MORTE, MITO E LINGUAGEM NO HORIZONTE DA ESSÊNCIA

June 9, 2017 | Autor: André Lira | Categoria: Hermeneutics, Death & Dying (Thanatology), Poetics, Poética
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MORTE, MITO E LINGUAGEM NO HORIZONTE DA ESSÊNCIA André Lira Doutorando em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia – HCTE/UFRJ [email protected]

Resumo: A interdisciplinaridade vem se tornando popular em diversos eixos e espaços de produção do conhecimento. Particularmente, ela vem revitalizando a área de História das Ciências, sendo o caminho preferido por muitos pesquisadores para lidar com a complexidade dos objetos estudados. Viemos constatando, contudo, que a interdisciplinaridade apenas soma teorias, resultados e hipóteses distintas (ou seja, maneja perspectivas), sem que haja densidade ou questionamento de seus princípios. Tal abordagem, que veio de uma reação mais ou menos intencional ao fundamento metafísico, agrega em termos de informação, mas dificulta pensar num horizonte essencial. Para fazer um ensaio de privilegiar a essência como algo a ser pensado (e apontar essa urgência), trabalharemos com a morte, o mito e a linguagem.

Palavras-chave: Interdisciplinaridade; Poética; Conhecimento.

“A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá Mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força Existem Nos encantos de um sabiá. Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sabiás divinam.” – Manoel de Barros, Livro sobre nada

Sim, isto se trata de um caminho de pensamento. Não olhem para esse caminho pela aversão à filosofia, dita im-produtiva, com a má interpretação de Marx nas Teses sobre Feuerbach: “Os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente; trata-se porém de modificá-lo”.1 O pensamento e o diálogo podem mudar o mundo; mas devemos discutir o que é mundo. Se for algo estático, Dizemos “má interpretação” porque se costuma esquecer que o pensamento de Marx está embasado numa construção filosófica delongada, de cuja terminologia as próprias Teses fornecem um exemplo. 1

em que navegamos e alteramos (com a prática), então as discussões serão secundárias. Contudo, se o mundo for suspenso de fatos e resultados, o pensar pode surgir como um modo de ação, e que, por isso mesmo, fundamentalmente não pode ser um entrave à ação. Opor-se o âmbito das ações ao pensar é compreender a realidade de um modo parcial no qual dela participassem apenas ações que se configurassem realizações. A realidade não é apenas composta pelo que é realizado, dela participa igualmente o irrealizado, o por realizar, do mesmo modo que aquilo que jamais se realizará. É por isso que, à constituição da realidade, é imprescindível o pensar (JARDIM: 2005, 162).

O pensar, por si só, poderá desdobrar realidade, ser “um agir que está em diálogo com o destino do mundo” (HEIDEGGER apud JARDIM: 2005, 162). Talvez por o pensar não gerar nem terminar na materialidade ele possa atravessá-la e mostrar outras facetas. É no pensar, que diz originariamente cuidado, que se transvê o mundo, como diz o poema de Manoel de Barros: “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. / É preciso transver o mundo.” (BARROS: 1997, 75). Para modificar o mundo, é necessário aprender a ver as suas multitudes. O que se debate até hoje é a pertinência ou não de um melhor modo de ver. Na contemporaneidade, a luta dos grandes sistemas foi solapada por um sistema total, dando lugar a visões particulares (e descartáveis) de mundo – o primado da opinião, da dóxa sofística. O pensar, compreendendido como um modo de ação que entreabre realidade, justamente por isso pode transver o mundo – nessa transvisão, cria-se mundo e não apenas descreve e prescreve (nem opina) sobre o mundo que já existe. Esse mundo transvisto não é explicável; enquanto uma senda aberta pelas possibilidades do real, o mundo é a própria transvisão, a ponte, o salto. Por que o mundo não é factum? Pela força primigênia do real de se resguardar, nem toda realidade

se

converte

em

realização;

temporalidades.

O

que

chamamos

habitualmente de mundo é um im-per-fectum, algo inacabado. Sendo particípio, e passado é inacabado, o acabamento se estende e acompanha ao presente: perficiens. Se seu acabamento transcorre no presente, projeta-se ao futuro: perfecturum. O que ocorre é que tal força “perfeiçoante” não é reconhecida como tal; pelo contrário, opomo-nos a ela, (como se pudéssemos), para nos satisfazermos com o “perfeiçoado” – o mundo, o mundo ideal, idealizado e idealizante. Adotamos um mundo (um mundo regido pelas visões de mundo) e deixamos de lado a engenhoca que o criou.

Não proponho aqui um novo sistema ou crítica para modificar a realidade em uma direção e não em outra. Isso não quer dizer, por outro lado, que defenderei um pensar “neutro”, conciliador, nem relativista. Buscarei pôr em questão o que o pensamento conceder ser posto, e mesmo com todas suas falhas e inconsistências o chamarei de próprio. Não sendo necessariamente motivado por ideologia, não é por isso que não vá ter força, orientação, vigor, sentido.2 O que, então, será pensado? Sei e não sei. Sei, porque penso não como uma atividade especulativa, abstrata, destacada do resto da realidade, como disse antes; penso com o todo que sou, sendo meu percurso existencial inalienável disso. Assim, minhas experiências com as questões que me são mais próximas já estão colocadas. Contudo, por não se classificarem como conhecimento, tais experiências necessariamente se mobilizarão no curso do que se pensará aqui. Elas são o princípio e o horizonte do pensamento. Desse modo, já sei aonde chegarei porque só posso chegar a nenhum lugar: onde já estou. E, mesmo assim, ando. Não sei o que será pensado porque, enquanto caminho e convite de pensamento, não poderei saber o que em mim será pensado neste ensaio; tampouco o que este, enquanto obra, chamar a pensar em quem o ler. O procedimento científico parte de teoria prévia e hipóteses para se movimentar – e, em última instância, retornar a elas. Muito se discute sobre bases e maneiras de se fazer ciência, tornando problemático falar em apenas uma ciência. Postergaremos tal discussão, pondo por enquanto que os cientistas não colocaram suficientemente em questão o modo de ser da ciência, de forma que ainda se possa remeter ao conjunto de seus fazeres como uma unidade (dos múltiplos, que seja). Vale dizer que tal procedimento diferente radicalmente do meu. Não construo nem quero construir sobre uma fortuna crítica a respeito de determinado tema. As obras convidadas tensionarão o pensamento, nunca para embasá-lo, dar-lhe ares de autoridade, ou se conformar a uma construção serial de conhecimento, sendo escolhidas pela potência de pensamento e afeição que suscitam. Sendo assim, uma miríade de autores ditos indispensáveis poderá ser dispensada sem piedade. Não há resultado a ser atingido, hipóteses a serem confirmadas ou refeitas. Tenho um caminho próprio, co-laborado por muitos. Ele se coloca no ser e pensar Cf. LEÃO: 2013, p. 13: “A ideologia construiu a pior das prisões. Abstrata e entranhada, é de uma violência essencial. Afasta o homem da grandeza de sua dignidade: autonomia de ser e realizar-se a si mesmo. É que toda ideologia é sempre uma prisão abstrata”. 2

como uma tarefa de criação e interpretação. Cada um que se colocar diante das mesmas questões com o mesmo horizonte percorrerá vias completamente diferentes. No essencial, uma preocupação: pôr em questão a morte, o mito e a linguagem – o desafio de liberar os conceitos que vêm atrelados a essas questões. Não há esperança alguma de objetividade ou distanciamento (e de subjetividade, já que toda objetividade impõe uma subjetividade). Tanto quanto os outros seres humanos, estou inteiramente costurado e misturado com a morte, o mito e a linguagem. Ninguém pode prescindir de tais dimensões para ser o que é. Por isso, elas requerem um pensamento originário3, visto que dizem respeito à emergência do modo de ser do homem. Nesse sentido, não há subjetividade, nem objetividade, mas unidade e diferença – em cujo jogo pode desabrochar, em cada ser humano, a mesma dinâmica essencial. Meu caminho para um pensamento originário se distingue da posição pósmoderna frequente nas teorias artísticas e ciências humanas: o relativismo total, de que tanto faz e tudo vale, o importante é fazer; de que pensar o todo e a essência é atrelar-se a uma verdade, uma “metanarrativa” (Lyotard); de que só é possível tratar da particularidade, dos “fragmentos”, das perspectivas, e que os eventos do século XX negaram qualquer outra possibilidade. Se falar em essencialidade fere os ouvidos pós-modernos como algo antiquado e autoritário, não é porque a prática pós-moderna faça diferente. Ao negar o fundamento e transformar o pensamento em prática discursiva, faz do vazio de fundamento o seu fundamento, refogando as diferenças

num

grande

caldo

indistinto,

anulando-as.

Haverá

algo

mais

fundamentado do que um sistema não-sistemático cujos tentáculos alcançam todos os seus elementos e configurações possíveis, sem que se possa questioná-lo? Uma

das

bandeiras

transdisciplinaridades.

Não

da é

pós-modernidade

uma

proposta

mal

são

as

vinda,

inter, uma

multi vez

e

que,

progressivamente, vínhamos conhecendo por disciplinas incomunicantes. O cruzamento adveio das complexidades de cada disciplina. Se tal ida e vinda entre uma concepção mais universalista e uma mais particularista do conhecimento não é novidade, confirma um passo forte rumo a um conhecer totalizante, em que se perde o que motivou o surgimento de cada disciplina. Tomar determinada questão 3

Cf. A introdução de Os pensadores originários. Anaximandro, Heráclito, Parmênides. Introd. Emmanuel Carneiro Leão. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Bragança Paulista/SP: Editora Universitária São Francisco, 2005.

aprofundadamente é indesejável, já que se pretende observar como conhecimentos de áreas diferentes possuem aplicações e inter-relações não previstas por cada área de origem. Assim, quem pormenoriza uma obra de Platão é criticado por hermetismo e alienação, em nome de juízos apressados, acessíveis pelo acadêmico médio. O problema não tem origem nas disciplinas (cujas fronteiras, na realidade, são definidas cientificamente há poucos séculos), mas na concepção do saber. O saber pode ter mudado de forma na pós-modernidade, porém continua profundamente metafísico, e cada vez mais quando uma posição humanista empreende largos passos para dominar as frestas do real pela funcionalidade, eficiência e utilidade. Numa aparente tentativa de realizar o ideal sofista de saber na pós-modernidade, todos têm opiniões e ninguém sabe de nada. Aí vem o risco da transdisciplina, que, em nome de acabar com as fronteiras entre disciplinas, cria uma única grande disciplina (que pode muito bem já ser a própria História, não à toa a emergência da História das Ciências) para passar o trator no saber. Tal discurso vem suprir a carência de respostas que dissemos acima. Porém, a derrubada de fronteiras nunca foi necessária, desde que se procurasse pensar, já que este articula desde o princípio as posteriores separações e atribuições entre as disciplinas. Os limites são necessários, basta saber transitar neles. Não se confundem, então, identidade de mundos com identidade de temas. Sempre se pôde pensar fora das disciplinas; aliás, só podemos pensar fora delas – isto é, buscando questionar. Cada área está repleta de exemplos, quanto mais recuarmos da pós-modernidade. O risco da transdisciplina, portanto, é o de encaixar as disciplinas pelos temas, supondo assim uma identidade de mundos. As discussões de um historiador e de um filósofo sobre o tempo constroem mundos distintos. Não significa, ao contrário, que se deva abraçar a especialização ad infinitum, mas que, justamente, mantenhamos o pensamento na essência, contemplando assim do mais geral ao mais particular.4 Lanço mão de uma distinção de Manuel Antonio de Castro entre essência e essencialismo. A crítica pós-moderna é uma resposta ao essencialismo que marcava a filosofia; e por essencialismo se entende a doutrina do fundamento, em que se busca compreender o real a partir da procura de seu fundamento e seus acidentes. 4

Ressalvo que é possível fazer trans, inter ou multidisciplinar com densidade de pensamento. Convivi com alguns pensadores cuja sólida formação em áreas diferentes não ensejava mero eruditismo, mas mobilizava, pelas convergências e divergências dessas diferenças, outros caminhos. Isso, porém, é raro. A transdisciplinaridade, tanto quanto a disciplinaridade, enquanto métodos, não são o problema; mais uma vez, é a concepção de saber, que permanece pouco pensada.

Enquanto negação do essencialismo, a pós-modernidade ainda se encerra, sem saber, no essencialismo, pois a negação do fundamento ainda o reconhece como tal – e daí, também, falar em pós-modernidade ainda é se situar na órbita da modernidade. Não se pensa a essência porque a tomam como dada e não conhecível, cabendo ao pensamento captar suas formas e manifestações. O ser é assim entendido como um “que” distante e inapreensível que, dessa forma, é tornado ente, e varrido para debaixo do tapete. Atualizamos essa compreensão kantiana de muitas formas, porém continuamos bem debaixo de seu nariz. A essência é a questão das questões. Todo ente é, e o ser se doa no ente, mas também se resguarda. Dessa forma, para pensarmos uma estrela, pensamos como ela vem a ser o que é – e como também deixa de ser, não vem a ser. A astronomia moderna é uma tentativa de conhecer o que é a estrela, sem pensar em sua essência, portanto, pois a encerram num ente (um corpo celeste) dentro de um sistema explicativo (a ciência moderna). Por mais que se busque fugir do termo “essência”, ainda há que se endereçar a questão do ser. Pois tudo é e não é! A maneira (pós-)moderna tem sido a de articular conceitos em cima de conceitos, sem pensar seus princípios. Por exemplo: a educação. Muito se fala em educação, e não faltam novos métodos, ideias e propostas para renovar a educação. Mas o que é a educação para que seja renovada? Para que a renovar? Ela deve ser renovada? Destruída? Esquecida? Salva? Como se manifesta a educação? Qual a articulação essencial da educação com o modo de ser do homem (se houver)? Será apenas uma instituição epocal de moralização e controle? O ser, a constituição de tudo que experienciamos como real. Nada mais do que a disputa de kháos e kósmos, diz Heráclito: “O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando” (OS PENSADORES ORIGINÁRIOS: 2005, 67, frg. 30). Não há sistema heraclítico (a não ser nos manuais de filosofia), e não é por ter escrito em fragmentos. Em Heráclito, o mundo (entendido como a configuração do ser sendo) aparece pensado diversamente, seja quando se reporta aos deuses, aos animais, ao ser humano, às leis, à morte, ao movimento. É o mundo movimento, sendo o homem também esse movimento; seus conhecimentos e potencialidades, porém, são restritos, pois em todo conhecer se dá um não-conhecer e em todo poder se dá um não-poder. É isso o que dizem os fragmentos 18 (“Se não se espera, não se encontra o inesperado,

sendo sem caminho de encontro nem vias de acesso”, p. 63) e 45 (“Não encontraria a caminho os limites da vida mesmo quem percorresse todos os caminhos, tão profundo é o Logos que possui”), entre muitos outros. No jogo de ser e não-ser, o homem, um ser qualquer, se perfaz tanto quanto os outros seres. É certo que não podemos mais pensar como Heráclito, nem haveria sentido querer. Mas diante do estranhamento com sua obra, há de se ter dois compromissos básicos: não solapá-la com nossa leitura moderna, a julgar suas falhas e lacunas e traduzindo seu pensamento para os conceitos de nossa conveniência; inversamente, escutá-la e tentar compreender o que diz – não só “em sua conjuntura”, como manda o cacoete de historiador5, mas em todas as conjunturas, (em sua essência). Tal perguntar pelo ser, chamado de pensamento originário, envolve mover uma série de tijolos que encapsularam o entendimento de há muito. O ser pensado pelo pensamento essencial não é o ser entificado metafísico, mas o próprio moverse, ser e deixar de ser, verdade e encobrimento. Não se identifica a essência, e sim o essencialismo, com a “raiz” e o “tronco” buscados pela filosofia, que Deleuze critica, contrapondo a ele o pensamento rizomático, entrelaçamento sem início nem fim. O ser, entretanto, não é início nem origem, é princípio e originário; por isso ser princípio e originário de tudo, inclusive do rizoma; também ele é e não é. Da mais metafísica, ôntica e determinista compreensão do real até a mais poética, mítica ou mesmo a cotidiana despretensiosa, nenhuma se faz sem que antes o ser se ponha e se coloque como questão. Se essa colocação, esse convite, será aceito, se nos aconchegaremos nessa questão ou não, é outra coisa.

Morte

O que é a morte? Tudo morre um dia. Todo dia morre toda coisa. Coisa bicho, coisa homem, coisa pedra também? Sim, coisa pedra tem histórias para contar. E se têm histórias para contar, é tempo. As janelas das casas, que vão sumindo nas cidades, têm histórias; a poeira nas estantes tem histórias; os ratos têm histórias; os Para um aprofundamento do que seria esse cacoete, cf. LIRA, A. “História e mito”. In: Anais eletrônicos do 14º Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia – 14º SNHCT. Belo Horizonte, Campus Pampulha – UFMG, 08 a 11 out. 2014. 5

assassinos e os assassinados têm histórias. Não se diz que se mata a poeira nas estantes, mas se diz que se mata o rato. Por que se diz isso, se tudo morre um dia? O que pode morrer e o que não pode? Dizem que algumas coisas são vivas: coisa bicho, coisa homem. Já coisa pedra não; as janelas das casas, que vão sumindo nas cidades, não; a poeira nas estantes, não. Coitado do rato, que pode morrer! Ou terá sorte, por ter história? Uma invenção arbitrária e despropositada, não é? Isso de dizer quem pode ou quem não pode morrer... Por que, se tudo não é no tempo, deixa de ser no tempo? Exijo a história das janelas, pois elas abrem o fora do céu para todos os enamorados, todos os filósofos, todos os poetas e todos os cientistas! Dizem também que morrer é feio, algo que se faz quase às escondidas. Ninguém quer morrer, o suicida não quer morrer, só não quer mais contar história. Não se deseja morrer a ninguém. Por quê? O morto é vivo. O vivo é morto. Só não é mais. Morto vivo, vivo morto, viver é tão bom quanto morrer, morrer é viver, viver é morrer. Viver é morrer? Não há uma coisa só que seja uma e não a outra. Eu sou tão vivo quanto William Blake. Tão morto quanto ele também. Mas ainda não terminei de morrer, escrevo. Meu escrever é um ato do sopro da simples ilusão de que sou algo e de que duro, só há eternidade. “Penso nas amadas vivas e mortas,/ penso em suas filhas/ que são um pouco minhas filhas.// [...] Os planetas vão se aproximando,/ alguém volta para o céu:/ o universo é um só.” (“Orfeu”. MENDES: 2002, p.85). Assim, continuo sentenciado a não ser nada e a ser tudo.

Mito

O que é o mito? O mito é mistério. Certamente, não mera narrativa de origem. Aí é mito-logia. Para qualquer um que o ouça, ele diz: o mundo está aí. Fazem-se luz, sombra e todas as distinções. Estar no mito, condição para vivimorrer. Totalidade enigmática. Mito é pensar, é sentir, é enveredar. Não saber, maravilhamento. Todo homem é mítico porque é todos os homens e nenhum homem. Porque desentranha o que é abrindo as coisas.

Até o historiador é mítico, suas datas, linhas, relações, processos e conjunturas são míticos. O mito é uma praga, tanto mais se tenta livrar dele, mais ele volta com mais força, porque não dá para deixar de ser homem. Não dá para deixar de ser mito. Mito é olhar e ser olhado próximo. Sustento de sonho real: só temos sonhos reais, os que temos acordados e desacordados, sempre cordados. O mito sacrifica, a poesia sacrifica. Poesia é mito. Só há um poeta cantando o mesmo mito, são todos um e o mesmo. Como de Hades, riqueza é epíteto do mito. Mito pega o mundo pelos chifres. Mas os homens se empobreceram de mito, os nomes de seus deuses esquecidos, apenas um criado e lembrado, o mais vil tornado senhor: Conhecimento. Deus fraco, claudicante, porque não sacrificam a ele, esqueceram como sacrificar. Talvez ele morra na volta do parafuso, e renasça junto com os outros deuses. Persistência da espiral, antes será, agora foi, depois, quem sabe, tudo. “Homens, irmãos de todos os tempos e países/ formamos juntos um vasto Corpo/ estendido na história através das gerações” (“Cântico”. MENDES: 2002, p.58). Assim, continuo sentenciado a não ser nada e a ser tudo.

Linguagem

O que é a linguagem? É o que deixa aparecer, transaparecência. Nem inventada, nem conquistada, nem descoberta, muito menos ferramenta. Unidade, unidade, unidade, ela diz três vezes. Linguagem diz. Diz o ser do pássaro ao homem, a que ele gentilmente retruca, em língua: “Pássaro! Bird! Vogel!”. Na linguagem, a poesia diz a presença que ela é numa língua. Por isso não se traduz presença. Verdade. Sem linguagem não se diz nada. E não é o homem que diz, é a linguagem que nele diz; não é o homem que morre, é a morte que nele habita e age; não é o homem que canta os mitos, são os mitos que cantam nele e como ele. Na linguagem, podemos com-partilhar da riqueza poética que o mito nos abre enquanto mortais. Linguagem apresenta sentido, não comunica; a língua e o significado comunicam. Um beijar instala um beijo, mas só a língua pode querer perguntar “por quê?” enquanto quer mais beijo ou quer distância. O sentido que o beijo impõe

dispensa falação. “As palavras que eu não disse/ Ficaram./ Ficou o amor dentro de mim/ Me interrogando, me assimilando,/ Depois renascendo de mim/ E eu dele.” (“Antecipação”. MENDES: 2002, 135). E poeta nenhum anda com “detector de poesia” por aí, embora muitos gostem de dar diretrizes para encontrá-la. A poesia o chama e seduz para ser gerada. Na linguagem, o homem colhe seus pedaços de mundo, prepara seu alimento, divide a carne. Dignifica. A tal lugar, chama casa. Em todo outro lugar que reconhecer o sentido da casa, diz: casa. Casar, casa de passarinho, casa de boneca, casa decimal, casa de penhor, casa noturna. Primordial e sempre, o sentido, linguagem. Moramos no útero sem ter o “significado” linguístico de casa, porém enquanto humanos o sentido de morar e demorar é inteiramente nosso. Até para os nômades! Assim, continuo sentenciado a não ser nada e a ser tudo.

Referências

BARROS, M. Livro sobre nada. Rio de Janeiro: Record, 1997. JARDIM, A. Música: vigência do pensar poético. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. LEÃO, E. C. Filosofia contemporânea. Teresópolis/RJ: Daimon Editora, 2013. MENDES, M. As metamorfoses. Rio de Janeiro: Record, 2002. OS PENSADORES ORIGINÁRIOS. ANAXIMANDRO, HERÁCLITO, PARMÊNIDES. Introd. Emmanuel Carneiro Leão. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewski. Bragança Paulista/SP: Editora Universitária São Francisco, 2005.

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