PAULO CELSO MONTEIRO · PEDRO SOBRAL DE CARVALHO IMPRESSÃO TIPOGRAFIA BEIRA ALTA TIRAGEM 500 EXEMPLARES ISBN XXXXXXXXX DEPÓSITO LEGAL XXXXXXXXX ANO 2014

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ÍNDICE

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1 INTRODUÇÃO

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3 O MONTEMURO 3.1. A SERRA 3.2. HABITATS E VIDA 3.3. A FLORESTA 3.4. MONTES DE FLORA 3.5. MONTEMURO, REFÚGIO DE VIDA SELVAGEM

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4 O PAIVA 4.1. O RIO DA VIDA 4.2. BOSQUES HÚMIDOS 4.3. A FAUNA

4 O PAIVA 55 61 65

5 A HISTÓRIA E O HOMEM 5.1. A MONTANHA E O RIO: O COMEÇO DA JORNADA HUMANA 5.2. DA ESCRITA LUSITANA À ALVORADA DAS NAÇÕES

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6 BIBLIOGRAFIA

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PEDRO SOBRAL DE CARVALHO

“Cuando el museo municipal transmite la vida, transmite algo interessante para qualquer ser humano; la vida nunca es aburrida e insulsa. Los que somos aburridos, en todo o caso, somos los museólogos o los professores que transformamos algo fundamental, dinâmico, cambiante y sorprendente como la vida en una série de imágenes muertas, carentes de interés!” (Santacana I Mestre & Llonch Molina, 2008)

Não fomos capazes de resistir à tentação de iniciar este texto com a transcrição deste pequeno trecho de Joan Santacana I Mestre e Nayra Llonch Molina sobre aquilo que hoje deve nortear quem faz museologia, servindo igualmente de alerta para todos aqueles que ainda pensam num museu como um espaço para unicamente mostrar e guardar peças. Os espaços expositivos, sejam eles museus, centros de interpretação ou outros, devem ter como premissa fundamental que devem ser pensados e estruturados para as pessoas. Devem ser espaços que transmitam informação capaz de chegar a todos independente da sua idade ou formação. Só assim é que se justifica o investimento nestes equipamentos. Os museus da nova geração são espaços confortáveis, esteticamente cuidados e que têm uma preocupação premente em transmitir conhecimento de uma forma apelativa. Por isso, quando se pensa num espaço expositivo há que ter em conta um enorme conjunto de pormenores que vão desde o tamanho do texto, à forma do mobiliário, às cores, à iluminação, às soluções tecnológicas, etc. Os museus têm que ser espaços de sensações e de emoções. A identidade de uma região encontra-se disseminada por um imenso conjunto de valores naturais e culturais que interagem e adquirem sentido quando interpretados em uníssono. Assim, quando visitamos um dólmen ou uma igreja, não nos podemos abstrair da sua envolvência natural e humana. Podemos e devemos olhar para o lado e ver uma

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capuchinha que passa por debaixo de um beiral de pedra de uma casa que já foi coberta por colmo ou ver um sardão a usufruir dos raios quentes do sol. A ideia de território tem que ser abrangente, deve compreender os aspetos culturais, o Homem, a sua história, mas deve também ter em atenção o espaço natural, as formas, a biodiversidade. Foi com esta orientação que foi pensado o Centro de Interpretação e Informação do Montemuro e Paiva. Instalado no antigo Solar dos Mendonças, revela um pouco de um vasto território delimitado pela Serra do Montemuro e o Rio Paiva. Pretende ser um espaço de partida e de conquista do território. Divide-se em 5 áreas distribuídas por dois pisos. No primeiro entramos numa sala que serve de receção, onde o visitante tem o primeiro contacto com o território, através de textos e de uma aplicação interativa e por onde pode aceder a uma sala em que se apresenta a rede de Percursos Pedestres do concelho de Castro Daire. O segundo piso tem início numa sala dedicada à História e ao Homem, onde se exibem algumas peças arqueológicas e que conta a história dos principais momentos

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da ocupação humana. O ambiente é escuro e intimista, criando uma relação entre o presente e o passado. A segunda sala mostra o Rio Paiva, a sua força e vigor. O impacto é criado através de um filme projetado numa das paredes. Aqui o visitante pode aceder também a uma aplicação interativa com conteúdos que compreendem não só aspetos da biodiversidade do Rio Paiva, mas também a relação do Homem com este importante curso de água. A terceira e última sala é dedicada à Serra do Montemuro. Aqui, através de uma cenografia contemporânea associada à projeção de um filme, o público pode aperceberse da influência que esta serra tem na identidade deste território. O que pretendemos com este centro é estimular os diversos públicos para quererem saber mais e partirem para a descoberta da Serra do Montemuro e do Rio Paiva, um dos rios menos poluídos da Europa. Queremos criar curiosidade, apetite em conhecer, em viajar, em percorrer, porque acima de tudo a vida nunca é aborrecida nem insossa.

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LÚCIO CUNHA E ANTÓNIO VIEIRA

Socalcos na Serra do Montemuro [Foto: JPetronilho]

O concelho de Castro Daire localiza-se num território dominado pela presença da Serra do Montemuro e do Rio Paiva. Do ponto de vista administrativo, localiza-se na Região Centro (NUTS II), integrando-se na sub-região Dão-Lafões (NUTS III). É constituído atualmente por 16 freguesias, sendo a vila de Castro Daire a sede do concelho com uma população de cerca de 4600 habitantes. O concelho de Castro Daire ocupa uma área de cerca de 379 km2, confrontando a norte com os municípios de Cinfães, Resende, Lamego e Tarouca, a oeste com os municípios de Arouca e São Pedro do Sul, a sul com Viseu e a este com Vila Nova de Paiva e Moimenta da Beira. Enquadramento regional do concelho de Castro Daire LAMEGO CINFÃES CASTELO DE PAIVA

TAROUCA CLASSES HIPSOMÉTRICAS OROGRAFIA (COTA)

AROUCA

CASTRO DAIRE

SÃO PEDRO DO SUL

VILA NOVA DE PAIVA

SÁTÃO

VISEU

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Densidade populacional nas freguesias do concelho de Castro Daire (2011) GOSENDE U. F. MEZIO E MOURA MORTA CABRIL U. F. PARADA DE ESTER E ESTER

ALMOFALA

MONTEIRAS

PINHEIRO U. F. PICÃO E ERMIDA

CUJÓ SÃO JOANINHO

CASTRO DAIRE U. F. RERIZ E GAFANHÃO PEPIM MÕES U. F. MAMOUROS, ALVA E RIBOLHOS

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Em termos populacionais, este território caracteriza-se por um baixo valor de população residente, à semelhança da generalidade dos territórios do interior montanhoso de Portugal, registando um valor total de apenas 15339 habitantes em 2011, o que representa um decréscimo de cerca de 9% relativamente a 2001. Com efeito, tem-se verificado neste território uma progressiva perda de população, comportamento que se tem verificado desde a década de 50 do século XX até aos nossos dias, contrastando com o contínuo crescimento observado à escala nacional até ao início do século XXI.

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A densidade populacional no concelho (40 hab/km2) vem também confirmar esta realidade, com um valor bastante inferior (menos de metade) ao correspondente ao território de Portugal Continental. Se atentarmos à distribuição da densidade populacional nas diversas freguesias do concelho, identificamos um comportamento típico de municípios montanhosos de interior, caraterizado pela concentração da população na freguesia sede de concelho, neste caso em Castro Daire (143 hab/km2), e por um esvaziamento do restante território concelhio, registando-se os valores mais reduzidos nas freguesias localizadas nas áreas mais montanhosas e afastadas da sede concelhia (Almofala, 12 hab/km2; Cabril, 18 hab/km2; Gosende, 20 hab/km2). O concelho apresenta uma estrutura populacional em que predomina a população adulta, verificando-se, no entanto, uma contínua redução da população jovem ao mesmo tempo que aumenta o número de idosos, conduzindo a um acelerado envelhecimento da população. Relativamente à população ativa, esta encontra-se essencialmente ligada aos setores terciário e secundário, observando-se um contínuo decréscimo da população ativa ligada ao setor primário, ainda assim com um peso relativo significativo (9%). A parte oriental do território concelhio é marcada, do ponto de vista morfológico, por extensas áreas planálticas, rasgadas pela incisão dos cursos de água que o atravessam, nomeadamente o Rio Paiva e seus afluentes. O setor norte, no entanto, apresenta uma morfologia bastante acidentada, onde se desenvolve a vertente sul da Serra do Montemuro, que se eleva até aos 1381 metros de altitude. A localização geográfica do município posiciona-o fora dos principais eixos de desenvolvimento económico, constituindo as caraterísticas físicas, e especialmente o relevo, um fator condicionante para o seu desenvolvimento. No entanto, as infraestruturas rodoviárias implementadas no final do século passado e início deste século (nomeadamente a A24) permitiram melhorar as acessibilidades, promovendo maiores interações com os territórios envolventes. As potencialidades naturais presentes neste território poderão, também, constituir fatores de desenvolvimento, pela atração turística e promoção da cultura e folclore locais.

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3.1. A SERRA

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Serra do Montemuro

LÚCIO CUNHA E ANTÓNIO VIEIRA

[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]

A Serra do Montemuro transmite, a priori, uma imagem de imponência, de vigor e de grandiosidade de formas. A diversidade geológica, morfológica e, mesmo, de ocupação antrópica, que encerra em toda a sua extensão, permite-nos constatar a existência de paisagens diversificadas, marcadas ora pela incisão dos cursos de água e por vertentes desnudadas e abruptas, ora por extensos retalhos aplanados, por pequenos lameiros em áreas levemente deprimidas e por bosques onde ainda podemos encontrar relíquias do coberto vegetal original, onde dominariam o carvalho-alvarinho e o carvalho-negral (este nas altitudes mais elevadas e vertentes mais sombrias, frias e húmidas), bem como outras espécies caducifólias, constituindo carvalhais caducifólios característicos das zonas temperadas. A constituição geológica, predominantemente granítica, acentua estes contrastes e enriquece as paisagens com uma profusão de formas peculiares, variadas na forma e na dimensão, tão características das regiões graníticas do Centro e Norte de Portugal. Local de inigualável beleza e riqueza morfológica e paisagística é, no entanto, uma região “marginal” e muito pouco conhecida. A sua imponência, a par com as suas adversas condições morfológicas e climáticas, desde sempre condicionaram a fixação da população e limitaram o seu desenvolvimento. Este facto é evidente num trabalho de Amorim Girão, convenientemente intitulado “Montemuro. A mais desconhecida serra de Portugal”, publicado no distante ano de 1940, bem como na escassa produção de teor científico sobre a Geografia da região. A Serra do Montemuro apresenta-se, do ponto de vista morfológico, como um imponente maciço granítico com vertentes abruptas, constituindo um relevo vigoroso com altitude máxima de 1381 metros no v.g. Montemuro, com uma forma grosseiramente triangular e claramente dissimétrica. A dissimetria morfológica que se observa entre as vertentes Norte e Sul, por um lado, e entre as vertentes Oeste e Este, por outro, tem a sua génese num conjunto

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complexo de fatores, que se relacionam intimamente com a estrutura geológica e são decorrentes da evolução do maciço, do magmatismo intrusivo que o criou, da sua posterior deformação e fraturação, mas também com a ação dos agentes da geodinâmica externa e particularmente com a dos dois principais cursos de água, os Rios Douro e Paiva. As características morfológicas associadas às adversidades climáticas, desde sempre condicionaram a fixação da população e limitaram o seu desenvolvimento, pelo que o fenómeno de despovoamento dos espaços rurais portugueses é aqui particularmente sensível. A perda contínua da população, o seu envelhecimento, o isolamento das povoações, a par com um vasto conjunto de fatores económico-sociais, com destaque para a reduzida diversificação da estrutura económica regional, a resistência estrutural à mobilidade intra e intersetorial e a má qualificação dos recursos humanos, são também, neste território, estrangulamentos importantes para políticas de desenvolvimento. No entanto, não há dúvida que este magnífico espaço montanhoso encerra em si um conjunto valioso e diversificado de elementos naturais capazes de potenciar a sua procura para diversas atividades, nomeadamente para o turismo de natureza, desportivo, científico e cultural. Do ponto de vista da sua riqueza natural, destacamos a presença de importante e diversificado património geomorfológico. Os elementos geomorfológicos, formas e depósitos, isolados, conjugados ou mesmo integrados em geossistemas mais amplos, contribuem decisivamente para que a paisagem da Serra do Montemuro constitua, além de palco natural de excecional beleza, área de significativa importância científica, ecológica, económica e cultural em termos das riquezas que encerra (Vieira, 2008). Além deste, outros valores merecem ser destacados, uma vez que também do ponto de vista cultural, a Serra do Montemuro apresenta um rico e vastíssimo património. Esta riqueza está patente nos monumentos, nas diversas manifestações religiosas (festas e romarias), nas feiras, nos diversos tipos de artesanato, na gastronomia típica da região e num sem número de outras práticas culturais (por exemplo, a transumância).

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Pastoreio [Foto: Pedro Sobral de Carvalho]

As influências das várias culturas que já passaram por este território, anteriormente referidas, traduziram-se num conjunto de vestígios que permanecem, ainda hoje, enraizados na cultura montemurana. Além dos topónimos ou das lendas relacionados com a presença árabe, muitas outras marcas do passado se podem observar, nomeadamente aquelas com carácter monumental. Apenas como exemplos, poderemos referir o castelo e a Sé de Lamego, as muralhas das Portas do Montemuro, bem como igrejas, solares e outros monumentos classificados. As manifestações religiosas traduzem a presença de uma cultura apoiada numa importante e enraizada crença religiosa, que atinge especial expressão nas áreas mais isoladas, como é o caso das aldeias da Serra do Montemuro, em virtude das dificuldades inerentes à localização geográfica afastada dos principais núcleos populacionais (cidades), de vias de comunicação importantes e afastadas de polos de dinamismo económico, político, social e cultural.

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escala e cabeção, os trabalhos de esteiraria e as tamancas em cabedal e madeira, entre outras. Uma das características de qualquer região portuguesa é a variedade e riqueza gastronómica, intimamente relacionada com a própria economia e cultura locais. Também na área do Montemuro se pode observar tal característica, da qual apenas destacaremos alguns dos inúmeros pitéus: torresmada à Montemuro, trutas de Escabeche, pão de milho caseiro, bolo podre, filhós de natal, entre muitas outras especialidades culinárias.

Luta de bois (Faifa, Castro Daire) [Foto: Pedro Sobral de Carvalho]

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Casa térrea com telhado de colmo (Gosende, Castro Daire) Foto: Pedro Sobral de Carvalho

Desta forma, as festas e romarias traduzem-se numa forma de expressão de uma cultura muito própria, muito pouco alterada, que se manteve mais ou menos constante ao longo de décadas (talvez séculos). Constituem também uma importante forma de reunião e de confraternização social. Acontecem um pouco por toda a serra, principalmente durante os meses de Verão, e são dedicadas a diversos santos, como, por exemplo, S. Pedro (Castro Daire), Sra. da Ouvida (Castro Daire), N. Sra. do Refúgio (Gosende, Castro Daire), entre muitos outros. Também as feiras podem ser consideradas como uma forma de património cultural local. Além de permitirem a dinamização do comércio em áreas caracterizadas pela estagnação económica, permitem ainda a divulgação de formas de produção tradicionais, relacionadas com o artesanato, tendo, nalguns casos, uma origem bastante remota. Das inúmeras feiras que se realizam na Serra do Montemuro, de carácter quinzenal, mensal ou anual, são de referir a Feira da Ouvida, que se desenrola junto da Capela da Sra. da Ouvida, ou a Feira das Portas do Montemuro, ambas de carácter anual. Quanto ao artesanato, várias são as formas típicas desta região: a tecelagem de linho e lã (colchas e mantas), as croças de palha, a cestaria, a latoaria, as correias de

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3. 2. HABITATS E VIDA

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Mata do Bugalhão (Picão, Castro Daire)

ANTÓNIO CRESPI E PAULO ALMEIDA

[Foto: DGuimarães]

A vida consiste numa complexa conjugação entre imaginação, vontade, respostas e variabilidade ambiental. Uma mistura tão intrincada como esta nunca pode ser boa, mas ninguém disse alguma vez que a vida fosse fácil. E é aqui, nesse destino fracassado, que reside a evolução. A capacidade asfixiante de proporcionar alternativas, de modo a poder responder a um ambiente que está em constante mudança. A metade norte de Portugal é um exemplo fantástico de como essa sentença a viver é uma fonte quase inesgotável de ilusão e esperança, que inevitavelmente fracassa e deve ser continuamente transformada. A diversidade geológica, morfológica e, mesmo, de ocupação antrópica, que encerra em toda a sua extensão, permite-nos constatar a existência de paisagens diversificadas, marcadas ora pela incisão dos cursos de água e por vertentes desnudadas e abruptas, ora por extensos retalhos aplanados, por pequenos lameiros em áreas levemente deprimidas e por bosques onde ainda podemos encontrar relíquias do coberto vegetal original, onde dominam o carvalho-alvarinho e o carvalho-negral (este nas altitudes mais elevadas e vertentes mais sombrias, frias e húmidas), bem como outras espécies caducifólias, constituindo carvalhais caducifólios característicos das zonas temperadas. As beiras portuguesas que hoje conhecemos formam parte de um sistema montanhoso dinâmico, em transformação contínua. Até nós chegou uma monumental e formidável paisagem erosiva, de irregulares planaltos sulcados por profundos e abruptos vales. Uma verdadeira montanha russa de microclimas e variações ambientais, em que a vida transcorre violenta e desafiante. Este difícil quadro geomorfológico, continuamente humedecido pela proximidade ao Oceano Atlântico, resulta de um processo morfogénico com mais de duzentos milhões de anos de história. Sobre fundações Câmbricas foi criada uma das cadeias montanhosas mais elevadas da história do planeta Terra, a cadeia Hercínica. Esta cordilheira Pérmica foi determinante para criar uma das mais intensas e prolongadas crises biológicas do planeta Terra. O que obrigou a uma verdadeira reinicia-

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ção de todo o sistema que, como todas as reiniciações, fazem com que seja preciso pôr mais atenção naquilo que vai ser feito de novo, ao mesmo tempo que obriga a analisar as razões desse “apagão” forçado. Várias outras crises tiveram lugar depois desta, sendo duas delas de intensidade muito semelhante àquela. Por esta razão, as plantas vasculares desenvolveram respostas cada vez mais diversificadas e competitivas, explorando especialmente a plasticidade das formas e as vantagens da propagação por sementes e as potencialidades que os frutos proporcionam. As crises ambientais são desafios para a vida, e as plantas vasculares são exemplos de um esforço por procurar cada vez mais respostas, aprofundando nas possibilidades que essas respostas podem vir a criar. Mas para estimular respostas é preciso fazer perguntas, e a Serra do Montemuro e o concelho de Castro Daire são um palco natural e antrópico excecional para que isso aconteça. A Serra do Montemuro posiciona-se no Sudoeste do complexo montanhoso ocidental presente no quadrante noroeste da Península Ibérica. Este subsistema montanhoso é um excelente exemplo da malha serrana que tão bem caracteriza a paisagem beirã. A combinação ambiental que acompanha esta área é comum entre as outras subformações: um substrato silicícola em depressão geomorfológica desgarrado por indomáveis e violentos cursos de água permanentes, neste caso protagonizados pelo irreverente Rio Paiva. Um cenário ambiental como este acaba por desenvolver uma cobertura vegetal muito diversa e variada. Pastagens naturais cobrindo as cumeadas, em que estratos herbáceos sempre vivos convivem em perfeita harmonia com um, também persistente e contínuo, coberto de pequenos arbustos. Restos muito bem conservados dos bosques arcaicos húmidos de Salgueiros, Amieiros, Sanguinhos, Loureiros e Freixos, agora protegidos ao longo das margens dos cursos de água, ou nos embalsamentos e depressões sedimentares serranas. Formidáveis matagais de Giestas, Urzes, Torgas e Carquejas que envolvem carvalhais mistos de Carvalhos-negrais, Carvalhos-alvarinhos e Sobreirais. Circundando o irrequieto e ziguezagueante curso fluvial, escarpadas encostas de rochas magmáticas lentamente arrefecidas, erodidas e por vezes intensamente metamorfizadas proporcionam um excelente espaço para uma rica e diversificada vegetação rupícola, onde numerosas espécies casmofíticas procuram abrigo e espaço vital. Em definitivo, um orgulhoso e exuberante recobrimento vegetal herbáceo, arbustivo e arbóreo sempre expectante e revigorante neste muro vivo dos montes.

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Giesta branca (Cytisus multiflorus) [Foto: DGuimarães]

Urze (Erica spp.) [Foto: DGuimarães]

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3. 3. A FLORESTA

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Floresta primaveril (Montemuro)

HELDER VIANA

[Foto: JPetronilho]

As florestas são um património vivo que albergam cerca de 80% da biodiversidade terrestre. Elas são fundamentais para renovar o oxigénio que respiramos, fixar o carbono atmosférico, proteger os lençóis freáticos, regularizar o regime hídrico do solo, preservar os cursos de água, controlar a erosão, acolher a fauna selvagem, e valorizar a paisagem. Como recurso natural renovável oferece inúmeros proveitos e serviços, como a lenha para aquecimento, madeira para construção, utensílios para a agricultura, produtos para alimentação humana e animal, entre outras múltiplas funções, sendo uma inesgotável fonte de vida, de riqueza e bem estar. A diversidade vegetal existente no Montemuro é o resultado da evolução milenar das condições paleoclimáticas, associada às atividades que o Homem imprimiu neste Carvalho-alvarinho (Quercus robur) [Foto: DGuimarães]

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Sobreiro (Quercus suber) [Foto: JPetronilho]

território, a partir do Neolítico. O corte de árvores para a produção de madeira, lenhas e carvão, a implantação da agricultura e a prática da pastorícia, intimamente ligadas ao uso do fogo, e a introdução de espécies em arborizações moldaram a paisagem florestal que, atualmente, aqui prevalece. Em Castro Daire, perduram espécies nativas, nas encostas, a menores altitudes, como o carvalho-alvarinho (Quercus robur), o carvalho-negral (Quercus pyrenaica) e o castanheiro (Castanea sativa), dominadas por plantações extensivas de pinheiro-bravo (Pinus pinaster), e alguns povoamentos exóticos de eucalipto (Eucalyptus globulus) que, gradualmente, substituíram a flora primitiva. Frequentemente aparece o sobreiro (Quercus suber) e alguns azevinhos (Ilex aquifolium), que têm estatuto de proteção, mas também significativas manchas, em expansão, das invasoras mimosas (Acacia dealbata). Ao subir para as zonas de cumeada, onde a vegetação arbórea escasseia, medram os vidoeiros (Betula alba) e o carvalho-negral. Nas margens dos cursos de água abundam os amieiros (Alnus glutinosa), os salgueiros (Salix alba, Salix atrocinerea, Salix salviifolia) e os freixos (Fraxinus angustifolia).

Pinheiro-bravo (Pinus pinaster) [Foto: JPetronilho]

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3.4. MONTES DE FLORA

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Cravo do monte (Armeria beirana)

ANTÓNIO CRESPI E PAULO ALMEIDA

[Foto: JPetronilho]

Montemuro, tal como as Meadas, Arouca ou Caramulo integram o complexo montanhoso que gradualmente vai formando uma barreira climática entre o Oceano Atlântico e o interior Peninsular. Os vales que vão surgindo intercalados ao longo desta barreira montanhosa proporcionam uma variabilidade ambiental inesperada, excelente para estimular respostas entre as plantas vasculares. Esta barreira natural, que trava a influência atlântica, contribui para que os intervalos térmicos e pluviométricos sejam gradualmente maiores à medida que avançamos para o interior. Desse modo é criada uma zona natural de transição intermédia, entre a parte mais húmida – mais próxima da costa Atlântica – e a mais seca – mais próxima da raia fronteiriça. Esta faixa intermédia não só permite uma combinação florística única, como também provoca uma diversidade muito variada de microclimas e de autênticos refúgios naturais. Pela sua vez, nestes refúgios é desenvolvida também uma evolução climática própria, o que facilita processos de transformação genuínos e distintivos. Tais processos são os que fazem das serras ocidentais Peninsulares berços de diversidade florística endémica, genuínas arcas de riqueza florística. A dinâmica física já referida estimula a resposta dos seres vivos, neste caso das plantas vasculares. Neste sentido, as respostas que os indivíduos proporcionam às contínuas e constantes alterações ambientais, que fazem com que cada dia seja um novo desafio, são expressas em formas de vida e morfologias diferentes. A maior ou menor diversidade de estratégias e formas que encontramos entre as árvores, arbustos e ervas são sinais dessas respostas que as plantas vasculares desenvolvem perante cenários em contínua mudança. Obviamente, entre todo esse conjunto de respostas há algumas que conseguem ser mais eficientes do que outras, tendo assim uma maior presença. Contudo, o facto das condições ambientais estarem sempre a mudar (comparemos, por exemplo, a climatologia de um ano com a do ano anterior ou a do ano seguinte) impede que se imponha o protagonismo entre algumas dessas respostas. Este

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fenómeno obriga, deste modo, a que perante cenários ambientalmente muito diversos seja necessário ter o maior número de respostas. Por esta razão, os ecossistemas expostos a estas situações ambientais tão variáveis acabam por criar muitas estratégias próprias e genuínas, que facilitem essa tarefa funcional. Surgem assim o que tecnicamente designamos por comportamentos endémicos ou endemicidades. Para compreendermos melhor esta dinâmica evolutiva imaginemos um determinado conjunto de um mesmo tipo de plantas, por exemplo, o caso das Estevas. A metade oeste da Península possui uma diversidade certamente destacável de Estevas e Estevinhas, mas centremo-nos num dos seus géneros, neste caso no género Halimium. Sobre este género surgem diferentes respostas ao longo do país, umas mais eficientes em altitude (o exemplo da Estevinha-das-serras, ou Halimium umbellatum subsp. umbellatum, presente na Serra do Montemuro) e outras mais eficientes em cotas mais baixas. O maior ou menor número dessas respostas, às que classificamos como “diferentes” ou endémicas, depende diretamente da variabilidade ambiental que Portugal encerra. Ao mesmo tempo, esse número dependerá sempre da utilidade que esse conjunto de plantas possa ter para o ecossistema ou ecossistemas em causa. No caso da Península Ibérica, e mais especificamente da sua metade oeste, a cadeia montanhosa Galaico-Portuguesa formou um complexo conjunto de ecossistemas associado a uma igualmente complexa dinâmica ambiental. Esta combinação acabou não só por desenvolver um monumental esforço criador, no sentido de estimular respostas próprias e, deste modo, mais endemismos. Ao mesmo tempo, e em consonância com a dinâmica climática inerente a este processo, houve também uma contínua migração de indivíduos ao longo desta cadeia montanhosa. Essa corrente migratória transformou essas serras em verdadeiros “corredores biológicos”, pelos quais transitam espécies à procura de condições ambientais em que consigam ser funcionalmente eficientes (e, portanto, consigam sobreviver). Neste sentido, e voltando ao exemplo da Estevinha-das-serras, o facto de responder a um conjunto de condições ambientais típica e exclusivamente serranas obriga esta planta a que, perante alterações climáticas, tenha que procurar sempre espaços vitais ao longo deste complexo montanhoso. Uma circunstância como esta faz com que a distribuição atual desta Estevinha esteja basicamente restringida à cadeia montanhosa Galaico-Portuguesa, sendo que ao lon-

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Esteva (Cistus ladanifer) [Foto: DGuimarães]

Roselha (Cistus crispus) [Foto: JPetronilho]

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go deste espaço consegue encontrar o meio de se deslocar para norte ou para o sul, consoante as condições ambientais sejam mais quentes ou mais frias. Montemuro e Castro Daire estão situados numa zona privilegiada desse sistema montanhoso ocidental, pois a sua orientação e posição mais meridional não afastou as influências da frente polar nos períodos de avanço glaciar. Esta área também possui a heterogeneidade ambiental suficiente para acolher e criar um vasto conjunto de diversidade florística. Por este motivo, aqui chegou uma importante quantidade de flora vinda especialmente das formações Alpino-Pirenaico-Cantábricas, que encontraram em Montemuro e nas serras adjacentes um excecional refúgio natural, enquanto foram empurradas pelo avanço da frente polar nos períodos mais frios. Esta flora que até aqui chegou acabou por desenvolver comportamentos próprios, através de processos evolutivos de especiação, criando esse germoplasma genuíno ou endémico. Armeria beirana, Arenaria querioides, Halimium umbellatum subp. umbellatum, Knautia nevadensis, Ornithogalum concinum, Dianthus pungens subps. langeanus, Tuberaria guttata, Dactylorrhiza caramulensis, Scilla verna subsp. ramburei, Centaurea herminii, Paradisea lusitanica, Rubus lainzii, Pterospartum tridentatum subp. cantabricum são alguns dos exemplos que ajudam a diferenciar.

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Carqueja (Pterospartum tridentatum) [Foto: DGuimarães]

Centáurea (Centaurea herminii) [Foto: DGuimarães]

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3. 5. MONTEMURO, REFÚGIO DE VIDA SELVAGEM

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Lagarto-d’água (Lacerta schreiberii)

PEDRO RIBEIRO

[Foto: DGuimarães]

A elevada precipitação e a diversidade das formações vegetais e das características do terreno na Serra do Montemuro criam uma heterogeneidade de habitats que, por sua vez, permite a existência de uma grande variedade de fauna. Foram observadas, nesta serra, cerca de 33 espécies de mamíferos, 100 de aves, 18 de répteis, 11 de anfíbios, 14 de peixes e numerosas espécies de invertebrados. Em termos geográficos, muitas existem unicamente na Península Ibérica (endemismos ibéricos), como é o caso da borboleta nêspera-dos-lameiros (Coenonympha iphioides), da boga, do barbo, do bordalo, da rã-ibérica, da rã-de-focinho-pontiagudo, do tritão-de-ventre-laranja, da salamandra-lusitânica, do lagarto-de-água, da cobra-de-pernas-pentadáctila, da lagartixa-de-Carbonell, da cobra-cega, do musaranho-de-dentes-vermelhos e da toupeira-de-água. O grupo dos insetos constitui a maior parte da fauna da Serra do Montemuro. Alguns alimentam-se de plantas e de materiais em decomposição, outros capturam ou parasitam animais. Nesta área floristicamente colorida, as borboletas são numerosas a partir da primavera. Em declínio na Europa, a fritilária-dos-lameiros (Euphydryas aurinia) tem estatuto de proteção legal, bem como Callimorpha quadripunctaria. A extraordinária relação de parasitismo social entre a rara borboleta-azul-das-turfeiras (Phengaris alcon) e as formigas do género Myrmica pode ser constatada em terrenos húmidos da serra (por exemplo, próximo de Campo Benfeito). Os urzais-tojais e os cervunais do Montemuro, do Alvão e do Marão constituem o limite sul de distribuição da borboleta na Europa e são os únicos habitats onde esta se encontra. Após efetuar a postura, em julho e agosto, nas flores da genciana-das-turfeiras (Gentiana pneumonanthe), dá-se a eclosão e as suas larvas alimentam-se dentro dos ovários da planta. Posteriormente, são “adotadas” e nutridas pelas formigas, que pensam tratar-se de larvas da sua espécie, e desenvolvem-se no formigueiro até ao início do ve-

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rão do ano seguinte. Transformam-se em pupa e o adulto surge algum tempo depois, abandonando rapidamente o formigueiro por perder a capacidade de “camuflagem” e passar a ser considerado inimigo (Thomas, 1995). Nos belos carvalhais da serra encontramos o maior escaravelho da Europa, a vaca-loura (Lucanus cervus), importante para os ecossistemas pelo contributo no processo de decomposição de cepos de folhosas. Um dos grupos de insetos mais primitivos, as libélulas, existe aqui com alguma abundância e diversidade. Chamam-lhes “tira-olhos” apesar de serem completamente inofensivas para o Homem. As onze espécies de anfíbios identificadas na Serra do Montemuro correspondem a 65% do total de anfíbios que ocorrem em Portugal. Nos troços bem conservados da bacia do Paiva, encontramos a, cada vez mais rara, salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica) que, para desviar a atenção dos predadores, pode libertar a cauda quando se sente ameaçada, mecanismo comum nos lagartos mas muito invulgar nos anfíbios. Esta, e a rã-castanha ou ibérica (Rana iberica) são típicas de ribeiros de água corrente de zonas montanhosas e só se encontram na Península Ibérica. Outro endemismo ibérico, a rã-de-focinho-pontiagudo (Discoglossus galganoi), apesar de mais semelhante a uma rã (tem pele lisa como as rãs) é, na realidade, um sapo de hábitos extremamente discretos e, por isso, de difícil observação. Requer maior atenção e cuidado devido à diminuição da área de ocupação e à fragmentação das populações (Cabral et al., 2006). Ainda entre os anfíbios, há a destacar: a abundante rã-verde (Rana perezi); o endemismo ibérico tritão-de-ventre-laranja (Triturus boscai); o tritão-marmorado (Triturus marmoratus); a bem conhecida salamandra do fogo ou salamandra-de-pintas-amarelas (Salamandra salamandra); o ágil sapo-corredor (Bufo calamita); a trepadora rela-comum (Hyla arborea); o pequeno e robusto sapo-parteiro-comum (Alytes obstetricans); e o maior anuro (grupo de anfíbios sem cauda, em adulto) português, o sapo-comum (Bufo bufo), frequente vítima de atropelamento. Os adultos de muitas espécies apresentam hábitos quase exclusivamente terrestres, todavia, como dependem do meio aquático para deposição dos ovos, os locais mais propícios à observação de anfíbios são charcos, cursos de água, tanques, grutas e minas.

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Rã-de-focinho-pontiagudo (Discoglossus galganoi) [Foto: JPetronilho]

Salamandra-de-pintas-amarelas (Salamandra salamandra) [Foto: JPetronilho]

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Nas migrações para estes habitats de reprodução, a mortalidade por atropelamento é elevada. A reduzida mobilidade e a capacidade de dispersão limitada torna-os muito sensíveis a alterações no habitat e, portanto, bioindicadores da qualidade do meio. Relativamente aos répteis, estão assinaladas, na Serra do Montemuro, dezoito espécies, ou seja, 67% do total de répteis que ocorrem em Portugal Continental. Contrariamente aos anfíbios, a maioria prefere áreas secas e expostas. Os ditados populares tornam o licranço (Anguis fragilis) um dos animais mais temidos da nossa fauna. Na verdade, este lagarto é inofensivo e, por não ter membros, é confundido com uma cobra e conhecido por cobra-de-vidro. Outros lagartos com nome de cobra são a cobra-de-pernas-tridáctila (Chalcides striatus), observada em áreas húmidas com abundante vegetação herbácea, e a cobra-de-pernas-pentadáctila (Chalcides bedriagai), em maior risco de extinção e necessitando de um habitat menos húmido e mais pedregoso, sendo um endemismo ibérico. O sardão (Lacerta lepida) é o maior lagarto do Montemuro, podendo alcançar 80 cm. Tem a capacidade de soltar a cauda se se sentir ameaçado por cobras, algumas aves e mamíferos. O lagarto-de-água (Lacerta schreiberi), endemismo do noroeste peninsular, vive, como o próprio nome indica, junto a cursos de água. De menor tamanho que os lagartos, três espécies de lagartixas estão assinaladas no Montemuro: a lagartixa-do-mato (Psammodromus algirus), que prefere áreas arbustivas; a sardanisca ou lagartixa ibérica (Podarcis hispanica), que prefere áreas rochosas, inclusive urbanizadas, e a rara e ameaçada lagartixa-de-Carbonell (Podarcis carbonelli). Perfeitamente adaptada à vida subterrânea, a cobra-cega (Blanus cinereus) escava galerias e localiza as suas presas mais pela audição do que pelo olfato. Os olhos são bastante reduzidos. Das oito espécies de serpentes que se podem encontrar no Montemuro, apenas a víbora-cornuda (Vipera lalastei) é potencialmente perigosa para o Homem mas a probabilidade de mordida é muito baixa e só ocorre em caso de defesa. As restantes sete espécies são: a rara cobra-lisa-europeia (Coronella austriaca); a pequena cobra-lisa-meridional (Coronella girondica); a cobra-de-água-de-colar (Natrix natrix) que, apesar do nome, se pode encontrar em diversas áreas, muitas vezes afastadas dos

Cobra-de-pernas-tridáctila (Chalcides striatus) [Foto: JPetronilho]

Cobra-de-água-de-colar (Natrix natrix) [Foto: JPetronilho]

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pontos de água; a cobra-de-água-viperina (Natrix maura), associada a habitats aquáticos onde estão presentes as suas presas (peixes e anfíbios); a ágil cobra-de-escada (Elaphe scalaris); a cobra-de-ferradura (Coluber hippocrepis), espécie que mais facilmente pode aparecer nas zonas habitadas; e a maior serpente da Península Ibérica, a cobra-rateira (Malpolon monspessulanum), frequente vítima de atropelamento. Na serra, há relatos de capturas de víbora-cornuda para o uso em medicamentos tradicionais, amuletos e poções, prática que, a par da aversão e dos medos relativamente à maioria dos répteis, constituem sérias ameaças à sua sobrevivência. É infundada a crença na grande perigosidade dos répteis. Na verdade, desempenham um papel importante na agricultura por controlarem populações de insetos e roedores. Por outro lado, fazem parte da dieta de muitos mamíferos e aves de rapina de elevada importância conservacionista. Entre migratórias e residentes, ocorrem na serra, cerca de cem espécies de aves. A diversidade de habitats é vital para a sobrevivência e permanência de uma abundante avifauna na região. A petinha-dos-campos pode ser frequentemente avistada em áreas de vegetação aberta e o chasco-cinzento e o melro-das-rochas nos ambientes rochosos das partes mais elevadas da serra. O mosaico de matos, prados e cultivos, permite a existência da sombria. Quanto às aves de rapina, pode ver-se a voar, nas zonas altas, o tartaranhão-caçador, espécie considerada em perigo de extinção em Portugal. A coruja do mato (Strix aluco) e o pica-pau-malhado-grande (Dendrocopos major) percorrem os vestígios de carvalhal que orlam os campos agrícolas. Nos rios, o guarda-rios (Alcedo athis) alimenta-se de pequenos peixes e o melro-de-água (Cinclus cinclus) mergulha a alguma profundidade, capturando larvas de insetos, das quais se alimenta. A riqueza ornitológica desta área é, também, valorizada pelo estatuto de proteção ou pela distribuição localizada de algumas espécies. Assim, importa referir: o açor (Accipiter gentilis), o tartaranhão-cinzento (Circus cyaneus), o tartaranhão-caçador (Circus pygargus), o bufo-real (Bubo bubo), a ógea (Falco subbuteo), o bútio-vespeiro (Pernis apivorus), o noitibó-da-europa (Caprimulgus europaeus), a sombria (Emberiza hortulana), a petinha-dos-campos (Anthus campestris), a toutinegra-carrasqueira (Sylvia cantillans), a alvéola-amarela (Motacilla flava), a cotovia-pequena (Lullula ar-

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Melro-das-rochas (Monticola saxatilis) [Foto: DGuimarães]

Petinha-dos-campos (Anthus campestris) [Foto: DGuimarães]

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borea), o melro-das-rochas (Monticola saxatilis), o chasco-cinzento (Oenanthe oenanthe), a felosa-do-mato (Sylvia undata), o papa-amoras-comum (Sylvia communis) e a felosa-de-Bonelli (Phylloscopus bonelli). Na Serra do Montemuro ocorre uma importante comunidade de mamíferos selvagens (pelo menos, 33 espécies). Das vinte e cinco espécies de morcegos conhecidas em Portugal, foram identificadas treze na serra, destacando-se o morcego-rato-pequeno (Myotis blythii), classificado como “criticamente em perigo” pelo declínio acentuado e fragmentação das suas populações, e também o morcego-rato-grande (Myotis myotis) e o morcego-de-peluche (Miniopterus schreibersii), estes com estatuto de “vulnerável” devido à reduzida área de distribuição (Cabral et al., 2006). Utilizando ecos de ultrassons como sistema de localização, as espécies portuguesas chegam a capturar e ingerir, por dia, mais de metade do seu peso em insetos, desempenhando um importantíssimo papel nos ecossistemas. No grupo dos mamíferos ribeirinhos salienta-se a lontra (Lutra lutra) e a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), esta endémica da Península Ibérica e com estatuto de conservação desfavorável devido à diminuição do seu efetivo populacional. Apesar de ser parente da toupeira-comum, não escava túneis no solo, dependendo de águas límpidas e da vegetação das margens. A lontra, ainda que tenha uma grande versatilidade alimentar, prefere capturar as trutas e carpas do Paiva. As suas populações têm-se mantido estáveis em Portugal mas em declínio em vários países europeus (Cabral et al., 2006). O ouriço-cacheiro (Erinaceus europaeus) obtém alimento, frequentemente, junto aos rios. Os seus 6000 espinhos aguçados permitem a defesa contra os predadores mas não contra os atropelamentos de que é, frequentemente, vítima. A serra é refúgio de muitos outros mamíferos. Alguns pertencem ao grupo dos mais pequenos do mundo, porém com um apetite insaciável. É o caso do musaranho-de-água (Neomys anomalus) e do musaranho-de-dentes-vermelhos (Sorex granarius). Infatigável corredor de longas distâncias, o lobo-ibérico (Canis lupus), perseguido pelo Homem nos últimos séculos, parece ter aqui uma parte relevante da população da espécie a sul do Douro. Espera-se que a implementação adequada das medidas de conservação a esta espécie, estritamente protegida, possibilite a viabilidade da pequena, isolada e fragmentada subpopulação a sul do Douro.

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A relevância ecológica da Serra do Montemuro para a sobrevivência de várias espécies e para a conservação de diversos habitats, alguns dos quais associados a formas e práticas agrícolas tradicionais, conduziu à sua classificação como Sítio de Importância Comunitária (PTCON0025), no âmbito da rede de áreas protegidas da União Europeia (Natura 2000). Em termos faunísticos, o Sítio Serra do Montemuro é considerado muito importante para a conservação do lobo, da lontra, da toupeira-de-água, da salamandra-lusitânica, do lagarto-de-água, da boga, do bordalo e de diversos invertebrados (ICN, 2006).

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Ouriço-cacheiro (Erinaceus europaeus) [Foto: JPetronilho]

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4.1. O RIO DA VIDA

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Rio Paiva

LÚCIO CUNHA E ANTÓNIO VIEIRA

[Foto: JPetronilho]

Com as suas cabeceiras na serra de Leomil (no concelho de Moimenta da Beira), a cerca de 1000 metros de altitude, o Rio Paiva trilha o seu percurso de cerca de 110 km de extensão até atingir a sua foz, na margem esquerda do rio Douro, a 20 metros de altitude. Este seu percurso é realizado sobre diferentes substratos rochosos, desde granitos de diferentes composições, a rochas xistentas de idades diversas, adaptando-se a eles de forma diferenciada, tal como se adapta aos diversos acidentes tectónicos que afetam o seu trajeto, alterando o seu comportamento ao sabor das adversidades ou facilidades estruturais que enfrenta. De facto, o Rio Paiva pode considerar-se um rio multifacetado. Na primeira parte do seu percurso, o chamado alto Paiva, apresenta-se como um rio de planalto, circulando em vales abertos, com um leito pouco sinuoso. É assim o seu percurso nos granitos, até passar Vila Nova de Paiva. A transição para um substrato composto por rochas xistentas obriga-o a alterar o seu comportamento, evidenciando grandes meandros, com vales encaixados, que se tornam mais imponentes quando se confronta com os volumes montanhosos da Arada e de Montemuro. É essencialmente a partir de Castro Daire que o Paiva parece ganhar um novo fulgor, atiçado pelas ruturas de declive que promovem o aparecimento de rápidos e o tornam um autêntico rio de montanha. De facto, é a alternância entre rochas graníticas e xistentas a principal responsável pelo comportamento tumultuoso do Paiva no seu setor médio. Ainda assim, encontramos neste vale fortemente encaixado entre montanhas pequenos trechos onde ele se alarga, por influência de zonas de fragilidade tectónica, como o setor entre Ermida e Reriz, onde a facilitada deposição de sedimentos permite o desenvolvimento da prática agrícola nos terraços que por aí se formaram. Também a vegetação parece acompanhar as mudanças de “caráter” do Paiva: enquanto no planalto observamos uma menor presença da vegetação do estrato arbóreo,

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RIO DOURO

CASTELO DE PAIVA

ERMIDA

CASTRO DAIRE

Percurso do Rio Paiva, desde as cabeceiras, na serra de Leomil, até ao rio Douro.

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AROUCA

100 0

SERRA DA FREITA E ARADA

CINFÃES RIO ARDEN

RIO FRADES

A

RIO

DO

UR

O

SERRA DO MONTEMURO S. MACÁRIO

S. PEDRO DO SUL RIO

O

OEIR

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CASTRO DAIRE

AU

RIO M

OVO

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VILA NOVA DE PAIVA

SERRA DE LEOMIL MOIMENTA DA BEIRA

SÁTÃO

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40.000

COMPLEXO XISTO-GRAUVÁQUICO

GRANITO ALVARENGA

GRANITO DE CASTRO DAIRE

PALEOZÓICO

GRANITO DE PEPIM/MÕES (CALDE)

GRANITO DE CASTELO DE PAIVA

45.000

50.000

55.000

60.000

65.000

RUTURA DE DECLIVE

já as vertentes íngremes do Montemuro e Arada a jusante de Castro Daire presenteiam-nos com uma luxuriante vegetação, atualmente dominada pelo pinheiro e pelo eucalipto. De facto, as vertentes voltadas a Sul e Sudoeste e praticamente todo o setor Noroeste da Serra do Montemuro apresentam um grande desenvolvimento do estrato arbóreo. Observam-se aqui extensas manchas plantadas de Pinheiro bravo (Pinus pinaster Aiton), em povoamentos puros ou misturados com eucaliptos (Eucalyptus globulus), ocorrendo ainda alguns redutos, por vezes de extensões consideráveis, de vegetação autóctone (bosques característicos da vegetação clímax) composta por matas de Carvalho alvarinho (Quercus robur L.) e Carvalho negral (Quercus pyrenaica Willd), além do Castanheiro (Castanea sativa) que forma também importantes manchas. O Pinheiro bravo não vai muito acima dos 900 metros de altitude na Serra do Montemuro. Aliás, ele ocupa preferencialmente as áreas de altitude inferior ao longo do vale do Paiva, no concelho de Castro Daire, onde encontramos importantes manchas. Também o eucalipto apresenta na Serra do Montemuro um desenvolvimento significativo, ainda que extremamente localizado. As manchas de povoamento estreme estendem-se de forma quase contínua ao longo do vale do Paiva, com alguma importância no concelho de Castro Daire. De facto, o concelho de Castro Daire carateriza-se por um predomínio da ocupação florestal do solo. Tendo em consideração a Carta de Ocupação do Solo de 2007 (Instituto Geográfico Português) a classe correspondente a “Florestas e Meios Naturais

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Perfil longitudinal do Rio Paiva, de Castro Daire ao rio Douro.

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e Semi-naturais” representa mais de 80% da área do concelho. Com efeito, os condicionalismos físicos limitam o uso do solo para outras atividades, nomeadamente para a agricultura, embora o despovoamento progressivo que este território tem sofrido ao longo dos tempos seja também um fator determinante. Não é de estranhar, portanto, que a ocupação agrícola do solo seja reduzida, ainda assim representando cerca de 16% da área total do concelho. A presença de uma fauna e flora bastante ricas e a existência de habitats de preservação prioritária conduziu ao estabelecimento, nesta região, de figuras de proteção legal, de âmbito nacional ou internacional, por forma a tentar preservar um património natural rico e potencialmente ameaçado. No âmbito da Rede Natura 2000, foi delimitado o Sítio Rio Paiva, com o objetivo de promover um desenvolvimento sustentável, ponderando a forma adequada de desenvolvimento das atividades humanas, por forma a reduzir os impactos provocados no ambiente. Este Sítio, caracterizado pela sua forma linear, é constituído por uma vegetação ripícola relativamente bem conservada, onde pontuam bosques de amieiros (Alnus glutinosa) formando galeria, aos quais se sucedem os carvalhais de Quercus robur. A qualidade reconhecida da sua água constitui um aspeto fundamental para a conservação da fauna aquática e ribeirinha, da qual se destacam a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), a lontra (Lutra lutra) e o lagarto-de-água (Lacerta schreiberi). É, também, um elemento fundamental no que ao lobo diz respeito, uma vez que constitui uma importante zona de passagem e ligação entre as serras do Montemuro, Freita/Arada e Lapa/Leomil (ICN, 2006). Para além dos elementos naturais da fauna e da flora, também os elementos geomorfológicos e hidrológicos se revelam de elevado valor. Com efeito, para além de se constituírem como elementos estruturantes da paisagem e serem o suporte para o desenvolvimento da vida, permitem o desenvolvimento de um sem número de atividades antrópicas, nomeadamente algumas de lazer e desporto. A presença de vertentes com acentuado declive são, com efeito, indispensáveis para a prática da escalada ou do rappel, tal como as atividades aquáticas como o rafting ou o canyonnig necessitam de cursos de água com características específicas. O vale do Rio Paiva apresenta, neste sentido, elementos morfológicos e hidro-morfológicos com condições excelentes,

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indispensáveis para a prática de diversas atividades desportivas enquadráveis dentro do designado desporto de natureza. Com efeito, realizam-se diversas iniciativas, de caráter pontual ou mesmo regular, que exploram estas potencialidades do Rio Paiva, que no setor a jusante de Castro Daire nos presenteia com uma série de rápidos e interessantes ruturas de declive, reunindo condições excecionais para a prática de, por exemplo, canoagem e rafting. Efetivamente, este troço do Paiva é não só procurado por empresas de desportos náuticos fluviais direcionadas para o turismo/lazer, mas também para a realização de eventos desportivos. Na verdade, para além da sua utilização em desportos de elevada energia e adrenalina, os chamados desportos “radicais”, as suas águas, essas ainda límpidas e cristalinas, tumultuosas no inverno, mais calmas no período estival, presenteia-nos ainda com alguma abundância de fauna piscícola (maioritariamente truta), fazendo jus à designação do “mais despoluído rio da Europa”. Rápidos do Rio Paiva [Foto: Paulo Celso Monteiro]

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4.2. BOSQUES HÚMIDOS

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Bosque húmido no Rio Paiva

ANTÓNIO CRESPI E PAULO ALMEIDA

[Foto: JPetronilho]

A formação da bacia Mediterrânica tem vindo a ser um processo complexo e difícil, pois não só implicava a gestação de um mar interior (o mar Mediterrâneo), como também a gestação de uma diversidade climática diversa, complexa e extremamente dinâmica. Por esta razão, falarmos hoje de “mediterraneidade” é fazer referência a um intrincado e muito instável conjunto de comportamentos ambientais, que passam desde situações hiperhúmidas até ambientes quase desérticos. Para que um regime climático Mediterrânico tenha lugar é preciso conjugar duas circunstâncias num mesmo espaço e tempo: a presença de invernos e a concentração das precipitações ao longo do ano. A existência de invernos insere-se no âmbito dos processos glaciares, pelo que gradualmente este fenómeno climático vai sofrendo um amortecimento que suaviza cada vez mais as temperaturas mínimas. Os fenómenos glaciares, e os períodos invernais que os acompanham, resultam de uma combinação entre a inclinação planetária, a órbita terrestre e a posição das placas continentais. Já a concentração das precipitações forma parte do comportamento paleotropical monçónico, que foi o que combinado com os processos glaciares e a formação da bacia Mediterrânica acabaria por formar aquilo ao que designamos por regimes climáticos Mediterrânicos. Esta última circunstância faz com que regimes paleotropicais, caracterizados pela concentração da precipitação sob dinâmicas climáticas monçónicas, sejam os que mais facilmente consigam desenvolver fenómenos de mediterraneidade. De facto os climas com este regime de monção não só concentram as chuvas num determinado período do ano, como também permitem a presença de invernos mais ou menos rigorosos. Nas atuais circunstâncias, grande parte da Península Ibérica vive sob o efeito de um fenómeno de mediterraneidade, em que as precipitações estão geralmente concentradas nas estações primaverais e outonais, permitindo a existência de invernos e verões secos. Contudo, e na sequência do que já foi dito, esse regime acaba por ser muito variável, como podemos verificar quando comparamos os registos termoplu-

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viométricos do norte com o sul de Portugal, por exemplo. Ao mesmo tempo, um outro aspeto climático introduz ainda mais complexidade a este processo: a presença do Oceano Atlântico, juntamente com a orientação dos cursos fluviais e das cadeias montanhosas do oeste da Península. A conjunção destes três últimos fenómenos físicos faz com que Portugal possua um sistema de amortecimento climático ainda maior, proporcionado pela humidade que fornece a costa Atlântica e pelo modo como esta humidade consegue adentrar-se para o interior do oeste da Península. Deste modo, não só as temperaturas médias do oeste Peninsular são bem mais suaves que as do este. Também esta circunstância permite um alargamento dos regimes pluviométricos ao longo do inverno neste lado da Península Ibérica. No entanto, ao longo dos últimos dez mil anos tem vindo a verificar-se uma diminuição gradual da humidade relativa, provocada especialmente pela diminuição das precipitações médias anuais, resultante de um predomínio cada vez mais acentuado de regimes anticiclónicos que vão empurrando e concentrando as precipitações para o norte. Toda esta amálgama de condicionantes ambientais fez com que Portugal desenvolvesse um tipo de vegetação melhor adaptada a regimes hiperhúmidos, especialmente antes das crises glaciares Pleistocénicas. Nestas formações vegetais conseguiram desenvolver-se diversidades florísticas intensas, pois devido à variabilidade geomorfológica associada à cadeia montanhosa Galaico-Portuguesa foi possível despoletar um conjunto muito variado de comportamentos térmicos, desde quentes até bem frescos. O Rio Paiva e o concelho de Castro Daire conservam muito bem restos desta paleovegetação húmida. As galerias de vegetação ripícola (nas margens do Paiva e dos ribeiros adjacentes), as formações arbustivas e florestais que naturalmente aparecem em embalsamentos sedimentares na serra, ou nas encostas frescas e húmidas permitem que sejamos testemunhas de uma das belezas naturais mais imponentes. Um verdadeiro retorno a um passado, que vai reaparecendo periodicamente ao longo dos últimos trinta milhões de anos, embora de modo mais intenso no período Holo-Pleistocénico. A descida brusca e intensa da temperatura média no período Pleistocénico (dez milhões de anos) alterou bruscamente os comportamentos da flora e da vegetação. A exuberante e densa floresta húmida e hiperhúmida restringiu abruptamente a sua presença, e os vales encaixados do centro e norte do país começaram a jogar um papel decisivo como refúgios naturais.

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Os bosques húmidos são hoje um expoente vivo deste mecanismo natural de preservação de um passado necessário para compreender o presente, ao mesmo tempo que determinante para garantir eficiência e competitividade na funcionalidade dos ecossistemas. Possuir estes tesouros naturais não é só uma dádiva, como também uma responsabilidade acrescida para todos os que temos a sorte de desfrutar da sua presença.

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Musgo (Bryophyta sensu stricto) [Foto: JPetronilho]

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4.3. A FAUNA

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Guarda-rios (Alcedo atthis)

PEDRO RIBEIRO

[Foto: JPetronilho]

O Rio Paiva e os seus afluentes, as lagoas de altitude, as turfeiras e os charcos temporários são ecossistemas dinâmicos que suportam uma elevada diversidade de espécies. Algumas destas só existem na Península Ibérica (borboleta nêspera-dos-lameiros, boga, barbo, bordalo, ruivaco, panjorca, verdemã, toupeira-de-água, salamandra-lusitânica, lagarto-de-água …) e muitas estão ameaçadas, tornando esta uma área de elevada importância para a conservação, confirmada pela classificação do Rio Paiva como Sítio de Importância Comunitária da rede de áreas protegidas da União Europeia (Natura 2000). A vegetação ripícola que acompanha o curso de água está bem conservada e é composta por bosques de amieiros e salgueiros, formando galeria bordejada por carvalhais Salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica) [Foto: JPetronilho]

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(ICN, 2006). Os macroinvertebrados aquáticos e algumas borboletas e libélulas constituem grupos de organismos sensíveis à perturbação da qualidade da água e ao estado da vegetação ripícola sendo, por isso, considerados indicadores da qualidade do ecossistema. As folhas de salgueiro, sanguinho, amieiro e de violetas, nas margens do Paiva, servem de alimento às lagartas de diversas espécies de borboletas, como é o caso da fritilária-dos-lameiros (Euphydrias aurinia), protegida pela legislação europeia. Já as libélulas são excelentes indicadores da qualidade das águas, pois passam a maior parte das suas vidas submersas, na forma de larva, predando vorazmente invertebrados e girinos. É o caso da libélula-anelada (Cordulegaster boltonii) e da libélula-esmeralda (Oxygastra curtisii) observadas, em adulto, a partir de maio, a patrulhar as águas. O mexilhão-de-rio (Margaritifera margaritifera), invertebrado ameaçado a nível nacional e mundial, encontra-se em alguns rios da bacia do Douro, nomeadamente no Paiva. O seu ciclo de vida depende de outra espécie, a truta, pois as suas larvas são parasitas e fixam-se nas brânquias do peixe, onde sofrem metamorfose. Relativamente à fauna vertebrada, o Rio Paiva e seus afluentes possibilitam a existência de répteis, como o lagarto-de-água (Lacerta schreiberi), e de anfíbios, como a rã-ibérica (Rana iberica) e a singular salamandra-lusitânica (Chioglossa lusitanica). Tipicamente ribeirinhas, aves como o guarda-rios (Alcedo athis), a alvéola-cinzenta (Motacilla cinerea) e o melro-d’água (Cinclus cinclus) necessitam do rio para se alimentarem e reproduzirem. Dois impressionantes mamíferos, a lontra (Lutra lutra), um ex-libris deste curso de água, e a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), uma espécie relíquia, são aqui avistados. Algumas espécies de morcegos, únicos mamíferos com voo ativo, escolhem como locais de abrigo os moinhos abandonados da bacia do Paiva. Para os vertebrados mais intimamente associados aos rios, o “truteiro” Paiva é habitat de cerca de catorze espécies de peixes. Nele e nos seus afluentes ainda abundam a boga (Chondrostoma polylepis), o barbo (Barbus bocagei), o escalo (Squalius carolitertii) e a truta (Salmo truta fario), esta muito apreciada na gastronomia regional. Numa situação mais preocupante por diminuição do efetivo populacional destaca-se a panjorca (Chondrostoma arcasii) e o bordalo (Squalius alburnoides). Apesar de encontrarmos espécies originárias de outras áreas do planeta e introduzidas em Portugal (espécies exóticas), tais como o achigã (Micropterus salmoides), a perca-sol (Lepomis

Libelinha (Calopterix virgo) [Foto: DGuimarães]

Rã-ibérica (Rana iberica) [Foto: JPetronilho]

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Truta (Salmo truta) [Foto: DGuimarães]

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Lontra (Lutra lutra) [Foto: JPetronilho]

gibbosus) e o pimpão (Carassius auratus), há diversas espécies autóctones e uma, pelo menos, só presente no nosso país (endemismo lusitânico), o ruivaco (Chondrostoma oligolepis). Outras espécies que povoam o rio são a carpa (Cyprinus carpio), a enguia (Anguilla anguilla) e o verdemã (Cobitis paludica). Verdadeiro corredor ecológico, o Sítio Rio Paiva (PTCON0059) é fundamental para a manutenção da integridade de populações de lontra, toupeira-de-água, salamandra-lusitânica e lagarto-de-água. Constitui, ainda, um relevante habitat para espécies piscícolas com interesse conservacionista como o ruivaco e a boga e para diversos invertebrados, entre os quais, o raro mexilhão-de-rio, dado anteriormente como extinto em Portugal. Adicionalmente, permite o livre fluxo da pequena e fragmentada subpopulação do lobo (Canis lupus) a sul do Douro, evitando um maior isolamento dos indivíduos e as consequentes perdas a nível demográfico e genético (ICN, 2006).

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5.1. A MONTANHA E O RIO: O COMEÇO DA JORNADA HUMANA

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Castro da Maga (Castro Daire) [Foto: Pedro Sobral de Carvalho]

RAQUEL VILAÇA E PEDRO SOBRAL DE CARVALHO

É na montanha que encontramos os mais antigos vestígios do Homem. Há cerca de 6000 anos, em pleno Neolítico, este aproveitou os recursos do território para a prática da agricultura e da pastorícia. Com o termo “neo” (novo) surgem novas técnicas e instrumentos, como o machado e a enxó de pedra polida, a cerâmica ou os moinhos, mas não se abandonam as restantes atividades complementares como a caça e a recoleção, heranças de outros tempos. Porém, os únicos vestígios deste período resumem-se, neste momento, às suas sepulturas: os dólmens ou antas, verdadeiros templos erigidos em honra dos antepassados. Só no concelho de Castro Daire estão referenciados 66 monumentos megalíticos. Os estudos arqueológicos sobre esta época neste território estão ainda no início. No entanto, se olharmos para as regiões vizinhas, bem estudadas como o Alto Paiva (Cruz, 2001), a oeste, e a zona de Arouca a este (Silva, A. M., 2004; Silva, F. P. ), poderemos, mesmo arriscando o transporte de modelos que podem não ser os mais corretos, afirmar que, por certo, o que melhor caracteriza o megalitismo da região é o polimorfismo das suas arquiteturas. Neste sentido, podemos observar na paisagem montemurana necrópoles pré-históricas com monumentos de grandes dimensões que convivem com pequenos monumentos. É certo que haverá diferenças cronológicas entre alguns deles, mas terá havido períodos em que coexistiram alguns monumentos muito diferentes entre si. Se, como já referimos anteriormente, tivermos como referência sobretudo o Alto Paiva, podemos adiantar como hipótese que os mais antigos monumentos funerários poderão ter sido edificados, no Neolítico Médio/Final. Uma das realidades que parece ser comum na Beira Alta é que por volta de 4000 e 3700 a. C. terão sido edificados os grandes dólmens com corredor com complexos sistemas de acesso (corredores intratumulares, átrios, etc.). Foi neste período que o interior de muitos destes monumentos foi decorado com motivos pintados e gravados, como é o exemplo do Dólmen 1 do Lameiro dos Pastores, concelho de Cinfães (Cruz & Santos, sd).

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Montemuro) com formas impossíveis de adquirir com as matérias-primas tradicionalmente utilizadas (pedra, madeira, argila, osso, etc.) e esteticamente revolucionários porque, além de revelarem novas formas e novas cores, também brilham.

Levantamento das pinturas do Dólmen 1 do Lameiro dos Pastores, seg. Cruz & Santos, s.d..

Em contraste com esta complexidade tecnológica, a organização dos espaços habitados parece ter sido pouco estruturada. Destacam-se os lugares de altura, como o Outeiro da Maga, com ampla visibilidade em redor, por vezes rodeados de muralhas, indicando crescente concentração das comunidades e manifesta preocupação de controlo territorial. Este modelo de habitat, que resiste em época romana, deverá ter coexistido com outras formas de ocupação mais dispersa, talvez protagonizadas pelos grupos construtores de pequenos monumentos funerários e rituais que, quando nuclearizados, chegam a definir verdadeiros campos sagrados, conforme expressa o conjunto da Senhora da Ouvida. Molde de remate de torques, seg. Silva, 2007, p. 639.

A Pré-história neste território é assim marcada pelas imensas necrópoles que se estendem pelos planaltos da Serra do Montemuro. Territórios sagrados, estes amplos cemitérios agregam sepulturas de várias épocas e de várias tipologias. Dos grandes dólmens neolíticos, às pequenas mamoas dos finais da Idade do Bronze e eventualmente da Idade do Ferro, estas necrópoles são as mais importantes manifestações rituais do Montemuro. Dando continuidade a um modo de vida ancestral baseado em atividades agro-pastoris que determinariam, ciclicamente, a forma de perceber o tempo, as comunidades da Idade do Bronze e da Idade do Ferro da região vão reestruturar-se lentamente incorporando novos conhecimentos. Entre eles, o trabalho dos metais – primeiro do cobre e do ouro, depois do bronze (liga de cobre e de estanho) e mais tarde do ferro – foi responsável por profundas alterações. Artesãos especializados, testemunhando uma organização social e económica complexa, criam novos objetos (como os obtidos dos moldes de Vila Boa e da Póvoa de

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tado por comunidades que lhe imprimiram aura sagrada, aí enterrando seus mortos, ou o que deles restava, ao mesmo tempo que expressariam dor pelos que partiam e receio pelo mundo desconhecido. Essas estruturas, ou pelo menos algumas delas, deverão ter servido para acolher resíduos de corpos incinerados, ritual que, à época, se praticava. Outras ações ritualizadas, como oferendas, preces, cânticos, danças e até mesmo o insepultamento dos mortos, que seriam expostos, são admissíveis embora a Arqueologia já não os possa recuperar. O carácter sagrado do lugar não se esfumou no tempo. A capelinha construída há mais de dois séculos aí está para lembrar. Excecionalmente, esses marcadores simbólicos podem incorporar grafias, caso do monumento 1 da Travessa Lameira de Lobos, (Cruz; Vilaça; Santos, 2014) e tal como se observam na arte rupestre, por exemplo na Pedra dos Pratos. Uns e outros moldaram as paisagens das comunidades dos II e I milénios a.C. destas terras planálticas e serranas, resistindo à tirania do tempo e à distração dos homens.

Planta do monumento 7 da Necrópole da Senhora da Ouvida, seg. Cruz e Vilaça, 1999.

Levantamento da Pedra dos Pratos, seg. Santos, 2000.

Tutelada pela imponência do Montemuro que lhe fica a NNW, a ampla plataforma em redor da capela da Senhora da Ouvida distingue-se de outras da região pela presença de quase quatro dezenas de pequenos montículos subcirculares de pedras (cairns), a maioria quase impercetível. Por isso mesmo, é recente a sua identificação admitindo-se que possam existir outros (Cruz & Vilaça, 1999). Por isso, também alguns sofreram involuntário arrasamento, enquanto outros o foram já após identificação. Certo é também que aquele espaço foi sendo ao longo dos tempos, concretamente e sobretudo na segunda metade do II milénio a. C. (há cerca de 3.500 anos), frequen-

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5.2. DA ESCRITA LUSITANA À ALVORADA DAS NAÇÕES

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Pedra escrita de Lamas de Moledo (Castro Daire)

JOÃO INÊS VAZ

[Foto: João Pedro Pinto]

No século VI a. C., no centro do Mediterrâneo, uma nova civilização estava prestes a nascer. Uma pequena aldeia de pastores, localizada no centro da Península Itálica, entrava em guerra com outras aldeias vizinhas e rapidamente as conquistou. Iniciou-se um processo de expansão que só terminaria sete séculos depois, quando o Império formado tinha fronteiras tão longínquas como o oceano Atlântico a ocidente e o rio Danúbio a oriente. Essa aldeia, fundada lendariamente por dois irmãos, Rómulo e Remo, ambos abandonados e amamentados por uma loba e que lutaram entre si de tal forma que só Rómulo sobreviveu, chamava-se Roma e o Império que veio a ser construído ficou conhecido por Império Romano, que ocupou todo o mundo conhecido de então, desde as Ilhas Britânicas às portas do deserto do Saara e desde a Síria à Península Ibérica. Muitos e desvairados povos foram conquistados, muitas economias de sobrevivência arrasadas, muitos sistemas construtivos adaptados, muitas línguas esquecidas, tudo em favor dos hábitos e costumes transportados pelos povos invasores, portadores de uma nova civilização que fez esquecer quase tudo aquilo que os povos anteriores tinham feito. Com os exércitos romanos chegava uma nova língua, o latim que havia de tornar uma língua europeia que influenciou fortemente todas as línguas posteriores, mesmo as germânicas e anglo-saxónicas. Com os soldados viajava uma nova forma de planeamento, com o famoso urbanismo hipodâmico romano a impor-se ao caos das aldeias indígenas que eles encontravam em todo o lado. As casas, de redondas ou de cantos arredondados, passaram a retangulares, com ângulos retos e as relações de vizinhança e proximidade passam a processar-se com ruas e avenidas que se intrometem nas casas anteriormente agarradas umas às outras. As suas coberturas, com colmo e outros materiais perecíveis foram substituídas por inconfundíveis materiais cerâmicos inventados pelos Romanos, as tégulas e ímbrices que ainda hoje constituem a primeira e maior prova de romanização de um lugar. As telhas que hoje usamos para

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cobrir as nossas construções não passam de uma evolução dessas invenções romanas. A economia de sobrevivência e de troca que os povos indígenas usavam no seu dia-a-dia, é substituída por uma economia de mercado em que a produção intensiva é fundamental. Por isso, os povos são obrigados a descer das alturas para a planície e se formam novos povoados que vão albergar os Romanos mas também os indígenas que apenas transportam, dos antigos tempos e dos antigos assentamentos, a sua religião. Uma economia de mercado exige bons contactos e boas ligações e por isso os Romanos encheram todos os recantos do Império com uma malha viária de tal ordem que, de qualquer ponto se podia chegar a Roma, pois “todos os caminhos vão dar a Roma” e só se perdia quem fosse bárbaro e não falasse latim, pois “quem tem boca vai a Roma”. Através dos caminhos transportam-se produtos (ouro, prata, azeite, esparto e outros), mas também as novidades, o correio e a religião. Para gerir um Império tão vasto era fundamental uma organização que levasse as ordens imperiais ou dos procuradores a qualquer ponto de qualquer província e por isso os Romanos organizaram um serviço de correio, chamado posta, com um nível ainda hoje não atingido em muitas zonas do globo. Pelas vias, construídas para ser eternas, circulava também a língua e a única usada, em todos os cantos do Império, era a latina pois as línguas nacionais/ locais foram esquecidas, só se recordando em raríssimas inscrições feitas no tempo dos Romanos. A religião podia dividir-se em dois grandes tipos, a religião romana propriamente dita e a religião indígena. Esta última categoria ainda podia subdividir-se em muitas outras, pois cada povo conquistado tinha uma religião própria que os Romanos não só mantiveram como, na maioria dos casos, absorveram. A religião romana tinha os deuses que eram os originais de Roma, como Júpiter, Apolo ou Mercúrio, mas os povos conquistados tinham, cada um, as suas próprias divindades que tanto podiam ser adoradas no espaço geográfico ocupado por povos diferentes como apenas num, sendo por isso mais nacionais, regionais ou simplesmente locais. O culto dos mortos também foi algo que os Romanos alteraram em muitos dos sítios conquistados. Tal como a maioria das civilizações antigas, os Romanos também procediam à cremação dos seus mortos e as cinzas eram guardadas em urnas cinerárias. Mas as necrópoles romanas estavam sempre fora das cidades, ao longo das

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estradas. O culto dos antepassados, sobretudo os antepassados ilustres tinha uma importância muito grande entre eles. Assim, as cinzas em vez de enterradas em necrópoles megalíticas ou em pequenas cistas, passam a ser guardadas em columbários, espécie de caixotões como os que hoje existem nos nossos cemitérios ou depositadas em mausoléus familiares com os vivos a visitar os mortos, levando-lhes oferendas, flores por exemplo. Outra grande diferença é que agora os mortos passam a ter nome e, por isso, surgem as inscrições funerárias romanas onde se recordam os defuntos. É que um morto só desaparece quando a sua memória se perder e o romano não queria que se perdesse, por isso colocou lápides em materiais duros que vieram até aos nossos dias, conseguindo assim eternizar a sua memória. Foi assim que os Romanos em 218 a. C. desembarcaram na Península Ibérica, no âmbito das chamadas Guerras Púnicas. Os Púnios ou Cartagineses, descendentes dos Fenícios, estavam localizados em Cartago, no Golfo de Túnis, na Tunísia e num ponto muito próximo da Sicília. Ambos disputavam o domínio do Mar Mediterrâneo e por isso os seus exércitos vão-se confrontar e a primeira batalha vai acontecer na Península Ibérica, em Ampúrias, na atual costa leste espanhola. Derrotados os Cartagineses em três duras guerras travadas entre os dois povos, os Romanos ficaram senhores do Mediterrâneo e de todas as suas margens. Na Península Ibérica, pequenas bolsas de resistência continuavam a desafiar os exércitos romanos e a maior resistência vinha de um povo a que os escritores romanos dão o nome de Lusitanos, localizados geograficamente no espaço entre o rio Tejo, a sul e o rio Douro a norte. Por conseguinte, o território do concelho de Castro Daire era território lusitano. Os Lusitanos, cujo chefe mais famoso foi Viriato, seriam um conjunto de tribos pré-romanas que se guerreavam frequentemente entre si e que habitavam em castros, já tratados no capítulo anterior. Do seu linguarejar nada sabemos e quase o mesmo da sua língua. No entanto, uma das inscrições mais importantes que ficaram dos tempos romanos, refere termos que seriam de uma língua a que se tem chamado “Língua Lusitana”. É a inscrição gravada no “Penedo Escrito” de Lamas de Moledo: RVFINVS ET / TIRO SCRIP/SERVNT / VEAMINICORI / DOENTI / ANC. OM / LAMATIC.OM / CROVGEAIMAGA/REAICOI·PETRANIOI R / ADOM·PORC.OM IOVEA / CAIELOBRIGOI. Tradução: Rufino e Tiro determinaram: os Veaminicori oferecem uma

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Pedra escrita de Lamas de Moledo (Castro Daire) [Foto: João Pedro Pinto]

ovelha lamaticom a Crouga dos Magareaicoi e os Petranioi um porco radom a Iovea dos Caielobricoi. Trata-se, provavelmente de uma inscrição comemorativa, e votiva, com certeza, em que dois romanos ou indígenas romanizados e revestidos de autoridade, Rufinus e Tiro, mencionados logo no início da inscrição, decidiram e talvez tenham presidido a uma importante cerimónia que ficou gravada para sempre na pedra. Ficando alheios às polémicas académicas que esta inscrição tem levantado, diremos que se trata de uma inscrição dedicada a duas divindades, Crouga e Iovea, protetoras de duas etnias, os Magareaicoi e os Caielobrigoi, a quem os Veaminicori e os Petranioi oferecem um ancom lamaticom e um Porcom radom. A divindade Crouga só é conhecida aqui e na Freixiosa, no concelho de Mangualde e Iovea deve ser a forma local de designar o Júpiter romano. As ofertas feitas à divindade devem ser um porco, com alguma característica especial, e uma ovelha.

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Os povos citados, os Caielobrigoi e os Magareaicoi deveriam ser povos que viviam nas imediações do penedo, talvez no sítio ainda hoje designado como Cabeço da Maga onde existem os vestígios de um castro e noutro lugar que desconhecemos. No concelho conhece-se ainda uma outra inscrição votiva dedicada a uma divindade chamada Arus. Apareceu na Ponte Pedrinha e pode ter sido arrastada do próprio castro localizado no sítio onde está a vila. Esta inscrição é curiosa porque tem apenas o nome da divindade e a representação de um animal, provavelmente o porco, na face principal. É interessante que o porco aparece também em Lamas de Moledo, o que mostra a importância que o porco tinhas para as pessoas desta região. De um dos lados tem uma figura de pé com uma lança e do outro a palavra patera, gravada em redondo. Ora, a patera era uma espécie prato usado nas cerimónias religiosas e que tinha a forma redonda. Assim, o escultor em vez de gravar a forma, gravou a palavra com a forma arredondada. Há notícia de uma ara aparecida em Mamouros mas que desapareceu. As poucas letras que nos ficaram não permitem qualquer interpretação (Barroca e Marques, 1993). Conhecem-se outras inscrições romanas no concelho de Castro Daire, todas funerárias e provenientes das povoações de Lamas de Moledo e Vila Boa. Manuel Botelho Ribeiro Pereira (Pereira, 1955), um autor viseense do século XVII, regista o aparecimento de duas inscrições que desapareceram, uma em Lamas de Moledo e outra em Vila Boa. Diz ele que “O Lugar de Lamas certo he que foi povoação dos Romanos, como se vê das sepulturas, que ali deixarão, e tinha muro, e seu nome ainda hoje se conserva num letreiro, que está em hum curral de gado achado no mesmo lugar de Lamas, que diz assim: GAAIA PISIRIF AN XXV HSE STTL. Quer dizer: Gaia fez este sepulcro a Pisires, que morreo no anno 25 de sua idade, seja-te a terra leve”. Botelho Pereira apenas terá errado na leitura do primeiro nome que, presumivelmente, será Camala. Sendo assim, trata-se de uma pessoa chamada Camala, que morreu com 25 anos de idade, que era filha de Pisiro e foi ali sepultada. Ele diz que a inscrição estava num curral, deslocada, portanto, da necrópole primitiva que não se sabe onde ficaria localizada.

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Ara romana da Ponte Pedrinha (Castro Daire), seg. Leite Vasconcelos, 1913.

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Estela romana de Lamas de Moledo, retirada de Curado, 1989.

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Botelho Pereira dá ainda notícia de outra inscrição achada também em Lamas e que, como a anterior, desapareceu: CMAI AINO GINMIE ANN III LONG EIAC MALI MATER E.C., cuja leitura e transcrição está claramente errada. Deverá interpretar-se do seguinte modo: CAMALIANO / … GINMIAE [...] F(ilio) ANN(orum) III(trium) TONGETA (vel Longeia) CAMALI(filia) MATER F(aciendum) C(uravit), ou seja, em português: A Camaliano, filho de ..., morto com 3 anos de idade, a mãe Tongeta (ou Longeia) tratou de fazer (este monumento) (Vaz, 1997, p. 231-232). É a lápide sepulcral de uma criança morta com três anos apenas e que sua mãe, extremosa e dedicada ao seu filho, quis recordar para sempre levantando-lhe uma memória. Em Lamas de Moledo existe ainda uma estela funerária, no patim de uma escada particular que exibe a seguinte inscrição: CABV / REINA / E•CELI(i filiae) / AN(norum) IIX(octo)• / TONG / ETA•PETOBI• /… , que traduzindo para português dará: Tongeta, (filha de) Petóbio, (mandou fazer esta memória) a Cabureina, (filha) de Célio, de oito anos de idade (Vaz, 1997, p. 229-230). Ainda em Lamas de Moledo apareceu outra estela funerária, hoje desaparecida que continha a seguinte inscrição: APIN/NAE•BOVTI(i) F(iliae)•ANN(orum)•V(quinque)• / AMOENA•MA / [TER]•F(aciendum)•C(uravit), que traduzida diz assim: A mãe Amena tratou de fazer a Apina, filha de Búcio, de cinco anos de idade (Vaz, 1997, p. 228). Vemos, nestas duas inscrições, duas crianças mortas com apenas oito e cinco anos de idade e em ambos os casos são as mães que mandam erigir a memória com o nome dos filhos. No lugar de Vila Boa, freguesia de Mões achou-se também uma inscrição funerária, desaparecida, que foi conservada pela leitura que dela fez Manuel Botelho Ribeiro Pereira: D. M. S. TROFIMEN AAN XVI VRSVS ET SIBI EX VXSORI. F. C., que traduzida para português será, aproximadamente: Consagrado aos deuses Manes. A Trofimen, de 16 anos (aqui sepultada); Ursus mandou construir para si e para sua mulher (Vaz, 1997, p. 268-269). Trata-se de uma pessoa cujo nome era qualquer coisa como Trofimen, morta com a idade de 16 anos, e a quem o marido mandou fazer a sepultura, reservando também para si o mesmo sepulcro.

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A inscrição revela uma certa romanização, pois começa com a dedicatória aos deuses Manes, os deuses das regiões inferiores. Como se vê também aqui os deuses e as pessoas tiveram nomes, umas vezes indígenas, outras vezes indígenas romanizados e outras ainda nomes latinos. A economia da área do atual concelho de Castro Daire também deve ter mudado profundamente em favor de uma economia de mercado e de exploração dos recursos agrícolas e minerais. Os terrenos do concelho não são os melhores para uma agricultura intensiva e por isso vamos encontrar vestígios romanos nas zonas ribeirinhas do Rio Paiva, como na Portela de Mões e Alva. Outra atividade fundamental nesta área seria a exploração mineira. Os moldes de fundição proto-históricos de Cêtos e da Vila Boa provam que a prata, o estanho e o cobre seriam explorados e fundidos no Montemuro e na zona de Mões, respetivamente. Com o estanho e o cobre fazia-se o bronze, liga de que é feito o molde de Vila Boa. Não existe nenhuma prova de que, na época romana, a exploração dos metais se tenha efectuado, mas a tradição continua a existir, nomeadamente em Farejinhas onde ainda existe um lugar chamado Covas. Ao lado dos castros que continuaram a ser habitados, Castro Daire, Cabril e S. Lourenço, onde os vestígios da romanização são evidentes, apareceram novas explorações agrícolas, as villae ou casais de que se conhecem vestígios em Missa (Portela de Mões) e Fundo de Vila (Lamas de Moledo). Não existem muitos elementos que permitam determinar a distribuição espacial do povoamento romano. O lugar mais central deveria ser o povoado localizado na atual vila de Castro Daire onde poderiam viver os Veaminicori citados na inscrição do Penedo de Lamas de Moledo que, por sua vez, deveriam estar integrados numa unidade maior chamada Magareaicoi que poderia estar localizada na serra de S. Macário. Em S. Lourenço poderiam viver os Caielobricenses da mesma inscrição e os Petranioi, também citados na mesma inscrição, poderiam localizar-se no Outeiro da Maga que foi abandonado, talvez em favor do sítio da Fonte da Vila. Para uma melhor organização do território, os Romanos dividiram a região em grandes áreas administrativas chamadas civitates (civitas, no singular). O aro do atual concelho dividia-se entre três civitates, os Interannienses e os Coilarni e os Paesuri. Os

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Moeda romana do sítio “Missa” (Portela, Mões). [Foto: João Inês Vaz]

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Capitel romano de Portela de Mões [Foto: Pedro Sobral de Carvalho]

primeiros tinham a capital em Viseu (Viseum, provavelmente) e ocupavam a metade a sul do Montemuro, enquanto a encosta virada a norte estava integrada nos Coilarni cuja sede era em Lamego. A zona de Cabril, onde está o castro do Cabeço dos Mouros, integrava-se numa outra civitas que era designada como Paesuri, cuja sede deveria ser em Cárquere, no concelho de Resende ou, mais provavelmente, S. Cristóvão de Nogueira, no concelho de Cinfães. No século IV e V, já com o Cristianismo provavelmente implantado na zona, a paz foi quebrada pela chegada de novos povos e novas línguas que se vieram misturar com o latim falado por todos, dando origem a um nova época que se vai ser designada pelos historiadores como Idade Média. Os descendentes dos Romanos misturam-se com as novas raças, a antiga divisão administrativa das civitates vai sobreviver na nova divisão religiosa, que foi incluída nas novas nações que resultam dos escombros do Império, com muitas leis antigas reaproveitadas e adaptadas, assim se forjando uma nova civilização e uma nova sociedade cuja base é a religião cristã.

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Não se conhece qualquer impacto das invasões bárbaras no território do concelho de Castro Daire, como nada se sabe também sobre a chegada do Cristianismo, a nova religião que se espalhou por todo o Império romano. Que tenham aproveitado a antiga divisão das civitates romanas parece certo, integrando-se a metade sul do concelho, abaixo da linha do Rio Paiva, na nova diocese de Viseu e a metade norte na diocese de Lamego, ou seja, em termos de civitates anteriores a área que pertencia à civitas dos Interannienses foi para a diocese de Viseu e a dos Coilarni respetivamente ficou anexada a Lamego. Estas dioceses estavam já formadas em 572, data do II concílio de Braga em que aparecem os bispos Petrus, e Sardinarius, a assinar como Vesensis Episcopus e Episcopus Lamecensis, respetivamente. A presença dos povos germânicos na área do concelho está confirmada pelo achado de uma moeda de ouro visigótica (triente) do tempo do rei Vitiza, em Alva. Segundo o Doutor Mário Barroca (Barroca, 2004) que publicou esta moeda, trata-se de um triente cunhado entre 702 e 710, nas oficinas de Toledo. A raridade desta moeda e sobretudo o conhecimento do local do seu achado, nas imediações da igreja, faz dela um caso raro da Península Ibérica. O rei Vitiza foi o penúltimo rei visigodo, pois faleceu em 710 e em 711 deu-se a invasão da Península pelos Árabes. Não se conseguindo localizar esta moeda em Alva, seguimos a descrição feita por Mário Barroca. Anverso: IN DINE WITIZA P+, ou seja In Dei NominE VITIZA Pius. Apresenta-se o busto do rei, estilizado, como sempre acontece com este tipo de moedas, com cabelos compridos e a face ladeada por duas palmetas. Reverso: +TOLETO PIUS e duas pequenas palmetas. Ao centro, tem uma cruz latina enquadrada por um motivo em forma de coroa com motivo entrelaçado como uma corrente (Barroca, 2004). A moeda teria sido encontrada à superfície e sem qualquer contexto. O seu achado, no entanto, revela-nos a antiguidade de Alva e uma boa prospeção arqueológica, que nunca foi feita, tornaria visíveis outros achados que se desconhecem nas Terras de Alva. Recentemente, localizámos ali duas estelas funerárias circulares decoradas apenas com uma simples cruz. Estavam no adro da igreja de Alva e foram transportadas para o Centro de Interpretação. Será que o triente visigótico estava em contexto funerário e poderá revelar o hábito pagão do pagamento do óbulo a Caronte? Pensando nas estelas

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Caixa-relicário de Mamouros

Sepultura antropomórfica da Aveleira (Mões)

[Foto: João Pedro Pinto]

[Foto: Pedro Sobral de Carvalho]

funerárias e na moeda, que devem ter sido encontradas próximas, é bem provável que assim acontecesse. Um pouco mais tardio, do século X, provavelmente é uma caixa-relicário que foi atribuída a Mamouros, mas não existe qualquer prova objectiva de que assim fosse. Trata-se de uma pequena caixa de madeira está na paróquia da Queiriga do vizinho concelho de Vila Nova de Paiva e que foi encontrada com relíquias e um pergaminho onde se liam os mandamentos e o início dos quatro evangelhos (Barroca e Marques, 1993). Em dois outros pergaminhos mais pequenos aparecem os nomes de dois santos, Santa Cecília e S. Sebastião. Não se sabendo a proveniência exata desta caixa-relicário e sendo a igreja de Mamouros dedicada a S. Miguel apenas se pode especular que esta caixa poderá ser proveniente deste lugar. Um outro elemento arqueológico importante que se espalha por vários lugares do concelho são as sepulturas escavadas na rocha que, no imaginário popular, andam a maioria das vezes associadas aos mouros. Conhecem-se sepulturas escavadas na

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rocha nos seguintes lugares: Cruz do Pinheirinho (Mões), no sítio do Ralo, em Soutelo, nos lugares de Sobreira, Rebolada e Lajedo em Vila Boa, no lugar de Regada, todos da freguesia de Mões; em Mosteiro, freguesia de Pepim; no Outeiro do Chamissal (“Cama da Moira”), freguesia de Moura Morta; no sítio da Cruz do Rossão e Carvalhosa, ambos na freguesia de Picão; no sítio da Corredoura e Savariz, freguesia de Reriz (Correia et alii, 1995, p. 125-127). A abertura deste tipo de túmulos na rocha viva, só se pode explicar pela importância que se dava à conservação do corpo que havia de ressuscitar no último dia, dia do Juízo Final. Consideradas como elementos medievais, estas sepulturas podem aparecer isoladas ou agrupadas em necrópoles. No concelho de Castro Daire apenas se conhecem em sítios isolados e sem vestígios anteriores à sua volta pelo que pensamos que isto terá a ver com o tipo de povoamento muito disperso que aqui deve ter ocorrido. Sendo um território muito montanhoso, houve que aproveitar as veigas dos rios e cursos de

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água para as pessoas se estabelecerem e, por isso, o povoamento deve ter sido sempre mais em pequenos núcleos que em grandes povoações. Este é o tipo de povoamento, muito disperso mas concentrado em pequenas povoações, que ainda hoje continua a predominar neste vasto território. Isso mesmo também se poderá deduzir da leitura das Inquirições que Afonso III mandou fazer no território concelhio. Nos princípios da nacionalidade, o território do concelho de Castro Daire estava dividido entre as Terras de Lafões, a Terra de Moção e as honras de Egas Moniz. As honras de Mezio, Vale Abrigoso, Mões, Moledo e Gosende, quer dizer, a parte norte e oriental do atual concelho pertenciam a Egas Moniz e depois aos seus herdeiros, nomeadamente os seus filhos D. Moço Viegas e D. Urraca Viegas. Esta acabou por doar a sua parte (pelo menos Mezio e Vale Abrigoso) a D. Mafalda, filha de D. Sancho I e fundadora do Mosteiro de Arouca que, com estas doações, passou a ser proprietário de grandes extensões no concelho. Mões e Moledo eram de D. Moço Viegas e no tempo de D. Dinis eram do filho D. Pedro, o famoso conde de Barcelos, que está sepultado no monumental túmulo existente no mosteiro de S. João de Tarouca. Mões acabou por ser elevada a concelho por D. Manuel I, com foral dado em 7 de maio de 1514. Mões, que ainda hoje é uma das principais povoações do concelho, não teve foral antigo, talvez porque era pertença de Egas Moniz. Mas teve foral de D. Manuel concedido em 7 de Maio de 1514. Na margem direita do Rio Paiva havia o julgado de Moção, sede de um concelho muito extenso que englobava o Mezio, Moura Morta, Picão, Pinheiro, Ester e muitas outras aldeias, algumas que desapareceram, como Bugalion (correspondente ao topónimo Bogalhão existente na Carvalhosa) e Gundivao (totalmente desconhecido). Neste concelho fundou-se nos finais do século XII – inícios do XIII, o Mosteiro de Santa Maria e S. Miguel da Ermida, da Ordem Premonstratense que é uma variante da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho. A sua fundação terá certamente a ver com a tentativa de povoamento e arroteamento das terras da encosta sul do Montemuro. D. Manuel I, em 15 de Maio de 1514, concedeu novo foral a Moção, mantendo o concelho com a habitual atualização de impostos mas, dois meses depois, em 13 de julho de 1514, concedeu foral também a Pinheiro, que assim ficou desanexada do anterior concelho e Terra de Moção e elevada à categoria de cabeça municipal.

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Igreja da Ermida [Foto: JPetrinilho]

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A confinar com o Julgado de Moção, pelo lado ocidental, estava a Terra de Parada que, no século XIII, incluía várias povoações como Nodar, Meã, Mós, Sobrado Eiriz e Vila. Parada teve carta de foro dada por Ermígio Moniz e Sancha Peres em data que se desconhece e depois por D. Afonso II; Mós e Sobrado também foram pequenos concelhos rurais com cartas de foro doadas por D. Sancho II em 1241. O foral de Mós tinha uma disposição curiosa porque ali se dizia que quem entrasse no concelho para fazer alguma malfeitoria, poderia ser espancado à paulada da melhor forma possível e os autores do acto pagariam à câmara somente um copo de água (Correia et alii, 1ª ed., p. 73). Sobrado pertence hoje à União de Freguesias de Parada de Ester e Ester. No tempo dos primeiros reis de Portugal, a Terra de Parada foi alvo de acesa disputa entre vários fidalgos e o rei, com os fidalgos a não respeitarem a doação de D. Sancho II a D. João de Portocarreiro, fidalgo da sua confiança. Com o foral dado por D. Manuel I nos inícios do século XVI, acabaram todos estes forais e os antigos concelhos foram anexados ao de Parada Meã, assim designada agora pelo rei, ficando a cabeça do concelho em ambas as povoações. A margem esquerda do Rio Paiva, com Gafanhão, Reriz e Alva estava integrada na Terra de Lafões. Nos inícios do Condado Portucalense, era grande senhor desta região João de Gondesendes que, provavelmente, estava relacionado com a família do mesmo nome que no século X pontificava na região de Sever do Vouga e cujos domínios se estendiam entre Reriz e Gafanhão. O seu paço senhorial estaria em Gafanhão onde fundou a igreja de Santa Maria (ver desenvolvimento desta questão em Ventura, 1985, p. 31-69). Reriz e Solgos eram duas vilas reguengas. Reriz, pelo que se pode deduzir das Inquirições de D. Afonso III e do texto do foral manuelino, deve ter tido um foral antigo passado não se sabe por quem. Era vila quase totalmente reguenga, havendo apenas dois casais que eram pertença do Mosteiro da Ermida que possuía ainda dois moinhos no Rio Paiva. Alva teve foral antigo doado por D. Henrique, confirmado depois por D. Afonso III, antes de 1258, pois nessa data, nas Inquirições mandadas fazer por este rei, o foral aparece já citado.

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Desconhece-se o texto do foral antigo de Alva, mas pelas determinações que são citadas no foral manuelino, calcula-se que seriam muito gravosos os impostos que os moradores eram obrigados a pagar. Comparando com os pequenos concelhos da margem direita do Rio Paiva, parece haver uma clara distinção entre estes concelhos mais pobres e os da margem esquerda, terras mais ricas e mais agricultadas. O mesmo sucedia com o foral de Cabril, concelho formado por D. Manuel, já que não se faz referência a qualquer foral antigo. Ainda no foral de D. Manuel se diz que o rei não tem ali qualquer reguengo ou direito e, por isso, o rei limita-se a confirmar os direitos que já existiam sem se dizer a quem pertenciam (Foral de Cabril, 1996). Aquilo que dissemos de Alva, aplica-se ao foral da vila de Castro Daire que teve o primeiro foral concedido por D. Afonso Henriques (Correia et alii, p. 64) que assim elevou a povoação à categoria de concelho, privilégio que manteve até aos nossos dias. Os gravosos direitos que os povos tinham que pagar nesse primeiro foral foram substituídos pelo rei D. Dinis por um pagamento único de quinhentas libras, quantia avultada para a época. Por sua vez, estas 500 libras vão ser transformadas, em 1514, por D. Manuel, em 108.000 reais, quantia que o rei determina seja paga em três prestações para não sobrecarregar demasiado as populações. Um das determinações que aparece em quase todos os forais manuelinos diz respeito aos tabeliães do concelho, ou seja o equivalente aos nossos notários de hoje, que são obrigados a pagar um imposto ao rei e como este imposto era muito elevado, muitas vezes os tabeliães fugiam dos concelhos porque não auferiam rendimentos suficientes. No caso de Castro Daire isso nunca deve ter sucedido porque os tabeliães desta vila serviam também os concelhos vizinhos a que já nos referimos e que não tinham tabeliães próprios, tal era o seu tamanho diminuto. Isto mostra como a vila de Castro Daire era já, em finais da Idade Média e inícios da Idade Moderna, um polo de atração para os povoados vizinhos e talvez por isso nunca perdeu a sua qualificação de vila e sede de concelho.

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Mitra proveniente do Mosteiro da Ermida do Paiva (séc. XIII-XIV). Museu Nacional de Arte Antiga. [Foto: José Pessoa - DGPC/ADF] A HISTÓRIA E O HOMEM

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Crossa de Báculo proveniente do Mosteiro da Ermida do Paiva (séc. XIII-XIV ?). Museu Nacional de Arte Antiga.

A HISTÓRIA E O HOMEM [Foto: José Pessoa - DGPC/ADF]

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