Morte e vida severina, João Cabral de Melo Neto (Uma breve proposta de análise do discurso, textual e lexical)

May 31, 2017 | Autor: Michela Graziosi | Categoria: Literatura brasileira, João Cabral de Melo Neto
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ANÁLISE DO DISCURSO, TEXTUAL E LEXICAL

Morte e vida severina João Cabral De Melo Neto

Michela Graziosi

1 INTRODUÇÃO João Cabral de Melo Neto, um dos maiores poetas brasileiros da terceira fase modernista, insere-se cronologicamente naquela importante manifestação artistica do pós-guerra conheçida como Gerãção de 45 mas, em virtude dos seus peculiares meios expressivos e estilísticos, de facto consegue alçancar um lugar autónomo e privilegiado. O seu é um percurso artístico interamente pessoal onde a poesia, lógica e racionalista, caracterizada por uma rigorosa geometria formal e uma conotação objetiva, nasce de um trabalho consciente e meticuloso, de um esforço intelectual e lúcido, concretizando-se numa linguagem enxuta e exata, que não se deixa seduzir pelos sentimentalismos e pela inspiração1. Morte e vida severina, auto de Natal pernambucano, uma das suas obras mais conhecidas, terçeira e última da “trilogia do rio” 2, que daz voz a sua terra natal, o Pernambuco, e aos problemas dos pobres trabalhadores rurais, constitui um lugar onde o autor se faz cantor da áspera e crua realidade nordestina: além de representar a triste sorte dos retirantes, que nos períodos cíclicos da seca escapam do Nordeste para chegarem ao litoral e tentarem fugirem da miséria, o texto contém também uma mais ampla e universal reflexão sobre a condição humana. A odisseia de morte-vida do protagonista Severino adquire portanto um valor paradigmático e liga todos os outros miseráveis, todos os outros Severinos-irmãos, destinados à mesma, inexorável sorte: Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: (…) E se somos Severinos iguais em tudo na vida morremos de morte igual, mesma morte severina (…)3.

1 Cfr. “Morte e Vida Severina”, documentário da GloboNews disponível em http://especial.g1.globo.com/globonews/morte-e-vida-severina/. O repórter Gerson Camarotti lembra-se do exemplo que o escritor lhe deu para explicar porque sempre negou a inspiração na sua poesia. Caso lhe acontecesse de acordar-se no meio da noite com uma ideia na cabeça - afirmou o autor - esquecê-la-ia, porque não seria uma sua ideia mas um sonho que veio. “Portanto – concluiu – é eco de alguma coisa. A ideia precisa ser o resultado de um esforço intelectual”. 2 Cfr. “Cão sem plumas” (1950), “O rio” (1953) e “Morte e vida Severina” (1955). 3 Cfr. João Cabral de Melo Neto, Morte e vida Severina (auto de natal pernambucano), Olympio, Rio de Janeiro 1979, p. 71.

Não foi por acaso que o escritor escolheu as formas populares dos autos medievais 4 e dos versos redondilhos para tratar de um tema relacionado com o povo e a pobreza. Por meio desta peça teatral, escrita entre 1954 e 1955 e comissionada por Maria Clara Machado, diretora do Teatro Tablado do Rio de Janeiro, que precisava de uma obra para encenar no Natal, o autor tinha a intenção de descrever os nordestinos, destinando o trabalho final ao povo; portanto era necessário que ele encontrasse uma forma estética válida e adequada, a única possível para se exprimir: O verso utilizado só poderia ser o popular, aquele que encontramos nos romances e romanceiros. (…) Se utilizasse outra linguagem, se tivesse posto alexandrinos na boca de um retirante analfabeto, teria caído na oratória, no requinte, e não atingiria o objetivo em vista. O povo só sente o romanceiro popular5.

Inspiradora e marcante foi uma notícia lida pelo escritor que denunciava o baixo nível de esperança de vida, de apenas 28 anos 6, no Pernambuco, terra de belezas naturais mas também de dor e de contrastes sociais: terra onde as pessoas morrem antes dos trinta e já estão velhas, onde o rio é um guia de traços humanos que indica um percorso de esperança, onde cantar exelências é o trabalho mais rentável, onde as pessoas conhecem a morte em vida, a mesma morte severina/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia. Afinal, não possuindo o teatro os recursos técnicos necessários para a encenação e tendo a diretora considerado a obra um auto de natal ilegítimo, decidiu-se não a montar, e em 1956 o texto foi publicado como poema na coletânea “Duas Águas”. Por fim, em 1966 Morte e vida severina foi representada como peça teatral no Teatro da Universidade Católica de São Paulo, com as músicas do jovem Chico Buarque de Hollanda. Embora com esta obra o autor não tencionasse fazer arte engajada mas poesia pura, objetiva e racional, em linha com a sua poética, o elemento de crítica social é o que foi mais enfatizado pelos críticos brasileiros e estas inferências políticas feitas sobre o poema irritaram-no. Numa entrevista feita pelas tradutoras italianas Tilde Barini e Daniela Ferioli, Cabral explicou a essência do seu trabalho artístico que tem a finalidade em si mesmo, na receção pelos leitores, na sua visibilidade efetiva e na sua materialidade, exemplificando também o complicado e laborioso processo de criação por meio de comparações práticas, duma maneira simples, lógica, racional: Paul Eluard ha scritto un libro intitolato Donner à voir. Questo titolo sintetizza la mia preoccupazione: voglio rendere visiva la mia poesia. Non so se Morte e vita severina aumenti o no la coscienza sociale, se L'uovo di gallina rifletta una preoccupazione sociale. Io voglio soltanto “donner à voir”. Per questo costruisco la mia poesia come un falegname costruisce una sedia, un calzolaio un paio di scarpe. Anche il calzolaio, il falegname sentono l'angoscia della creazione. Il poeta ha un'idea. Si mette al tavolino e comincia il suo lavoro. Alle volte deve aspettare anni prima di arrivare a un risultato. Anche il giocatore di calcio che prepara il goal soffre, per creare, come il falegname, il calzolaio, il poeta. Per me non esiste differenza fra i poeti e gli altri professionisti. 4 O auto é uma peça teatral em forma poética de origem medieval que trata de temas religiosos e profanos. Sendo uma criação essencialmente popular, apresenta uma linguagem que integra vocabulário e expressões consagradas pelo povo e divide-se em partes declamadas, bailados e cantos, geralmente acompanhados por pequenos conjuntos musicais. Luiz Roncari em “O homem da terra”( Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos, EDUSP São Paulo 1995, p. 84 1995) escreve: “os autos são formas de representação da Idade Média que tiveram seu início com a encenação de quadros edificantes tirados da Bíblia (…). A princípio eram encenados dentro da própria igreja, mas aos poucos foram sendo levados para fora dela, para a porta de entrada e para os pátios, até chegarem às feiras e praças públicas. À medida que foram ganhando esses novos espaços, enriqueceram-se com novos elementos, mais realistas e naturalistas, aproximando seus personagens dos homens comumns que foravam seu público (…)”. 5 Cfr. Félix de Athayde, Idéias fixas de João Cabral de Melo Neto, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/FBN, Mogi das Cruzes: Universidade de Mogi das Cruzer 1998, p. 106 em Janaina de Alencar Mota e Silva Marandola, Caminhos de Morte e de Vida. O rio severino de João Cabral de Melo Neto, Rio Claro, São Paulo 2007, p. 68. 6 Simbolicamente, na primeira parte da obra, Severino descreve o povo nordestino em 28 versos.

Tutti lottano contro la realtà, contro una materia che deve essere dominata 7.

Afastando-se completamente da ideologia e da erudição das palavras da Gerãçao de 45, criando uma poesia anti-lírica e ancorada à realidade, objetivada em textos que fazem apelo ao raciocínio e à inteligência do leitor, João Cabral de Melo Neto poderia ser aproximado mais ao concretismo, em virtude da recusa da criação artística e da consideração da poesia como uma resultante de um trabalho rigoroso e escrupoloso.



O título da obra é particularmente significativo porque apresenta aquela oposição tímica que determina a linha argumentativa do texto e faz com que a narrativa se desenvolva, referendo-se ao percurso físico e existencial do protagonista. Trata-se porém de um caminho ao contrário, que sugere uma inversão da ordem natural das coisas, porque parte da morte para chegar à vida. Severino deixa a sua terra de origem, uma serra magra e ossuda, onde a morte ataca em qualquer idade,/ e até a gente não nascida, com a esperança de direcionar-se para uma perspetiva de vida. O adjetivo no título indica portanto um destino comum às pessoas que moram no sertão nordestino e que são condenadas a uma vida “severina”, ou seja uma existência amarga e triste, que parece quase uma morte mascarada e que conduz à verdadeira morte em breve, ligando os moradores da terra por meio de um fio indissolúvel, tornando-os irmãos e filhos da mesma sorte hostil e forçando-os à emigração, para tentarem fugir desta situação cruel. O contexto social afeta e uniformiza a vida que as personagens conduzem: o mesmo acontece em Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos, onde a aspereza do sertão influencia as existências e os caracteres dos membros da família do Fabiano. De facto, aqui também o título da obra é indicativo: as vidas dos protagonistas, muitas vezes comparados aos animais, tornam-se “secas” porque determinadas pelo sertão, o ambiente inóspito onde vivem e do qual fogem, trazendo com eles uma esperança de resgate que se transformará em símbolo, ultrapassando os limites da catinga 8. Ao longo da sua viagem Severino, que segue o percurso do rio-guia Capibaribe do sertão até o Recife, encontra várias pessoas, guardiões de um mundo que parece parado num tempo antigo e indefinido e que ele ainda não conhece, com as quais discute e reflete das privações e das dificuldades da vida no Nordeste. Muitas vezes o nosso protagonista, cansado por causa da longa jornada, pensa em interromper a sua linha e procurar um emprego, que nunca obtém: a morte é a única entidade sempre presente no trajeto e, paradoxalmente, é ela que dá trabalho. Significativo é o diálogo com a mulher sentada à janela que, depois de Severino ter-lhe perguntado se lá se encontrava algum trabalho, pede-lhe informações sobre o que fazia na sua terra natal para lhe atribuir uma tarefa adequada. Todavia, nenhuma das aptidões e dos ofícios do homem ligados à terra são úteis e a mulher explica bem porque, fornecendo uma imagem do processo da morte lógico e rápido, comparado a uma cultivação simples que não precisa de esforços: 7 Cfr. “Incontro con João Cabral de Melo Neto” em Morte e vita severina, Tilde Barini e Daniela Ferioli, Einaudi, Torino 1973, pp. 14-15. 8 Cfr. Graciliano Ramos, Vidas Secas, Editora Record, Rio de Janeiro, Sao Paulo 2001, p. 126: “E andavam para o sul, metidos naquele sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos em escolas, aprendendo coisas difícies e necessárias. Eles dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis, acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se, temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada, ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos”.

Como aqui a morte é tanta, vivo de a morte ajudar. (…) É, sim, uma profissão, e a melhor de quantas há (…). Como aqui a morte é tanta, só é possível trabalhar nessas profissões que fazem da morte ofício ou bazar. Imagine que outra gente de profissão similar, farmacêuticos, coveiros, doutor de anel no anular, remando contra a corrente da gente que baixa ao mar, retirantes às avessas, sobem do mar para cá Só os roçados da morte compensam aqui cultivar, e cultivá-los é fácil: simples questão de plantar; não se precisa de limpa, de adubar nem de regar; as estiagens e as pragas fazem-nos mais prosperar; e dão lucro imediato; nem é preciso esperar pela colheita: recebe-se na hora mesma de semear9.

Talvez o sonho que o levou a começar a viagem seja uma ilusão e Severino, desesperado, depois de ter chegado finalmente ao Recife e ouvido a conversa de dois coveiros que falavam sobre os retirantes que chegavam lá e em vez da vida encontravam a morte, decide suicidar-se nas águas do rio. E enquanto ele, morto que ainda vive e espera apenas pelo enterro que o juntará à terra, aquela terra que lhe deu uma vida de privações mas lhe permitiu continuar a sobreviver, vai interromper a sua linha, o rio nunca a para, não seca, mas vai toda a vida: E chegando, aprendo que, nessa viagem que eu fazia, sem saber desde o Sertão, meu próprio enterro eu seguia. Só que devo ter chegado adiantado de uns dias; o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida. A solução é apressar a morte a que se decida e pedir a este rio, que vem também lá de cima, que me faça aquele enterro que o coveiro descrevia: caixão macio de lama, mortalha macia e líquida, coroas de baronesa 9 Cfr. João Cabral de Melo Neto, Op. cit., pp. 84-85.

junto com flores de aninga, e aquele acompanhamento de água que sempre desfila10.

O rio e o homem fazem parte de um sistema simbiótico onde se compenetram e confundem por causa de uma condição de precariedade determinada pela seca, partilhada por ambos: o caminho do nosso protagonista é inspirado e conduzido pelo rio, muitas vezes caraterizado por traços humanos, que acaba por identificar-se com Severino e com o viver dos outros irmãos nordestinos, que nunca param, sempre tinham fugido e fugirão da miséria, à procura de uma vida digna. Afinal, durante o tempo em que o mestre carpina José, um das personagens com os quais Severino depara na sua viagem, tenta dissuadi-lo do terrível propósito do suicídio dizendo-lhe que é preciso enfrentar a vida cada dia porque ainda vale a pena viver embora não seja fácil, chega uma mulher para anunciar ao trabalhador o nascimento do seu filho. Assim, a perca da esperança e do antigo sonho e a morte iminente, concretizadas na imagem de Severino que quer tomar a melhor saída saltando fora da ponte e da vida, são desviadas pelo nascimento dum menino que, saltando para dentro da vida, com a sua presença nova e viva e o seu primeiro grito, parece vencer a morte e reafirmar a esperança, a possibilidade cíclica de recriação da vida, mesmo que não seja uma redenção, porque vai ser sempre uma existência severina. Mas o sentido da vida de Severino e dos seus irmãos aqui está, em terem alcançado a consciência da própria condição severina e da necessidade da luta quotidiana: o sentido da vida só existe se ela for vivida na sua totalidade, com todas as sua dificuldades.

2 O TEXTO

A elaborada pesquisa linguística e o emprego de uma linguagem popular, áspera e escassa, muito próxima da oralidade, constituem as caraterísticas mais marcantes do estilo desta obra singular. O expediente linguístico-formal da iteração de palavras e frases articula o ritmo do poema como se fosse uma cantiga de roda onde Severino parece um antigo cantor de baladas que utiliza um registro linguístico de um tempo não bem definido; porém, de facto, ele narra apenas a fatigante quotidianidade d a população a g r a r i a d o N o r d e s t e b r a s i l e i r o . Lendo este texto de acordo com uma perspectiva intertestual, vejamos como o autor, para além da meticulosa pesquisa e reconstrução geográfica e recuperação das suas memórias, trabalhou também com elementos simbólicos da narrativa bíblica, com o folclore nordestino e com a poesia popular da região pernambucana. Este cruzamento literário então determina os fios principais da trama desta rica obra de natureza regionalista que, partindo de uma situação específica, porque definida territorialmente e historicamente, desenrola a narrativa que adquire progressivamente um valor universal. La redondilha, con la sua variabilità di accenti, snoda dialoghi e storie, confessioni e cori, con tutta naturalezza, intorno al tema spaventoso dei retirantes, uomini che la siccità scaccia dal paese e trasforma in bestiame inutilmente raccolto nella dignità della sua purezza. Il ricordo del Natale evangelico (e si ricordi che Cabral è tenacemente laico) s'introduce pienamente in questa favola profana, per la sua stessa concretezza di tradizione popolare e scenica. L'obiettivo finale è un consiglio senza ottimismo dato al povero Severino (…), un consiglio della vita alla vita, spiegabile per se stessa e che si rifà alla sua pazienza. Pesa ancora dunque, in Cabral, il mito della “natura”? Ma qui è la sua natura: di lui poeta; il suo occhio, intriso delle cose familiari. Sicché non pare 10 Cfr. Ibidem, pp. 99-100.

onesto prestargli, o domandargli, un'ideologia11.

Para escrever os monologos do retirante Severino, o autor recuperou do seu passado também a literatura de cordel12, uma das mais populares e acessíveis do Nordeste, com a qual ele relacionouse desde que era pequeno e que carateriza a estrutura poética, a linguagem e o tema da obra. De facto o público que o escritor esperava atingir era o povo inculto, aquelas pessoas que tinham uma história parecida com a de Severino; porém estas não manifestaram interesse pelo texto ou nunca o conheceram e foi por esta razão que o autor definiu Morte e vida severina um poema fracassado que gerou um grande mal-entendido: Eu tenho a impressão de que [Morte e vida severina] é um poema fracassado. Escrevi para esse leitor ou auditor do romanceiro de cordel, para esse Brasil de pouca cultura, e esse Brasil nunca manifestou nenhum interesse por ele. Quem manifestou interesse por ele foi o Brasil das capitais, o Brasil que vai aos teatros. Foi um grande mal-entendido. Quem gosta dele é gente para quem eu não escrevi. E a gente para quem eu escrevi nunca tomou conhecimento dele13.

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI O meu nome? Severino, → palavra-chave como não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, → anáfora que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos → anáfora com mães chamadas Maria, fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias. Mas isso ainda diz pouco: → anáfora há muitos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, 11 Cfr. Ruggero Jacobbi, Poesia brasiliana del Novecento, Longo Editore, Ravenna 1973, pp. 56-57. 12 A literatura de cordel é um gênero literário oral e popular, em prosa ou em verso, impresso em folhetos. O nome vem da península ibérica, onde esses impressos eram exibidos e vendidos dependurados ou cavalgando cordões que, em provençal, significa “cordel”. Escritos em forma rimada, muitos dos poemas eram ilustrados e tinham xilogravuras; de custo baixo e tom humorístico, retratavam principalmente acontecimentos de vida cotidiana da cidade ou da região. Em algumas situações os poemas eram acompanhados de violas e recitados em praças para o público. 13 Cfr. Cfr. Félix de Athayde, Op. cit., p. 110 in Braz Pinto Junior, Alusão e intertexto: a dinâmica da apropriação em Morte e vida severina, UFGD, Dourados 2014, p. 36.

limites da Paraíba. Mas isso ainda diz pouco: → anáfora se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra → palavra-chave magra e ossuda em que eu vivia. → hendíadis, metáfora, prosopopeia Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: → palavra-chave na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue → metáfora que usamos tem pouca tinta. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, → palavra-chave mesma morte severina: → palavra-chave que é a morte de que se morre “de”→ anáforas de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença → hendíadis é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). → perífrase Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: → palavra-chave a de abrandar estas pedra “a” → anáforas suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, → antítese a de querer arrancar algum roçado da cinza. → antítese Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. Severino, voz narrativa do texto e singular cantor de baladas da serra da Costela, apresenta-se ao leitor antes de referir a história da sua vida, ou melhor, da sua emigração para encontrar a vida. Todavia não é simples: o seu único nome é Severino, assim como se chama um santo conhecido e venerado, portanto há muitos outros Severinos e não são suficientes as referências à mãe, ao pai e ao lugar de origem. Há muitos outros Severinos, filhos de tantas Marias e tantos Zacarias, que vivem no mesmo sitio árido, uma serra magra e ossuda, como o sertanejo faminto e esquelético.

Existe portanto uma sintonia entre o sertão e os homens severinos, ambos desolados e secos: à humanização da paisagem correspondem a naturalização e a homogeneização da humanidade, num subtil jogo simbiótico de equivalências. Desde os primeiros versos Severino acaba por perder a sua individualidade, confluir e confundir-se na coletividade anónima dos muitos Severinos/ iguais em tudo na vida, que morrem da mesma morte: quanto mais Severino tenta definir-se, menos individualiza-se porque outros homens partilham os seus traços biográficos e fìsicos, e é assim que se determina a mudança gramatical do substantivo “Severino”, que acaba por tornar-se um adjetivo utilizado para sublinhar as caraterísticas da inteira coletividade e do seu destino. A condição de morte em vida é amplificada pelas imagens da cabeça grande, do ventre crescido e das pernas finas, que fazem pensar em seres desnutridos mais próximos à morte do que a vida e também na extensão enorme de uma paisagem vazia e estéril, de acordo com aquela simbiose entre os humanos e o ambiente natural que mencionámos antes. E esta morte niveladora, que marca a existência do grupo dos Severinos que transcendem o síngulo indivíduo, anula também a dimensão do tempo e das fases da vida. De qualquer forma morre-se sempre: antes dos trinta por causa de uma velhice antecipada, antes dos vinte por causa das emboscadas, e em qualquer idade de fome, de fraqueza e de doença, um pouco por dia. Até antes de serem nascidas as crianças são condenadas a esta sina terrível e inelutável; e se a vida significa faticar em vão, tentar despertar/ terra sempre mais extinta e sofrer esperando o fim dos dias e das penas, na relação de oposição entre as duas faces da mesma moeda a morte parece ligeira e silenciosa enquanto a vida se configura mais sólida e pesada. Afinal é a tensão morte-vida que, resolvendo-se na luta quotidiana para continuar a viver, conduz à fugacaminho de Severino e dos outros irmãos, que é, ao mesmo tempo, percurso da coletividade e pesquisa e afirmação da individualidade e da sobrevivência de cada um.

ENCONTRA DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!" — A quem estais carregando, irmãos das almas, → anáfora principal do trecho embrulhado nessa rede? dizei que eu saiba. — A um defunto de nada, irmão das almas, que há muitas horas viaja à sua morada. — E sabeis quem era ele, irmãos das almas, sabeis como ele se chama → figura etimológica ou se chamava? — Severino Lavrador, → anáfora irmão das almas, Severino Lavrador, → anáfora, figura etimológica mas já não lavra. → figura etimológica — E de onde que o estais trazendo, irmãos das almas, onde foi que começou vossa jornada? — Onde a Caatinga é mais seca, irmão das almas,

onde uma terra que não dá nem planta brava. — E foi morrida essa morte,“morrida, morte” → anáforas, figuras etimológicas irmãos das almas, essa foi morte morrida ou foi matada? → anáfora — Até que não foi morrida, irmão das almas, esta foi morte matada, numa emboscada. → anáfora — E o que guardava a emboscada, irmão das almas, e com que foi que o mataram, com faca ou bala? → anáfora — Este foi morto de bala, irmão das almas, mais garantido é de bala, mais longe vara. — E quem foi que o emboscou, irmãos das almas, quem contra ele soltou essa ave-bala? → palavra-chave, metáfora — Ali é difícil dizer, irmão das almas, sempre há uma bala voando desocupada. — E o que havia ele feito, → anáfora irmãos das almas, e o que havia ele feito contra a tal pássara? — Ter um hectares de terra, irmão das almas, de pedra e areia lavada que cultivava. — Mas que roças que ele tinha, irmãos das almas, que podia ele plantar na pedra avara? → prosopopeia, → antítese — Nos magros lábios de areia, → prosopopeia irmão das almas, os intervalos das pedras, plantava palha. — E era grande sua lavoura, irmãos das almas, lavoura de muitas covas, tão cobiçada? — Tinha somente dez quadros, irmão das almas, todas nos ombros da serra, nenhuma várzea. — Mas então por que o mataram, → anáforas

irmãos das almas, mas então por que o mataram com espingarda? — Queria mais espalhar-se, irmão das almas, queria voar mais livre essa ave-bala. — E agora o que passar? irmãos das almas, o que é que acontecerá contra a espingarda? — Mais campo tem para soltar, irmão das almas, tem mais onde fazer voar as filhas-bala. — E onde o levais a enterrar, irmãos das almas, com a semente de chumbo → oxímoro que tem guardada? — Ao cemitério de Torres, irmão das almas, que hoje se diz Toritama, de madrugada. — E poderei ajudar, irmãos das almas? vou passar por Toritama, é minha estrada. — Bem que poderá ajudar, irmão das almas, é irmão das almas quem ouve nossa chamada. — E um de nós pode voltar, irmão das almas, pode voltar daqui mesmo para sua casa. — Vou eu, que a viagem é longa, → inversão irmãos das almas, é muito longa a viagem → inversão e a serra é alta. — Mais sorte tem o defunto, irmãos das almas, pois já não fará na volta a caminhada. — Toritama não cai longe, irmão das almas, seremos no campo santo de madrugada. — Partamos enquanto é noite, irmão das almas, que é o melhor lençol dos mortos noite fechada. → metáfora, anástrofe

As primeiras personagens que Severino encontra no seu percurso são dois homens que carregam numa rede um defunto de nada, cujo nome é Severino. Esta figura introduz uma das várias tipologias de morte com a qual o nosso protagonista depara, ou seja aquela matada, que evidencia a violência no sertão e denuncia alguns hábitos típicos da região, como as disputas de propriedade de terras, divididas em latifúndios, e a impunidade das mortes consequentes. A única culpa de Severino Lavrador, de facto, consistia apenas em possuir alguns hectares de terra que cultivava, porém não lucrativos, porque ele tinha somente dez quadras/ (…) todas nos ombros da serra, de pedra e areia lavada. Por isso o homem, representado simbolicamente através da figura do avebala, queria fugir desta situação de miséria mas não conseguiu fazê-lo porque encontrou a morte em breve. E agora em si traz o signo indelével da violência dos grandes proprietarios, a semente de chumbo: a locução é intensa e contém a oposição entre a leveza da semente, que é a origem da vida das plantas, e o chumbo pesado, que sugere uma sensação de opressão definitiva e contrasta também com a figura do ave-bala e o seu desejo de liberdade em vida, que paradoxalmente acaba por tornar-se uma possibilidade ganha com a morte. Depois de ter ouvido o relate dos homens, Severino oferece-lhes a sua ajuda para carregarem o defunto e levarem-no ao cemitério. Desde o início o diálogo carateriza-se pelo vocativo irmãos da alma que se repete em cada pergunta e resposta e faz com que os versos assumam o ritmo e a musicalidade de uma ladainha religiosa. A iteração e as variações ao redor do campo semântico da morte (morte, morrida, matada, mataram) amplificam quer a ferocidade quer a “normalidade” do homicídio e a banalidade do mal. Também aqui a morte parece ser mais leve do que a vida, dado que só uma vez falecido o defunto vai ter a possibilidade de voar mais livre (Mais campo tem para soltar/ (…) tem mais onde fazer voar/ as filhas-bala). Incisivo e subtilmente veemente é o humor negro duma das últimas respostas de um dos irmãos da alma (Mais sorte tem o defunto/irmão das almas/ pois já não fará na volta/ a caminhada), cuja origem, explicada pelo escritor, está relacionada com uma crua e verdadeira história que ele aprendeu na Espanha: Dizem que na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iriam executá-lo e disse: “Puxa, como faz rio neste lugar”. Ao que um dos soldados respondeu: “Sorte tem você, que não precisa fazer o caminho de volta”. Foi assim que essa frase foi parar no meio de Morte e vida severina. Há mais humor negro do que isso14?

O RETIRANTE TEM MEDO DE SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO — Antes de sair de casa aprendi a ladainha → referência metalinguística das vilas que vou passar na minha longa descida. Sei que há muitas vilas grandes, cidades que elas são ditas; → anástrofe sei que há simples arruados, → anáforas sei que há vilas pequeninas, todas formando um rosário → palavra-chave, metáfora cujas contas fossem vilas, todas formando um rosário 14 Cfr. João Cabral de Melo Neto, Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Salles, n.1, mar. de 1996, p. 27.

de que a estrada fosse a linha. Devo rezar tal rosário até o mar onde termina, saltando de conta em conta, passando de vila em vila. Vejo agora: não é fácil → lítotes seguir essa ladainha; entre uma conta e outra conta, entre uma a outra ave-maria, há certas paragens brancas, de planta e bicho vazias, → anástrofe vazias até de donos, e onde o pé se descaminha. Não desejo emaranhar o fio de minha linha nem que se enrede no pêlo hirsuto desta caatinga. Pensei que seguindo o rio → palavra-chave eu jamais me perderia: ele é o caminho mais certo, de todos o melhor guia. Mas como segui-lo agora que interrompeu a descida? Vejo que o Capibaribe, como os rios lá de cima, é tão pobre que nem sempre pode cumprir sua sina e no verão também corta, com pernas que não caminham. → prosopopeia Tenho de saber agora qual a verdadeira via entre essas que escancaradas frente a mim se multiplicam. Mas não vejo almas aqui, nem almas mortas nem vivas; ouço somente à distância o que parece cantoria. Será novena de santo, será algum mês-de-Maria; quem sabe até se uma festa ou uma dança não seria? → anáforas, figuras etimológicas Severino tem medo de perder-se porque o rio-guia Capibaribe secou com o verão. O percurso do retirante, feito de vilas grandes e pequeninas e de arruados, parece assumir a forma de um rosário, que traz consigo uma rica simbologia: as suas contas são as vilas e cidades e o rio constitui a sua linha circular, assim como a vida dos Severinos que seguem o ciclo da seca, afastando-se da terra de origem para sobreviverem e voltando no período de chuva. A reza do rosário corresponde ao caminho de Severino, ao cumprimento progressivo e inelutável do seu destino, mas também àquela imanente sensação de proteção que reside na firmeza da sua alma: ele sabe que deve rezar o rosário,

embora não seja fácil seguir a ladainha, ou seja a sua confiança religiosa, nem lidar com as paragens brancas e o pêlo hirsuto da caatinga, símbolos das dificuldades “descontínuas” que ele encontra no seu percurso e que fazem com que o pé se descaminhe; em contraposição, a linha circular do rio-guia é o caminho mais certo 15. Todavia o Capibaribe acaba por tornar-se parecido aos homens que fogem da seca: ele é pobre e nem sempre consegue terminar o seu curso, particularmente no verão, quando as suas pernas não caminham. Mas é necessário que Severino reaja e pesquise a sua via e no preciso momento em que ele pensa em tudo isso, antes de encontrar e seguir novamente o curso do rio, de longe chegam novas melodias de morte. Além do rosário, neste trecho há outras referências aos elementos da religiosidade, que caraterizam o “sentimento” da região e dos habitantes: a ladainha, que é também uma pista metalinguística porque os versos partilham com ela a mesma musicalidade e o mesmo ritmo, a ave-maria, a novena de santo, e por fim a referência ao mês-de-Maria.

NA CASA A QUE O RETIRANTE CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE FORA,VAI PARODIANDO AS PALAVRAS DOS CANTADORES — Finado Severino, quando passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas... — Dize que levas cera, capuz e cordão mais a Virgem da Conceição. — Finado Severino, etc. ... — Dize que levas somente coisas de não: fome, sede, privação. → climax — Finado Severino, etc. ... — Dize que coisas de não, ocas, leves: como o caixão, que ainda deves. — Uma excelência dizendo que a hora é hora. — Ajunta os carregadores que o corpo quer ir embora. — Duas excelências... 15 Vejamos também a escolha exata e emblemática do verbo e do substantivo na oposição entre o pé se descaminha e o caminho mais certo do rio.

— ... dizendo é a hora da plantação. → metáfora — Ajunta os carregadores... — ... que a terra vai colher a mão. → metáfora, anástrofe Continuando com o seu percurso, Severino ouve de longe um canto que provém de uma casa onde se executam excelências para um defunto, simbolicamente chamado, de novo, Severino. Um homem do lado de fora vai parodiando as palavras dos cantadores: assim uma outra morte marca o c a m i n h o do retirante e parece anular a perspetiva de vida e de es perança. Ainda uma vez a leveza da morte é sublinhada pelas coisas de não que o defunto deve levar consigo e anunciar aos demônios-guardões do rio Jordão: trata-se de uma outra referência ao culto cristão, através da trasformação do rio Aqueronte, de pagã memória, no bíblico Jordão, onde Jesus recebeu o batismo e que os israelitas ultrapassaram quando entraram na terra de Canaan. As coisas ocas e leves representam as dificuldades de uma vida inteira: fome, sede, privação e o mesmo caixão que em breve se tornará pesado, por causa do cadáver que trará consigo também a gravidade da vida que já não é mais. De acordo com uma metáfora recorrente no texto, afinal a morte é representada como uma coltura, um processo natural, que tem o seu tempo, o seu ritmo e as suas fases: é a hora de plantação/ (…) a terra vai colher a mão.

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