MOVIMENTO ÁGUA É VIDA E A CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA EM FEIRA DE SANTANA - BA

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ARTIGO ORIGINAL M O VIM EN TO ÁG U A É VID A E A CO N STRU ÇÃO D A CID AD AN IA EM FEIRA D E SAN TAN A - BA

André Almeida Uzêdaa Thereza Cristina Bahia Coelhob Resumo “O M ovim ento Água é Vida” é um a entidade do m ovim ento socialdo m unicípio de Feira de Santana, com posto de religiosos, lideranças com unitárias, professores e técnicos, que ganhou visibilidade no m unicípio na luta contra a privatização da Em basa, quando congregou diversas entidades e lideranças em favor do saneam ento, da proteção ao m eio am biente e da saúde pública. Esta pesquisa procurou analisar o processo de construção da cidadania de determ inados segm entos da sociedade civilem relação ao poderpúblico,seus conflitos e form as de consensos.Realizou-se pesquisa de abordagem qualitativa,do tipo estudo de caso.Os dados foram coletados a partir de entrevistas sem i-estruturadas,observações participantes e análise de docum entos, tendo com o sujeitos deste estudo os m em bros representantes da entidade. Os resultados apresentados dão conta de um a entidade extrem am ente atuante, com propostas e intervençõesno cam po daspolíticaspúblicas.Com o perspectiva,pretendem atuarcada vez m ais na dim ensão do controle social,seja dando continuidade à representação no Conselho M unicipal de Saúde, seja estim ulando a criação dos Conselhos Locais de Saúde. Este m esm o grupo, no entanto, enfrenta dificuldades no que diz respeito à am pliação da participação popular, à sua relação com o poderpúblico nosfórunsdeliberativose ao financiam ento dassuasações. Palavras-chave:M ovim entosSociais,Cidadania,Participação.

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Sociólogo,M estre em Saúde Coletiva,Professor Assistente do D epartamento de CiênciasH umanasda Universidade Estadual de

Feira de Santana -Ba. b M édica,Doutora em Saúde Pública,Professora Adjunta do Departamento de Saúde da Universidade Estadual de Feira de Santana -Ba. Correspondência para:. Correspondência para: Tânia Cristina Fernandes de Freitas Santana. NUSC/D epartamento de Saúde. Universidade Estadual de Feira de Santana. KM 03 – BR 116 – Campus Universitário CEP:44031-460 Cidade:Feira de Santana

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Telefone:(075)3224-8096/95. E-mail:nusc@ libra.uefs.br

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“W ATER IS LIFE MOVEMENT” AND CITIZENSHIP CONSTRU CTION IN FEIRA D E SANTANA, BAHIA, BRAZIL Abstract The “W ater is Life Movement” is an entity associated with the social movement of the city of Feira de Santana, formed by religious and community leaderships, teachers and technicians, who gained visibility within the district by fighting against the privatization of EMBASA (state water public system), gathering several entities and leaderships for the cause of sanitary improvement, environmental protection and public health. This research aimed at analyzing the citizenship construction process within certain segments of civil society, their conflicts and forms of consensus with reference to public service. Q ualitative approach in the form of case study was used in this research. D ata were collected by means of semi-structured interviews, participant interviews, and document analysis, having entity’s representative members as subjects. Results point out to an extremely active entity, with proposals and interventions in the area of public policies. W ithin the frame of perspectives, they intend to act, at an increasing pace, towards the dimensions of social control, either by means of continuing their representation at Municipal Health council, or by stimulating the creation of Local Health Councils. This same group, however, faces several difficulties as to the increasing of popular participation, as to its relation with the public sector in the deliberative forums and the financing of its actions. Keywords: Social Movements, Citizenship, Participation IN TRO D U ÇÃO A noção de que a construção da cidadania e a efetivação de políticas públicas são produzidas a partir do surgimento e formação de sujeitos coletivos, tem sido fundamental para quem estuda os movimentos sociais hoje. Alguns autores descrevem este processo e identificam mudanças ocorridas no seio dos movimentos e das lutas populares, a partir do surgimento de novos atores sociais: homossexuais, negros, mulheres, trabalhadores rurais sem terra, os sem-teto, e Organizações Não-governamentais - ONGs. São os novos personagens de uma sociedade em transformação 1. Outra referência importante para a compreensão destas mudanças diz respeito ao processo de formalização e institucionalização da democracia, fundamentais para garantir, por exemplo, o controle social em saúde. Este processo democratizador consolida-se com a promulgação da Constituição Federal, em 1988, e a realização das eleições para presidente da república, em 1989, mas estende-se em vários outros momentos com o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Código de D efesa do Consumidor, ambos em 1990. No campo da Saúde, a inclusão legal da participação social tem como base o artigo

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198 da seção II da Constituição Federal que estabelece ser a participação da comunidade uma diretriz fundamental do SUS 2. A Lei 8.142 define que o SUS contará, em cada nível administrativo do governo, com as seguintes instâncias colegiadas: as Conferências Nacional, Estaduais e Municipais de Saúde, com periodicidade mínima de 4 anos e os Conselhos de Saúde (Nacional, Estaduais e Municipais)3. O processo de elaboração das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas Municipais, em 1989 e 1990, respectivamente, faculta a cada município a participação mediante a da representação política e a alteração dos conteúdos das leis com o uso de emendas populares, permitindo o despertar da sociedade civil para a possibilidade de decidir e intervir em espaços anteriormente vistos como unicamente do poder público. A participação da sociedade civil, desenvolvida por essas formas legais de controle social, assim como os limites institucionais colocados aos usuários têm sido questionados4. As discussões têm levado à construção de propostas para a consolidação de experiências bemsucedidas e o estabelecimento de estratégias para a criação de fóruns e espaços de construção de cidadania5. Neste sentido, os avanços e obstáculos encontrados nas experiências locais têm contribuído muito para o entendimento destas questões e abertura de novos caminhos. Em Feira de Santana, o estudo de Assis6 tornou possível a compreensão da municipalização e descentralização da gestão da saúde no município, evidenciando como este processo se apresentou conflituoso e contraditório ao externar diferentes projetos políticos e correspondentes forças de distintos sujeitos sociais. A municipalização na Saúde só poderia constituir-se de forma democrática se viesse acompanhada de ampliação da participação popular e controle social, e de um “redimensionamento da visão de saúde rumo a uma concepção positiva por parte dos trabalhadores de saúde e da população em geral”. Do contrário, a hegemonia da indústria da doença é que sairia fortalecida. Os estudos sobre os movimentos sociais, apesar de identificarem novas exigências e espaços de participação criados pelos processos de legitimação das políticas públicas

, nem

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sempre têm conseguido transformar suas indagações em objeto de pesquisa, recaindo suas preocupações, geralmente, sobre o movimento sindical e sobre a organização dos trabalhadores rurais e suas lutas no setor agrícola 10, 11. Carvalho12, estudando a atuação dos movimentos sociais no Conselho Municipal de Saúde (CMS), em Feira de Santana, entre os anos 1990-96, destaca a importância dos espaços de participação social para a implementação do SUS, identificando a construção de um “processo de transformação de sujeitos individuais em sujeitos coletivos e/ou atores sociais”. A institucionalização da participação no CMS deve garantir a participação real dos sujeitos e atores

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sociais vinculando-os a uma prática concreta e efetiva no campo da política. Carvalho12 identifica ainda, atores e bandeiras de luta defendidas por cada entidade, abordando a atuação local do Movimento de Organização Comunitária (MOC), como uma entidade fundamental, pois esta mobiliza, organiza e capacita os grupos da sociedade civil. A indagação sobre os movimentos sociais em Feira de Santana e a sua atuação no campo das políticas públicas, especialmente as de saúde, meio ambiente e saneamento básico, pressupõe compreender a política nesta dimensão. É no processo de elaboração e implementação das políticas públicas, com todos os limites e conflitos, que os novos e antigos grupos sociais organizam-se e articulam-se, pela possibilidade de terem os seus interesses atendidos. Neste mesmo município, no final dos anos 90, com forte influência da Igreja Católica, consolidou-se uma entidade denominada “MOVIMENTO ÁGUA É VIDA: em defesa da água e da saúde”. Esta organização composta por professores, intelectuais, técnicos e lideranças de diversos segmentos, desde então, atua com representantes junto ao Conselho Municipal de Saúde. Este estudo analisou a construção da cidadania e da participação da sociedade civil nas políticas públicas, sobretudo no campo da saúde, no município de Feira de Santana, Bahia, no ano de 2004, enfatizando especificamente o Movimento Água é Vida. MATERIAL E MÉTODOS Para analisar os movimentos sociais em Saúde no município de Feira de Santana na conjuntura atual, discutiu-se inicialmente a noção de “movimento”. No estudo das organizações, entende-se movimento como um tipo de organização não formalizada, mas com poder de instituir. No entanto, muitos movimentos são compostos por grupos sociais formalizados, ou seja, instituições. A cidadania foi concebida aqui, principalmente, como a relação entre o indivíduo e o poder público 13. Esta relação é construída historicamente, devendo-se perceber as mudanças ocorridas nos seus dois pólo s, tanto no Estado quanto na sociedade civil. Teixeira

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ressalta a idéia de uma “ação cidadã”, diferente das demais ações

coletivas. Por sua vez, Dagnino15 demonstra a importância, para os movimentos sociais, da apropriação da noção de cidadania como forma de se ampliar a idéia de democracia, assumindo a noção do direito a ter direitos, incluindo os direitos advindos das novas lutas e novos problemas. Para garantir o direito à igualdade será preciso garantir também o direito à diferença. A “nova cidadania” é uma estratégia dos não-cidadãos, dos excluídos. Assim, os conflitos de interesses podem ser expostos e discutidos, consolidando os direitos como parâmetro de debate e negociação de interesses entre os grupos e reconfigurando a dimensão ética da vida social”15, o que requer uma reforma moral e intelectual.

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Para estudar a cidadania dentro dessa nova perspectiva, realizou-se um estudo de caso com o “Movimento Água É Vida”. Foram feitas cinco entrevistas semi-estruturadas com membros da coordenação, incluindo um outro membro do grupo que não desempenhava atividade de coordenação, mas que participava dele intensamente, bem como de outros movimentos. Para as observações participantes realizadas, não foram se priorizadas somente conversas e/ou reuniões da coordenação, mas também seminários, conferência municipal de saúde e reuniões do Conselho de Saúde, facilitando a coleta de dados documentais. A análise de conteúdo se iniciou com a leitura extensa do material coletado, registrado no do Diário de Campo, nos documentos e nas transcrições das entrevistas. No segundo momento, a leitura procurou captar as categorias empíricas em função dos objetivos e das categorias operacionais, seguindo-se a produção de sínteses e a interpretação do texto pelas dotações de sentido que emergiam das situações descritas. Estes sentidos oriundos das interpretações de primeiro nível foram contextualizados social e historicamente para a produção de novos sentidos 16. RESULTADOS O “Movimento Água é Vida” (MAV) foi construído num espaço de tempo relativamente curto, a partir de um fato ocorrido em 1997. Uma pessoa veio a óbito, sem atendimento, na fila do Hospital Clériston Andrade, gerando uma reação comunitária. Foram feitas algumas reuniões e organizada uma missa campal celebrada pelo arcebispo de Feira de Santana, como forma de criar uma pressão sobre o governo. Em conseqüência, foi criado o que se chamava Movimento Popular em Defesa da Saúde Pública. Por mais de três anos, o movimento manteve sua dinâmica de realizar reuniões e seminários anuais discutindo problemas da saúde e de saneamento básico, despontando como um grupo da sociedade civil importante, no qual se podia discutir e buscar alternativas para os problemas ligados diretamente à saúde. No que diz respeito às demandas assistenciais, era preciso lutar por melhorias, pelo atendimento de qualidade, sendo necessário pensar a saúde de forma complexa, de modo que o controle social e uma efetiva participação permitissem maior e melhor acesso aos serviços. Através dos depoimentos, nota-se que estas eram as principais tarefas do movimento popular, embrião do atual “Movimento Água é Vida”. Em sua trajetória histórica, destaca-se a luta contra a privatização da Empresa Baiana de Saneamento (Embasa), em 2001, que contribuiu muito para o fortalecimento do MAV, pois, a partir dali, o grupo percebeu, de maneira muito mais clara, o quanto a questão da água envolvia a saúde e um conjunto de outros problemas, e que deveria, além de evitar a privatização, envolver-

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se nas ações mais amplas para o cuidado com a água, o saneamento e o meio ambiente em geral. Para realizar essa nova tarefa, foi necessário assumir uma postura mais atuante no que diz respeito às políticas públicas municipais, especialmente àquelas relativas à saúde. À luz dos novos interesses, o grupo centrou suas ações na participação. Tal participação pressupõe uma crença muito grande no poder da “comunidade”, do “povo”, na organização e na capacidade de articular outros grupos e pessoas: “Eu acho que o que mudou mesmo,foi conseguir que o povo se unisse [...] Por isso que eu penso que a gente tem sempre que encontrar caminhos de diálogo, caminhos de conversa, mas às vezes o povo, quando é capaz de pressionar forte, é o que faz que o político mude”. A importância da ampla participação, principalmente em situações de conflito de interesses, foi destacada por outro entrevistado: “E quando o objetivo é manter interesses, então aí, o diálogo não interessa. Pode ao nível de imagem ficar bonito, que queremos dialogar, mas não se queria dialogar, se queria fazer isso. Então é claro que, nessas situações, é bom que o povo esteja consciente [...]Então quando o povo tem uma idéia muito clara e uma união grande, aíé muito difícil que o poder público diga que não[...]”. Entretanto é preciso encontrar caminhos que mobilizem essa sociedade, que a estimule a se comprometer com sua própria história: “Por que nós temos certeza disso, convicção disso, a partir da própria história, de que êxitos só virão se a comunidade se mobilizar e assumir suas bandeiras”. Quando a sociedade civil “finca o pé” e reivindica, ela consegue o que quer, desde que haja organização, pois, quando se está organizado, a reivindicação recebe outro atendimento: “Meu pai sempre dizia assim ‘o político, ele tem medo do povo’ e na realidade é isso”. Em muitos momentos, essa confiança não assume as mesmas proporções quando se trata do poder público. Os motivos desta descrença remetem a uma experiência histórica, já descrita pelos autores que estudaram a ação do poder público em Feira de Santana na sua tentativa de evitar que o controle social se torne efetivo: “Os prefeitos, a regra é não querer, é evitar qualquer forma de controle social. A regra dos prefeitos tradicionais, não é? Eles querem estar ali sozinhos mandando naquilo que não é dele, que o poder público não é um bem privado, é um bem público [...]. Apesar de você estar com o estatuto legal, a má vontade da administração municipal não fez avançar;pelo contrário, os gestores municipais dificultaram o que puderam pra os conselhos locais de saúde não nascerem”. Ou seja, existiria, na perspectiva dos sujeitos entrevistados, uma resistência dos responsáveis pela gestão municipal em permitir a participação da sociedade civil organizada, porque isto poderia “contrariar interesses”, principalmente nos casos em que a população

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identificasse problemas, como o mal uso do poder público ou corrupção. Uma das formas, então, de o gestor driblar esta participação seria comprometer, na prática, a paridade prevista em lei: “Você tem que saber com quem você está fazendo parcerias, não é verdade? Você tem que saber com quem, que você não vai fazer parceria com o poder público corrupto, não é? Com o poder público que não respeita a paritariedade. Ele é poder e tem os interesses dele. Ele quer defender o peixe dele que ele está vendendo enganosamente pra população, não é? E a paritariedade também a gente não sabe, mesmo que seja paritário assim, na vitrine, não é?” O que se evidencia a partir desses depoimentos diz respeito ao problema da permanência do estilo autoritário de gestão dentro do setor público17, que entra em contradição com a democracia proposta pelo SUS, e a dificuldade que isto coloca para o exercício do controle social. A submissão ao poder público e político instituído impede a autonomia e a atuação crítica de muitos conselheiros. Nestas circunstâncias, também a própria representatividade de muitos deles é colocada em questão: “Nós temos conselhos “prefeiturais”, não é?” Para manter o controle, a gestão municipal utilizaria diversas estratégias. Para um dos entrevistados, o Conselho Municipal de Saúde de Feira de Santana não conseguia deliberar absolutamente nada que não fosse do interesse do governo municipal, porque este estaria articulado com representantes do conselho, tendo sempre maioria na hora das deliberações. O MAV, então, empenhou-se pela implantação dos Conselhos Locais de Saúde, conseguindo aprovação de uma Lei, que não foi efetivada na prática. Em 2000, foi publicada uma cartilha informando à população sobre o SUS. O grupo também realizou seminários anuais, exposição de fotos, palestras, caminhadas, panfletagem, romarias, apresentações em escolas, igrejas, realizou reuniões de mobilização, sempre defendendo a saúde pública e as políticas públicas de saneamento e meio ambiente. Para o MAV, a instalação dos Conselhos Locais dificultaria o processo de cooptação dos representantes dos usuários pela gestão municipal: “A nossa dificuldade é que a maioria segue a cartilha de quem está no poder[...] Dentro do processo como eu via, não são representantes do povo, são representantes de si próprios e de um grupo específico, né? A manipulação ocorre de várias formas. Na questão dos conselhos locais de saúde, o MAV havia capacitado vários bairros, mas foi surpreendido pelo veto do conselho municipal: “Q uer dizer, é o retrocesso de uma luta de muito tempo: uma lei pronta, capacitação pronta, e de repente foi vetado [...]Eu posso contar um episódio que aconteceu uns três meses atrás. [...] na hora de fazer o quorum a pessoa tinha sumido e aí depois que foi suspensa a assembléia por falta de quorum, a conselheira apareceu e disse que tinha chegado naquele momento, né? Não foi ninguém que me contou, eu mesmo presenciei isso, e aí levantei o quê? Q ue realmente existe aquela tendência:

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Se for conveniente, acontece. Se não for conveniente, não acontece”. A possibilidade de participação efetiva da sociedade civil tem tido entendimentos bastante distintos. Cortes18, ao avaliar esta questão, discorda de alguns autores que desacreditam plenamente na participação por julgá-la inconsistente para países em desenvolvimento pois, a participação, sob esta perspectiva, tende para a manipulação dos usuários. A autora, mesmo reconhecendo alguns limites para a participação efetiva nos conselhos de saúde, resalta alguns determinantes positivos, entre eles, as mudanças recentes na estrutura institucional do SUS e a organização dos movimentos popular e sindical locais, além das novas posições dos gestores em relação à dinâmica dos conselhos. A autora ressalta ainda que o padrão de organização dos movimentos sociais urbanos influencia o modo como os usuários se envolvem nas atividades do conselho: “Se o padrão de organização for mais descentralizado, os representantes dos usuários chegam ao conselho municipal através de organizações locais”. Em consonância com essa perspectiva, o grupo Água é Vida aceitou representar a Arquidiocese de Feira de Santana no Conselho Municipal de Saúde, a partir de 2001. Hoje, o MAV constrói a sua interferência neste espaço de definição de políticas públicas, pelo segundo mandato, com dois representantes, um titular e um suplente. A descrição e análise feitas pelos entrevistados conselheiros tornaram mais claro o tipo de dificuldade a ser enfrentado na consolidação da participação social nos conselhos de gestão e demais encontros definidores de políticas: “Pra gente tem sido uma experiência muito boa. Pena que.. [....lá no conselho só se aprova o que a secretaria quer, né? E às vezes a gente sai até como, eu não diria brigões, como chatos, porque a gente questiona, a gente tenta formar comissões pra acompanhar, tenta...colocar propostas que venham melhorar a informação do público, ou então tenta fiscalizar”. A questão é que o acompanhamento e a fiscalização, papéis centrais do conselho, ficam dificultados pelos obstáculos criados no acesso às informações. Comissões são sugeridas, mas barreiras são colocadas,, sucessivamente: “Por que que eu estou contando esta história? Pra justificar a dificuldade que os movimentos sociais ainda têm pra poder conseguir informação. Pra que realmente o tal do controle social seja efetivo no município, a gente tem que derrubar várias barreiras. Se a gente que faz parte do conselho teve essa dificuldade, imagine o cidadão comum [...] A nossa participação é angustiante”. A questão da desinformação ocorre de várias formas, seja pela agenda que não permite um estudo melhor da matéria a ser apreciada pelos conselheiros, quer seja pela capacitação deficiente: “Fora que ás vezes a gente recebe projeto de última hora que não dá tempo

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ler pra avaliar pra ver realmente se vai ser bom ou não pro município. Por exemplo, a capacitação dos conselheiros até hoje pros novos não saiu, a gente recebe aquela pasta com um monte de conta e não sabe identificar ainda muita coisa, então tem essa dificuldade. Como é que você vai aprovar uma coisa que você não conhece, não é?” Então o grupo observa que a manipulação das votações, por exemplo, segue, muitas vezes, outras racionalidades, como as oriundas da prática político-partidária, onde a informação é um recurso de poder que não deve ser compartilhado, sob pena de desacúmulo e instabilidade nos grupos já instituídos. Observou-se que o MAV entendia que a participação só será plena à medida que permita a interferência junto às instâncias decisórias do poder público. Assim, a participação é considerada “uma experiência muito boa” naquilo que ela tem de vivência e de aprendizado, mas “angustiante”, e, de certa forma, desencantadora, no que tange à falta de empenho por parte do poder público em debater e aprovar os temas que o gestor não considera importantes para a administração. Desta forma, a atuação dos conselheiros, no sentido de buscar esclarecimentos sobre as matérias de votação, era vista como uma ação política de obstrução: “Pensamos uma coisa e foi outra. Porque pensou que a gente estava querendo fazer jogo político. Mas a gente não tem jogo político nenhum. [...] A princípio, foi tanta dificuldade que, no início, ninguém queria a participação nossa lá no conselho, devido que a gente incomodava muito [...]. Mas a gente continuou e hoje a gente já tem outra conscientização do que é um conselho municipal de saúde”. Essa conscientização fortalece a posição de não abandonar a ação militante, atitude comum nos movimentos sociais de caráter reivindicatório, nos anos 70-80. Ao contrário, o “Movimento Água é Vida” tem procurado organizar os grupos com os quais trabalha para potencializar esta participação, levando-os para dentro das reuniões do CMS, como forma de emponderar as posições dos conselheiros representantes da sociedade civil. O objetivo do MAV de “apoiar as comunidades na formação e atuação de conselhos locais de saúde” consta do seu estatuto e foi identificado como uma maneira de reconhecer o problema “lá na ponta”, para fazer chegar até a secretaria, até o conselho. Para alcançar este objetivo eles utilizam uma estratégia de “lobby”, criando “equipes de saúde nos bairros”, “estudando o que é um Conselho Local de Saúde e o porquê do CLS”. A expectativa sobre os CLS, em vários momentos, aparece como extremamente positiva, demonstrando, a nosso ver, uma compreensão ampliada sobre o controle social e sobre o real significado das instâncias decisórias das políticas de saúde: “O s Conselhos Locais de Saúde, eles vão fiscalizar a unidade de saúde com o PSF [...]. Aí você vai fortalecer. Por que fortalecer o Conselho Municipal de Saúde? Por que você vai ter respaldo da comunidade e, além

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disso, conhecer o processo de saúde, conhecer os direitos dele, com seus deveres e conhecer como é o trabalho nas unidades de saúde. Porque falta medicamento? Qual a cota que é pra cada Unidade de Saúde? Aí a comunidade vai-se interessar e vai participar do Conselho Municipal de Saúde”. Em documento assinado e distribuído aos presentes, na reunião ordinária do conselho municipal, um conselheiro procurou iniciar uma discussão sobre o controle social a partir da revisão da resolução 333/03. Segundo ele, o Ministério da Saúde tem uma política de fomentar o controle social “muito mais no discurso”. Então, no documento, foi proposto que o MS incorpore na sua relação com os municípios esta orientação de criação dos CLS, como instrumento importante de controle social, tornando a descentralização não apenas administrativa, mas política, sendo levandas para o conselho municipal apenas aquelas demandas que não forem resolvidas no nível local. CONSIDERAÇÕES FINAIS O “Movimento Água é Vida” surge em meio a demandas populares por saúde bem específicas no final da década de 90, quando, a partir daí, passa a assumir nesta área de atuação, uma liderança inquestionável. Em 2003, o grupo institucionalizou-se, tornando-se uma Organização Não-governamental (ONG), que representa a diocese de Feira de Santana no Conselho Municipal de Saúde e realiza seminários, debates, além de cursos de capacitação para conselheiros, lideranças comunitárias e agentes comunitários de saúde, inclusive em parceria com a universidade. Na sua trajetória histórica, o movimento se fortaleceu por ocasião da luta contra a privatização da EMBASA. Neste episódio mostrou capacidade de articulação e arregimentação, conseguindo apresentar um Projeto de Lei de Iniciativa Popular, com mais de 24 mil assinaturas, inédito em Feira de Santana e, com certeza, também para a maioria das cidades, contribuindo em grande parte para o recuo na decisão de tornar efetiva a privatização, por parte do governo municipal. Com a retirada do projeto de privatização por parte do executivo municipal, o grupo continuou trabalhando fortemente nas áreas de saúde, saneamento e meio ambiente. Essa construção da cidadania se faz através da sensibilização e mobilização da sociedade civil no sentido de cobrar e exigir seus direitos: direito à saúde e água potável de qualidade, direito ao saneamento básico e também direito de participação social nas políticas públicas. No que diz respeito às dificuldades enfrentadas, ressaltam aquelas que qualquer

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entidade ou movimento social, ou até mesmo sindicatos e partidos políticos enfrentam, ou seja, a ampliação da participação popular, bem como dificuldades de recursos para empreender projetos e ações mais amplos. Destacou-se também algum dilema em relação aos vínculos no que diz respeito à sua relação com o poder público nos fóruns deliberativos, em parte por sua ação de denunciar a sonegação da informação e manipulação na votação das matérias no Conselho Municipal de Saúde. O “Movimento Água é Vida” tem projetado, como uma das perspectivas futuras, uma atuação no campo do controle social, com a criação e efetivação dos Conselhos Locais de Saúde, como forma de melhorar a participação no Conselho Municipal de Saúde. O grupo planeja também uma atuação mais intensa nas escolas públicas, procurando sensibilizar os mais jovens e criar, desde cedo, uma consciência para os problemas que envolvam a saúde no município, constituindo-se, desta forma, em exemplo paradigmático de resistência social e possibilidade de políticas redistributivas mais consistentes com os princípios do SUS. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Sader E. Quando novos personagens entram em cena: experiências, falas e lutas dos trabalhadores da grande São Paulo, 1970-80. Rio de Janeiro: Paz e Terra;1995. 2. Gerschman S. A democracia inconclusa: um estudo da Reforma Sanitária Brasileira. Rio de Janeiro: Fiocruz;1995. 3. Paim JS. A Reforma Sanitária e os Modelos Assistenciais. In: Rouquayrol, M. & Almeida Filho, N. Epidemiologia e saúde. Rio de Janeiro: MEDSI;1999: P.473-487. 4. Carvalho BG, Petris AJ, Turini B. Controle social em saúde. In: Andrade SMS, Darli A, Cordoni Jr. L (Orgs).Bases da Saúde Coletiva. Londrina: Eduel;2001. 5. Côrtes SMV. Balanço de Experiências de Controle Social, para além dos Conselhos de Saúde no Sistema Ú nico de Saúde Brasileiro: Construindo a possibilidade da Participação dos Usuários. Texto da XI Conferência Nacional de Saúde; 2000. Efetivando O SUS: Acesso, Qualidade e Humanização na Atenção à Saúde, com Controle Social. Disponível em: www.saúde.gov.br/11cns/cns-balanco.htm. 6. Assis MMA. A Municipalização da saúde: intenção ou realidade?Feira de Santana: Universidade Estadual de Feira de Santana;1998. 7. Oliveira F, Gonçalves P. O Conselho Municipal dos direitos da criança e

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