Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra: Justiça E Punição

June 15, 2017 | Autor: C. Reis | Categoria: Criminalização de Movimentos Sociais, Poder Judiciário
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Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra: Justiça E Punição
REIS, Cristiane de Souza
Mestre em Ciências Penais pela UCAM, professora
de direito penal na UCAM/Niterói e advogada.
Endereço eletrônico: [email protected]



Desde muito cedo, as questões sociais e a falta de atenção a elas por parte
dos governantes, sempre me afligiram, razão pela qual inseri-me em lutas e
reivindicações por uma sociedade mais justa e fraterna. Assim, apreendi a
importância que os movimentos sociais exercem sobre as conquistas populares
e quão essencial é a mobilização da sociedade civil, em todos seus níveis e
formas, na busca por uma vida digna com justiça social. Por trilhar este
caminho, a investigação sobre a criminalização dos movimentos sociais se
materializa, passando a ser o tema por mim escolhido. Ou, será que foi ele
que me escolheu? Dúvida que me assalta pela força com que as
problematizações surgem e se consolidam como caminho a seguir.

O presente artigo traz por eixo central de investigação a problematização
dos mecanismos de poderes e saberes que dão consistência à criminalização
dos movimentos sociais, tomando como recorte de estudo e análise, o
Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST), na sua luta pelos direitos
constitucionalmente garantidos de cidadania e dignidade da pessoa humana,
tendo, pois, os seguintes objetivos: Por quê razão se insiste na
desqualificação do MST, utilizando-se práticas discursivas que não só o
criminalizam, como se faz estender aos demais movimentos sociais de luta
contra hegemônica? O que se esconde por trás disso, quais são os não-ditos
existentes no discurso da criminalização que vem servir aos interesses de
um modo de produção da existência humana que se pauta pelo ter e não pelo
ser, pelo lucro e acumulação e não pelo homem, sua vida e sua humanidade?
Quem ganha com isso, como ganha e por quê ganha?

Para tanto, trago como fundamento teórico basilar as teses foucaultianas de
entendimento das políticas sociais que se constroem no interior do
capitalismo como discursos e enunciações de controle, disciplinação e
sujeição das populações oprimidas. Outros eixos teóricos são de suma
importância à consecução desse trabalho investigativo, entre eles, o
pensamento de Marx e Engels, Zygmunt Bauman e de Rusche & Kirchheimer,
entre outros que testemunham com suas teses as análises aqui produzidas.

Assim, para melhor análise do tema proposto, entrelaço atividades de
revisão bibliográfica, utilizando-me de teorias consistentes, tais como as
elaborações e teses dos autores já citados às análises dos discursos
inseridos em algumas decisões judiciais, mais especificadamente as
proferidas pelo MM. Juiz de Direito, Dr. Átis de Araújo Oliveira, lotado na
Vara Criminal do Pontal do Paranapanema (São Paulo), bem como os acórdãos
que as revogaram, e, ainda, o discurso inserido na Lei n.º 8.629, de
25/02/93, perscrutando entre as enunciações e discursos os ditos e não-
ditos que se encarregaram de criar os mecanismos de controle e
disciplinação social que desemboca na criminalização dos movimentos sociais
que estudo.

Assim, faço, ainda, a gênese histórica da distribuição e as lutas
camponesas pela terra, com suporte nas práticas que conduzem à
criminalização da luta pela terra em sua relação com os grupos hegemônicos
capitalistas que investem no crime e na punição radical dos movimentos,
utilizando-se de saberes e poderes jurídicos. Enveredo-me, finalmente,
ainda que brevemente, pelos discursos da Mídia sobre o tema, recomendando o
aprofundamento de seus estudos, uma vez que a mesma, mantida pelos grupos
dominantes contribuem de forma efetiva na construção de imagens sobre os
movimentos sociais e suas lutas.

Conforme assinala Gómez (2000), a partir da correlação de forças entre
capital e trabalho, as reformas neoliberais implicaram um incremento do
poder econômico, social e político dos setores e grupos mais
internacionalizados do capital, beneficiários diretos de processos de
concentração e centralização, que ganharam recursos através das
privatizações, dívidas públicas, isenções, subsídios, financiamento das
multinacionais com recursos públicos, guerra fiscal entre Estados, drástica
abertura do mercado, alterações nas legislações previdenciárias e
trabalhistas etc., sendo bem conhecido o elevado custo social.

Tais indicadores, em conjunto com a redução da sindicalização e do poder de
barganha dos sindicatos e com a crise de modelos históricos de uma
sociedade mais inclusiva, minaram as bases econômicas, organizacionais e
"ideológicas" das classes subalternas, além de atingir negativamente sua
capacidade mobilizadora-participativa e no apoio aos partidos políticos
comprometidos com uma política social redistributiva.

O problema da má distribuição de terra tem uma causa remota que nos remete
ao período do Brasil Colônia. O primeiro instituto de distribuição de
terras brasileiras foi com as sesmarias, em 1530, sendo, após, introduzido
o sistema de capitanias hereditárias, em 1532, nas quais as sesmarias eram
reafirmadas. Em ambos os métodos, a Corte portuguesa determinava que quem
as adquirisse deveria aproveitá-las.

Por meio do Regimento de 17 de dezembro de 1548, foram concedidas amplas
terras para a construção de engenhos de açúcares e similares, sendo este o
momento do nascimento dos latifúndios. Durante três séculos, a economia
brasileira foi calcada em três pilares: grandes propriedades; mão-de-obra
escrava e monocultura de cana-de-açúcar, direcionada ao mercado externo.

A condição de aproveitamento das terras cedidas, em regra, era
desrespeitada, cabendo relembrar que quem recebia as mesmas eram homens de
posse, amigos do rei. Este é o marco do surgimento da família sem-terra,
pois os pobres não tinham acesso às terras e nem podiam ficar, salvo
temporariamente, naquelas em que os senhores de engenho recebiam
graciosamente.

Paralelamente às sesmarias e após sua extinção em 1822, a posse de terras
devolutas também se fez presente como meio de aquisição territorial. Com o
fim do tráfico negreiro (Lei Euzébio de Queiroz, de 1850), passou-se a ser
importante a diferenciação entre propriedade e posse, outrora
desnecessária. A Lei n.º 601/1850 extinguiu a posse como modo de acesso à
terra, sendo válida somente a compra e venda. Ampliou-se, assim, o poder
dos latifundiários.

As reformas de base propostas durante o governo de João Goulart (1961-
1964), indispensáveis ao desenvolvimento econômico e social do país, tinham
em sua pauta a reforma agrária, mas não tiveram tempo de ser implementadas,
de os militares tomarem o poder. Durante a ditadura militar, o Estatuto da
Terra (Lei n.º 4.504) foi criado, mas não visando sua concretização, mas
sim o engessamento da luta pela reforma agrária visto não se ter sequer
arranhado a estrutura latifundiária existente no país. Em vez de dividir a
propriedade, o capitalismo impulsionado pelo regime militar brasileiro
(1964-1984) promoveu a modernização do latifúndio, por meio do crédito
rural fortemente subsidiado e abundante. O dinheiro farto e barato, aliado
ao estímulo da cultura da soja - para gerar grandes excedentes exportáveis
- propiciou a incorporação das pequenas propriedades rurais pelas médias e
grandes: a soja exigia maiores propriedades e o crédito facilitava a
aquisição de terra. Assim, quanto mais terra tivesse o proprietário, mais
crédito recebia e mais terra podia comprar.

Durante o Governo Fernando Collor, a repressão contra os movimentos
aumentou e iniciou-se o processo de criminalização dos sem-terra, por meio
do Judiciário. A partir daí, todos os governos continuaram a tomar os
movimentos sociais agrários como caso de polícia. Conforme esclarece Baldez
(1997), com o fim do regime militar, o controle sobre a terra e o monopólio
dela, historicamente constituído em beneficio das classes dominantes,
transferiu-se da área militar para o campo jurídico (p. 108).

É neste cenário que nasce embrião do Movimento Dos Trabalhadores Rurais Sem-
Terra, contando com grande apoio de militantes da Igreja Católica,
principalmente da Comissão Pastoral da Terra, pretendendo-se unificar
varias mobilizações esparsas no campo. A intensa mecanização da agricultura
introduzida durante a ditadura militar expulsou assalariados, arrendatários
e parceiros do campo, mas alguns trabalhadores rurais acreditavam que
podiam se organizar e resistir obrando na terra. Assim, em 07 de outubro de
1979, agricultores sem terra do Rio Grande do Sul ocupam a gleba Macali, em
Ronda Alta. As terras da Macali eram remanescentes das lutas pela terra da
década de sessenta, quando o MASTER organizara os acampamentos na região.
Simultaneamente, surgiam ocupações de trabalhadores rurais nos demais
estados do Sul, Mato Grosso e em São Paulo.

O MST surge oficialmente em 1984, durante o 1º Encontro dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), sendo, no ano seguinte, organizado
nacionalmente, momento em que se realizou o 1º Congresso Nacional dos Sem
Terra, realizado de 29 a 31 de janeiro de 1985, em Curitiba, Paraná, com
1500 delegados representando 23 estados brasileiros.

Ao amadurecer, o Movimento percebeu que a luta, única e exclusivamente,
pelo acesso e permanência na terra era insuficiente. Percebeu-se que era
necessário também lutar por crédito, moradia, assistência técnica, escolas,
atendimento à saúde e outras necessidades da família sem-terra que, assim
como para todos os brasileiros, precisam ser supridas. Enfim, descobriu-se
que a luta não é apenas contra o latifúndio, mas também contra o modelo
econômico neoliberal vigente nos dias atuais. A luta do MST é pela Reforma
Agrária e pela transformação social, representando uma nova forma de
articulação social compreendendo aquilo que se convencionou chamar de novos
movimentos sociais.

O MST não é o primeiro movimento a lutar pela terra no Brasil. Muito antes,
as famílias agricultoras já se organizavam em busca de terra e melhores
condições de trabalho e vida. Podemos citar como exemplo as Ligas
Camponesas e o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra) entre 1950 e
1964; bem como Canudos no final do século 19.

O tratamento dispensado ao movimento pelo discurso dominante não difere
essencialmente daquele dirigido aos negros dos quilombos ou aos rebeldes de
Canudos, aos caboclos do Contestado e às lideranças das Ligas e ao Master.
Estes movimentos sociais igualmente receberam o rótulo de criminosos, sendo
lhes atribuídos o cometimento de vários crimes, tendo como finalidade
precípua a desqualificação destes movimentos sociais, verificando-se,
assim, a permanência discursiva dominante. A diferença do MST em relação
aos seus predecessores, é que aquele é mais organizado, mais numeroso, mais
descentralizado e seu discurso e atuação tem mais visibilidade.

Conforme observado por Garcia, há uma evolução na forma de atuação do MST
que passa da luta pela distribuição de terra e créditos agrícolas,
centrando suas atividades em acampamentos, caminhadas e atos públicos, para
uma postura de resistência às desocupações como resposta ao aumento da
repressão policial e dos fazendeiros, ampliando suas relações com outros
trabalhadores, tanto rurais quanto urbanos, até chegar ao momento presente
de luta pela democratização da titularidade, bem como da estrutura
fundiária no Brasil.

A violência contra os movimentos sociais existe e é notória, não precisando
chegar ao ponto dos massacres ocorridos em Corumbiara e em Eldorado dos
Carajás. Entretanto, ainda, assim, a tentativa de criminalizar os
integrantes do MST é constante. Conforme Andrade (2003), a construção
social da criminalidade agrária é seletiva porque reproduz a lógica
estrutural de funcionamento do sistema penal, na medida em que criminaliza
os socialmente excluídos e mantêm impunes os latifundiários.

A violência contra os movimentos sociais existe e é notória, não precisando
chegar ao ponto dos massacres ocorridos em Corumbiara e em Eldorado dos
Carajás. Entretanto, ainda, assim, a tentativa de criminalizar os
integrantes do MST é constante. Conforme Andrade (2003), a construção
social da criminalidade agrária é seletiva porque reproduz a lógica
estrutural de funcionamento do sistema penal, na medida em que criminaliza
os socialmente excluídos e mantêm impunes os latifundiários.

Os discursos dominantes, seja por meio da mídia, seja utilizando-se do
Poder Judiciário para cumprir seu intento, sempre buscam qualificar o
Movimento tomando suas condutas como baderna, vandalismo e chegando a
rotular seus membros como criminosos. Entretanto, devemos frisar que as
ocupações realizadas em terras ou mesmo em prédios públicos ou privados
abertos ao público são atos políticos que visam pressionar o Poder Público
para a realização da reforma agrária e na busca por financiamento agrícola.
Identifica-se, assim, as condutas do MST com atos de desobediência civil,
que representa uma forma legítima de reação dos membros da sociedade em
face das injustiças advindas do próprio funcionamento do regime
democrático[1].

Andrade (2003) afirma que a atividade de ocupação realizada pelo MST
aparentemente denota ilegalidade, mas na verdade é realizada com o fim de
levantar o debate, de publicizar e politizar o problema que o campo
enfrenta, pressionando, assim, a União para que concretize a reforma
agrária. O MST exerce, na verdade, segundo Pinto (1992), um controle
informal de constitucionalidade, pois atua com base nos princípios
constitucionais do Estado Democrático de Direito brasileiro com o fim de
lhes dar efetividade.

Enfim, o que o MST exige é o cumprimento da lei, afirmando Andrade (2003)
que o Estado não tem legitimidade para acusar o descumprimento da lei e
muito menos para, em nome dela, erguer o braço armado do controle penal
(punir). Esta é a face constitucional da crise de legitimidade do poder
punitivo (2003:10).


Afirmam os detentores do poder que o MST somente ocupa terras que cumprem
sua função social. Gustavo Tepedino[2] salienta que a função social da
propriedade rural não se confunde com seu aproveitamento econômico, sendo
este apenas um dos requisitos para que a propriedade alcance sua função
social, desde que associada à promoção de valores existenciais, consagrados
pela Lei Maior.

"A mera produtividade econômica não resguarda a propriedade, se não
restarem atendidos os valores extra-patrimoniais que compõem a tábua
axiológica da Constituição. O latifúndio utilizado para fins especulativos,
ainda que produtor de alguma riqueza, estará descumprindo sua função
social, por desrespeitar as situações jurídicas existenciais e sociais nas
quais se insere. Não merecerá, por conseguinte, a tutela jurídica, devendo
ser desapropriado, em caráter prioritário, para fins de reforma agrária

Não obstante, nosso constituinte permitiu a desapropriação para fins de
reforma agrária da propriedade que não cumpre sua função social, mas, ao
mesmo tempo, condicionou esta desapropriação à não produtividade da terra.
Desta forma, fica claro que o legislador nenhuma intenção tem de que a
função social seja cumprida, pois esta é muito mais ampla que seu mero
aproveitamento econômico, cabendo ressaltar que segundo Baldez (2003),
exclui-se do conceito de terra improdutiva aquela que, ainda assim sendo,
estiver incluída em projetos elaborados tendentes à produção. Mais uma vez,
consegue-se inviabilizar os anseios do Movimento na luta por uma reforma
fundiária.

Conforme Foucault (2003), o direito é um instrumento utilizado pelos
dominantes para o exercício desta subjugação, identificando-se tal
estrutura desde os idos medievais, onde o pensamento jurídico serviu ao rei
para amparo de suas decisões.

Seguindo Foucault (2003), os discursos inseridos nas decisões judiciais que
trago devem ser analisadas "como jogos (games), jogos estratégicos, de ação
e reação, de pergunta e de resposta, de dominação e de esquiva, como também
de luta".(p.09). Para este filósofo, "o poder se manifesta, completa seu
ciclo, mantém sua unidade graças a este jogo de pequenos fragmentos,
separados uns dos outros, de um mesmo conjunto, de um único objeto, cuja
configuração geral é a forma manifesta de poder" (p.38).

Assim como o próprio Estado Brasileiro, o Poder Judiciário também tem pouca
tradição democrática, com sua atuação marcadamente repressora sobre as
camadas populares, bem como suas íntimas ligações com as grandes
oligarquias. O MST sofre diretamente este processo histórico de dominação e
repressão, notadamente nos órgãos jurisdicionais de primeira instância das
áreas de conflito, pois não raras vezes respaldam as posições dos
latifundiários, até mesmo, descuidando de algumas exigências ou cautelas
legais para a concessão de liminares de reintegração de posse[3].

Neste sentido, pode-se observar a decisão de 11 de julho de 2002, proferida
pelo MM. Juiz Átis de Araújo Oliveira, da Comarca de Teodoro Sampaio,
conhecida área de conflito da região do Pontal do Paranapanema (São Paulo),
no processo n.º 196/1999, onde Valmir Rodrigues Chaves, integrante do MST,
foi denunciado por co-autoria em furto qualificado de duas cabeças de gado,
ocorrido em março de 1999, na Fazenda Nova Esperança III, município de
Euclides da Cunha Paulista, comarca de Teodoro Sampaio. Na referida
decisão, acolhendo a manifestação do parquet, o MM. Juiz Átis decretou a
prisão preventiva de Valmir, sob o argumento de que o mesmo estava
foragido, pois não se conseguia localizá-lo. Em 07 de maio de 2003, a
referida prisão foi revogada, por meio do Habeas Corpus n.º 439.012/0,
impetrado perante o Tribunal de Alçada Criminal do Estado de São Paulo, sob
a alegação de falta de motivação para decretação da prisão preventiva:

"Com o devido respeito, a circunstância de não se conseguir localizar o réu
para intimação pessoal, e mesmo sua eventual evasão do distrito da culpa,
não se mostram por si sós, isoladamente, suficientes para a medida extrema.
(...)
Fosse a garantia de aplicação da lei penal, por si só, motivo bastante à
prisão preventiva, esta haveria de ser decretada em todo e qualquer caso no
qual citado o réu por edital e se fizesse revel, ou – como na espécie – em
que não fosse localizado após a citação para ser intimado de atos
processuais".

O Poder Judiciário reproduz o discurso dominante e, não raras vezes,
respaldam os interesses daqueles que detém o poder, proferindo decisões ao
largo das normas materiais e processuais. Seguindo o pensamento de
Rousseau, criminoso é aquele que rompe o pacto social. Dentro desta lógica,
se o Poder Judiciário identifica os membros do MST como desordeiros e
perturbadores da paz, conseqüentemente são criminosos e, portanto, inimigos
de toda a sociedade, merecedores, pois, de encarceramento.

Com o advento do Mercantilismo, o corpo humano tornou-se força produtiva.
Assim, toda força que não pudesse ser utilizada como força de trabalho era
e continua sendo banida, reprimida. Foucault (1999) nos ensina que a
burguesia sempre se interessou pelas técnicas e pelos próprios
procedimentos de exclusão, denominadas pelo filósofo de micromecânica do
poder. Foram estes mecanismos que criaram, que produziram, certo lucro
econômico, certa utilidade política, que solidificaram o sistema e o
fizeram funcionar no conjunto. Do conjunto dos mecanismos pelos quais o
delinqüente (ou aquele ao qual se atribui o rótulo de delinqüente) é
controlado, seguido, punido, reformado, resulta para a burguesia um
interesse que funciona no interior do sistema econômico-político geral. O
aprisionamento como pena surge no início do século XIX, como instituição de
fato e muda de enfoque: A prisão passa a visar mais a reforma psicológica e
moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos e menos a defesa geral
da sociedade.

"Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre
se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas
ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão
sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer" (Foucault, 2003:85)

O aprisionamento tornou-se um instrumento de controle sobre o que os
indivíduos, tidos como criminosos, poderiam fazer; a prisão passou a ser
cabível pela simples potencialidade de cometimento de infrações penais por
aquele já previamente definido como criminoso. Neste sentido, Foucault, em
sua obra A verdade e as formas jurídicas, afirma que a noção de
periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado não ao nível
das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de
comportamento que elas representam. (p. 85)

Tal tese se confirma pelas decisões trazidas à análise deste trabalho
investigativo, nas quais o juiz de primeira instância decreta prisões
preventivas contra lideranças do MST pelo simples fato de serem integrantes
do Movimento, na suposição de que por esta razão novos crimes serão
cometidos. Para ilustrar, trago, a seguir, algumas decisões do MM. Juiz
Átis, da Comarca de Teodoro Sampaio, na região do Pontal. A primeira é a
decisão de 23 de maio de 2002, proferida no processo n.º 229/2002, no qual
Edenilton Henrique Batista, José Lauro dos Santos, Ismael Vidal, Edison
Lourenço de Souza, José Guilherme dos Santos, Alcides Gonçalves e Rosalina
Rodrigues de Oliveira Acorsi, todos integrantes do MST, foram denunciados
pelos crimes de quadrilha, furto, dano e incêndio, tendo o técnico do Itesp
(Instituto de Terras do Estado de São Paulo) noticiado no Boletim de
Ocorrência que os mesmos impediram a realização de trabalhos de topografia
para divisão da área em lotes, e em seguida deram início ao furto de cerca
da Fazenda Guaná-Mirim (já anteriormente citada), que havia sido arrendada
pelo Estado para fins de reforma agrária.

O MM. Juiz Átis, na sua decisão de decreto de prisão preventiva dos líderes
do Movimento, proferida em 23 de maio de 2002 e tendo por motivação a
perturbação da ordem pública na região do Pontal do Paranapanema, afirma
que "os responsáveis por tais ações são as pessoas componentes da liderança
do MST, dentre eles os representados. Liderança essa, que a teor dos
depoimentos, não quer que outras pessoas[4] sejam assentadas na área
arrecada pelo Estado, exceto àquelas vinculadas ao MST."

Em 10 de fevereiro de 2003, as referidas prisões foram revogadas, por meio
do Habeas Corpus n.º 386.660-3/9, impetrado perante o Tribunal de Justiça
do Estado de São Paulo, sob a alegação de a conduta de cada um dos
pacientes não fora individualizada quando do decreto de prisão preventiva.
O Eminente Relator, Dr. Canguçu de Almeida, identifica na decisão o forte
estigma que os membros do Movimento carregam, ou seja, inerente aos
discursos a tese de que bastaria participar do MST para ser criminoso e
merecer a prisão, até perpétua, caso nosso ordenamento admitisse.

"Mas, ao assim decidir, o magistrado esqueceu-se da exigência induvidosa,
que lhe era trazida pelo dever de bem fundamentar, de ressaltar de que
forma, em que circunstâncias, a partir de quando e mercê de quais gestos,
os pacientes, especificadamente, não o grupo, em seu todo, colocaram em
risco a ordem pública, a paz social, a instrução criminal ou a aplicação da
lei penal.
Aceitou a autoridade judiciária, em nome de todo o agrupamento, a
responsabilidade dos acusados, admitindo que eles, tão somente por serem
'sem-terra' e por integrarem o movimento, estavam a aperfeiçoar as
circunstâncias a que alude o art. 312 da lei penal adjetiva.
A todos imputou-se comportamento anárquico, sem que fosse posto em
destaque, no despacho que lhes custou a prisão preventiva, o que tenham
feito uns a outros. Fossem dez, quinze, vinte ou cem, os denunciados, todos
acabariam presos preventivamente, desprezadas quaisquer indagações ou
pesquisa a propósito do efetivo agir comprometedor da ordem pública".
(Grifos meus)

Em outro processo (n.º 46/1997), em decisão proferida em 25 de junho de
2003, o MM. Juiz Átis decreta a prisão provisória de Marcio Barreto, membro
do MST. Ao proferi-la, o Juiz, mais uma vez demonstra sua antipatia pelo
Movimento, rotulando seus participantes como criminosos, como se verifica a
seguir, garantindo assim, a ordem do discurso ou o discurso da ordem no
sentido da manutenção do status quo vigente:

"Necessária, portanto, a custódia cautelar não só para a oitiva do
sentenciado (pessoa que não tem destino certo e sempre mudando seu
endereço, já que ligado ao MST), mas também para que a ordem pública não
seja atacada com novos crimes".

Interessante notar que diversos e múltiplos discursos rotulam o trabalhador
rural em questão como criminoso como se pode verificar em diferentes outros
processos. O primeiro item a se ressaltar é quando o Juiz afirma que o sr.
Marcio não possui destino certo, já que ligado ao MST, deixa implícito a
noção subjetiva de alguém desnorteado e não a noção de ausência de
domicílio como lugar aonde se dirige alguém[5]. Tal inversão associada ao
conjunto ligado ao MST, deixa antever à população o grau de periculosidade
imposto ao réu. Não obstante o mau uso terminológico da palavra, o pior
veio em seguida, ao afirmar que a prisão preventiva se fazia necessária
para assegurar que a sociedade estaria livre da ocorrência de novos crimes.
Trata-se de segregação social límpida e cristalina, partindo-se do
pressuposto de que o sr. Marcio, por integrar o MST, irá certamente cometer
novos delitos, e por certo é perigoso, sendo ainda discursos que reafirmam
discursos da ordem e, conseqüentemente, relacionados ao poder vigente.

Como se observa das decisões trazidas, o encarceramento realmente se dá em
razão de quem é o indivíduo, de sua classe, do grupo ao qual pertence,
sendo assim determinada a capacidade e a probabilidade de cometimento de
crimes.

Podemos identificar aqui um tipo de poder inserido nestas decisões. O
panoptismo[6], o poder panóptico. Esta forma de poder, segundo Foucault tem
por base o exame, sendo esta vigilância exercida de modo permanente,
cabendo ressaltar, ainda, que aquele que vigia[7] constitui sobre o vigiado
um saber, um saber que tem agora por característica não mais determinar se
alguma coisa se passou ou não, mas determinar se um indivíduo se conduz ou
não como deve, conforme ou não a regra. (2003:88). No panoptismo, a
vigilância sobre os indivíduos se dá ao nível não do que se faz, mas do que
se é; não do que se faz, mas do que se pode fazer (Idem, ibdem, p. 104)


Nos séculos XVI e XVII, a fortuna era essencialmente constituída por
terras, espécies monetárias e letras de câmbio; já no século XVIII a
riqueza era investida em mercadorias, estoques, máquinas, matérias-primas
etc. Conclui Foucault que a partir deste momento, com esta nova forma
assumida pela produção, todos estes bens passaram a estar em linha de
depredação, de ataque. Toda essa população de gente pobre, de
desempregados, de pessoas que procuram trabalho tem agora uma espécie de
contato direto, físico com a fortuna, com a riqueza. (p.101) Por esta
razão, principalmente em razão de este contato direto com a riqueza por
parte das camadas populares ter sido freqüente, os donos do poder
resolveram instaurar mecanismos de controle desta população. Este foi o
primeiro motivo fornecido por Foucault: a necessidade de a classe abastada
proteger sua riqueza industrial. O segundo motivo refere-se a mudança de
forma das propriedades agrícolas, deixando os trabalhadores rurais sem
terra para plantar, sem comida para comer, sem nada.

Fica claro perceber, assim, que o que está em questão é o poder (do Estado,
dos latifundiários) e é isso que faz com que se sintam ameaçados. É o medo
de perder o poder econômico, político que faz com que os detentores do
poder lutem contra os movimentos sociais agrários, utilizando-se para
tanto, mas não exclusivamente, do poder judiciário, para assim criminalizá-
los e, portanto, enfraquece-los para derrota-los.

Para melhor compreendermos a problematização, ou seja, os por quês e os
comos da criminalização dos movimentos sociais colocada por esta
dissertação, não poderíamos deixar de trazer ao debate, o entendimento de
Marx sobre algumas das questões ligadas à estrutura do modo de existência
capitalista, dentre elas as concepções de ideologia, classes sociais em
conflito, sociedade civil e o direito.

Os homens, além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de
certas instituições, produzem idéias ou representações pelas quais procuram
explicar e compreender sua própria vida individual, social, suas relações
com a natureza. Essas idéias ou representações, entretanto, tendem a
esconder dos homens o modo real como suas relações sociais foram
produzidas, bem como a origem das formas sociais de exploração econômica e
de dominação política. É esse ocultamento da realidade que se chama
ideologia, sendo através dela é que os homens legitimam as condições
sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e
justas.

As idéias dominantes em uma sociedade numa certa época correspondem apenas
às idéias da classe dominante dessa época, ditando, assim, o modo como
todos os membros dessa sociedade irão pensar. A ideologia é o processo pelo
qual as idéias da classe dominante se tornam idéias de todas as classes
sociais, pois as trazem como universais e importantes para todos.

Marx critica radicalmente todo o idealismo hegeliano, que acredita ser a
sociedade civil a negação da família, vindo o Estado para resolver a
contradição entre ambas. A sociedade civil concebida como um indivíduo
coletivo é uma das grandes idéias da ideologia burguesa para ocultar que a
sociedade civil é a produção e reprodução da divisão de classes e é luta de
classes. Assim, a sociedade não pode ser sujeito da história. Enfim, o
sujeito da história são as classes sociais.

Marx conserva, entretanto, o conceito hegeliano de alienação, mas o
modifica, afirmando ser a alienação do trabalho a sua principal forma. Para
Marx, trabalho alienado é aquele em que o produtor não pode se reconhecer
no produto de seu trabalho, pois as condições desse trabalho, suas
finalidades reais e seu valor, não dependem do próprio trabalhador, mas do
proprietário das condições do trabalho. Em conseqüência, o produto surge
como poder separado do produtor e como um poder que o domina e ameaça. O
conceito de alienação nos permite compreender uma série de fenômenos
sociais. Um dos pontos mais altos na elaboração de Marx é em O Capital, na
qual traz o conceito de fetichismo da mercadoria, devendo-se entender por
mercadoria o trabalho concentrado e não pago.

Desta forma, as relações sociais de trabalho aparecem como relações
materiais entre sujeitos humanos e como relações sociais entre coisas. O
trabalhador passa a ser uma coisa, que recebe outra coisa, que se chama
salário. O produto trabalho passa a ser uma coisa chamada mercadoria, que
se relaciona a outra: o preço. Desta forma, os seres humanos desaparecem,
passando a existir sob a forma de coisas (daqui, Lukács tira o termo
reificação, que significa coisa). Por outro lado, as coisas produzidas e as
relações entre elas (produção, distribuição, circulação, consumo) se
humanizam e passam a ter relações sociais. Todas essas atividades
econômicas passam a funcionar sozinhas, independentemente dos homens que as
realizam, que se tornam, na verdade, instrumentos delas.

Sob a rubrica Intercâmbio e força produtiva, em A Ideologia Alemã, nosso
pensador alemão nos traz a idéia de que a maior divisão entre o trabalho
material e o intelectual é a separação entre a cidade e o campo, que se
inicia com a transição da barbárie à civilização, da localização à nação e
persiste até a atualidade. Na cidade, verifica-se uma concentração de
pessoas, dos instrumentos de produção, do capital, dos prazeres, da
necessidade, enquanto no campo evidencia-se o oposto, isto é, o isolamento
e a separação, fato que toma proporções gigantescas nos dias atuais, quando
a qualidade de vida no campo se reduz ao mínimo desejado de insalubridade,
falta quase completa de subsistência de seus moradores e onde a terra é
propriedade de uns poucos. A superação da oposição entre a cidade e o campo
é uma das primeiras condições da coletividade como meio de subversão das
condições desumanas encontradas.

A classe dominante tenta de qualquer modo criminalizar o Movimento porque
tem receio de perder seu poderio econômico e político. Enfim, o que está em
jogo é o poder e para não perde-lo, utiliza-se do aparato do Judiciário,
que reafirma sua dominação, bem como de instrumentos legais, como é o caso
da Lei n.º 8.629, de 25/02/93, com a alteração trazida pela MP 2.183-
56/2001, que determina uma série de restrições às terras que são objeto de
ocupações.

Dando continuidade, ainda que brevemente, às análises dos discursos e
enunciações que se pautam pela criminalização dos movimentos sociais,
retomo a Lei n.º 8.629, de 25/02/93, agora para discutir e analisar os
discursos nela inseridos, mais especificamente nos parágrafos 6º a 8º do
artigo 2º, que delimitam a parte final do parágrafo 5º, do artigo 9º.
Assim, vejamos:

"Art. 9º (...)

§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e
trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades
básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do
trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel." (grifos
meus)


Da redação do parágrafo acima transcrito, percebe-se que o texto se dirige
ao proprietário da terra, inclusive quanto à não provocação de conflito e
tensão social, visto que o legislador utilizou-se da conjunção aditiva e.
Entretanto, ao identificar o agente provocador do conflito social, verifica-
se uma ruptura no discurso. Este agente passa a ser tanto o trabalhador
rural, membro do Movimento, quanto o próprio movimento social. Vejamos, in
verbis, a redação dos parágrafos inseridos no artigo 2º da Lei em questão
por força da MP 2.183-56/2001, cabendo ressaltar que a edição desta medida
provisória se deu em razão da ocupação pelo MST às terras de parente do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso:

"Art.2º (...)

§ 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho
possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de
caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois
anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de
reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e
administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que
propicie o descumprimento dessas vedações.

§ 7o Será excluído do Programa de Reforma Agrária do Governo Federal quem,
já estando beneficiado com lote em Projeto de Assentamento, ou sendo
pretendente desse benefício na condição de inscrito em processo de
cadastramento e seleção de candidatos ao acesso à terra, for efetivamente
identificado como participante direto ou indireto em conflito fundiário que
se caracterize por invasão ou esbulho de imóvel rural de domínio público ou
privado em fase de processo administrativo de vistoria ou avaliação para
fins de reforma agrária, ou que esteja sendo objeto de processo judicial de
desapropriação em vias de imissão de posse ao ente expropriante; e bem
assim quem for efetivamente identificado como participante de invasão de
prédio público, de atos de ameaça, seqüestro ou manutenção de servidores
públicos e outros cidadãos em cárcere privado, ou de quaisquer outros atos
de violência real ou pessoal praticados em tais situações.

§ 8o A entidade, a organização, a pessoa jurídica, o movimento ou a
sociedade de fato que, de qualquer forma, direta ou indiretamente,
auxiliar, colaborar, incentivar, incitar, induzir ou participar de invasão
de imóveis rurais ou de bens públicos, ou em conflito agrário ou fundiário
de caráter coletivo, não receberá, a qualquer título, recursos públicos."
(grifos meus)

As ocupações de terra e prédios públicos são, como já reiteradas vezes e
por diversas vozes afirmado, atos políticos que intencionam pressionar o
Poder Público a agir, isto é, realizar, em sentido estrito, a reforma
agrária, bem como garantir subsídios agrícolas. Assim, verifica-se que o
objetivo da referida Lei, com as alterações introduzidas pela MP citada tem
o objetivo único de desestruturar e inviabilizar a luta dos movimentos
sociais que lutam pelo acesso e permanência na terra, como é o caso do MST.

Analisando-se o texto da lei, sob o emblema dos não-ditos, como apreciava
Foucault, pode-se bem depreender que um recado é transmitido: O povo não
deve instrumentalizar-se e organiza-se para reivindicar o que necessita,
sendo-lhe negado pelo poder Publico. O discurso subterrâneo ao enunciado
legal supracitado pode ser entendido no sentido, colocada as lentes aos
olhos míopes desveladores das profundidades por poucos alcançadas, de que
devemos aceitar passivamente tudo que nos é imposto e nos resignarmos, pois
a cada atividade e ato de pressão popular, haverá uma resposta mais dura e
enérgica por parte das autoridades, utilizando-se para tanto uma arma, tão
poderosa e engessadora quanto àquelas que acusam o Movimento de se
utilizar: a lei.

Segundo Chauí, o papel do Direito é fazer com que a dominação não seja tida
como violência, mas como legal e, portanto, legítima. Se o Estado e o
Direito fossem percebidos em sua realidade, isto é, como instrumentos para
o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam
respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia é
substituir a realidade do Estado pela idéia do Estado, assim, como pela
idéia do Direito. Desta forma, a dominação de uma classe por meio das leis
é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas,
justas, boas e válidas para todos!

Devemos mencionar, ainda que brevemente, o papel que os meios de
comunicação exercem enquanto instituição de controle, pois, segundo Nilo
Batista (2002), a ligação entre a mídia e o sistema penal é uma importante
característica dos sistemas penais do capitalismo tardio, sem, contudo,
pretender afirmar que a legitimação do sistema penal pela imprensa seja
algo exclusivo da conjuntura econômica e política que vivemos (p.271).

A Mídia, ao noticiar temas ligados à criminalidade, utiliza uma linguagem
popular, com o fim de dramatizar o evento, de modo que a realidade
cotidiana vem conceituada e confirmada como se fosse consenso. Ela surge
como representante da opinião pública, quando, na verdade, reciprocamente
se condicionam. A função de legitimação do status quo realizada pela imagem
da criminalidade se realiza através do reforço da mentalidade da lei e da
ordem (Baratta,1994).

Existe na Mídia, também, construções de imagens sobre o Outro, tentando
reproduzir imagens positivas e normalizadoras da ordem. Todo aquele que
"sair do script", aquele que é diferente, é demonizado e, assim, justifica-
se todo ato de violência contra ele praticado. O diferente serve para
demonstrar, a contrário sensu, os traços constitutivos de uma identidade
social normatizada.

Há alguns anos atrás tive em minhas mãos uma revista de grande circulação –
a revista VEJA, que trazia na capa a chamada para a matéria central. A
fotografia espetacular, indicativa de um confronto, referia-se ao Movimento
Sem-Terra (MST), colocando de um lado os trabalhadores rurais com foices em
punho e de outro os capangas do fazendeiro que teve sua terra ocupada. O
que mais se destacava era a coloração vermelha-fogo, de ponta a ponta,
colocada no lado em que a foto representava os trabalhadores, enquanto a
outra face da mesma fotografia vinha colorida de azul. Nítida estava a
mensagem subliminar: o céu e o inferno com seus respectivos anjos e
demônios. Enfim, lá estava a noção de bandido e mocinho, de ordem e
desordem, tudo colocado em uma só imagem, mas com muito conteúdo e já, por
si só, formadora de opinião.

Se a notícia constrói a realidade social e o primeiro elemento para
construí-la é o poder, que opera com base em grandes princípios de
disciplinação, ela passa a produzir como efeito fundamental a dicotomia
entre os bons e os maus. Se uma notícia não argumenta, explicitamente, quem
são estes bons e quem são estes maus, ela traz em si, ao associar-se ao
poder, que seleciona e classifica, o que vai ser publicado, noções
coletivas de público e de privado que, se por um lado, ocultam realidades,
por outro, as revelam em sua materialidade.

A dicotomia bom/mau gera o estereótipo, que se traduz na consolidação de
noções de pertencimento e identidade. Se a norma é ser branco, homem,
bonito, inteligente, cristão, de boa classe social e proprietário de bens,
os maus serão os que se desviam deste padrão. Aqui, uma das funções do
estereótipo é recortar e redefinir a sociedade em termos de oposições e
diferenças de forma a permitir que se desenvolva o medo, ampliando-se o
sentimento de insegurança e os discursos que criminalizam e penalizam
aqueles que não se encaixam nas normas padrões estabelecidas, onde se
incluem todos aqueles que lutam por seus direitos e que são considerados
como desviantes– são os que subvertem a lei e a ordem.

Enquanto o MST passa para práticas mais incisivas utilizando a estratégia
das ocupações, o Estado se lança contra o movimento utilizando-se do
controle penal para deslegitimá-lo, rotulando-o não apenas de ilegal, mais,
sobretudo como criminosos. É a deslegitimação pela criminalização e este
processo tem dois enfoques, um pelo sistema penal, na qual a conduta dos
integrantes do MST, especialmente de seus líderes, são tipificadas
criminalmente, e outro processo, que ocorre em paralelo, é a construção de
uma opinião pública, que se dá através da Mídia, um dos elos da
criminalização do Movimento. Há, assim, uma interação entre o controle
penal formal e informal.

A ideologia dominante oculta a realidade dos homens, encobrindo a
verdadeira face da produção de suas relações sociais, bem como a exploração
econômica e dominação política exercida sobre eles. É neste sentido que a
classe dominante é, no dizer de Gramsci, hegemônica, o sendo não só pelo
fato de que detém os meios de produção e o poder do Estado, mas porque
fazem crer a todos que seus interesses são de todos, reafirmando, assim, a
ideologia dominante.

Como reação à hegemonia dos grupos dominantes, surgem movimentos contra-
hegemônicos, entre os quais o MST se insere. Gómez corrobora com esta tese
ao afirmar que ao se analisar as lutas políticas de oposição e resistência
explícita à globalização neoliberal, percebe-se que elas se inscrevem no
que poderia ser caracterizado como movimentos contra-hegemônicos amplos,
multiformes e tematicamente diversificados de globalização 'a partir de
baixo'. (p. 137)

Sendo, pois, o MST um movimento contra-hegemônico, no sentido de desvendar
o véu da ocultação referida, é, portanto, tão combatido e tanto se vê seus
membros rotulados de criminosos. Utiliza-se de discursos desqualificadores
para, assim, retirar o apoio da população e neste campo, a mídia tem peso
decisivo.

Para não ficarmos desesperançosos quanto ao nosso Judiciário, vale a pena
ler a decisão do Ministro da 6ª Turma do STJ, juiz Luiz Vicente
Cernicchiaro:

"Movimento popular visando implantar a reforma agrária não caracteriza
crime contra o Patrimônio. Configura direito coletivo, expressão da
cidadania, visando implantar programa constante da Constituição da
República. A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático.
(...)
A Constituição da República dedica o Capítulo III do Título VII à Política
Agrícola e Fundiária e à Reforma Agrária. Configura, portanto, obrigação do
Estado. Correspondentemente, direito público, subjetivo de exigência de sua
concretização.
No amplo arco dos Direitos de Cidadania, situa-se o direito de reivindicar
a realização dos princípios e normas constitucionais.
A Carta política não é mero conjunto de intenções. De um lado, expressa o
perfil político da sociedade e, de outro, gera direitos.
É, pois, direito reclamar a implantação da reforma agrária. Legítima a
pressão aos órgãos competentes para que aconteça, manifeste-se
historicamente.
Reivindicar por reivindicar, insista-se, é direito. O Estado não pode
impedi-lo. O modus faciendi, sem dúvida, também é relevante. Urge, contudo,
não olvidar o princípio da proporcionalidade – tão ao gosto dos
doutrinadores alemães.
A postulação da reforma agrária, manifestei em Habeas Corpus anterior, não
pode ser confundida, identificada com esbulho possessório, ou a alteração
de limites. Não se volta para usurpar a propriedade alheia. A finalidade é
outra. Ajusta-se ao Direito. Sabido, dispensa prova, por notório, que o
Estado, há anos, vem remetendo a implantação da reforma agrária.
Os conflitos resultantes, evidente, precisam ser dimensionados na devida
expressão. Insista-se. Não se está diante de crimes contra o Patrimônio.
Indispensável a sensibilidade do magistrado para não colocar, no mesmo
diapasão, situações jurídicas distintas.
(...)
Tenho o entendimento, e este Tribunal já o proclamou, não é de confundir-se
ataque ao direito de patrimônio com o direito de reclamar a eficácia e
efetivação de direitos, cujo programa está colocado na Constituição. Isso
não é crime; é expressão do direito de cidadania".

Assim, alguns resultados podem ser auferidos ao final desta dissertação:
(a) o MST é um movimento social que luta pela efetividade da Constituição
Federal vigente, por meio da realização da reforma agrária, por parte do
poder público, pela concessão de insumos, bem como reivindicações gerais de
cidadania e qualidade de vida; (b) o discurso do Poder Judiciário legitima
o poder dominante apresentando descontinuidades profundas em suas
contradições, onde as condutas do Movimento são sempre identificadas como
criminosas e tratadas não como questão política, mais sim como caso de
polícia; (c) as estratégias de disciplinação e a sujeição das camadas
populares se acentuam na medida em que os movimentos sociais crescem em
organização e luta; (d) discursos alternativos vêem contribuindo para
saídas jurídicas, identificando as atividades do MST como ato desobediência
civil.

Encerro aqui com a fala de Gilmar Mauro, coordenador nacional do MST, em
seminário realizado no dia 26 de junho de 2002, promovido pelo Grupo
Tortura Nunca Mais/RJ, em comemoração pelo Dia Internacional Das Nações
Unidas De Luta Contra A Tortura, quando afirmou que eles batem no Movimento
Sem Terra porque é um grupo de gente, de povo, de pobre organizado e pobre
organizado é um perigo para a elite brasileira.

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[1] Afirmam ainda ser também ( a desobediência civil) a chava para a
manutenção das utopias nas sociedades contemporâneas.
[2] Op.cit. p. 42
[3] Garcia (1999:84) cita Varella que afirma que são comuns os
desatendimentos a requisitos legais para a concessão de liminares desta
natureza, ou ilegalidades em seu cumprimento. Muitas vezes, os requerentes
sequer comprovam a turbação da posse ou sua posse anterior; são raras as
audiências de justificação da posse envolvendo militantes do MST; e algumas
ordens para desocupação foram 'cumpridas' em plena madrugada, como no caso
do massacre de Corumbiara, em agosto de 1995.
[4] Referência a disputa entre o MST e o MAST, cuja análise excede aos
limites deste trabalho.
[5] Novo Dicionário Aurélio. Editora Nova Fronteira. Verbete destino.
Pág. 577
[6] Para saber mais sobre o panoptismo, remeto à leitura de duas obras
de Foucault: Vigiar e Punir e A verdade e as formas jurídicas.
[7] A vigilância não cabe exclusivamente ao poder judiciário. Ao
contrário, surgiu uma série de instituições que tinham e tem a finalidade
de controle social, como por exemplo a escola, o hospital, o asilo, a
polícia etc.

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