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May 30, 2017 | Autor: Historia Música | Categoria: Censura
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14/09/2016

Moralistas de plantão ­ Revista de História

Moralistas de plantão Enquanto a censura política se abrandava nos anos 1970, recrudescia a censura aos novos hábitos e costumes Douglas Attila Marcelino 1/6/2008  

Imagine o estrago que pode fazer à imaginação infantil um super‐herói com valores morais questionáveis. Ainda mais se ele entra nas casas de família em pleno horário nobre da TV. Esta era a preocupação de um brasileiro que em 1982 endereçou ao governo uma carta sobre o assunto. “Devido à sua roupagem vistosa, influencia as crianças que o tomam como herói”, ele escreveu. Ora, por que não seguir modelos como o Super‐Homem e o Homem‐Aranha? Afinal, eles “apresentam‐se como protótipo do homem másculo”, e em seus desenhos e filmes “o vilão leva sempre a pior, triunfando assim a legalidade”. A suposta ameaça às mentes infantis atendia pelo nome de Capitão Gay. Era um personagem interpretado por Jô Soares no programa “Viva o Gordo”. Além da falta de senso de humor, a carta revela o inconformismo do autor diante das mudanças de costumes que ocorriam naquela época, amplificadas pelos meios de comunicação de massa. E ele não estava sozinho em sua indignação. Justamente no momento em que o regime militar se abrandava, com o projeto de abertura política em andamento desde meados dos anos 1970, a censura de cunho moralista ganhava fôlego. Era preciso combater a onda de “pornografia” e “subversão” que inundava as diversas expressões culturais, protegendo o “bem‐estar” e a “moral” da “família brasileira”. O grande símbolo do governo nessa “empreitada moralizadora” foi Armando Falcão, ministro da Justiça entre 1974 e 1979, no governo de Ernesto Geisel. Sua escolha para o Ministério refletia a ambigüidade política daquele período. Por ser um personagem moral e politicamente bastante conservador, Falcão tinha bom relacionamento e era admirado pelos militares mais radicais, da chamada “linha dura”. Sua presença no governo serviria, assim, para tranqüilizar os ânimos exaltados desses setores, ajudando o processo de abertura política a transcorrer sem maiores problemas. Porém, mais do que uma ou outra concessão, Falcão demonstrou grande afinidade de interesses com os extremistas, sobretudo com o pessoal dos “serviços de informações” (ou seja, espionagem) da ditadura. O que o levou a reforçar a censura contra as “diversões públicas”, que abarcava filmes, peças teatrais, músicas e telenovelas do período. Para isso, o ministro Armando Falcão contou com o auxílio de parte da sociedade, que, como ele, não suportava os ares de liberalização dos costumes que ventavam no país (e em boa parte do mundo ocidental) desde fins dos anos 1960. Liberação sexual, emancipação feminina, debates sobre a legalização do divórcio, homossexualismo, uso de drogas: esses eram alguns dos temas considerados indigestos para os “valores tradicionais”.   O governo recebia cartas de apoio à censura e mesmo exigências de maior rigor na repressão. Os remetentes pediam proibições, denunciavam obras ou se diziam ofendidos pela suposta “onda de libertinagem” que atingira o país. Muitos falavam em nome de entidades e grupos católicos de todo o país (ver box), preocupados com a “modernização dos costumes” – muitas vezes associada à ação dos comunistas. Outras mensagens eram de gente comum, que escrevia por conta própria após assistir a um programa de televisão ou folhear um livro “imoral”. Em 1982, Solange Hernandes, diretora de censura, recebeu uma carta vinda de Campo Grande (MS) pedindo mais rigor no controle das publicações eróticas. Era “mais um desabafo do que uma reclamação”, segundo o remetente. Ele relatava que “sua senhora”, ao limpar o quarto dos filhos, deparou‐se com “uma grande quantidade de material pornográfico” e ficou estarrecida. Ao verificar que “não se tratava simplesmente de erotismo”, e sim de “pornografia barata”, ele teve logo um http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/moralistas­de­plantao

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ímpeto de surrar as crianças. Mas “como sou uma pessoa relativamente esclarecida”, dizia ele, “esperei calmamente e, então, interroguei‐as”.  Dizendo‐se um homem “religioso”, “pai de família”, “que sempre trouxe seus filhos educados dentro de um rígido padrão de moralidade”, procurou investigar a situação e descobriu que as crianças, assim como muitos de seus colegas, estavam deixando de comprar o lanche na escola para adquirir tais revistas. Percebendo que “as bancas de jornal estão abarrotadas delas”, tratou logo de denunciar ao chefe da censura aquelas que trariam material pornográfico: Exclusivo erótico policial, HQ color sex comic, Ninfetas, Carne viva e Real sex. A televisão atraía o maior número de reclamações. Assim como aconteceu com o cinema quando surgiu, a rápida expansão da TV causava assombro. Era comum encontrar opiniões que exageravam sua influência social: ela “invadia os lares” nos momentos mais inoportunos, como a hora do jantar, e desencaminhava a família reunida e indefesa. Para a TV se voltaram também os olhos vigilantes dos censores. No fim dos anos 1970, um cidadão enviou carta ao presidente da República manifestando seu “veemente protesto contra um escandaloso, aviltante e afrontoso programa de televisão”. Transmitido pela TV Globo, o programa teria “exibido um infeliz rapaz de maneiras efeminadas, cognominado Ney Matogrosso”. Segundo o remetente, a “triste e deplorável coreografia” do cantor, “eivada de deboches e sandices despudoradas”, chocara “a grande maioria do público que teve a desventura de vê‐lo”. “Diante de tão insólita afronta à população”, destacava ele, “somos forçados a nos interrogar a todos os pulmões: será que existe censura nesse país?” A maior liberdade dos temas abordados pela televisão irritava muita gente. Personagens homossexuais nas novelas provocaram forte reação do público. Foi o caso de Roger, um costureiro interpretado por Walther Verve em “Pecado Capital”, de Janete Clair. A novela, exibida pela TV Globo em 1975, sofreu várias restrições da censura desde o início. Alguns apresentadores “efeminados”, como Clodovil e Clóvis Bornay, também eram freqüentemente enxovalhados pelos espectadores mais moralistas. No ano de 1983, por exemplo, um deputado estadual do Maranhão enviou uma carta indignada ao ministro da Justiça, Ibrahim Abi‐Ackel (1980‐1985). Sua revolta era contra a propaganda de um programa do apresentador Clodovil, cuja exibição se iniciaria na Rede Bandeirantes: “um deboche, uma ironia, um show de efeminismo”, destacava ele. Dois anos depois, um remetente pedia censura a um comercial de desodorantes da marca Playboy em que apareceriam “cenas de um casal adolescente levando uma vida de transa e de duas jovens que vivem juntas em um caso bem à vista de lesbianismo”. Algumas vezes, esse tipo de manifestação assumia teor muito mais violento, como na carta de um morador de Pernambuco enviada ao ministro da Justiça, Fernando Lyra (1985‐1986), no mesmo ano. O correspondente dizia ter chegado à conclusão de que, na TV brasileira, “lésbicas e chifrudos de alto coturno, para gáudio da cafajestagem galardoada ou não, estão mandando e desmandando”. Novamente, um dos principais alvos era o apresentador Clodovil: “Ignoramos se a TV Bandeirantes ainda apresenta um programa dirigido e apresentado pelo fresco Clodovil que, via Embratel, oferecia um show de frescura nacional, ante a omissão covarde de nossas autoridades, que deviam colocar esses frangos em soberbos garajaus”. Homossexualismo era o tema que mais mobilizava os grupos favoráveis à censura moral. Mas não o único. Qualquer cena mais permissiva em termos sexuais ou contendo um linguajar considerado chulo, assim como qualquer personagem que fugisse ao padrão daquilo que era tido como uma conduta moral “normal”, poderia motivar reclamações. E a censura atuava em uníssono com as demandas mais conservadoras. Em parecer feito em 1979 sobre a sinopse da novela “Pai Herói”, de Janete Clair, o censor responsável anotava criticamente: “O texto examinado mostra uma série de conflitos de personagens psicologicamente desequilibrados, tais como assassinos, vigaristas, bicheiros, assaltantes à mão armada, gigolôs, proxenetas, prostitutas, cafetina, ligações extraconjugais, amor‐livre, corrupção ativa e passiva etc.” No cinema, o país vivia a década das famosas “pornochanchadas”. Esses filmes de forte apelo sensual, repletos de insinuantes cenas de nudez parcial, conquistavam um público ávido, que lotava as salas de exibição. Por outro lado, havia obras que abordavam temas sexuais e comportamentais de modo contestatório, com objetivos políticos e menor apelo junto ao público. Tanto em um caso como no outro, os “novos valores” expostos nesses filmes revoltavam os mais conservadores. Produções nacionais e estrangeiras geraram indignação quando exibidas nos cinemas http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/moralistas­de­plantao

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nacionais. Em 1977, um remetente escrevia ao presidente Ernesto Geisel (1974‐1979) reclamando: “O povo está revoltado com um tal filme que anda por aí, de nome ‘Dona Flor e seus dois maridos’ (...). Fui vê‐lo. É a maior vergonha do cinema nacional! Uma imoralidade declarada! O homem e a mulher praticam ato sexual – na cama – abertamente, com todos os seus detalhes, até terminar”. Teria Armando Falcão dormido no ponto? Pelo contrário. As versões que chegavam aos cinemas já haviam sofrido cortes consideráveis, muitos sugeridos pelo próprio ministro. “Assisti, pessoalmente, na sala privativa do Ministério, a exibições prévias de filmes nacionais e estrangeiros em que a obscenidade mais torpe era marca registrada. Lembro‐me de que só depois de muitos cortes, que determinei, permiti a apresentação pública de películas como ‘Dona Flor e seus dois maridos’, ‘Laranja mecânica’, ‘Último Tango em Paris’ e outros”, registraria Falcão no livro de memórias Tudo a declarar, lançado em 1989 (o título é uma irônica alusão à frase “Nada a declarar”, sempre repetida por ele quando era ministro, para se livrar dos repórteres). Os vetos ao clássico “Laranja Mecânica” (Clockwork orange, de Stanley Kubrick), por sinal, entraram para o anedotário da censura nacional. Na tentativa de esconder suas várias cenas de nu frontal, foram pintadas bolinhas no rolo do filme, cobrindo as partes íntimas dos atores. O resultado, como se pode imaginar, foi cômico. E não resolveu o que havia de mais chocante (e mesmo “subversivo”) no filme: a brutalidade de um governo que tenta impor uma lavagem cerebral aos criminosos, tornando‐os dóceis e subservientes por meio da exposição à violência! No início dos anos 1970, uma entidade chamada Movimento por um Mundo Cristão articulou‐se a uma série de outras – como a Associação das Mães Cristãs, a Federação dos Trabalhadores Cristãos de Minas Gerais e o Círculo Operário de Belo Horizonte – para pedir ao coronel Armando Amaral, delegado regional da Polícia Federal, a proibição da exibição do filme “O padre que queria casar‐se” na capital mineira. Na carta enviada ao delegado, a entidade argumentava que o filme era “ofensivo aos nossos costumes religiosos, morais e familiais”. A situação não era muito diferente em relação ao teatro e ao mercado editorial. Durante a gestão de Armando Falcão no ministério, livros e revistas receberam mais atenção do que em qualquer outro período do regime militar. O ministro criou um “grupo de trabalho” encarregado de sugerir critérios de proibição de livros, estendeu a censura às publicações estrangeiras distribuídas no país e pressionou os donos de várias publicações periódicas para coibir conteúdos que não interessassem ao governo. Não era só a imoralidade que preocupava o ministro, mas também a atuação comunista, muitas vezes vista como causa principal da “falta de vergonha”. Também preocupante era a exposição de revistas eróticas em bancas de jornal. Este foi o motivo de várias cartas escritas a Falcão e aos diretores que passaram pela censura, que procuraram intensificar a fiscalização e o controle sobre os jornaleiros de várias cidades, sobretudo das capitais. Para isso, contavam, mais uma vez, com a colaboração de muitas pessoas que denunciavam livros, revistas e os locais em que estavam sendo vendidos. “Como brasileiro e como chefe de família, me sinto coobrigado na tarefa de combate à literatura licenciosa ou pornográfica”, escreveu um morador de Niterói (RJ), ao denunciar a venda de títulos “pornográficos” na Livraria Natal. “Mais do que um dever, é um prazer colaborar com o governo”, complementava. É claro que muitas obras ainda eram proibidas por seu conteúdo político, mas a maioria foi vetada por colocar em cena comportamentos sexuais não‐ortodoxos. Vale registrar que, à medida que a perseguição política tornava‐se insustentável, a vigilância em relação aos costumes acabava se tornando a única razão da existência dos órgãos burocráticos responsáveis pela censura. Uma máquina que continuou funcionando mesmo depois de terminada a ditadura, sendo extinta somente com a Constituição de 1988. A atuação da censura comportamental esteve presente em outros períodos da História do Brasil. Já havia uma espécie de tradição deste tipo de atividade na sociedade desde muito antes do regime militar. Com a ditadura de 1964, intensificou‐se a demanda pela moralização dos costumes, misturada com a censura de natureza política. Pode causar certo incômodo saber que nem toda a sociedade condenava as proibições de obras que a censura tachava de imorais durante o regime militar. Ainda mais quando sabemos que isso foi muitas vezes utilizado como pretexto para coibir os adversários políticos da ditadura. Talvez por isso, esta seja uma faceta muitas vezes ocultada da experiência brasileira. Considerá‐la, por outro lado, não implica http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/moralistas­de­plantao

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esquecer que a censura de natureza política foi intensamente denunciada e combatida pelos grupos que se opunham ao regime autoritário. No campo comportamental, entretanto, muitas pessoas se mostraram prontas a colaborar com a censura. Cabe indagar se ainda hoje a censura comportamental não seria desejada por boa parte dos brasileiros. Se assim for, como é possível estabelecer critérios para o que é ou não é pornográfico? Como assegurar que tal censura não seja utilizada como cobertura para proibições de natureza política? Afinal, isso sempre aconteceu na história brasileira. Douglas Attila Marcelino é professor de Teoria e Metodologia da História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutorando em História pela mesma instituição e autor da dissertação de mestrado “Salvando a Pátria da Pornografia e da Subversão: a Censura de Livros e Diversões Públicas durante os Anos 1970” (UFRJ, 2006). Saiba Mais ‐ Livros: CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.). Minorias silenciadas: história da censura no Brasil. São Paulo: Edusdp, 2002. FALCÃO, Armando. Tudo a declarar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. FICO, Carlos. Além do golpe. Visões e controvérsias sobre 1964 e a Ditadura Militar. Rio de Janeiro: Record, 2004. SIMÕES, Inimá. Roteiro da Intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Editora do Senac, 1999.

   

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