Morte (e Sobrevivência) de uma Língua – A História do Idioma de Tugu

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Morte (e Sobrevivência) de uma Língua – A História do Idioma de Tugu (Stefano Valente – www.stefanovalente.com)

MORTE (E SOBREVIVÊNCIA) DE UMA LÍNGUA A HISTÓRIA DO IDIOMA DE TUGU (Stefano Valente)

Introdução

A linguística é uma disciplina basicamente histórica: de facto, antes de propor qualquer tese ou hipótese acerca do funcionamento de um certo idioma, o objecto de estudo do linguista tem de ser analizado no seu desenvolvimento ao longo dos anos – por meio dos testemunhos literários ou não, directos e indirectos. Aliás, nessa tipologia de análise, teria de ser privilegiada a observação ao vivo das comunidades dos falantes, os seus hábitos culturais e a sua “produção linguística”.

A língua, um ser vivo

Tem-se falado de observação ao vivo. Podemos pensar num idioma como a um ser vivo: com um seu nascimento, a fase da maturidade, o declínio e a morte. Nalgumas circunstâncias a ciência da linguagem até consegue descrever – ou, pelo menos, localizar com precisão aproximativa – o ano em que aconteceu a efectiva extinção de um falar. É o caso, por exemplo, do dalmático, a última língua a desaparecer em termos temporais entre 1

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as derivadas do latim. O dalmático deixa de existir exactamente no ano 1898, com a morte do pescador da ilha croáta de Veglia (Krk), Antonio Udina, o seu último falante. Exemplo análogo é, em âmbito lusófono, o do idioma de uma aldeia isolada ao norte de Jacarta, na actual Indonésia: Tugu.

Reconstruindo a “vida” de uma linguagem: Tugu e o seu papião

Em 1511 – no apogeu da expansão portuguesa na Ásia – o Governador Geral de Índia Afonso de Albuquerque (quem se ganhou a alcunha de “Marte Português”) conquista a península da Malásia, naquela época chamada a Malaca. Trata-se de uma encruzilhada fundamental para o desenvolvimento dos tráficos ligados à Coroa lusitana. De facto a Malaca representa para Portugal a garantia de exercer domínio sobre as Molucas, as ilhas das quais provinha a maioria das variedades de especiarias. Na mesma maneira, a península da Malaca coincide com o controlo das rotas para a China e para o Japão. A nível linguístico, a supremacia lusitana corresponde à difusão do idioma crioulo malaio-português ao longo das costas do Oceano Índico. Com efeito, pelo menos por trezentos anos, esta linguagem simplificada luso-malaia – melhor conhecida como papião cristão ou kristang – fica atestada como verdadeira língua franca numa área que vai de Madagáscar até ao arquipélago das Filipinas.

No momento actual o papião cristão, com cerca de 5.000 falantes na Malaca e 400 em Singapura, é o falar peculiar dos enclaves de pescadores. Os traços do kristang são comuns aos crioulos dessa área geográfica e aos crioulos em geral, isto é: forma verbal como morfema não modificável; tempo verbal “marcado” por prefixos; objecto 2

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introduzido por com (ku-) – eli (< port. ele) ta-keré (< port. querer) dar ku-vos, ‘ele agora-querer bater te’ –; há três negações distintas (simples, do futuro, da hipotética) como em malaio; o morfema único teng indica seja ‘ser’ seja ‘ter’ (teng bong?, ‘estás bom?’); o sistema pronominal é o de origem portuguesa (yo, vos, eli, nu...) porém depurado da distinção, tipicamente austranesiana, entre formas exclusivas e inclusivas; etc.

Na Batávia – a denominação ontem dada a Jacarta – o papião cristão sobreviverá até ao fim do século passado. Exactamente até 1978, ano do falecimento de Jacob Quiko, último falante de Tugu, aldeia a norte de Jacarta (embora se possa falar da real sobrevivência do kristang – e, nomeadamente, da variedade do papião tugu – apenas até aos anos quarenta). Há muitas hipóteses a respeito da origem dos falantes o papião cristão de Tugu. Podemos supor que eles são os descendentes do cruzamento de colonizadores e mercadores portugueses e dos seus escravos. Estes mestiços eram chamados os Mardjikers.

Os Mardjikers

Os holandeses substituem-se à dominação portuguesa de Jacarta no ano de 1619. Naquela altura a população de Jacarta – ou Batávia – não era constituída por gentes indígenas: tratava-se, na maioria dos casos, de recrutas do exército colonial holandês as quais provinham das costas indianas do Malabar e de Coromandel. Estes soldados, dispensados das taxas, tinham a tarefa de guardar a ordem nos territórios da Batávia e 3

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tinham o apelativo de Mardjikers – provavelmente de uma palavra sânscrita que designava homens de religião isentos de impostos. Outra componente étnica, posterior em termos cronológicos, foi a oriunda dos escravos moluqueses. Estes eram usados para os trabalhos pesados, como obreiros, carpinteiros e na manutenção dos navios. Quando o seu dono os libertava também os ex-escravos tomavam o nome de Mardjikers. Terceiro e último núcleo de emigração – que acabou para se misturar com os Mardjikers – foi o conjunto heterogéneo de todos aqueles mercadores, artesãos e, em geral, de homens à procura de fortuna vindos dos centros de Calicute e Cochim na Índia, de Ceilão e da Malaca. Este grupo deu corpo a uma classe social intermédia – constituída por comerciantes e funzionários – que se combinou, e até se confundiu, com os Mardjikers no curso do séc. XVII assumindo o apelido de “Portugueses Negros”. O que os ligava era o falarem português e o calvinismo, ao qual foram obrigados a converter-se pelas leis holandesas.

A morte de uma língua

Em 1661 a Companhia das Índias Orientais galardoou um grupo de Mardjikers, óptimos trabalhadores, com uma parte do território setentrional da Batávia. Trata-se mesmo da aldeia indonésia de Tugu, onde a variedade de papião cristão – nomeadamente o papião tugu – será activa, como vimos, até 1978. Portanto, nesta ocasião podemos determinar com exactidão a data da morte do idioma porque ela vai acontecer mesmo com o desaparecer do seu último falante, Jacob Quiko (que era também o chefe da comunidade tugu) – o único a conhecer e por consequência, limitadamente a praticar, o crioulo português como língua materna. 4

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Na realidade o papião tugu não se acabou com a morte de Jacob Quiko. Ainda hoje ressoa no keroncong, a música da gente da aldeia. O keroncong fica conhecido na inteira Indonésia e goza de grande popularidade (é possível encontrá-lo até na Internet, nos telediscos do site Youtube). Nas letras – de alma lusitana e quase “quinhentista” – das suas canções talvez se refleta a raiz portuguesa dos Tugu: eles, orgulhosos dos seus longos narizes mais europeus do que malaios, representam uma excepção entre os povos javaneses, habitualmente muito formais e equilibrados. Os Tugu, de facto, amam o beberem e o cantarem, e gostam muito da dança; aliás, apesar de serem protestantes, não desdenham o álcool, o vinho e nem sequer a carne de porco. Em conclusão, de seguida, um famoso exemplo de música keroncong encontrado na Internet: a canção Moresco nas duas versões papião tugu e portuguesa.

Moresco Anda-anda na bordi di mare

Anda, anda pela borda do mar

Mienj korsan nunka contenti

O meu coração nunca está contente

Io buska ja mienja amada

Eu busco a minha amada

Nunka sabe ela ja undi

Nunca sei onde ela está

Io buska mienja amada

Eu busco a minha amada

Ia mienja noiba mienja amoor

A minha noiva, o meu amor

Io buska até tuda banda

Eu busco-a por todo o lado

Isti korsan teeng tantu door

Este coração tem tanta dor

Io prunta fula e strella

Eu pergunto a uma flor e a uma estrela

Bosoter munka ola un tenti

“Vocês viram-na?”

Fula e strella nunka resposta

A flor e a estrela nunca respondem

Mienj korsan nunka contenti

O meu coração nunca está contente

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O, bie aki mienja amada

Ó, vem aqui minha amada

Mienja noiba, o moler bonito

Minha noiva, ó mulher bonita

Io espara con esparansa

Eu espero-te na esperança

E canta contigo Moresco

De cantar contigo o Moresco

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