Moralidade e materialismo: uma aproximação à cosmopolítica das relações entre espíritas ‘científicos’ e ‘cruzados’ em Cuba

September 6, 2017 | Autor: D. Espírito Santo | Categoria: Cultura Material
Share Embed


Descrição do Produto

Diana Espírito Santo
Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa
[email protected]

"Moralidade e materialismo: uma aproximação à cosmopolítica das relações
entre espíritas 'científicos' e 'cruzados' em Cuba", no livro Todas as
Águas vão para o Mar: poder, cultura e devoção nas religiões, 2013, Silva
Carreiro, Araújo Santos, Ferretti, and Lima dos Santos (eds.), São Luis:
Editora da UFMA.


Kardecismo e para além do Kardecismo
Havana acolhe no seu meio uma rede de discursos localizados que, de uma
forma mais ou menos ou explícita, competem pela definição de critérios
sólidos de práticas mediúnicas dentro do que é popularmente designado como
"espiritismo". Por um lado, o denominado espiritismo 'cruzado' existe
dentro da sua ampla ecologia religiosa afro-cubana. Fluído, orgânico e
ritualmente interdependente dos seus cultos irmãos, santería e palo monto,
o espiritismo 'cruzado' apresenta-se como a constelação predominante de
práticas de possessão espíritas na ilha. Por outro lado, grupos de
espiritas que se definem a si próprios como 'científicos' defendem
representar o princípio Kardecista do espiritismo como uma ciência, uma
filosofia e moralidade. Embora seja válida a observação de que todos os
espíritas cultivam e usufruam de relacionamentos com o mesmo tipo de seres
– os mortos, em todo o seu o espectro – estas tensões entre os diferentes
cultos não devem ser, em todo o caso, desvalorizadas. Entre várias razões,
a sua observação permite gerar oportunidades de identificar e compreender
regimes semióticos coexistentes dentro dos quais noções como ciência e o
científico, materialismo, 'africano', evolução, conhecimento, moralidade, e
saúde partilham, alargam ou confrontam não só registos históricos mas
também sociais e políticos. No centro de alguns destes regimes encontram-se
modos de entendimento da racionalidade, do progresso, da construção de
nações, e os seus opostos, isto é, o atavismo, o primitivismo, o ritualismo
e a corrosão social.
Embora o conflito teológico não seja raro entre os grupos espíritas,
em Havana as pequenas mas influentes comunidades autodenominadas de
espiritismo 'científico' ou 'de investigação' postulam, de uma forma ampla,
uma divisão entre as tradições rituais afro-cubanas e os ideais espíritas
que fundamentalmente moralizam o ritual e a 'matéria' religiosa; essa
'matéria' sendo simultaneamente o excesso de 'coisas' – representada mas
não reduzida às ofertas sacrificiais – e os corpos e mentes não-
domesticados (e por vezes ignorantes) produzido por este excesso. No
entanto, na sua invocação de limites, os 'científicos' reificam concepções
de 'alta' e de 'baixa' cultura, ideias de primazia da fé racional sobre o
pensamento mágico, assim como estereotipias raciais que unem o passado
negro e africano de Cuba à degradação, à contaminação sincrética, e até à
recente especulação comercial religiosa. Estas concepções são frequentes
mesmo fora dos seus templos ou centros de convívio, onde este trabalho-de-
fronteira (Gieryn, 1983) é muitas vezes defendido, paradoxalmente, por
aqueles que são os excluídos nestes discursos de legitimação.
Este trabalho é uma tentativa de resolver o universo de representações
articuladas por estes grupos que se descrevem dentro das categorias de
'científicos', de 'investigação' e 'Kardecistas', sendo um universo
simultaneamente tornado possível e catalisado pela co-presença de modelos
heterogéneos e discordantes de produção de entidades espirituais dentro da
ecologia espírita de Havana. A compreensão destas representações
possibilita não só o entendimento das relações entre o espiritismo e a
cosmologia religiosa afro-cubana e o seu nicho ritual, mas também o
exercício de uma cosmo-ética poderosa que através do "outro" efectua um
reconhecimento de si-própria. Estas representações podem de um modo geral
ser caracterizadas por um aspeto principal que está presente na cosmo-ética
científico-espírita num contexto contemporâneo: a sua postura de
purificação perante as "coisas" e a sua necessária ausência para a produção
de uma cosmologia legítima. Em jogo também estará uma contiguidade
histórica com os domínios da vida profissional e social que continuam a
permear as preocupações doutrinárias e litúrgicas com a saúde física e
mental, contribuindo para uma linguagem de medicina espiritual
idiossincrática. Finalmente também se obseva uma propensão para expandir as
visões de base espíritas individuais e de moralidade colectiva para
domínios colonizados pela consciência política desde o virar do século
dezanove. Se a primeira tendência revisita implicitamente uma demonização
histórica das "coisas" religiosas em Cuba, baseando-se, entre outras, em
classificações evolucionistas da raça e da religião, uma segunda leva-nos a
considerar o papel da ciência e dos cientistas (sociais), assim como outras
formas de condicionamento social tanto no início como na contemporaneidade
do trabalho-de-fronteira, uma terceira traçamos as mais interessantes
convergências e disparidades entre o espiritismo moderno e a política
retórica, quer pós-colonial como revolucionária. Enquanto os espíritas que
canalizam figuras como Marti, Maceo, Cespedes e outro heróis da guerra da
independência cubana são mais conhecidos por relatos do que propriamente
por registos gravados (as Routon, 2010: 130), os 'científicos' colocam
parâmetros de avaliação para o espiritismo que evocam uma distinção entre o
bem comum e individual, o estudo em oposição à crença, o método racional em
oposição ao ritualismo, bem como a vontade de criar novos tipos de
"pessoas" através da disciplina.
Os grupos e indivíduos que pesquisei desafiam largamente as descrições
antropológicas dos espiritas 'científicos' como simples seguidores e
reproduções da fonte original da doutrina, ou seja, Allan Kardec. De facto,
a grande maioria destes grupos 'científicos', assembleias ou indivíduos
foram ou continuam a ser impulsionados e organizados por amalgamações
intelectuais e doutrinárias mais complexas, ricas e fascinantes do que
aquelas propostas pela rígidas filosofias kardecistas que, para muitos,
apenas abordam a realidade espiritual só à superfície.
Subscrevendo a opinião de Román (2007), é histórica e analiticamente
excessivo isolar as correntes espíritas 'europeias' das 'africanas' visto
que uma versão pura e incorrupta emerge separada no tempo e do espaço de
outra que será populista e degenerada. Isto deve-se não só ao
desenvolvimento sui generis do espiritismo cubano, incomparável, por
exemplo, ao religiosa e racialmente compartido espiritismo brasileiro, mas
também porque de facto nunca existiu apenas um ou outro em estado puro. No
entanto, este argumento não desqualifica a importância dos mecanismos
técnicos, rituais e intelectuais através dos quais as diferenças
ontológicas são necessariamente geradas, negociadas e naturalizadas pelos
seguidores e líderes espíritas, dentro de suas várias tendências. Este
ponto é central para o meu argumento neste trabalho. O que está em causa
entre os denominados 'espíritas científicos' e os 'espíritas cruzados' não
é uma diferença na sua cosmologia (i.e. a natureza ou o espectro de
espíritos disponíveis para cada média) nem na sua crença (a existência de
comunicação espiritual, possessão, mediunidade, entre outros), mas sim as
metodologias cosmogónicas: os meios de produção de espíritos e pessoas.
A análise efectuada neste trabalho resulta de forma particular de
dados do Consejo Supremo Nacional de Espiritismo Cubano, também conhecido
como 'La casa de los espiritistas', fundado em 1937 e registrado em 1940,
liderado pelo carismático 'revolucionário' Alfredo Durán Arias; e da
Sociedad de Estudios Psicológicos Amor y Caridad Universal, fundada no
início dos anos 40 do século XX e presentente dirigido por dois irmãos,
Servando and Carmen Agramonte, ambos médicos. Estas 'sociedades' são
fascinantes por diversas razões, sendo que tanto os seus métodos como as
suas práticas são distintos. Apesar disso, ambas exibem uma característica
comum e central na sua leitura da essência do espiritismo: a rejeição da
importância da "materialidade" religiosa – objectos, ícones, representações
e consumíveis. Por sua vez, esta leitura articula-se com uma metodologia
comum da mediunidade e, mais especificamente, da criação das pessoas e dos
espíritos através de tecnologias mediúnicas, procurando distinguir-se
vincadamente daquelas presentes no seu contexto religioso.

Cruzados e científicos
Aponta-se que o espiritismo tenha 'chegado' a Cuba na década de 60 do
século XIX, através da importação de textos espíritas europeus (quer
através dos Estados Unidos como de Espanha), em partilhar através dos
livros fundacionais de Kardec, que não só postulam um cosmos de espíritos e
pessoas em constante progressão evolutiva e comunicação imanente, mas que
oferece igualmente uma filosofia moral de igualdade sexual e racial baseada
nos princípios empiristas compatíveis com a ciência da Era Vitoriana.
Porém, também é compreendido que a sua forma tenha mutado e se
multiplicado. Se as instituições espíritas proliferaram na nova república
depois de 1902, com o surgimento de federações e de sociedades em todo o
país, o espiritismo também foi 'anexado' (1997: 89), tal como Brandon
afirma, por sistemas de cura e rituas tradicionais, especialmente na classe
média e classe baixa (ibid: 87). O espiritismo cresceu, acumulando
elementos do herbalismo espanhol e cubano, práticas de cura nativo-
americanas, e com um toque de magia africana. Em Cuba, os espíritos-guia de
Kardec encorporam as imagens estereotípicas populares dos grupos étnicos,
raciais e profissionais de Cuba. Nos seus trances mediúnicos, os espíritas
cubanos não só manifestavam espíritos-guia que se pareciam consigo, quer
fisicamente como ao nível do temperamento, mas quer médiuns brancos como
negros manifestavam espíritos-guias que eram Africanos de nación – de
tribos Lucumi, Mandinga, Mina e do Congo, que tinham sofrido e morrido em
escravatura (Cabrera, 1971: 64-65). Nada disto estava presente no
espiritismo de Kardec (ibid). O espiritismo também misturava o catolicismo
popular, tornando-se o centro de um culto aos santos não-institucionalizado
(Brandon, ibid). De uma forma mais significativa, para Brandon, o
espiritismo pode ter fornecido uma solução manejável, ainda que ritualmente
separada, para a ausência do culto aos antepassados entre os praticantes
das religiões afro-cubanas, devido à 'pulverização das linhagens e famílias
africanos, como resultado da escravatura africana' (ibid: 78). Os espíritas
estavam capacitados a ligar-se a um estrato de seres até agora inacessível
mas crucial – os antepassados familiares e rituais afro-cubanos, os eggún
ou os nfumbe – e a tornarem-se indispensáveis para a sua veneração. É
contra este contexto histórico da crioulização que deveríamos entender o
lugar dos científicos contemporâneos.
Os escritos de Fernando Ortiz sobre as primeiras formulações do
espiritismo cubano são importantes para o entendimento da antropologia
moderna e para as conceptualizações nativas cubanas do espiritismo. Em
1919, a pedido da Sociedad Espiritista Cubana, Ortiz apresentou um
trabalho, e posteriormente publicado, intitulado 'Las fases de la evolución
religiosa' (discutido por Vieito, 2002: 76-79). Nesse trabalho, Ortiz saúda
o espiritismo pela sua posição progressiva de encontro à evangelização
moral da humanidade, e argumenta que Cuba observava a coexistência
competitiva de três grandes correntes religiosas – o fetichismo africano, o
cristianismo e a filosofia religiosa – que representavam ao mesmo tempo
três distintas e quase-universais fases da evolução religiosa. De acordo
com o texto, o espiritismo estaria incluído na última categoria,
constituindo um tipo de fé fundamentada na moral, contrastando grandemente
com o fetichismo bárbaro do seu tempo (1919: 5, 7, 15, 36, in Vieito,
ibid), incluindo o Catolicismo, que retinha alguma das suas associações
fetichistas. De acordo com Ortiz, o espiritismo era a estandarte da
esperança, uma fé baseada na promessa da ciência, uma moralidade a-
religiosa desprovida de dogmas, ritos, ídolos e até de padres. Como Vieito
refere, Ortiz estava claramente a distanciar-se das linhas de pensamento
dos seus contemporâneos, como, por exemplo, das críticas perniciosas do
respeitado doutor José Francisco Arango, que comparou o fenómeno espírita
às patologias mentais da Idade Média e a superstições absurdas (Vieito,
2002: 54-5), ou das crítcas de José Enrique Varona, o então presidente da
Sociedad Antropologica (ibid: 53). Porém, em 1919, Ortiz estava tão
investido em articular a sua versão evolucionista cultural perante o
domínio positivista que vigorava nas ciências sociais que não foi capaz de
evitar defender os seus espíritas 'científicos' perante os seus colegas
apelando à sua 'teoria evolucionista da alma' ou da sua 'filosofia penal'
progressista (1924). Apesar de não professar a crença nos espíritos, Ortiz
tentou nivelar a relação entre os cientistas e a fé espírita, sendo que
esta última tinha sido bem-sucedida de uma forma geral a escapar à
tendência 'biologizante' dirigida às religiões afro-cubanas, pelo menos até
à década de trinta do século XX. Aparentemente esta distinção não
desagradou aos espíritas. De facto, Vieito descreve a resposta elaborada
por um grupo de espíritas sediados em Santiago de Cuba a um artigo
publicado por Varona, onde descreveu que a aparição de espíritos e
revelações não se trataria de nada mais do que o fruto da sugestão e de
outros fenómenos psíquicos explicáveis. No meu entender, aquilo que é
interessante é que a resposta consistiu não numa defesa unânime das
práticas espíritas mas um apelo a um discernimento apropriado: não apenas
se apresentaram os espíritas indignados perante a opinião de um homem de
talento como Varona, que professava verdades sobre o espiritismo sem que
tenha o conhecimento apropriado, mas também exortavam o seu
descontentamente que Varona não foi capaz de elaborar a distinção entre os
'falsos' espíritas e os 'verdadeiros' (Vieito, 2002: 57).
É certamente plausível que os científicos tenham exercido tentativas
de projectar um comportamento exclusivista e elitista face a outros grupos
espíritas e praticantes religiosos afro-cubanos. E tem assistido a um
relativo sucesso no período pós-revolução; comparado com outros cultos
religiosos afro-cubanos, o espiritismo tem tendencialmente sido tratado na
esfera oficial com uma tolerância cândida, ainda que reservada. No entanto,
para os científicos, a associação ao 'Kardecismo' tem sido percepcionada
como uma forma de possibilitar a desejada afiliação com federações
espíritas internacionais, usufruindo de algumas das suas vantagens: vistos
para viajar para conferências e eventos, visitas de espíritas e oradores
estrangeiros, e acesso a literatura, sendo que todas estas representam uma
conquista conseguida arduamente através do exercício de tacto político,
perseverança e uma boa gestão da imagem pública. Embora a maioria dos
grupos tenham estado activos durante décadas, apesar do carácter
teoricamente ilegal das suas reuniões, durante o período do meu trabalho de
campo original (2005-2006), apenas um grupo foi oficialmente sancionado
pelo governo: o Consejo Supremo Nacional de Espiritistas. O histórico líder
do Consejo, de quem irei falar mais em detalhe de seguida, era um dos leais
'barbudos' de Sierra Maestra de Fidel Castro e que, orgulhosamente mantém
boas relações com altos oficiais do regime comunista, o que pode ter
servido aos científicos durante algumas décadas, ainda que certa e
possivelmente irritante para alguns. Em 2005, pelo menos vinte grupos foram
abrangidos por esta organização e, em alguma medida, sujeitos às suas
decisões administrativas ainda que apesar disso continuassem o seu trabalho
espiritual respectivo. Muitos desses colectivos estiveram também a ser
revistos ao nível do governo durante o período para o registo de
'sociedades psicologicas' individuais. A espera morosa e burocrática pela
sua oficialização revelou-se um impedimento significativo aos planos e
actividades desses grupos, bem como ao nível da sua sustentabilidade,
apesar de ter o líder do Consejo como seu porta-voz. Tal como em muitas
outras esferas da vida social, profissional e religiosa em Cuba, a falta de
espaço – neste caso concreto, para realizar as reuniões ou as assembleias
religiosas – era condicionante. As reuniões revestiam-se de um carácter
privado e velado, não partilhado com o público, certamente em detrimento da
vontade de alguns dos líderes científicos. As permissões para a realização
de reuniões em espaços abertos, como em jardins públicos, eram
habitualmente recusadas.
Longe estavam os dias da Confederación Espírita Cubana, fundada em
1941 e que se dissolveu por volta de 1963. Esta confederação antiga reuniu
seis federações provinciais, sendo que cada uma, por seu turno,
representava federações municipais e centros individuais. Não obstante a
eficácia desta instituição na confluência de espíritas à volta objectivos
comuns, incluindo a organização de 26 conferências em larga escala entre
1935 e 1963, actualmente muitos dos líderes dos grupos não parecem
conseguir acordar numa estrutura de interesses ou planos de acção para além
dos preceitos óbvios traçados pelo Kardecismo. Enquanto a auto-
representação e a autonomia religiosa era desejada por cada grupo, tendo em
conta as diferenças nos seus percursos e doutrinas individuais, também
imperava uma realização de que os meios para obter estas conquistas teriam
que surgir de dentro do limitado e politicamente confortável Consejo.
A situação viria a mudar ao longo das minhas visitas subsequentes a
Cuba. Em 2009, mais de 450 'sociedades' espíritas ao nível de todo o país
tinham sido autorizadas a registrar-se no Departamento Religioso do
Conselho de Estado (com pelo menos 20 delas sediadas em Havana), sendo que
a maioria delas haviam sido tornadas não-oficiais durante a década de 60.
Apesar de, certamente, nem todas chegarem a receber fundos internacionais
ou permissão para viajar para fora, existe alguma indicação que, pelo
menos, algumas estão a beneficiar das estratégias delineadas pelas
sociedades espíritas com melhores contactos, principalmente nos centros
urbanos. Por exemplo, este ano, a Sociedad de Estudios Psicológicos Amor y
Caridad Universal, sediada em Havana, recebem do exterior e distribuiu mais
de 14,000 livros espíritas por cerca de 19 sociedades registadas na cidade.
No seu website, a Sociedad descreve este esforço como 'histórico'. Em 2004,
esta mesma Sociedad tinha organizado o primeiro evento espírita
internacional em 41 anos. E, em 2009, numa cimeira espírita na Bélgica,
Cuba foi formalmente reconhecida como um membro 'activo' do Conselho
Espírita Internacional. Entretanto, a oficialização permitiu uma torrente
de outras possibilidades de contactos internacionais para além da ortodoxia
Kardecista. No entanto, uma estrutura legal baseada no controlo cerrado das
associações, censos de membros e com muito poder parece desencorajar muitas
outras 'sociedades' – incluindo aqueles menos proeminentes ou afiliadas – a
candidatarem-se a uma presença oficial no Registro de Asociaciónes, o que
claramente limita os seus privilégios.



Uma questão de moralidade e de materialidade
'Existem dois males no mundo. O primeiro é capitalismo e o segundo é a
religião – a crença, a superstição, tudo isso é ignorância.' Eu cedo viria
a tornar-me familiar com as opiniões de Alfredo Durán acerca da religião
institucionalizada, especialmente o Catolicismo e os seus 'mercenários', o
clero, assim como todos as outras destinadas ao culto dos santos e de
ícones em Cuba, que reverenciavam as tradições religiosas afro-cubanas de
forma mais directa. De acordo com Durán, o que os escravos africanos
trouxeram para Cuba não era cultura mas sim superstição pura; do mesmo
modo, a Igreja e os seus representantes não fizeram nada mas explorar e
viver do suor dos outros em nome de Deus. A justaposição destes dois
últimos – a veneração fetichista e o mercenarismo Católico – incendiados
por um discurso sobre a enfermidade do capitalismo e das formas
'imperialistas' de acumulação material, formavam os pilares do seu
entendimento do papel do verdadeiro espiritismo. Que bem nos trouxe amar ou
venerar Deus ou Jesus?, perguntava retoricamente com frequência. Nós
devemos amar e venerar o Homem! Foi a crença que destruiu o homem! Enquanto
o Homem permanecer ignorante, o ódio e a justiça imperarão e a religião
continuar a explorá-lo. O Homem precisa de educação, de progresso, de
conhecimento, principalmente de auto-conhecimento e não de superstição.
Para fazer um mundo novo precisamos de um novo homem primeiro!
Praticamente isolado na comunidade espírita de Havana, lançando aquilo
que é uma versão Marxista do espiritismo, Durán nos seus discursos mistura
confortavelmente política e espíritos de forma apaixonada, ainda que, por
vezes, de forma reducionista. A sua visão do espiritismo é um tratado moral
e político, do mesmo modo que é um apelo ao conhecimento espiritual e de si-
próprio, sendo que, por vezes, também assume uma crítica difamatória dos
cultos religiosos afro-cubanos e das formulações sincréticas populares do
espiritismo.
Esta simultaneidade pode ser claramente observada no manifesto
moderno do próprio Consejo, 'El Espiritismo en la visión de Alfredo Durán
Arias' (n.d.), onde ele refere de imediato a importância de uma 'nova
ordem' no espiritismo, assim como a ciência e a medicina, a liberdade, a
revolução e a necessidade da transformação moral. Embora o seu inimigo
preferido parece ser a Igreja, diga-se um alvo fácil em Cuba, Durán marca o
seu território filosófico ao escrever de forma mais acentuado no que diz
respeito aquilo que ele considera ser a forma pervertida de mediunidade,
com o Kardecismo figurando proeminentemente como a base para esta
discriminação. É revelador que uma grande parte do documento se foque no
estabelecimento de distinções e de fronteiras. Por exemplo, numa secção
escrita em colaboração com Regino Almeida, chamada 'Espiritismo con Kardec:
invitación al diálogo', Durán diz o seguinte (s/d.: 5):

'Uma pessoa escuta falar de espiritismo de mesa, científico, cruzado
ou córdon de caridade, de copos de água e sabe lá quantos outros. Se
algum militante do movimento espírita empregou erroneamente estas
designação, nós sentimos muito mas sentimos que é o nosso dever
convidá-lo a ele ou a ela a realizar um estudo mais série e
consciencioso da doutrina que ele ou ela representa. Se Kardec definiu
o espiritismo como a ciência que investiga a natureza, a origem e o
destino dos espíritos e a sua relação com o Homem, concedendo-lhe um
carácter científico, filosófico e moral, com um corpo doutrinário e
preceitos básicos que lhe conferem uma identidade única, separada de
quaisquer outros cultos religiosos, podemos então perguntarmo-nos a
nós próprios: como podemos falar de espiritismo cruzado se os nossos
ensinamentos rejeitam rituais, altares, feitiçaria, milagres,
fanatismo, o consume e uso de substâncias materiais como álcool,
tabaco e outras drogas; práticas típicas de cultos africanos e
indígenas que podem ter tentado associar-se à nossa doutrina? Nenhum
destes nem outras denominações podem resistir à mais ínfima análise
racional, lógica e estudo sério que emerge da codificação, que
constitui a base dos nossos escritos.'

Em causa neste retrato entre a diferença entre o 'verdadeiro'
espiritismo e o fanático, o outro 'africano' e 'indígena' é uma rejeição da
natureza 'ritualista' deste último, que os autores vêm culminar no uso de
'substância', inclusive 'drogas'. Enquanto nem todos os científicos
condenam o uso de tabaco, por exemplo, ou outros 'materiais' como velas,
plantas e ervas, Durán reflecte aqui no que é um pressuposto variado entre
todos aqueles que se descrevem a si-próprios como 'Kardecistas' ou
'científicos': que todas as formulações 'materiais' de engajamento
espiritual são indesejadas, pois constituem, em última instância, uma falsa
interpretação dos objectivos do espiritismo. Mais adiante, os autores
estipulam qual deverá ser o seu propósito: eles afirmam que o 'espiritismo
é uma forma de pensamento que liberta a consciência do homem e o transforma
num livre pensador, um ser conscientemente capaz de determinar a sua
própria evolução e o seu impacto no mundo' (n.d.:7). Uma libertação,
inferimos, não só da ideologia religiosa mas também das perigosas entidades
produzidas pelas suas 'coisas', como irei explicar mais adiante.
Durán contempla o projecto mediúnico como um ciclo criativo de
progresso baseado na acção cívica, onde, através do trabalho árduo, valores
comunitários e comportamento justo, 'se nos multiplica la mediunidad' (a
nossa mediunidade é multiplicada). Visto que os espíritos são atraídos por
pessoas ou grupos por afinidade (quer antes ou após o nascimento), os de
nobre espírito atrairão apenas seres de luz, perpetuando assim a sua
ascensão moral e espiritual. Para Durán, o médium é simultaneamente um
instrumento para o trabalho de seres evoluídos e iluminados e um educador
daqueles com menores capacidades que vêm em busca de ajuda espiritual. E
aqui, 'a educação' ocorre nos dois sentidos. Que o Homem se deixa
facilmente seduzir pelos desejos de espíritos baixos e ávidos é evidenciado
pela contínua existência dessa moralidade 'decrépita' das economias
políticas como a dos Estados Unidos e de outras sociedades 'imperialistas'.
Na mesma lógica, para Durán, as religiões afro-cubanas só frutifica junto
de entidades avarentas e ignorantes cujo conhecimento é limitada às
actividades de 'exploração' e 'supersticiosas' que realizaram em vida
(visto que igual atrai igual). A rendição de Durán de um espiritismo
científico e humanitário confronta-se contra o que apelida de 'idolatria' –
a adoração de espíritos individuais e as suas representações no que é
designado de espiritismo 'cruzado'. Como uma vez me contou:

'Isso é o espiritismo! (…) Nós podemos considerá-lo como uma revolução
de novas ideias. Agora, podes encontrar pessoas que te dirão 'Eu sou
espírita' e, no entanto, eles adoram um [espírito] congolense,
africano ou indiano. Vais encontrar aqui muita gente assim, que são
espíritas e adoram uma imagem, (…) tudo isso é misticismo! Todo isso é
o reflexo de falta de conhecimento, pois o espírito é infinito, o
espírito é o astral, o espírito não tem um nome, não tem uma raça!'


A posição do Durán evoca imediatamente paralelos com as políticas
raciais dos séculos XVIII, XIX e XX – isto é, descrições mediáticas, legais
e sociais quer de práticas religiosas afro-cubanas quer dos praticantes
como irracionais e atávicas, e pior, ameaçadoras para um estado moderno
emergente e para os seus cidadãos. A sua rendição dos tipos de mediação
espírita praticada nesses cultos como sendo "fanáticos" e "crentes em
milagres" são uma recordação desagradável das poderás campanhas que
exploram o medo associado à criação de objectos de acusação popular como os
'brujos' e 'brujeria', particularmente na era pós-colonial (Román, 2008), e
por virtude de outras categorias – racional, científico, moderno – que
também tomaram forma (Palmié, 2002). No mesmo sentido, a frequente menção
quer de Durán quer nos círculos científicos associando o termo 'africano'
com atraso é reminiscente das conexões criminológicas com base na raça, na
religião e nos paradigmas evolucionistas.
Além disso, na sua insistência dos perigos da crença religiosa anti-
científica, Durán expõe o projecto ateísta inicial da Revolução com uma
especial veemência. Ayorinde nota que, mesmo nos anos 60 e princípios dos
anos 70, o jornal PCC Militante Comunista publicou artigos destinados a
fornecer explicações científicas da deficiência do pensamento religioso,
crenças que 'mantêm numerosas pessoas escravizadas, resistindo à educação,
destruindo lares e deformando vidas' (Dezembro 1968: 58, citado em
Ayorinde, 2004: 118). Ela observa que as práticas afro-cubanas eram
ameaçadoras para a Revolução, em parte porque pensou-se que promoviam a
dependência à adivinhação e a curas tradicionais, que poderiam conduzir as
pessoas ingerir substâncias perigosas ou a atrasar a ajuda médica adequada'
(ibid), um mal que, acreditava-se, atingia a juventude acima de tudo. Que a
Revolução expressou – e procurou difundir – estas ameaças através de apelos
à higiene pública e à saúde, entre outras, foi indicativo da força da
associação entre 'feitiçaria' e patologia social.
Wirtz afirma que, mesmo actualmente, quando 'a preocupação oficial e
da elite para com as práticas religiosas populares e, em particular, as
afro-cubanas, diminuiu mas não desapareceu' (2009: 486). As fontes de
preocupação da altura são as mesmas de agora: 'as noções racistas fixadas
há muito que defendem que a modernidade e a cultura afro-cubana não são
compatíveis (ibid). De facto, Durán não está sozinho entre os científicos
quando expressa uma preocupação com as tradições afro-cubanas e o seu
impacto no destino das subjectividades espirituais cubanas. Considere a
seguinte citação de um ensaio intitulado "Que és la Santería?", parte
integrante de uma colecção, publicada em 1960, chamada Materia y Espiritu,
psicografada por Claudio Agramonte, o fundador da Sociedad de Estudios
Psicológicos Amor y Caridad Universal em Havana, a par com José de Luz, o
seu mais importante professor espiritual (s/d: 2,3,7):

'Podemos observar como a santería comunica com os seus aderentes
sentimentos de medo, vingança, ódio, inveja, complexos que os
escravizam a esta religião e cria divisões mesmo entre membros da
mesma família, visto que eles vêem um inimigo em qualquer pessoa e um
tem que ser destruído a todo o custo. (…) A maior aspiração do
santero é a exploração do seu cliente para ganhos pessoais. Se a
pessoa que vem para ele é fraco de mente, ele irá incutir-lhe medos,
fazendo-o acreditar que ele está rodeado de inimigos e de pessoas que
lhe querem mal (…). Como a maioria dos santeros são incultos, pessoas
de baixo nível, os seus seguidores tenderão a sofrer os efeitos da sua
pobre educação. É muito comum quando uma pessoa faz 'santo' irá, num
curto período de tempo perdera sua personalidade, os seus negócios
correrão pior e por vezes perdê-lo-á a todos. O mesmo acontecerá no
emprego e ele começará a decair para um estilo de vida diferente, numa
espiral descendente. A razão para isto é que, ao proceder à sua
iniciação, aqueles à sua volta não investigam nem o nível nem a
categoria espiritual do indivíduo em questão e como nestes contextos
predominam apenas seres espirituais retrógadas, estes irão infligir as
suas ignorâncias e paixões passadas no indivíduo. (…) É por tudo isto
que nos vemos a santería como um passo atrás, no qual cada vez mais
pessoas da raça negra caiem, seja por motivos de dificuldades
económicas, seja porque as portas da religião tivesse estado fechadas
para elas (…).'


Até agora pintei uma figura bem negra da relação do espiritismo científico
com as suas irmãs e irmãos religiosos afro-cubanos. Mas, como na passagem
acima também implica, há algo mais a vislumbrar na retórica de Durán e de
outros do que um ataque racial ou religioso. De forma semelhante à crítica
de Durán, o texto constitui um protesto baseado nos tipos de entidades –
vivas ou não – que este cosmos é capaz de gerar e de manter,
principalmente, devido à falta de instrução, vulnerabilidade à exploração,
ou às dificuldades financeiras. Este é um ponto importante que sugere que
não é apenas uma conduta social indesejável para com os outros que está
aqui em jogo mas a ética das práticas mediúnicas em si, na medida em que
estas criam condições de várias qualidades para a evolução do próprio
espírito. Pois, tal como os científicos insistem tão frequentemente,
parafraseando Durán (acima), o espírito não tem raça, sexo, ou nação – ele
é infinito.
Uma examinação da biografia dos seus líderes e fundadores permite
observar a importância de dois factores em particular: em primeiro lugar,
que existe com frequência uma percepção de uma transição de um estado
anterior de ignorância e/ou de imoralidade, para um estado de iluminação
disciplinar, indicando não só a centralidade de noções como a educação e
moralidade no espiritismo mas também um reconhecimento de raízes
sincréticas comuns; em segundo lugar, que esta transição implica uma
desmaterialização necessária nas práticas espíritas, que coloca no centro
do seu entendimento religioso espírita e afro-cubano o papel da matéria na
ética de boas práticas. Na verdade, este preceito de desmaterialização leva-
nos a considerar um paradoxo mais generalizado no espiritismo, sem o qual a
dimensão ontológica das metodologias científicas seria despojada de
contexto. De seguida, irei expor estes pontos em contraponto às duas
histórias dos líderes dos grupos que tenho estado a descrever.
A trajectória de Alfredo Durán como espírita sugere a centralidade das
narrativas de 'conversão' no discurso do espiritismo científico – onde a
educação, e até certa medida, a alfabetização, opera como um catalisador
simultaneamente moral e religioso; a 'conversão', por ser turno é menos
estrita do que aparenta. Durán nasceu na parte oriental rural de Cuba numa
família de camponeses pobres com uma inclinação para o espiritismo de
cordón, sendo que o 'cordón' se constitui como uma modalidade espírita
orientada para a cura, prevalente nas províncias mais a este de Cuba e,
predominantemente, praticada pelos camponeses anteriormente à Revolução. A
sua própria mãe, ele disse-me, fundou um centro espírita em 1915 e que
eventualmente fechou quando foi acometida de uma doença e de uma paralisia,
condição essa que haveria de perdurar por muitos anos. 'Há um certo mito
acerca de mim', confidencia-me Durán, 'eles dizem que eu nasci primeiro com
as minhas pernas'. De acordo com ele, quando tinha cinco anos, a sua
mediunidade estava a florescer. Também afirma que, frequentemente,
'contava' coisas às pessoas e que as curava com as suas mãos. Ele foi
também levado aos campos cultivados para que, magicamente, afastasse os
insectos que se alimentasse da cultura. Durán refere, de forma curiosa, que
ele era usado como insecticida humana. Porém, Durán contrasta radicalmente
este primeiros anos da sua vida com aqueles quando se tornou o líder do
Consejo. Nas minhas conversas com ele, Durán costumava enfatizar que ele
vinha de uma meio humilde, que era iletrado mesmo a entrar na sua fase
adulta – tendo aprendido a ler e a escrever graças à Revolução – e que ele,
erroneamente, tinha-se apoiado na formulação religiosa espírita de cordón
como resultado da sua 'ignorância' até que, finalmente, encontrou o
espiritismo científico nos anos 60. Nada vem da religião, ele costumava
dizer, só do conhecimento, da ciência e do estudo.
Durán é um homem que defende a sua doutrina. Mas também é um médium
polifacetado cuja capacidade de cura não foi totalmente abandonada na sua
busca pelo 'conhecimento' Enquanto aos sábados ele dedica-se ao seu
compromisso com o Kardecismo conduzindo conferências e debates doutrinários
que são seguidos de curtas sessões de trance, Durán passa as suas manhãs de
semana atendendo religiosamente uma variedade de 'pacientes', cujas doenças
físicas ele trata com massagens, cremes, prescrevendo remédios
herbalísticos, exercendo chiroprática, hipnoterapia, cura por reiki, e
energia piramidal terapêutica. Ele está particularmente interessado em
curar problemas do sistema circulatório, insistindo que a maior parte das
maleitas das pessoas desapareceriam se eles se submetessem diariamente a um
banho frio em detrimento de um duche quente. O charme inegável de Durán
provém do seu pragmatismo diário e dedicação à cura. Neste contexto, tanto
ele como a sua esposa Maria projectam uma simplicidade tranquila e
despretensiosa, que contrasta fortemente com os, por vezes forçados,
debates públicos. O meio humilde de onde ambo vieram parece ter-lhes
permitido ligarem-se facilmente ao sofrimento dos outros no seu cotidiano,
o que revela, por um lado, a fragilidade do seu discurso acerca das
fronteiras.
Uma narrativa de redempção e de transformação é contado sobre Claudio
Agramonte, o médium fundador da Sociedad de Estudios Psicológicos Amor y
Caridad Universal, que será talvez o grupo científico mais bem organizado e
filosoficamente complexo que tive oportunidade de estudar. Como Durán, as
origens de Claudio são também modestas. Nasceu em 1902 numa pobre cidade
rural em Matanzas conhecida pela sua forte tradição e costumes afro-
cubanos. Sem conhecimento do seu protagonista espiritual futuro, Claudio
era um jovem rebelde e que adorava celebrar em festas. Os líderes da
Sociedad dizem que ele foi escolhido como um veículo para a evolução
espiritual daqueles ao seu redor, precisamente pelas suas qualidades e
simplicidade – ele era um homem negro simples, sem estudos, cujo coração
estava no sítio certo. No início, Claudio foi abordado por um espírito que
se chamava a si-mesmo de Rafael Alava. Rafael pareceu a Claudio uma tarde
para lhe dizer que lhe tinha sido dada a oportunidade de ajudar a
humanidade, mas que o deverá fazer com disciplina, não bebendo nem
dançando. Porém, Claudio ignorou-o e continuou o seu estilo de vida
habitual. Até que numa festa, o corpo de Claudio foi totalmente possuído
por Rafael. Quando finalmente recuperou a consciência, Claudio ficou muito
assustado ao se aperceber que não tinha nenhuma memória do evento, apenas
hematomas. Foi aí que Rafael começou a mudar a vida de Claudio. Francisco,
o irmão de Rafael, veio mais tarde como uma influência espiritual. De
acordo com a história, Francisco tinha sido um padre do prestigioso culto
afro-cubano Ifá e um santero, mas que tinha encontrado a verdade espiritual
próximo do fim da sua vida.
Rafael, Francisco, assim como o seu irmão Juan, tinha vivido na mesma
cidade que Claudio noutra altura, uma cidade chamada San Luis, e tornar-se-
iam os principais motores da metamorfose espiritual de Claudio. Os três
viriam a integrar o seu corpo espiritual, fundindo-se com o campo
energético de Claudio ao ponto que este último iria tomar uma nova
personalidade, guiada pelos seus espíritos guia. Mas estes espíritos afro-
cubanos iriam abrir o caminho para os ensinamentos de uma outra entidade,
cujo nome deu o nome da Sociedad: José de Luz. José de Luz tinha sido um
importante homem branco na sua incarnação, tendo vivido confortavelmente
como um advogado e médico bem- sucedido (numa época que não é clara), com
umas incursões pela música e poesia. Durante esta existência, porém, ele
havia tomado partido da sua posição social, errando quando deveria ter sido
caridoso. Na sua forma espiritual, ele vinha agora completer a sua tarefa
spiritual, escolhendo Claudio como a sua 'matéria'. Através dos dons
mediúnicos excepcionais de Claudio, em particular na escrita automática,
José de Luz transmitiu o que se tornaria o tratado fundacional da Sociedad
– uma colecção de escritos sobre a ciência da mediunidade espiritual, sobre
a relação química entre o espírito e a matéria, sobre a personalidade e a
doença, assim como sobre a natureza na evolução material e cultural.
Claudio faleceu em 1965, tendo se transferido alguns anos antes a sua
Sociedad para Havana para satisfazer a crescente demanda pelas suas
práticas mediúnicas de 'investigação' e os seus efeitos curativos. A sua
doutrina é agora ensinada por dois filhos médicos, tendo ganhado um enorme
grupo de seguidores nos anos recentes.
A história de Claudio atesta o pouco que existe de europeu na história
da Sociedade, exceptuando o espírito-guia branco. Os Agromontes estão longe
de serem tradicionalistas no sentido estrito do Kardecismo e não negam os
ascendentes afro-cubanos do desenvolvimento espiritual do seu pai,
incluindo os seus espíritos-guia Alava, que permanece até nos dias que
correm como uma figura respeita e venerada nas sessões de sábado na
Sociedad.

Discussão: os paradoxos das coisas
Na sua análise dos "homens-deus" cubanos dos séculos XIX e XX, Román (2007)
mapeia os diferentes destinos de dois espíritas curandeiros em cerca de
1900, Hilário Mustelier e Juan Manso. Mustelier era um ancião espírita
curandeiro, ou um 'hombre-dios' como alguns lhe chamavam, cujas multidão
de seguidores no campo rapidamente se tornam desconfortáveis para as
autoridades que eventualmente o acusaram de insanidade e de charlatanismo e
o prenderam. Manso era, por sua vez, um veterano de guerra espanhol, que
foi fortemente cortejado pelos média, tendo sido descrito como carismático
e possuidor de uma inteligência racional e dotado de uma eficácia curadora.
'Mustelier enfrentou uma acusação largamente devido ao facto que ele
ameaçou o regime de conhecimento patrocinado pelo Estado; Manso foi bem-
sucedido visto que a sua proposta não foi entendida como um desafia. Porém,
Manso e Mustelier não praticavam diferentes espiritismos' (2007: 24): na
verdade, Manso havia chegado ao espiritismo através do próprio Mustelier.
Román afirma que Manso foi tolerado pois as suas propostas pareciam
conciliáveis com a ortodoxia científica da altura e com os princípios
políticos: por contraste, Mustelier não se desculpava pelas suas curas nem
negava que ocasionalmente lutava contra a bruxaria, realizando variados
exorcismos. Ele também argumentava problematicamente que a 'graça' que
possuía não era sua mas que vinha 'de cima', sendo assim milagrosa. A
História vindicou esta sua última posição. No entanto, um dos pontos que
retiro da análise de Román é precisamente o facto de que, nas práticas
espíritas e as histórias dos seus praticantes, as formas de espiritismo
puras e "misturadas" são tão ilusórias como eram nas trajectórias
religiosas dos homens-deus que descreve no virar do século XX, apesar das
tentativas mediáticas e legais em demonstrar precisamente o contrário. Na
minha experiência, tentar filtrar as influências africanas das europeias
nas sociedades a que tive acesso revelou-se uma tentativa malograda. Por
detrás do rótulo 'científico/kardeciano' frequentemente encontram-se
múltiplas inovações técnicas e teoréticas ou inovações que desafiam esta
categorização, ou que, no mínimo, se estendem em direcções imprevisíveis.
No entanto, ainda que com graus de diferença, todos os científicos
possuem um pressuposto em comum: a ligação de um espírito com a matéria e a
sua produção da mesma. Os científicos geralmente posicionam-se num dos
extremos do que é universalmente reconhecido como uma graduação do
engajamento material entre os praticantes do espiritismo e da religião afro-
cubana. Compreender o seu posicionamento dentro deste espectro é uma forma
de avaliar a cosmopolítica particular que se encontra na sua base. Os
científicos invertem de forma eficiente o que é uma preocupação popular com
a individualização, potencialização e vitalização dos seus 'muertos' – e,
deste modo, da extensão do seu self – através do uso de coisas materiais.
Mas, assim, também os científicos falseiam as suas práticas no
reconhecimento de que a materialidade tem efeitos profundos ontológicos no
mundo dos espíritos. Se um defende a criação da presença do espírito
através de coisas, outro procura cultivar qualidades de presença
alternativas através da sua ausência ou redução, o que é todavia raramente
viável.
Tal como Matthew Engelke observou entre os Apostólicos Masowe no
Zimbabué que estudou (2007), a materialidade é um assunto delicado. Para os
Apostólicos de Sexta Feira no Zimbabué, as coisas materiais, como as
igrejas, as bíblias, as plantas, até o mel, podem 'trair as lacunas da fé'
(2007: 228). No entanto, Engelke questiona-se até que ponto pode a religião
ser imaterial? Os profetas e líderes apostólicos distanciam-se
fervorosamente das substâncias e dos objectos usados pelos curandeiros
locais e bruxas. Apesar disso, tal como Engelke afirma, tanto os profetas
como os curandeiros locais utilizam coisas materiais para curar, sendo com
frequência as mesmas coisas. 'Definir a autoridade dos objectos em
conformidade com os princípios da mensagem de Sexta Feira revela ser uma
tarefa com alguma importância', afirma Engelke (ibid: 225), que defende que
na dimensão da cura 'manter o compromisso com a imaterialidade depende da
habilidade de definir o significado e a autoridade dos objectos' (ibid:
226). A materialidade é sedutora e potencialmente corruptora; embora sendo,
em última instância, inevitável. Os exemplos etnográficos de Engelke's
possuem alguns paralelos com os científicos cubanos que tenho estado a
descrever.
Os científicos definem-se muitas vezes em referência à ausência de
'coisas' rituais na sua promoção da mediunidade. Contudo, o que constituem
estas 'coisas' é um assunto problemático. Como vimos na história de Durán,
os copos de água podem cruzar essa linha, mesmo que os remédios ervários e
cremes não o sejam; para outros, o uso de materiais purificadores como
tecidos coloridos, álcool, perfume, flores e plantas especiais são o que
distinguem uma prática apropriada de uma não apropriada. E para outros, são
as ofertas de comida e as representações de espíritos que ameaçam
'materializar' o mundo espírita para além de qualquer reparação moral, e
não as oferendas comuns de charutos e de rum. Enquanto todos, por certo, se
horrorizariam com a ideia de desenvolver um espírito através da oferta
sacrificial animal, por exemplo, existe em todo o caso uma panóplia de
ideologias articuladas dentro da comunidade científica em Havana em relação
ao que se entende por 'material' e imaterial' na prática. Isto não é
sobejamente diferente aquilo que é experienciado pelos próprios denominados
'cruzados', cuja relação com a materialidade é igualmente problemática e
alternante no seu contexto. Os espíritas 'cruzados' evocam frequentemente
diferenças em relação aos praticantes das religiões afro-cubanas,
descrevendo, por exemplo, o seu espiritismo como o 'puro', o 'camino de
agua, de azucena' (o caminho de água, de flores) como um médium e um palero
uma vez me disseram, talvez como uma forma de diferenciar outros aspectos
mágicos. 'Tal como tu vês estes copos de água, transparentes e limpos, um
espírita deverá ser da mesma forma', disse-me um outro, sugerindo que os
espíritas deveriam idealmente ser imunes às tentações da ganância e do
oportunismo que tanto afecta os outros cultos, uma forma diferente de
'materialismo'. Tal como podemos imaginar, estas são afirmações morais do
mesmo modo que fazem alusão à apreensão geral do espiritismo em relação a
substâncias complexas e por vezes perigosas, tal como aquelas fabricadas em
Palo Monte e em Ocha. Tanto os 'cruzados' como os 'científicos' promovem
julgamentos morais na sua ligação com a materialidade, sendo que ambos o
fazem pois sabem que diferentes tipos de muertos são produzidos em espaços
com diferentes níveis de compromisso 'material'.
Em teoria todos os espíritas são confrontados com a decisão de
determinar até que ponto eles irão 'representar' e/ou 'materializar' as
várias entidades com quem trabalham. Os perigos detectados do
'materialismo' excessivo tornam-se evidentes através da circulação de
narrativas de autodestruição de feiticeiros cujos muertos literalmente os
consumem. De uma forma menos abrangente, os espíritas tem que lidar também
com ameaças semelhantes, balanceando a utilidade de um espírito e a sua
capacidade de influência mágica terrena com a seu acesso potencial a
conhecimento metafísico e assim obter orientação iluminada. Para a maioria
dos espíritas, a conduta habitual de um muerto solicita uma atitude
respeito e de estima substancial. Para os científicos, estas são ligações
que inibem o desprendimento de um espírito em se afastar daquilo que
consideram ser o vício da materialidade e da amarração. Deste modo, esperar
que um espírito responda a um ídolo, a um figurino ou boneco seria, por
definição, espiritualmente imoral. Porém, raramente linhas rígidas como
esta dividem o que é aceitável numa sessão científica. De acordo com
Antonio, o Claudio também começou o seu trabalho com copos de água e outra
parafernália ritual, apenas para depois se afastar do seu uso. 'Devemos
ajudar-nos a nós próprios de modo a ajudar os nossos espíritos', diz
Antonio. 'Devemos ajudar os espíritos que estão apegados às coisas
materiais e precisamos que eles trabalhem.' Como já demonstrei alhures,
esta Sociedade exemplifica bem a filosofia da desmaterialização que, de
qualquer forma, permite inevitavelmente a sua existência. Outros
científicos são menos tolerantes da progressão gradual de um espírito de
encontro à imaterialidade ou desapego e menos expressivos acerca do papel
dos médiuns para este desenvolvimento. Por vezes, tive a oportunidade de
observar o Durán a lidar com transgressões deste género, algumas delas com
uma certa irritação. O facto que este trabalho-de-fronteira cosmopolítico
pode ser observado na maioria das sessões espíritas científico revela a
extensão dos esforços em limitar um cosmos que tenta constantemente
penetrar em áreas proibidas de culto. Por outras palavras, os científicos
nadam contra a maré na sua luta contra o universo espírita crioulo que
existe à sua volta.
Como é possível verificar, é bastante penoso tentar encontrar um meio-
termo. Os espíritos afro-cubanos apresentam-se como um problema constante
no espiritismo científico devido à sua associação próxima no imaginário
popular com a materialidade ritual, tal como é informada pelos seus
entendimentos frequentemente discriminatórios do legado das tradições
africanas e dos africanos em Cuba. Aquilo que tenho tentado demonstrar
neste trabalho é que estes preconceitos necessitam de uma contextualização
maior do que parece à primeira vista. A matéria é um domínio altamente
moralizado na socialidade religiosa, quer entre os praticantes de Ocha e
Palo, quer por espíritas de todo o espectro. Os científicos levam esta
moralização até a um extremo, estendendo-a às narrativas de redenção dos
seus médiuns e aplicando-a às abordagens educacionais e de segregação das
interacções espirituais, embora com um sucesso duvidoso. O apelo à acção de
Durán, pode ser também lido através dessa análise. Os científicos são
frequentemente hábeis a minimizar os aspectos biográficos de espíritos
individuais, apostando em mensagens de conteúdo ou de ímpeto mais geral,
seja ao nível individual ou colectivo. O pressuposto prende-se com a ideia
de que a biografia de um espírito carrega consigo uma bagagem material,
literalmente.



Referências

Agramonte, Claudio. Sem data. 'Que es la santeria?'. Materia y Espiritu.
Miami: Colección La Luz

Ayorinde, Christine. 2004. Afro-Cuban Religiosity, Revolution, and National
Identity. Gainesville: University Press of Florida

Brandon, George. 1997 (1993). Santeria from Africa to the New World: The
Dead Sell Memories. Bloomington: Indiana University Press

Cabrera, Lydia. 1971 (1954). El Monte. Miami: Ediciones Universal

Durán, Arias. Sem data. 'El espiritismo en la visión de Alfredo Durán
Arias'. Folheto produzido pelo Consejo Supremo Nacional de Espiritismo
Cubano

Engelke, Matthew. 2007. A Problem of Presence. Beyond Scripture in an
African Church. Berkeley and Los Angeles: University of California Press

Gieryn, Thomas F. 1983. 'Boundary-Work and the Demarcation of Science from
Non-Science: Strains and Interests in Professional Ideologies of
Scientists'. American Sociological Review, 48 (6): 781-795

Ortiz, Fernando, 1924 (1915). 'La Filosofia Penal de los Espiritistas'.
Estudio de Filosofia Juridica, Madrid: Editorial Reus

Palmié, Stephan. 2002. Wizards and Scientists: Explorations in Afro-Cuban
Modernity and Tradition. Durham & London: Duke University Press

Román, Reinaldo L. 2008. 'Governing Man-Gods: Spiritism and the Struggle
for Progress in Republican Cuba'. Em Africas of the Americas. Beyond the
Search for Origins in the Study of Afro-Atlantic Religions. Org. Stephan
Palmié, 107-140, Leiden: Brill Academic Publishers

_____________ 2007. Governing Spirits: Religion, Miracles, and
Spectacles in Cuba and Puerto Rico, 1898-1956. Chapel Hill: University of
North Carolina Press

Routon, Kenneth. 2010. Hidden Powers of the State in the Cuban Imagination.
Gainesville: University Press of Florida

Vieito, Ángel Lago. 2002. Fernando Ortiz y sus Estudios Acerca del
Espiritismo en Cuba. Havana: Centro de Investigación y Desarrollo de la
Cultura Cubana Juan Marinello

Wirtz, Kristina. 2009. 'Hazardous waste: the semiotics of ritual hygiene in
Cuban popular religion'. Journal of the Royal Anthropological Institute 15:
476–501
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.