Morbidade intraoperatória em um hospital privado: Uma análise epidemiológica de 3680 pacientes

June 4, 2017 | Autor: L. Magalhães Filho | Categoria: Estrategia
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Morbidade intraoperatória em um hospital privado: Uma análise epidemiológica de 3680 pacientes

Lidiomar Lemos de Magalhães Filho
Fabiane Cardia Salman
Álvaro Escrivão Júnior


Trabalho apresentado e publicado no IX Congresso Internacional de Qualidade em Serviços e Sistemas de Saúde (2008)



INTRODUÇÃO


A anestesiologia possui potencial de morbi-mortalidade1 vinculado às condições clínicas dos pacientes e aos seus próprios princípios operacionais, onde quer que seja exercida2. Estudos nacionais e internacionais têm vinculado a sua incidência com diferentes fatores:
- a administração de medicamentos onde o índice terapêutico é relativamente próximo ao limiar tóxico;
- intervenção direta sobre a fisiologia de sistemas ou órgãos vitais (sistema nervoso, sistema cardiocirculatório, sistema respiratório, fígado e rins) 3;
- atuação em organismos já debilitados, seja pela doença que motiva a anestesia-cirurgia, como por outros desvios sistêmicos da normalidade;
- uso de equipamentos pneumáticos, mecânicos, elétricos e eletrônicos4, cujos controles de qualidade inicial independem do anestesiologista, e para os quais a manutenção de qualidade é diretamente dependente da estrutura administrativa do hospital ou das instituições provedoras; e a
- falibilidade, fato inevitável e inerente à nossa condição humana. O erro humano foi destacado há anos na Anestesiologia, sendo esta reconhecida como especialidade pioneira no tratamento do tema segurança. 5, 6, 7
Outros fatores, como a formação profissional deficitária e as más condições de trabalho e segurança assistencial também apresentam impacto negativo no cuidado anestésico.
Estudos sobre a mortalidade relacionada à anestesia mostram resultados muito distintos, variando de 1,6 a cada 10.000 pacientes8 a 0,21/ 10.000 pacientes em estudo no Japão de Kawashima et al9. Apesar de ser um fenômeno raro, a mortalidade durante o procedimento anestésico apresenta taxas muito variáveis, de acordo com o método utilizado e com a época analisada.
A morbidade anestésica é um evento mais frequente, com incidência de até 10,6%, sendo as causas mais comuns as relacionadas a overdoses de drogas ou seleção errada de medicamentos (15,3%), arritmias graves (13,9%), isquemia miocárdica (8,8%), manejo inadequado de via aérea (7,9%) e vigilância anestésica inadequada (6,9%).10
Nos últimos anos podemos notar a mudança no tipo de pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos e diagnósticos sob anestesia, com o aumento de pacientes mais idosos e com mais doenças associadas. Na França, Clergue publicou aumento de 120% no número de anestesias desde 1980 (6,6 a 13,5 para cada 100 habitantes), concentrando-se esse crescimento nas cirurgias de pacientes com idade superior a 75 anos e/ ou estado físico ASA III. 11 Ainda que a classificação de estado físico (ASA) não seja determinante em alguns trabalhos, ela parece complicar a evolução de incidentes críticos em anestesia, que se tornam mais graves quanto maior a classe.12, 13, 14
Em um estudo multicêntrico realizado nos Estados Unidos foi verificado que os fatores de risco mais relacionados à alta morbidade intraoperatória foram: pacientes com idade superior a 50 anos, estado físico ASA III ou IV, tipo de anestesia empregada, cirurgias cardiovasculares, torácicas e abdominais, infarto de miocárdio e hipertensão arterial grave. 15
Por outro lado, Lagasse 16 destaca, apropriadamente que a anestesia ainda não é completamente segura para pacientes com estado físico ASA I ou II, nos quais os principais riscos podem ser os iatrogênicos, e muito menos ainda para os pacientes doentes. Infelizmente a anestesia ainda contribui para graves efeitos adversos e mortes evitáveis.
Diversos trabalhos correlacionam a ocorrência de eventos adversos em anestesia à falhas de equipamentos, erros de medicação e dificuldade de manejo anestésico.17, 18 Entretanto, pouco tem se estudado sobre a incidência de complicações não fatais e a relação entre a condição pré-operatória dos pacientes, como idade, criticidade, peso ou sexo e outros fatores de risco, como a técnica anestésica utilizada, a abordagem da via aérea, a utilização de sistemas de aquecimento e a capacitação dos anestesiologistas.


OBJETIVO

Analisar, do ponto de vista epidemiológico, os fatores condicionantes que determinaram a morbidade em uma população submetida a procedimentos anestésicos em um hospital privado.



METODOLOGIA

Realizou-se um trabalho quantitativo com 3680 pacientes pertencentes ao banco de dados de um hospital privado da cidade de São Paulo, os quais submeteram-se a cirurgias ou procedimentos diagnósticos sob anestesia no período de agosto à dezembro de 2007. Excluiu-se os pacientes que apresentavam a falta de alguma informação.
Esse banco de dados possuía as seguintes variáveis: tipo de anestesista (externo ou pertencente ao hospital), idade, peso, tipo de paciente (internado ou ambulatorial), tipo de cirurgia (eletiva ou urgência), classificação de estado físico (ASA), tipo de cirurgia, se o paciente passou ou não pela avaliação pré-anestésica prévia ao procedimento, técnica anestésica utilizada, técnica de abordagem da via aérea no intraoperatório e a utilização de um sistema de aquecimento durante a cirurgia.
Com a utilização do software estatístico Minitab, realizou-se uma regressão logística da variável dependente "intercorrência intraoperatória" sobre as demais variáveis independentes citadas anteriormente, chegando-se com isso num modelo estatístico de intercorrências intraoperatórias.


RESULTADOS

Inicialmente, aplicou-se a técnica stepwise regression sobre todas as variáveis independentes do banco de dados com o objetivo de reduzi-las a um menor número de variáveis mas que fossem mais correlacionadas à variável dependente. Das 11 variáveis iniciais, foram selecionadas 6 (tipo de anestesista, via aérea, ASA, avaliação pré-anestésica, tipo de cirurgia, idade), conforme observa-se no teste abaixo.







Stepwise Regression: intercorrências versus procedimento; técnica anestésica; tipo de anestesista (externo ou pertencente ao hospital), idade, peso, paciente (internado ou ambulatorial), cirurgia (eletiva ou urgência), ASA, realização da avaliação pré-anestésica, técnica de abordagem da via aérea e a utilização de um sistema de aquecimento.


Alpha-to-Enter: 0,15 Alpha-to-Remove: 0,15

Response is intercorrências_v on 11 predictors, with N = 3679
N (cases with missing observations) = 1 N (all cases) = 3680



Step 1 2 3 4 5 6
Constant 1,029 1,029 1,029 1,029 1,029 1,029

sma_v -0,0118 -0,0125 -0,0163 -0,0157 -0,0157 -0,0157
T-Value -4,30 -4,56 -5,13 -4,90 -4,91 -4,91
P-Value 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000

via_aerea_v 0,0110 0,0116 0,0112 0,0112 0,0113
T-Value 4,01 4,21 4,06 4,03 4,07
P-Value 0,000 0,000 0,000 0,000 0,000

asa_v 0,0075 0,0120 0,0119 0,0104
T-Value 2,36 2,91 2,90 2,46
P-Value 0,018 0,004 0,004 0,014

av_pre_v -0,0067 -0,0067 -0,0061
T-Value -1,72 -1,70 -1,53
P-Value 0,086 0,090 0,126

cirurgia_v -0,0045 -0,0045
T-Value -1,62 -1,63
P-Value 0,105 0,103

idade_v 0,0042
T-Value 1,46
P-Value 0,145

S 0,167 0,167 0,166 0,166 0,166 0,166
R-Sq 0,50 0,93 1,08 1,16 1,23 1,29
R-Sq(adj) 0,47 0,88 1,00 1,05 1,10 1,13
Mallows C-p 25,7 11,6 8,0 7,1 6,4 6,3



Em seguida, realizou-se a regressão logística da variável independente "intercorrência intraoperatória" sobre as 6 variáveis dependentes obtidas anteriormente, chegando-se a um modelo estatístico significante (p0,05) e as medidas de associação também foram significantes pois o modelo apresentou um par concordante de 64,9%. Isso tudo evidencia que o modelo tem um bom nível preditivo de intercorrências intraoperatórias.
Ë importante salientar que na amostra analisada não foi observado nenhum caso de morte relacionada à anestesia, somente um caso de parada cardio-respiratória, no qual foram realizadas manobras de ressuscitação cardiopulmonar, com sucesso.


CONCLUSÕES E DISCUSSÃO

Diferentemente de Newland, obteve-se uma morbidade de 2,8%, talvez pelo hospital privado paulistano possuir um maior foco em cirurgias eletivas de pacientes ASA I e II ao passo que aquele teve mais pacientes ASA III e IV.
A primeira variável que mais contribuiu com o modelo foi a procedência do anestesista, ou seja, o fato desse trabalhar para o hospital contribuiu para a redução da morbidade intraoperatória. Isso pode estar relacionado aos critérios de contratação e atualização do mesmo, pois conforme Cohen (1986), uma das causas de morbidade anestésica está relacionada à falta de capacitação teórico-prática dos anestesiologistas.
A seguir, obteve-se a técnica de abordagem de via aérea no intraoperatório como segunda variável que mais contribuiu com o modelo, fato esse já esperado pois conforme Newland et al (2002), o manejo inadequado de via aérea foi responsável por até 7,9% das intercorrências intraoperatórias.
Por último, mas não menos importante, apareceu a variável de classificação do estado físico do paciente (ASA), a qual também é largamente citada pela literatura conforme pode-se observar em Forrest et al (1992) em um estudo multicêntrico realizado nos Estados Unidos.
Não verificamos nenhum caso de mortalidade relacionada à anestesia na amostra analisada, o que também condiz com a literatura, que relata a proporção de 1,6 a cada 10.000 pacientes, segundo estudo de Clifton.
Perante este contexto, percebe-se que há uma preocupação crescente nas Sociedades de Anestesiologia em criar uma fonte atualizada de consulta da epidemiologia de morbidade e mortalidade relacionada a eventos anestésicos e seus fatores preditivos.
Somente com a análise cuidadosa dos fatores condicionantes que determinam a morbidade anestésica e a tomada de decisão focada nestes será possível aprimorar a técnica anestésica, capacitar os anestesiologistas e proporcionar cada vez mais uma diminuição no comprometimento da saúde destes pacientes.


BIBLIOGRAFIA

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