Morfologia Urbanística de uma Cidade Balneária. Um passeio analítico em Águas de São Pedro, SP.

May 23, 2017 | Autor: Ricardo Trevisan | Categoria: Turismo, Urbanismo, Morfologia Urbana
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Título – Morfologia Urbanística de uma Cidade Balneária. Um passeio analítico em Águas de São Pedro, SP. Sessão 5 – Cidade, planejamento e gestão urbana: história das idéias, das práticas e das representações. Autores: TREVISAN, Ricardo (1); SILVA, Ricardo S. da (2) (1) Arquiteto formado pela EESC-USP, Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Engenharia Urbana da UFSCar, Bolsista FAPESP. E-mail: [email protected] (2)Arquiteto, Doutor em História, Prof. Titular da Pós-graduação em Engenharia Urbana da UFSCar, Rod. Washington Luís Km 235 São Carlos, SP. Tel. (16) 260-8262 r.227, CEP 13560-970, E-mail: [email protected]

Morfologia Urbanística de uma Cidade Balneária. Um passeio analítico em Águas de São Pedro, SP. Introdução A Estância Hidromineral de Águas de São Pedro (imagem 1), projetada e construída a partir do final da década de 30 do século passado, tornou-se atualmente referência nacional pela sua “excelente qualidade de vida”1. Fruto capitalista de uma pequena elite, este balneário atrai turistas de várias partes do Brasil, principalmente provenientes da grande São Paulo, quadruplicando sua população em finais de semana, feriados prolongados e férias escolares. A qualidade terapêutica das águas minerais, que jorram de suas três principais fontes – Gioconda, Juventude e Almeida Salles –, a paisagem campestre e a tranqüilidade oferecida no ambiente deste balneário estabelecem os atrativos principais para pessoas que buscam fugir do cotidiano estressante das grandes cidades, revitalizando suas energias. Mas nem sempre foi assim. As terras onde este núcleo urbano se encontra configuravam-se, em fins da década de 20, como vastos campos de plantação de café, que nessa época já apresentava sinais de enfraquecimento tanto por problemas na economia de exportação quanto pelo desgaste sofrido pelo solo com este tipo de produção. Impulsionado pela busca de petróleo, como um dos produtos a substituir o café no contexto econômico nacional, a região do município de São Pedro sofreu as primeiras inspeções tendo, porém, como resultado apenas a obtenção de águas minerais em grande quantidade2. A idéia de transformar a área desses poços em balneários medicinais e, posteriormente, numa cidade balneária coube a uma sociedade formada por empresários e donos de terras locais, da capital paulista e da cidade de Santos, liderados por Antônio Joaquim de Moura Andrade e por Octávio de Moura Andrade. A criação em 1935 da empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A por este restrito grupo representava uma forma de aplicar o “grande excedente de capital”, gerado no auge da economia cafeeira, em novas oportunidades seguramente rentáveis.

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BUCHALLA, Anna Paula. “Cidade das Crianças”, in: Revista Veja. São Paulo, 2000, 20/dez, p.79.

2 RODRIGUES, Adyr Apparecida Balastreri. Águas de São Pedro – Estância Paulista. Uma Contribuição à Geografia de Recreação. São Paulo, Tese de doutoramento, FFLCH-USP, 1985.

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Neste sentido, além de fatores já explicitados (uma produção desestimulada e a busca por novos produtos a substitui-lo no cenário econômico), outros aspectos apontavam para a consolidação lucrativa deste empreendimento. De um lado, a existência de balneários como os de Poços de Caldas e de Araxá, ambos no estado de Minas Gerais, erguidos com finalidades terapêuticas, atraiam inúmeros turistas de diversos estados, inclusive de São Paulo, que para lá se dirigiam em busca de lazer e que por lá deixavam suas reservas econômicas em hospedagem, banhos termais, jogos de azar, restaurantes, etc. Por outro lado, os incentivos fornecidos pelo governo federal, na época sob o comando de Getúlio Vargas, promoviam a colonização e ocupação do interior brasileiro através da implantação de novas cidades e instigavam a criação de atividades de lazer, como a abertura de cassinos, em todo o território nacional3. Portanto, traçado o perfil do empreendimento a partir de bases economicamente viáveis e rentáveis, bastava a empresa colocá-lo em prática. Para a elaboração do projeto urbanístico desta nova cidade, com fins terapêuticos e recreativos, foi contratado em 1937 o engenheiro e urbanista Jorge de Macedo Vieira, responsável por planejar loteamentos residenciais nas cidades de São Paulo, Campinas e Atibaia e desenhar Cidades Novas – Maringá e Cianorte – no norte do estado do Paraná, todos permeados pelos conceitos do ideário urbanístico inglês de Cidade-Jardim. Sendo assim, segundo o Memorial Descritivo da Estância (1938), “foi a cidade de águas projetáda com o careteristico de cidade de repouso, do tipo ralo, com abundancia de espaços livres, e dividida em duas unicas zonas: a comercial, muito pequena, e a residencial.”. A criação do balneário deveria seguir os moldes propostos por Octávio de Moura Andrade, o qual pretendia implantar uma Estância modelo para a América do Sul, e disponibilizar para seus freqüentadores, atraídos pela terapia termal, um conjunto de infraestrutura de lazer complementar como hotéis, cassino e atividades de lazer em geral. Porém, também foi de fundamental importância para a concretização positiva do projeto a requisição feita pela empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A, no ano de 1939, ao Escritório de Engenharia Civil e Sanitária do Rio de Janeiro para a execução do plano de saneamento da nova cidade. Este escritório foi fundado em 1920 pelo célebre engenheiro sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues de Brito (falecido em 1929) e tinha seu filho, Saturnino de Brito Filho, na liderança em 1939. Tratava-se do escritório de saneamento com produções para mais de centena de cidades brasileiras, que 3

NEIVA, Arthur Hehl. “Getúlio Vargas e o Problema da Imigração e da Colonização”, in: Revista de Imigração e Colonização. Rio de Janeiro, 1942, n.1, ano 3, abril.

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dispunha das técnicas sanitárias mais modernas e, principalmente, articulava de forma integrada a obra de saneamento com o planejamento urbano proposto4. Com o rápido histórico descrito acima é possível perceber o trabalho cuidadoso dedicado à elaboração da Estância de Águas de São Pedro. Todavia, estaremos aqui fazendo um recorte específico para estudo e análise: identificar como o plano urbanístico de uma cidade nova – Águas de São Pedro – foi elaborado para receber uma Estância Hidromineral, com atividades terapêuticas e voltadas ao lazer e ao ócio. Para avaliar o modo como o engenheiro-urbanista Jorge Vieira articulou os elementos de conformação de uma cidade com as funções pré estabelecidas direcionadas à terapia e ao lazer deve-se atentar para os seguintes componentes: a ocorrência de setorização dos espaços de acordo com suas funções, as particularidades atribuídas aos espaços públicos e aos edifícios principais, o desenho das vias públicas quanto a sua adequação às condições geomorfológicas do terreno e a sua qualidade espacial, as necessidades de uma rede de infra-estrutura básica e sua integração ao meio urbano, a relação estabelecida entre área construída e área livre e a porcentagem de área verde em toda cidade. De antemão, sabe-se que as referências projetuais de Vieira estão interligadas a conceitos pertencentes ao ideário inglês de Cidade-Jardim. Sendo assim, pretende-se também verificar se houve a incorporação de tais conceitos no projeto urbano de Águas de São Pedro e como se deu tal aplicação, apontando possíveis alterações em virtude das restrições funcionais imposta à cidade. Neste sentido, iniciaremos nossa trajetória analítica através de um breve panorama sobre o modelo urbanístico Cidade-Jardim e como este ressoou em território nacional. Paralelamente, e também de real importância para este estudo, traçaremos um histórico sobre o urbanismo característico às Cidades Balneárias – tipologia urbana que a partir do século XVIII disseminou-se em diversos países europeus –, apontando as peculiaridades que as diferenciam das demais cidades.

O Urbanismo Cidade-Jardim A Revolução Industrial, originária na Inglaterra, transformou a cidade existente até então. O surgimento das fábricas nas cidades, criando inúmeras oportunidades de emprego, e as más condições de vida no campo fizeram com que a migração campo-cidade se 4 FERREIRA, Ângela Lúcia de A.; DANTAS, Ana Caroline de C.L.; EDUARDO, Anna Rachel B.; DANTAS, George Alexandre F. “Escritório de Engenharia Civil e Sanitária: Uma Tradição de Pai para Filho”, in: Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR sobre Ética, Planejamento e Construção Democrática do Espaço. Rio de Janeiro, ANPUR, 2001, vol.2, pp.564-576.

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tornasse uma das características marcantes do cenário urbano inglês e europeu no século XIX. Porém, a infra-estrutura urbana não foi compatível com o número de habitantes que esta recebia. O rápido crescimento das cidades acarretou sérios problemas de saneamento, falta de moradia e aumento da poluição do ar5. A cidade transformou-se repentinamente, no local das mais novas e diversificadas relações econômicas, políticas, sociais e culturais. E como uma mistura de ingredientes diferenciados, a incorporação dos mais diversos agentes e elementos dentro do cenário urbano se deu de forma conflituosa e desarmônica. A cidade industrial como objeto empírico foi observada e refletida por inúmeros profissionais de diversas áreas que utilizaram métodos diferenciados. Havia aqueles que utilizavam-se de dados estatísticos isolados para analisar a cidade de forma quantitativa. Outros, principalmente médicos e higienistas, abordavam temas como a má condição de vida do proletariado urbano. Também, eram presentes os “pensadores políticos” que associavam os problemas existentes na vida urbana aos problemas sociais, políticos e econômicos6. A necessidade de se criar cidades-modelos, para responder ao caos da cidade industrial, possibilitou a abertura de propostas urbanísticas, projetadas e construídas, e fez da virada do século XIX para o XX um período singular na criação de novas concepções urbanísticas, dentre elas o modelo Cidade-Jardim. Contemporaneamente às diversas elaborações de cidades ideais da época – as Company Towns inglesas, a Cidade de Linear do espanhol Arturo Soria y Mata, a Cidade Industrial do francês Tony Garnier, o urbanismo Sanitarista, a Cidade Modernista para 3 milhões de habitantes de Le Corbusier – surgia na Inglaterra um modelo urbanístico de concepção distinta das demais: a concepção de Cidade-Jardim. Elaborado pelo taquígrafo inglês Ebenezer Howard, este ideário ganhou o conhecimento público a partir de 1898 com a publicação do livro To-morrow: A Peaceful Path to Real Reform (Para o Amanhã: Um Caminho Tranqüilo para a Reforma Autêntica), reeditado em 1902 com o título Garden Cities of Tomorrow (Cidades-Jardins de Amanhã). Este documento tornou-se ícone para o urbanismo moderno ao apresentar um novo modelo urbano: uma cidade diferenciada em seus aspectos físicos e em sua organização econômica, política e social. Nesta obra, Howard reuniu propostas, ensaios, soluções e intervenções práticas que abordavam o tema cidade sob determinado foco de interesse e que, todavia, encontravamse dispersas. Entre estas, a solução dos problemas sócio-culturais da cidade industrial

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CREESE, Walter. The Search for Environment: the Garden City Before and After. Baltimore, MD, University Press, 1992.

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CHOAY, Françoise. O Urbanismo. São Paulo, editora Perspectiva, 1997.

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estaria no retorno do homem ao campo; o contato do homem com a natureza seria capaz de manter seu bem-estar físico e moral. Condensando este ideal, a concepção howardiana apresentou-se como o mais adequado plano de construção do espaço Eutópico (lugar aprazível). Longe da cidade gigante vitoriana e seus problemas – poluição, cortiços e especulação imobiliária –, Howard propunha um agrupamento de cidades de pequena e controlada dimensão no interior da Inglaterra, habitadas por pessoas vindas da capital ou de outras cidades com as mesmas dificuldades7. Em termos gerais, a proposta de Howard foi fundada na junção das qualidades existentes no campo com as qualidades existentes na cidade, como o próprio autor expõe em sua obra Cidades-Jardins de Amanhã: “A questão é universalmente considerada como se agora fosse (e assim devesse permanecer para sempre) completamente impossível para os trabalhadores viver no campo e apesar disto dedicar-se a atividades outras que não a agricultura; como se cidades superpovoadas e malsãs fossem a última palavra em ciência econômica e como se fosse necessariamente permanente nossa atual forma de produção, na qual linhas cortantes separam as atividades agrícolas das industriais. Essa falácia é aquela muito comum de ignorar por completo a possibilidade de outras alternativas além daquelas apresentadas à mente. Na verdade, não há somente duas alternativas, como se crê - vida urbana ou vida rural. Existe também uma terceira, que assegura a combinação perfeita de todas as vantagens da mais intensa e ativa vida urbana com toda a beleza e os prazeres do campo, na mais perfeita harmonia"8. Com isso, o autor pretendia criar uma comunidade beneficiada simultaneamente por pontos positivos presentes tanto no campo como na cidade e calcada em parâmetros autosustentáveis e de crescimento controlado. Howard propôs uma pequena cidade para 32 mil habitantes, sendo circundada por um Cinturão Verde com função de abastecer com produtos agrícolas o consumo interno e impedir a expansão urbana. A forma de gestão desta cidade, a aquisição e a posse da terra, a produção de bens industrializados, o modo de ocupação e os habitantes que ocupariam este novo núcleo também foram analisados e indicados pelo visionário inglês para que não houvesse a ocorrência das vicissitudes inerentes às cidades da época.

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HALL, Peter. Cidades do Amanhã. São Paulo, editora Perspectiva, 1995.

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HOWARD, Ebenezer. Cidades-Jardins de Amanhã. São Paulo, editora HUCITEC, 1996, p.108.

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Estruturalmente, a cidade ideal de Howard foi apresentada através de sugestões esquemáticas, representadas em diagramas, nas quais estabelecia a disposição setorial dos componentes urbanos (área residencial, centro cívico, áreas verdes, área comercial, zona industrial e áreas de circulação, incluindo a presença da ferrovia). “A cidade-jardim teria um ambiente dominado por superfícies arborizadas, plantadas e ajardinadas que permitiriam o máximo acesso visual e físico a todos os espaços.”9. Embora esquemáticos, Howard deixou claro que as Cidades-Jardins a serem construídas deveriam levar em conta a adaptação do plano à geografia local e a incorporação da vegetação nativa ao projeto. O sonho howardiano foi concretizado em Letchworth, a primeira Cidade-Jardim, projetada na Inglaterra em 1903 pelos arquitetos Raymond Unwin e Richard Barry Parker. O ponto de partida para Unwin e Parker foi uma meseta ao sul da linha férrea onde traçouse uma larga avenida (Broadway Anenue) da estação até o local onde se projetaria a Praça da Cidade e os edifícios públicos. Na execução desta axial (imagem 2), os dois arquitetos preservaram as árvores existentes e as integraram ao paisagismo da avenida. A partir da praça expandiu-se o plano de forma radiocêntrica por vias com caráter residencial. A área comercial fragmentou-se ao longo das ruas curvilíneas Station Road e Leys Avenue. Nos bairros residenciais a ocupação foi feita de modo a garantir uma baixa densidade com no máximo 12 casas por acre. Este valor decresce no sentido às regiões mais periféricas da cidade, tendo em média 5 casas por acre. Em Letchworth, Unwin e Parker não utilizaram o elemento cul-de-sac no desenho do traçado viário residencial. O agrupamento de moradias variava desde a casa isolada às geminadas em grupos de dois a cinco, com devidos recuos de implantação no lote. As questões sociais foram trabalhadas a fim de não diferenciar bairros elitistas e bairros populares. Os palacetes ocupariam espaços próximos às casas mais simples (cottages), porém não tão perto assim, como coloca Peter Hall em Cidades do Amanhã (1995). Na Cidade-Jardim de Letchworth a natureza estaria presente em parques e praças, nos jardins dos lotes residenciais e na arborização das vias públicas. A diversidade seria dada pela presença de árvores frutíferas, flores e legumes. Para cada rua, os arquitetos haviam proposto o plantio de uma espécie diferente de árvore. A construção deste primeiro exemplar serviu não apenas como referência para demais profissionais da área, que trabalharam os conceitos deste modelo em diversos planos urbanísticos na Europa, na Ásia e na América, como deu-se início às reformulações 9

LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa, FCG/JNICT, 1992, p.312.

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em algumas das bases howardianas. A mais importante delas foi a alteração da escala de Cidade-Jardim para Subúrbio-Jardim, realizada por Unwin em 1907 no projeto para o bairro residencial de Hampstead em Londres (imagem 3) e transcrita na obra Town Planning in Practice em 1909. Embora com dimensões diferenciadas, Unwin introduziu os conceitos provenientes deste pensamento inicial na escala de loteamento residencial, mantendo o bucolismo das vias residenciais, a introdução em grande quantidade de massa verde nos lotes e vias, a adequação do traçado viário à topografia local e a utilização da arquitetura campestre inglesa (cottage) no desenho das casas. O projeto apresentou diferentes fases de elaboração, uma em 1905 e a outra entre 1906 e 1907, e foi baseado nas concepções projetuais de Cidade-Jardim e em elementos característicos do urbanismo norte-americano do Movimento City Beautiful e do sistemas de parques periféricos. Fisicamente, o bairro continha ruas irregulares, cul-de-sacs e becos, o que afastava o tráfego de carros do seu interior e permitia tranqüilidade a seus habitantes. A área residencial foi marcada pela diversidade tipológica e pelo agrupamento entre dois ou mais domicílios. O subúrbio de Hampstead não apresentava indústrias, apenas comércio e serviços restritos ao centro cívico, composto por algumas ruas e a praça central. No ponto mais alto do terreno, por ordem do empreendedor, foi implantada a praça central com a Igreja e o Instituto – os dois edifícios com desenho do arquiteto Edwin Lutyens. O plano nesta parte assemelha-se aos princípios do City Beautiful, onde a monumentalidade foi marcada pela conversão de três vias amplas para o mesmo foco, a praça central e seus edifícios públicos. A área comercial ficou situada ao longo de uma avenida-corredor, em vez de compactada em um mercado10. Não apenas estes edifícios como também os residenciais faziam parte integrante de todo o projeto, como também a natureza, sob a figura de jardins e parques, foi integrada à massa edificada. Assim, foi através desta nova configuração dimensional que o ideário Cidade-Jardim difundiu-se amplamente por diversos países, inclusive no Brasil, tornando-se um dos modelos urbanísticos mais adotado no século passado. A recorrência a modelos urbanísticos estrangeiros para pensar, planejar e projetar as cidades brasileiras e seus espaços advém de longo tempo, desde o período colonial, e tornou-se, habitualmente, uma ação reflexa e imediata, por parte de nossos acadêmicos e profissionais, em aplicar a receita sem contextualizá-la. Porém, alguns casos excepcionais 10

MUMFORD, Lewis. A Cidade na História: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo, editora Martins Fontes, 1982, p.464.

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contrariam tal prática, sendo a ação puramente repetitiva deixada de lado para que a contextualização do elemento, externo às necessidades locais, particularizasse o modelo urbanístico importado. Exemplo disso foi o modelo Cidade-Jardim que teve em solo nacional uma aplicabilidade diferenciada de seus locais de origem; diferenciação esta decorrente, em grande parte, da atuação de profissionais extremamente disciplinados e preocupados com o agir sobre a cidade de forma coerente e correta. A entrada desta tipologia em solo nacional deu-se de maneira mais intensa a partir de 1917 quando o arquiteto inglês Richard Barry Parker (idealizador de Letchworth, a primeira Cidade-Jardim) veio a São Paulo a convite da City of San Paulo Improvements and Freehold Land Company. Entre 1917 e 1919, o arquiteto e urbanista inglês realizou, a pedido da Companhia City (detentora na época de grandes quantidades de terra da capital paulista), inúmeros projetos de loteamentos residenciais. Nas obras paulistas de Barry Parker encontram-se o Parque do Trianon, o Jardim América e o Jardim Pacaembú, todas permeadas pelos conceitos de Cidade-Jardim e Subúrbio-Jardim. Em sua produção, o britânico não somente utilizou-se dos instrumentos urbanísticos adotados nas Cidades-Jardins e Bairros-Jardins ingleses como também projetou algumas das residências destas áreas segundo a plástica da arquitetura campestre inglesa11. A partir deste momento, pela repercussão das obras de Parker ou pela difusão dos conceitos howardianos por meios de comunicação, congressos internacionais ou viagens profissionais, os princípios de Cidade-Jardim começam a ser adotados por engenheiros, arquitetos e urbanistas brasileiros em projetos e planos para bairros e cidades novas. Os exemplos nacionais de Cidade-Jardim, uma resposta ao caos da cidade colonial ou ao modelo quadriculado regularmente adotado na maioria dos projetos implantados, podem ser vistos desde bairros e loteamentos (implantados em diversas áreas da cidade de São Paulo e no bairro de Laranjeiras, no Rio de Janeiro) até cidades com fins turísticos (Águas de São Pedro, Estância do Barreiro, em Araxá), fins empresariais (Monlevade e Eldorado, em Minas Gerais), fins de colonização (Maringá e Cianorte) e fins administrativos (Goiânia e Brasília). Dentre os profissionais que articularam os conceitos de Cidade-Jardim no planejamento urbano, a figura do engenheiro Jorge de Macedo Vieira tem relevância particular. Formado em 1918 pela Escola Politécnica de São Paulo, numa turma composta 11

ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. Barry Parker – um Arquiteto Inglês na Cidade de São Paulo. São Paulo, Tese de doutoramento, FAU-USP, 1998.

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por outros profissionais urbanistas como Francisco Prestes Maia e Góes Sayão Filho, o engenheiro estagiou por dois anos (a partir de 1917) no escritório de planejamento da Companhia City. Esta experiência possibilitou-o de ter contato com as idéias e os trabalhos do inglês Barry Parker e, principalmente, de ter conhecimento sobre os princípios howardianos da Cidade-Jardim. Em suas obras, posteriores a este período, nota-se a forte influência que este ideário exerceu na formação de seu repertório teórico. Exemplos desta assimilação podem ser verificados nos bairros, por ele projetado, para as cidades de Campinas (Cambuí e Nova Campinas), Atibaia, Campos do Jordão (Vila Inglesa) e São Paulo (Jardim da Saúde, Vila Nova Manchester, Chácara da Mooca etc) e nos planos urbanos para as cidades novas de Águas de São Pedro (1937), Maringá (1947), Cidade balneária de Pontal do Sul (não executado, de 1951) e Cianorte (1955). Todos apresentando um rigoroso detalhamento de desenho dos elementos que compõem o espaço (vias, quadras e lotes) e uma preocupação em adequar o assentamento ao local estabelecido. Assim, a atuação de Vieira e o alto nível qualitativo de seus planos tiveram grande repercussão na área de planejamento da época e, hoje, são foco de análises feitas por estudiosos no meio acadêmico. Porém, através de um caso específico – o plano para a Estância Hidromineral de Águas de São Pedro – é possível analisar a integração feita por Vieira entre o urbanismo Cidade-Jardim – forma – e as especificidades necessárias a uma Cidade Balneária – função. Mas o que diferencia a cidade balneária de outras cidades?

O Urbanismo Cidade Balneária A Revolução Industrial não apenas alterou o cenário urbanístico como modificou o modo de vida da sociedade daquela época. Uma das mudanças, decorrentes das transformações do modo de produção e do meio no qual este ocorreria – a cidade –, foi o distanciamento homem e campo. Em fins do século XIX, as massas populares inglesas já estavam habituadas às cidades e à vida urbana, deixando para trás velhos costumes e atitudes da vida no campo. Com o intenso crescimento e consolidação do sistema britânico indústriacidade, a agricultura obteve considerável declínio em importância e qualquer tentativa de retornar ao campo demonstrava baixa credibilidade12.

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WARD, Stephen V. The Garden City – Past, Present and Future. Londres, Chapman & Hall Press, 1992, p.49.

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Como um objeto quase que exclusivo de uso da burguesia, o campo, com suas riquezas naturais, mostrou-se o local preferido desta classe para passar seu tempo livre. O tempo livre – o lazer –, mais uma das obras do complexo sistema capitalista, tornou-se um produto a ser consumido, sendo a natureza a materialização desse produto. Pagariam o valor deste produto quem dispusesse de capital, que nesta época concentrava-se na mão de uma minoria constituída de nobres e burgueses. Em sua tese Adyr Rodrigues (1985) explica como esta classe adquiriu este capital e o modo como ela o aplicou em lazer: “As transformações agrícolas e industriais que se manifestam precocemente na GrãBretanha elevam significativamente as rendas de uma fração da população, aquela que tinha posse da terra. A partir daí a alta classe podia desfrutar de uma vida luxuosa, graças à renda fundiária. E as viagens são incorporadas aos seus hábitos como uma forma de fugir do cotidiano. M. Boyer (1972, p.135) assinala que essa classe, que vivia de rendas e, portanto, não participava diretamente do processo produtivo `era alienada por não trabalhar, por não ter nenhuma participação real no mundo e por viver do trabalho de outros´. Participava também do processo a classe aristocrática, traumatizada pela revolução, desligada da fábrica e dos negócios, que viajava no tempo e no espaço, por se sentir cada vez menos contemporânea. O turismo foi estimulado pela exaltação da história e, consequentemente, pela testemunha da história.”13. Assim também expõe o historiador Paolo Sica em Historia del Urbanismo (1981) ao associar o lazer, na forma da cidade balneária, como um produto restrito às classes mais abastadas (as classes menos favorecidas, as quais mais sofriam as conseqüências desse novo modo de produção, estariam financeiramente restritas a sua obtenção): “... la ciudad de vacaciones, la ciudad-loisir, es la expressión espacial-territorial de un producto de consumo preciado de las clases capitalistas (o, en cualquier caso detentoras de rentas), hecho posible gracias a la extracción de plusvalor efectuada en alguna outra parte y a costa de otros. Aquí todo es exaltación del valor de uso, que pretende afirmar o reafirmar su total hegemonía: bajo tales vestiduras se presentan los consumos – y, sublimados, los signos mismos de la civilización industrial (los ferrocarriles, la máquina, las tecnologías del intercambio) – en una 13

RODRIGUES, Adyr Apparecida Balastreri. Águas de São Pedro – Estância Paulista. Uma Contribuição à Geografia de Recreação. São Paulo, Tese de doutoramento, FFLCH-USP, 1985.

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especie de extrañamiento pintoresco; aquí se evidencian y se exaltan aquellos valores de la civilización preindustrial que, ya mitificados, van desapareciendo de ciudad burguesa (el contacto com la naturaleza, la campiña en primer lugar, la soledad, o bien, por el contrario, la relación interpersonal, la abundancia y la exclusividad de los servicios y equipamientos).” 14. Assim, durante este período dominado pela racionalidade capitalista, a nostalgia pela natureza adquiriu ares de status e foi de fundamental importância na criação e proliferação de inúmeros locais direcionados a este tipo de lazer. As cidades de veraneio se firmaram primeiramente na Inglaterra e na Alemanha, durante o século XVIII, buscando nas qualidades da natureza contemplar as necessidades fisiológicas, pelos tratamentos medicinais, ou um esteticismo romântico igualmente importante, presentes em “... las fuentes termales, las playas, las cimas alpinas ..., en suma: los lugares donde el paisaje natural sale del anonimato y se reviste de determinados caracteres, donde se hace ‘pintoresco’ o ‘sublime’.”15 Tratados com produtos, estas cidades tornaram-se empreendimentos lucrativos para inúmeras sociedades e grupos financeiros que apoderavam-se destes locais em busca de lucro através da renda imobiliária. Em muitos casos, estes empreendimentos tornavam-se renda de monopólio uma vez que a oferta era quase irreprodutível. Os empreendedores também foram beneficiados pela ajuda de Estados “paternalistas-autoritários” que incentivavam a exploração e o desenvolvimento deste setor da economia. Do ponto de vista estrutural, estas cidades com função restrita apresentavam-se dependentes de núcleos urbanos vizinhos maiores em virtude da necessidade de bens não produzidos em seu interior, diferentemente das Company Towns ou mesmo das CidadesJardins, núcleos elaborados como auto-sustentáveis. Sob foco histórico, este modelo urbanístico pode ser considerado como uma antecipação das temáticas suburbanas que anos mais tarde emergem como possíveis soluções aos problemas da grande cidade industrial. Morfologicamente, as cidades de lazer apresentavam ampla variedade de tipos e formas como: “... núcleos fundados ex novo conforme a esquemas regulares, o bien caracterizados por desarrollos morfológicos fundidos orgánicamente en el paisaje; expansiones apoyadas en preexistencias históricas, incluso muy antiguas, com su propria

14

SICA, Paolo. Historia del Urbanismo – El siglo XIX. Madri, Instituto de Estudios de Administración Local, 1981, vol.2, p.905.

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Idem, p.906.

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articulación formalmente autónoma, o com un aprovechamiento particular de la orografía y de los recursos naturales.”16. A seguir podemos verificar exemplos deste urbanismo em diversos países europeus e nos Estados Unidos, atentando-se para os elementos que caracterizavam tais núcleos como cidades balneárias17. Na Inglaterra, além de cidades como Bath, Droitwich, Harrogate e Blackpool, outras aglomerações surgiram com a finalidade recreativa como: 

Buxton: estância termal de 1780 com dezenas de hotéis e equipamentos para desfrute do tempo livre e que se desenvolveu ao longo do século XIX;



Cheltenhan: estância termal com maior desenvolvimento no período de 1800 a 1840; considerada uma New Town com inúmeros planos urbanísticos e construções de arquitetura significativa da época. “Los manantiales naturales descubiertos a cierta distancia entre sí determinan el aspecto amplio y espacioso de la pequeña ciudad, que de forma un tanto naturalista sigue las líneas del pueblecito originario, los caminos rurales y las divisiones curvilíneas de las fincas agrícolas. En lugar de un centro localizado com precisión, el alma de esta garden-town de paseos e parques frondosos está constituida por la prestigiosa arteria de la Promenade ... .”18;



Brighton: cidade litorânea de 1820, foi uma iniciativa privada da empresa Cliff Bridge Company com várias e significativas realizações de planejamento urbano. Neste balneário destaca-se a unidade dada ao conjunto de edifícios que compõem a orla e a entrada principal da cidade, impedindo que as edificações recebessem arquiteturas diferenciadas; e



Bournemouth: de 1835, planificada na costa sul inglesa já para atender a classe média inglesa. Plano contendo proposta de casas unifamiliares isoladas, preocupação sanitária e cultural. Este grupo de cidades inglesas, projetadas e planejadas para atender uma

determinada função através de elementos urbanísticos ou da implantação de edifícios especializados (cassino, balneário, hotéis), criou raízes não apenas em território britânico

16

Idem, p.982

17

Idem.

18

Idem, p.982.

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como saltou ao continente europeu e americano disseminando-se por outros países e dando origem as cidades de: 

Deauville (França): empreendimento privado de 1859 para estação de banhos marinhos. Apresentava um traçado quadriculado com quadras de tamanhos variados cortadas por vias diagonais, com o prédio do cassino no centro do plano em posição de destaque;



Canche (França): balneário litorâneo que em 1894, por iniciativa do promotor inglês John Whitley, recebeu uma planta típica dos bairros suburbanos ingleses com passeios sinuosos e residências unifamiliares;



Baden-Baden (Alemanha): cidade termal com período de maior desenvolvimento entre 1815 e 1830, com equipamentos públicos implantados no século XIX, entre eles, o cassino, o teatro, o edifício para exposições, museu, passeios arborizados e os estabelecimentos de banhos que valorizaram as fontes termais do balneário (separados por sexo: Federico, para homens, e Augusta, para mulheres);



Marienbad (Alemanha): cidade transformada em balneário termal a partir de 1818 por decreto imperial. Com um parque público (1924) projetado pelo arquiteto Vaclav Skalnik, elemento este com a função de organizar o futuro crescimento da cidade;



Chianciano (Itália): empreendimento que no início do século XX começou a explorar os banhos termais visando fins lucrativos. O centro deste balneário circundava a estrada Siena-Chiusi, ladeada por hotéis e equipamentos de lazer separados por terrenos livres ou áreas verdes; e



Saratoga Springs (Estados Unidos): estância hídrica (watering place) existente desde o começo do século XIX por seus mananciais de salinas, com infra-estrutura de lazer com hotéis e chalés. Sua população em 1910 (15 mil habitantes) chegou a quadruplicar em épocas de temporadas. A cidade se desenvolveu ao longo de uma via principal de mais de 3 km de longitude (Broadway) com um parque de mais de 500 hectáres (Woodlawn Park). Como podemos observar, estes exemplos acima dentre dezenas existentes19,

independente dos recursos naturais explorados, apresentavam semelhanças entre si desde 19

Outros exemplos de cidades balneárias: Aústria (Josefplatz, Badgastein e Bad Ischl); Bélgica (Ostende e Spa); Holanda (Scheveningen); Suíça (Davos, Grindelwald, Zermatt e St. Moritz); Espanha (San Sebastián) e Estados Unidos (Lenox, Colorado Springs, Newport e Miami).

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sua apreensão enquanto um empreendimento, fosse ele de iniciativa do governo ou de empresas de capital privado, até a infra-estrutura que os constituíam, como: equipamentos de lazer (cassino, museu, teleférico), hotéis, áreas verdes, termas, etc. Aqueles que receberam maior atenção por parte de seus financiadores e projetistas se beneficiaram de inovações urbanísticas importantes para a época como o isolamento da habitação no lote ou o traçado sinuoso adequando-se à topografia local. A evolução desta “industria del tiempo libre” se deu pela difusão mundial deste conceito urbanístico e, num plano maior, pela assimilação por inúmeros países dos novos modos de vida impostos pelo processo capitalista industrial. Os países em desenvolvimento do Terceiro Mundo constituíram-se como importantes polos receptores desta “colonización turísticas”20. No Brasil, o incentivo a criação de cidades voltadas ao lazer recebeu apoio estatal (governo Getúlio Vargas, 1930-1945) e a partir daí um número significante de núcleos balneários foram criados e somados àqueles já existentes de um período antecessor como Petrópolis (RJ) e Poços de Caldas (MG). Como exemplo de cidades balneárias originárias deste período podemos citar: Campos do Jordão (SP), Águas da Prata (SP), Balneário Hidromineral do Barreiro, em Araxá (MG), Águas de Lindóia (SP) e Águas de São Pedro (SP). Contudo, destaca-se de antemão a estância hidromineral de Águas de São Pedro como uma das cidades privilegiadas que receberam devida atenção tanto por parte de seus empreendedores como por parte de seus projetistas na execução de um plano estritamente direcionado a atender as necessidades de lazer e ócio, associados ao modelo inglês de Cidade-Jardim, como podemos perceber adiante em seu projeto urbano.

O Projeto de Águas de São Pedro A elaboração do projeto desta estância balneária teve início em 1937 pelas mãos do engenheiro Jorge de Macedo Vieira. Contratado pela empresa Águas Sulphídricas e Thermaes de São Pedro S/A, o engenheiro seria responsável em planejar o assentamento para 10 mil habitantes e setorizar toda a infra-estrutura necessária para atender o balneário e suas atividades específicas (lazer).

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Idem, p.1029.

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O local de implantação já havia sido pré selecionado pela Empresa, inserindo-se no território do município de São Pedro com 3 km quadrados de área total (este limite municipal caracterizava-se como um Cinturão Verde, impedindo o futuro crescimento da estância) e próximo as três fontes de águas minerais (Juventude, Gioconda e Almeida Salles). Os limites do sítio eram dados pelo topo de um espigão, que compreendia o terreno na forma de uma ferradura, e pelo rio Araquá, fazendo o fechamento desta ferradura (imagem 4), dando ao plano um isolamento visual em relação ao entorno. Ao centro, o vale era perpassado pelo córrego Bebedouro, que em sua jusante ia de encontro ao rio. Desta topografia côncava e irregular Vieira tomou partido para implantar seu projeto, intensamente permeado pelos conceitos de Cidade-Jardim. Em 1939, somaram-se aos esforços de Vieira a contribuição do Escritório de Engenharia Civil e Sanitária de Saturnino de Brito Filho, que seria responsável pelo “projeto completo de saneamento das termas e abastecimento de água potável, assim como os de adução das águas das fontes Gioconda e Almeida Salles à ‘buvette’ projetada e a secção de engarrafamento”21. Tanto no Memorial Descritivo de 1939 como no desenho do projeto pode-se observar as medidas tomadas por Vieira na concepção de um plano único na história do urbanismo brasileiro. Um dos dados que primeiro salta ao olhar do observador é que 60% da área total foi destinada aos parques e jardins públicos (sem contar calçadas e vielas arborizadas) e os 40% restantes serviram à implantação do loteamento e do arruamento. A disposição espacial do assentamento obedeceu a um zoneamento urbanístico, estabelecido conforme os usos diferenciados propostos: residencial, comercial e serviços, industrial, lazer, saneamento e circulação. Artifício criticado por José Lamas em Morfologia Urbana e Desenho da Cidade (1992): “A organização funcionalista das cidades anulou as considerações morfológicas. As relações quantitativas e distributivas, o zoneamento e a atribuição de uma função exclusiva a cada parcela do território tornaram-se métodos universais do urbanismo, produzindo cidades monótonas e pouco estimulantes.”22. No entanto, na cidade de Águas de São Pedro, o zoneamento aplicado pelo urbanista Vieira além de organizar o espaço, não excluiu a surpresa e a complexidade existentes numa cidade tradicional, empregando ruas sinuosas e trabalhando numa escala pequena

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MEMORIAL DESCRITIVO DE ÁGUAS DE SÃO PEDRO. São Pedro, Águas Sulfídricas e Termais de São Pedro S/A, 15 de dezembro de 1939.

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LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia Urbana e Desenho da Cidade. Lisboa, FCG/JNICT, 1992, p.53.

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para dimensões urbanas. Desta forma, o trabalho de Vieira conseguiu unir de forma positiva segmentos opostos da urbanística moderna: o culturalismo da Cidade-Jardim e o progressismo do funcionalismo modernista. Na montante do córrego Bebedouro foi reservada uma ampla gleba de terra para a construção do parque municipal, do Grande Hotel, do cassino e do balneário. Nesta área, a recuperação da vegetação nativa, extinta pela lavoura cafeeira, foi de fundamental importância para preservar a nascente do córrego e compor um ambiente de lazer para os moradores e visitantes da cidade. Primeiramente, plantou-se milhares de mudas de eucaliptos que, posteriormente, possibilitaram o crescimento de uma flora local. Curiosamente, o traçado do percurso para pedestres no interior deste parque foi dimensionado cientificamente para que seus usuários conseguissem, ao percorrê-lo em sua totalidade, atingir resultados benéficos a sua saúde física. O Grande Hotel (imagem 5) situou-se em posição de destaque na paisagem urbana, principalmente para aqueles que percorrem o vale da cidade. Como destacou Kevin Lynch em A Imagem da Cidade (1980): “Um elemento marcante é mais forte quando é visível através de um longo período de tempo ou distância espacial, e mais útil se a direção de onde o avistarmos pode ser identificada. Se a pudemos identificar, quer ao longe quer ao pé, quer nos movamos devagar ou rapidamente, quer de dia quer à noite, tornar-se-á um ponto de apoio para a percepção do complexo e mutável mundo urbano.” 23. Assim, diferenciando-se da maioria das cidades brasileiras onde o elemento marcante na paisagem é a igreja ou o edifício público, Vieira propõe que o edifício de repouso e relaxamento seja este elemento marcante na paisagem de Águas, reiterando a idéia de uma cidade voltada ao ócio. Após esta área, o córrego Bebedouro foi canalizado segundo as técnicas de Saturnino de Brito, com o canal aberto e avenidas arborizadas laterais. A primeira tentativa de retificação do córrego foi feito com tubulações fechadas de 1,60 m. de diâmetro, que romperam com as primeiras chuvas. Nesta região setorizaram-se o comércio, os serviços, os hotéis menores e a única indústria, de engarrafamento da água (hoje desativada). Em sua jusante, este córrego foi limitado por um parque linear (park-way), rebaixado em relação

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LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. São Paulo, editora Martins Fontes, 1980, p.114.

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ao nível das avenidas periféricas no ponto próximo a sua junção com o rio Araquá para evitar possíveis inundações nas margens edificadas. Os loteamentos residenciais foram dispostos nas encostas dos morros adequando-os da melhor forma possível ao desnível do terreno. Simultaneamente, o sistema viário foi traçado atentando-se para que as inclinações das vias não excedessem um patamar que incomodasse o caminhar dos pedestres. Com isso, as quadras ganharam conformações irregulares e diferenciadas entre si, porém seus lotes obedeciam ao padrão de 300 metros quadrados de área. A ocupação de cada lote deveria ser feita segundo normas pré estabelecidas pelos projetistas para impedir altas taxas de adensamento e respeitar medidas higienistas da época. À área livre dos lotes, reservadas aos jardins e hortas particulares, adicionavam-se pequenas praças resultantes das quinas angulosas das quadras. Os talvegs, região de grande confluência de águas pluviais, receberam um tratamento paisagístico a fim de evitar processos erosivos no solo arenoso do local, criando-se mais praças e jardins públicos. Por fim, o sistema de esgotamento sanitário das quadras residenciais foi pensado para diminuir os custos de sua implantação e se beneficiar da energia gravitacional para transportar seus efluentes. Além disso, em determinadas áreas articulou-se a passagem destas vielas com a passagem para pedestres, facilitando o percurso ao pedestre.

Considerações Finais O intuito maior deste foi apontar apenas os pontos positivos que a escola urbanística brasileira adquiriu com a elaboração e execução deste projeto. Buscou-se mostrar a concretização de um plano urbano, iniciado a partir de situações precárias, utilizando-se ao mesmo tempo de recursos técnicos modernos e formulações urbanísticas singulares, regidas por maestros preocupados em harmonizar o espaço, o seu ocupante e a finalidade para qual foi construída. Como resultado temos uma cidade com pouco mais de sessenta anos e que, estatisticamente, revela sua condição de melhor município paulista em qualidade de vida. Os esforços em Águas de São Pedro aplicados por seus idealizadores e projetistas, materializado pelas técnicas do escritório de Saturnino de Brito e pelos conceitos de Cidade-Jardim habilmente manipulados por Jorge de Macedo Vieira, mostram-nos que junto do caráter empreendedor do projeto existia uma preocupação em recuperar a área

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degradada e criar um ambiente propício ao desenvolvimento menos impactante entre a comunidade e seu habitat. Exemplo disso foi reservar mais da metade da área total da cidade à disposição de parques, praças e jardins, o que demonstrava, já naquela época, a preocupação em guarnecer os recursos naturais (fontes, rios e solo) de uma proteção, evitando assim sua degradação progressiva. Porém, não havia apenas respeito ao meio no qual esta cidade se desenvolveria. Os moradores e seus visitantes também foram contemplados por este projeto urbanístico. Nota-se que o plano privilegiava os pedestres com suas alamedas de inclinação suave e arborizadas, como também apresentava uma infra-estrutura eficiente com sistema de esgotamento sanitário, abastecimento de água e escoamento de águas pluviais que ainda hoje funcionam perfeitamente, mesmo com o acréscimo de uma população flutuante. A integração entre forma e função, entre o modelo urbanístico Cidade-Jardim e a função turística da cidade, revelou a nós não apenas uma adaptação coerente entre ambas as partes, refletido historicamente nas primeiras estâncias européias, como mostrou-se um casamento repetido diversas vezes em cidades balneárias espalhadas país afora. Assim, o presente trabalho apresentou-se como um agente de resgate no passado de um exemplo urbanístico planejado para contribuir positivamente tanto ao homem como ao meio ambiente. A incorporação de modelos estrangeiros mostrou-se, neste caso, como uma ação plausível e coerente de ser realizada porque contextualizada e sabiamente colocada em prática pelos profissionais competentes. Por fim, a integração entre forma e função existente no plano da Estância não apenas revela a ligação entre os princípios de CidadeJardim e a configuração de um espaço voltado ao lazer como, num contexto mais amplo, aponta para a importância de pensarmos, analisarmos e projetarmos a cidade segundo o conjunto de suas estruturas e finalidades.

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Imagens

Imagem 1. Vista atual da Estância Hidromineral de Águas de São Pedro. (fonte: arquivo pessoal)

Imagem 2. Vista de Letchworth em 1930, com a via Broadway cortando a cidade, interrompida pela Praça da Cidade. (fonte: Creese, 1992, p.208)

Imagem 3. Vista do Subúrbio-Jardim de Hampstead, Londres. Projeto de Unwin e Parker em 1907. (fonte: Creese, 1992, p.228)

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Imagem 4. Projeto Urbano de Águas de São Pedro (1937) (fonte: arquivo pessoal). Legenda: parque municipal córrego Bebedouro canalizado park-way praças públicas em esquinas, cruzamentos e rotatórias praças públicas em talvegs vielas sanitárias

Imagem 5. Vista do “Grande Hotel São Pedro” em 1940 (fonte: arquivo Moura Andrade)

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