Movimentos sociais como produtores de conhecimento: a Soberania Alimentar no Movimento de Pequenos Agricultores (MPA

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Descrição do Produto

Universidade do Estado do Rio do Janeiro Centro de Ciências Sociais Instituto de Estudos Sociais e Políticos

Carolina Burle de Niemeyer

Movimentos sociais como produtores de conhecimento: a Soberania Alimentar no Movimento de Pequenos Agricultores (MPA)

Rio de Janeiro 2014

Carolina Burle de Niemeyer

Movimentos sociais como produtores de conhecimento: a Soberania Alimentar no Movimento de Pequenos Agricultores (MPA)

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-graduação em Sociologia, da Universidade do Estado do Rio do Janeiro. Área de concentração: Ação movimentos sociais.

Orientador: Prof. Dr. Breno Bringel

Rio de Janeiro 2014

coletiva,

cidadania

e

CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/BIBLIOTECA IESP N672

Niemeyer, Carolina Burle de. Movimentos sociais como produtores de conhecimento: a soberania alimentar no Movimento de Pequenos Agricultores (MPA) / Carolina Burle de Niemeyer. – 2014. 216 f. Orientador: Breno Bringel.

Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Estudos Sociais e Políticos. 1. Movimentos sociais rurais - Teses. 2. Sociologia – Teses. I. Bringel, Breno. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Estudos Sociais e Políticos. III. Título.

CDU 378.245

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, desde que citada a fonte.

_____________________________________________ Assinatura

_____________________ Data

Carolina Burle de Niemeyer Movimentos sociais como produtores de conhecimento: a Soberania Alimentar no Movimento de Pequenos Agricultores (MPA)

Tese apresentada, como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-graduação em Sociologia, da Universidade do Estado do Rio do Janeiro.

Aprovada em: 15 de dezembro de 2014. Banca Examinadora:

Prof. Dr. Breno Bringel (Orientador) Instituto de Estudos Sociais e Políticos - UERJ

Prof. Dr. Luiz Antônio Machado Instituto de Estudos Sociais e Políticos - UERJ

Prof. Dr. José Maurício Domingues Instituto de Estudos Sociais e Políticos - UERJ

Profa. Dra. Leonilde Servolo de Medeiros Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

Prof. Dr. Marcelo Carvalho Rosa Universidade de Brasilia

Rio de Janeiro 2014

Dedico essa tese a todos aqueles que dedicam tempo e energia à produção de conhecimentos em favor da emancipação social

A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar. Eduardo galeano

AGRADECIMENTOS

A realização dessa tese é resultado de uma longa jornada. Foram seis anos compartilhados com muitas pessoas e muitas outras experiências de vida e nesse primeiro parágrafo agradeço pela oportunidade de viver esse processo, que não foi fácil mas foi possível. Por esse ensinamento eu devo agradecer a Cristina, que também me ajudou a valorizar o meu multi-foco e a exercitar o meu potencial, e a Gurumaiy Chidvilasananda que me inspirou a honrar o Ser que existe dentro de mim. Agradeço ao meu orientador Breno Bringel, pela relação de troca, tradução, diálogo e cumplicidade, principalmente nos últimos momentos desse processo. Aos professores e pesquisadores do IESP e de tantos outros centros de produção de conhecimento com os quais dialoguei ao longo dessa jornada. Aos meus ex-orientadores de tese, Frédéric e Diana, cujas influências estão presentes nesse trabalho de alguma forma. Ao Prof. Lacey, que acreditou e apoiou essa proposta desde a sua gênese, e ao CNPQ pelo auxílio sem o qual não poderia ter passado quatro desses anos dedicados ao estudo e às reflexões, complementando a renda com trabalhos ocasionais. Aos membros da banca, por terem aceitado esse convite e pelas críticas e sugestões O apoio e cumplicidade de alguns amigos foram fundamentais nos últimos momentos dessa jornada, quando eu literalmente não tinha tempo nem para dormir, a eles dedico um agradecimento muito especial. Chico, pelas mensagens de apoio, massagens e pedaladas no final de tarde. Daniela, que apesar de morar em outro continente “chegou junto” e doou tempo que não tinha me auxiliando na tradução de textos importantes. Kalline, minha mais “nova amiga de infância”, cujas leituras e críticas foram fundamentais para o resultado final desse trabalho. E Julia, minha obra prima, que hoje se constrói a si mesma e foi quem checou minuciosamente a bibliografia e as siglas apontando erros e inconsistências. Agradeço também aos colegas do programa Radis-Fiocruz e da redação da revista Radis, especialmente ao coordenador do programa, Rogério Lannes e à editora da revista, Eliane Barnadchvili, pela compreensão e o apoio à construção deste projeto, que já estava em curso quando viemos a trabalhar juntos. Nesse percurso conheci outros utopistas e militantes como eu, com quem pude compartilhar experiências e construir projetos conjuntos. O Coletivo A é um desses e os companheiros dessa empreitada, Timo, Marcelo, Cris e Bruno, merecem ser lembrados. Também agradeço aos colegas de “pesquisa militante”, Carmen, Flavinha, Trog, Francine,

Renata, Joana, Leo, entre tantos outros que estiveram comigo na construção do projeto Universidade e Movimentos Sociais e com quem eu atuei no curso Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo. Também não posso deixar de mencionar os dirigentes, intelectuais e militantes do Movimento dos Pequenos Agricultores: MPA que apoiaram o meu trabalho e me abriram espaço para conhecer o movimento por dentro. Dentre esses, agradeço especialmente a Beto, Valter, Rose, Gilberto e Emelson, porque me doaram o seu tempo explicando-me processos e compartilhando reflexões e experiências. Incluo também as pessoas que contribuíram para a realização da minha pesquisa de campo no extremo oeste de Santa Catarina, entre essas: técnicos e funcionários da Oestebio, militantes do MPA, do MMC e do MST e agricultores e agricultoras com quem eu conversei e a quem entrevistei ao longo dos quarenta dias que passei em São Miguel do Oeste e adjacências. Não posso deixar de mencionar os meus ex-vizinhos e hermanos Edgar, Flavia, Malu, Flavia, Carlos, Lucho e Luciana, com quem compartilhei angustias e reflexões durante parte desse período e de quem sinto tantas saudades. Alexandre não pode ser esquecido, porque é corresponsável por eu ter assumido o desafio dessa empreitada e nem os amigos que não me abandonaram nessa fase de tantos: “não posso”, “não estou disponível”, “tenho de escrever a tese” e não me deixaram esquecer que era “preciso relaxar”, como Vanderlei, Luca, Lourdinha, Enrique, Paulinho, André, Adelaide, entre outros. E por fim, agradeço ao meu pai (in memorian) e a minha mãe.

RESUMO

NIEMEYER, Carolina Burle de. Movimentos sociais como produtores de conhecimento: a Soberania Alimentar no Movimento de Pequenos Agricultores (MPA). 2014. 273 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. A presente tese adota uma perspectiva cognitiva e epistêmica para o estudo dos movimentos sociais, tendo como objeto de estudo a Soberania Alimentar no Movimento dos Pequenos Agricultores: MPA. Defendemos a ideia que, através de sua atuação prática e discursiva, os movimentos sociais estão travando uma luta que, além de política e cultural, é também cognitiva e epistêmica e que essa dinâmica social é geradora de novas formas de conhecimento, como a Soberania Alimentar. Neste trabalho, a Soberania Alimentar é entendida como um programa social de conhecimento que vem sendo desenvolvido pela rede transnacional de movimentos sociais Via Campesina e as suas organizações constituintes (dentre as quais o MPA), articulados com entidades parceiras em redes de solidariedade transnacionais e transculturais e em oposição aos seus adversários, em relação a distintos contextos e escalas de ação. Apoiados nessa ideia e na perspectiva adotada, pretendemos revelar aspectos da multidimensionalidade e da multiespacialidade da dinâmica constitutiva da Soberania Alimentar, a partir do estudo das correlações entre o local e o global, o particular e o geral e as dimensões prática e intelectual da produção de conhecimento por movimentos sociais. Palavras-chave: Soberania Alimentar. Movimento de Pequenos Agricultores (MPA).Via Campesina. Produção de Conhecimento. Movimentos Sociais Rurais. Movimentos sociais.

ABSTRACT NIEMEYER, Carolina Burle de. Social Movements as Knowledge Producers: The Food Sovereignity in the Small Farmers Movement (MPA). 2014. 273 f. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. This thesis adopts a cognitive and epistemic perspective to the study of social movements, taking the Food Sovereignty in the Movimento dos Pequenos Agricultores: MPA (Small Farmers Movement) as its object of study. We defend the idea that through their practice and discursive action, social movements are waging a struggle that besides political and cultural, is also cognitive and epistemic and that this social dynamics generate new forms of knowledge, such as Food Sovereignty. In this work, food sovereignty is understood as a social program of knowledge that has been developed by the transnational network of social movements Via Campesina and its constituent organizations (among which the MPA), articulated with partner organizations in transnational and transcultural solidarity networks, in opposition to their adversaries and in relation to different contexts and scales of action. Supported by this idea and by the adopted perspective, we focus on the correlations between the local and the global, the particular and the general, and the practical and intellectual dimensions of the prodution of knowledge by social movements, with the intention to achieve our main objective, namely, to reveal aspects of the multidimensionality and multiespaciality of the constitutive dynamics of Food Sovereignty. Keywords: Food Sovereignity. Small Farmers Movement: MPA. Via Campesina. Knowledge production. Rural social movements. Social movements.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABAG

Associação Brasileira do Agronegócio

ADC

Análise de Discurso Crítica

AEPAC

Associação dos Pequenos Agricultores Catarinenses

AGFA

Assembleia Global sobre Segurança Alimentar

ALBA

Aliança Bolivariana Para as Américas

ANA

Asociación Nacional de Agricultores Pequeños

ANAMURI

Associação Nacional de Mulheres Indígenas

AOA

Acordo sobre Agricultura

AOA

Acordo sobre Agricultura e Alimentação

ASOCODE

Asociación Comunitaria para el Desarrollo

ASPTA

Agricultura Familiar e Agroecologia

ASSO

Associação dos Pequenos Agricultores Produtores de Milho Crioulo Orgânico e Derivados

ATER

Assistência Técnica e Extensão Rural Não aparece no texto

ATTAC

Action for a Tobin Tax to Assist the Citizen

CAP

Programa de Política Agrícola Comum

CCI

Caravana Intercontinental Internacional

CCI

Comitê Coordenador Internacional

CDB

Convenção da Diversidade Biológica

CEB

Comunidades Eclesiais de Base

CEPIS

Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiæ

CETIM

Centre Europe Tiers Monde

CFCH

Escola de Serviço Social

Clacso

Conselho Latino Americano de Ciências Sociais

CLOC

Coordenadora Latino Americana de Organizações do Campo

CNBB

Confederação Nacional dos Bispos do Brasil

CNSTP

Confédération Nationale des Syndicats de Travalilleurs Paysans

CONAMURI

Coordinadora Nacional de Organizaciones de Mujeres Trabajadoras Rurales e Indígenas

CONAB

Companhia Nacional de Abastecimento

CONAQ

Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas

CONSEA

Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional

CONTAG

Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura

COOPEAL

Cooperativa de Produção, Industrialização e Comercialização "Adão Lins"

COOPERMOC Cooperativa Mista São Luiz Ltda-Coopermil COOPEROESTE

Cooperativa Regional de Comercialização do Extremo Oeste, Indústria

de leite Longa Vida e derivados COP8

8ª Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica

CPE

Coordination Paysanne Européene

CPDA/UFRRJ Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade/ Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro COPROFAM Confederación de Organizaciones de Productores Familiares del Mercosur CPT

Comissão Pastoral da Terra

CRAS

Centro de Referência em Assistência Social

CTG

Centros de Tradição gaúcha

CTNBio

Comissão Técnica Nacional de Biossegurança

DER-CUT

Departamento Rural da Central Única dos Trabalhadores

DETR

Departamento Estadual dos Trabalhadores Rurais

DNTR

Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais

EFC

Economic and Financial Committee (EU)

ELA

Escola Latino Americana de Agroecologia

ENFF

Escola Nacional Florestan Fernandes

ENSP/Fiocruz Escola Nacional de Saúde Pública EPAGRI

Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina

ES

Espirito Santo

ESS/UFRJ

Escola de Serviço Social/Universidade Federal do Rio de Janeiro

ESPJV

Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

ETC Group

Erosion, Technology and Concentration Group

FAO

Food Agriculture Organization

Faperj

Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro

FEMIC

Festa Estadual do Milho Crioulo

FENAMIC

Festa Nacional do Milho Crioulo

FETAG

Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul

FETRAF

Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar

FIAN

FoodFirst Information and Action Network

Filsl

Fórum Internacional de Software Livre

FIMARC

International Federation of Rural Adult Catholic Movements

FIOCRUZ

Fundação Oswaldo Cruz

FUVCAM

Federação Uruguaia de Cooperativas de Moradia por Ajuda Mútua

GATT

Acordo geral de tarifas e comércio (General Agreement on Tariffs and Trade)

GRAIN

Genetic Resources Action International

HIC

Habitat International Coalition

IALA

Instituto Latino Americanos de Agroecologia

IBAD

Instituto Brasileiro de Ação Democrática

IBGE

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica

ISEC

Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses

IESP/UERJ

Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de janeiro

IFAP

Federação Internacional de Produtores Agrícolas

IIED

Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento

IITC

International Indian Treaty Council

INCRA

Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

IUF

The International Union of Food, Agricultural, Hotel, Restaurant, Catering, Tobacco and Allied Workers’ Associations

IPC

International Planning Committe for Food Sovereignity

IPES

Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais

IPPUR-UFRJ Instituto de Pesquisas e Planejamento Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro IPRI

Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais

ETC GROUP Action group on Erosion, Technology and Concentration JEC

Juventude Estudantil Católica

JUC

Juventude Universitária Católica

KRKS

Karnakata Rajya Kyota Sangha

MARA

Ministério da Agricultura e Reforma Agrária

MAARA

Ministério de Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária

MAB

Movimento dos Atingidos por Barragens

MEB

Movimento de Educação de Base

MCP

Movimento Camponês Popular

MDA

Ministério de Desenvolvimento Agrário Aparece so em partes cortadas

MERCOSUL

Mercado Econômico do Sul

MIJARC

Mouvement International de la Jeunesse Agricole et Rurale Catholique

MMA

Movimento das Mulheres Agricultoras

MMC

Movimento das Mulheres Camponesas

MNCI

Movimiento Nacional Campesino e Indígena

MOCASE

Movimiento Campesino de Santiago del Estero

MPA

Movimento dos Pequenos Agricultores

MPP

Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais

MST

Movimento dos Trabalhadores Sem terra

NAEA/UFPA

Núcleo de Altos Estudos Amazônicos/Universidade Federal do Para

NEPP-DH/UFRJ

Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos

NFU

National Farmers Union

NPC

Núcleo Piratininga de Comunicação

OGM

Organismos geneticamente Modificados

OGI

Organização Governamental Internacional

ONGI

Organização Não Governamental Internacional

OMC

Organização Mundial do Comércio

ONU

Organização das Nações Unidas

OWINFS

Our world is not for sale

PAA

Programa de Aquisição de Alimentos

PAN AP

Pesticide Action Network Asia and the Pacific

PCB

Partido Comunista Brasileiro

PFS

Paulo Freire Stichting

PFSA

Programas de Formação em Segurança Alimentar

PIB

Produto Interno Bruto

PJR

Pastoral de Juventude Rural

PNUD

Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento

PNUMA

Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente

PR

Parana

PRONAF

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar

Pronafinho

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar Especial

PT

Partido dos Trabalhadores

RS

Rio Grande do Sul

SC

Santa Catarina

SINTRAF

Sindicato dos Trabalhadores da Agricultura Familiar

SOI

Secretariado Operacional Internacional

SOLTEC/UFRJ Núcleo de Solidariedade Técnica STR

Sindicato de Trabalhadores Rurais

TCC

Trabalho de Conclusão de Curso

TRIP

Tratado de Propriedade Intelectual

TRIPs-Plus

Tratado de Propriedade Intelectual com termos extendidos

UBS

Unidade de Beneficiamento de Sementes

UEC

Unidadde Econômica Camponesa

UERJ

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

UFF

Universidade Federal Fluminense

UFRJ

Universidade Federal do Rio de Janeiro

UFPR

Universidade Federal do Parana

UFSC

Universidade Federal de Santa Catarina

UFVJM

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri

ULTAB

União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil

UNAC

União Nacional de Camponeses de Moçambique

UNAG

União Nacional de Agricultores e Criadores de Gado

UNESP

Universidade Estadual Paulista

UNIA

Universidade Internacional de Andaluzia

UNIJUI

Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul

UPAGRA

União dos Pequenos Agricultores da Região Atlântica

UPOV

Union Internationale pour La Protection des Obtencions Vegétales

USP

Universidade de São Paulo

WAMIP

World Alliance Mobile Indigenous People

WFF

World Forum of Fish Harvesters & Fish Workers

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Tabela 1 —

As 10 maiores companhias de sementes ........................................................80

Tabela 2 —

As 10 maiores companhias de agroquímicos .................................................81

Figura 1 —

Organograma do MPA................................................................................ 145

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1

17

UMA LEITURA COGNITIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS CONTEMPORÂNEOS

33

1.1

Conhecimento Para Além da Racionalidade Científica

34

1.2

Movimentos Sociais e Produção de Conhecimento

38

1.3

Territórios, Redes e Escalas

46

1.4

Diálogo, Tradução e Ação Estratégica: dinâmicas mobilizadoras de novos conhecimentos

56

A SOBERANIA ALIMENTAR COMO OBJETO: SURGIMENTO, USOS E SENTIDOS

70

Geopolítica da Fome e da Alimentação

70

2 2.1

2.2. Quem Controla as Sementes Controla o Sistema Alimentar

80

2.3

O Mito de Origem e suas Tensões Constituintes

86

2.4

Usos e Sentidos da Soberania Alimentar

95

3

OS SUJEITOS DA SOBERANIA ALIMENTAR: DA VIA CAMPESINA INTERNACIONAL AO MOVIMENTO DE PEQUENOS AGRICULTORES

104

A Via Campesina Internacional: Ator Global, Rede Estratégica e Arena de Ação

105

Redes Transnacionais Táticas e Atores de Mediação

118

3.1

3.2

3.3. A Via Campesina Brasil

126

3.4

O Movimento de Pequenos Agricultores

133

4

A PRODUÇAO DE CONHECIMENTO NO MPA

155

4.1

O Lugar da Teoria e da Ideologia na Ação Política do MPA

156

4.2

Movimentos Camponeses e Intelectuais

161

4.3

Os Processos de Formação Política do MPA

163

4.4

Plano Camponês: Campesinato, Identidade Política, Teoria e Prática Produtiva

165

4.5

Produção: teoria, prática e estratégia de resistência social

174

5

A CONSTRUCAO DE SOBERANIA ALIMENTAR PELO MPA

187

5.1

Do Global ao Local: a Importância do Lugar e a Localização da Construção da Soberania Alimentar

188

5.2

Saberes e Sabores

192

5.3

Atores Parceiros do MPA no Resgate de Sementes em Anchieta: Igreja, MMC e MST

199

Produção de Sementes, Produção de Conhecimento: A Festa Nacional da Semente Crioula (FENAMIC)

208

5.5

As Cooperativas Camponesas

216

5.6

Trabalho de Base, Produção de Sementes e Geração de Novos Conhecimentos

221

Do Local ao Global: diálogo e tradução com experiências no Paraguai, Venezuela e Moçambique

234

CONSIDERAÇÕES FINAIS

248

REFERÊNCIAS

253

5.4

5.7

INTRODUÇÃO

A luta de classes não foi superada, muito pelo contrário, tomou feições bem mais complexas e sofisticadas. Às antigas formas de exploração da natureza e de apropriação da mais-valia, somam-se novos padrões que levam ao extremo a máxima que afirma ser o operário livre para vender a sua força de trabalho, e a terceirização e os contratos por tempo determinado são exemplos das novas relações estabelecidas. No capitalismo cognitivo, o conhecimento é o bem de maior valor agregado e o consumo é o que gera os maiores lucros. O capitalismo cognitivo convive com o capitalismo clássico, a fábrica e o serviço, mas os produtos perderam o seu valor relativo, sendo possível receber como brinde o exemplar de última geração, desde que venha atrelado ao compromisso de consumo conspícuo do serviço a ele referido ou dos insumos a ele relacionados (LAZZARATO, 2006), O ramo da comunicação e de telefonia são exemplos emblemáticos deste processo, tanto na relação de trabalho estabelecida com os “colaboradores”, como no relacionamento com o cliente. A informática é outro setor, principalmente no que se refere à criação de novos softwares, cujo uso obriga a aquisição de novos hardwares. Na agricultura não é diferente. O modelo de integração reproduz a terceirização no campo e a agricultura genética pode ser comparada ao mercado da informática. O agronegócio é a forma como opera o capitalismo no campo e todos aqueles que produzem são alvo em potencial de suas promessas de sucesso e de realização financeira. E não são somente os trabalhadores da cidade que precisam ser conquistados, os pequenos e médios agricultores também, porque, nesse modelo, o produtor agrícola ocupa o papel duplo de mão de obra e de cliente. A Sadia e a Perdigão não produzem frango, assim como a Souza Cruz não planta fumo, mas dispõem de um exército de produtores rurais que trabalham integrados a elas e arcam com todos os investimentos, custos e riscos exigidos para fazerem parte do seu seleto grupo de fornecedores. Neste novo contexto, é feita uma aliança entre os ruralistas tradicionais e o capitalismo transnacional altamente tecnológico, e a agricultura passa a ter uma nova lógica: a de cadeia produtiva que envolve a produção, a comercialização e a distribuição de produtos e de insumos. No Brasil, um país de forte tradição agrária, a “Bancada Ruralista tem-se apresentado como um importante espaço de construção de identidade e representação dos interesses das classes e grupos dominantes no campo, tanto no Congresso Nacional como perante a Sociedade Brasileira” (BRUNO, 2009: 15) e “um dos traços da representação hoje é 17

o de conseguir aglutinar, em um mesmo espaço, a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), cadeias produtivas, atores e setores sociais com interesses os mais diferenciados e, muitas vezes, em disputa” (IBID, p. 143). O foco dessa pesquisa é o movimento camponês, entendido aqui como um fenômeno amplo e não como uma organização (MELUCCI, 1996; 2001), e o nosso principal objetivo é contribuir para o entendimento de como esses sujeitos vêm reagindo a essa nova revolução capitalista. A nossa hipótese é que, através de sua atuação prática e discursiva, os movimentos sociais estão travando uma luta que, além de política e cultural, é também cognitiva e epistêmica e que a Soberania Alimentar é uma dessas respostas. Lançada como conceito político pela Via Campesina em 1996, a Soberania Alimentar surgiu como um contraponto à noção de Segurança Alimentar desenvolvida pela FAO, com a intenção inicial de embasar a luta contra a agricultura transgênica e deslegitimar a crença que este modelo produtivo solucionaria a fome no mundo. A versão original de Soberania Alimentar levou seis anos sendo elaborada internamente pela rede transnacional de movimentos sociais Via Campesina, em um processo de diálogo e negociação entre as diversas organizações que a compõem, concomitantemente, nas esferas local, regional e global (DESMARAIS, 2003). Após tornada pública, a noção foi debatida com outros movimentos sociais e ONGs, no “Fórum Mundial sobre Soberania Alimentar” realizado em Havana em 2001, e revisada, em 2007, no “Fórum Internacional pela Soberania Alimentar” realizado em Nyéléni na África. De acordo com a declaração de Nieleny: A soberania alimentar é o direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e ao direito de decidirem o seu próprio sistema alimentar e produtivo. O que implica em que os que produzem, distribuem e consomem alimentos estejam no coração dos sistemas e das políticas alimentares e acima das exigências dos mercados e das empresas. Inclui as futuras gerações e defende seus interesses. Oferece-nos uma estratégia para resistir e desmantelar o comércio livre e corporativo e o regime alimentar atual, e canalizar a gestão dos sistemas alimentares, agrícolas, pastoris e piscicultor para os produtores e produtoras locais. A Soberania Alimentar prioriza as economias locais e os mercados locais e nacionais, e outorga este poder aos camponeses e à agricultura familiar, à pesca artesanal e ao pastoreio tradicional. E coloca a produção alimentar, a distribuição e o consumo sobre uma base ambiental social e economicamente sustentável. A soberania alimentar promove o comercio transparente, que garanta uma renda digna para todos os povos e os direitos dos consumidores 18

controlarem a sua própria alimentação e nutrição. Garante que os direitos de acesso e gestão de nossa terra, de nossos territórios, de nossas águas, de nossas sementes, do nosso gado e da biodiversidade estejam nas mãos daqueles que produzem os alimentos. A soberania alimentar supõe novas relações sociais livres de opressão e desigualdades entre homens e mulheres, povos, grupos raciais, classes sociais e gerações (NIELENY, 2007) Desde 1996, a Soberania Alimentar tem despertado o interesse de técnicos e de pesquisadores, mas só recentemente a questão ganhou status de objeto nos institutos de pesquisa. Até o final da década de 2000 não havia pesquisas acadêmicas sobre a Soberania Alimentar e a noção aparecia, marginalmente, em trabalhos sobre a Via Campesina e outros movimentos sociais rurais transnacionais 1 (WITTMAN, 2011, p. 88). Desde então, tem crescido o interesse pelo estudo dessa questão, o que pode ser comprovado pelo número de artigos científicos disponíveis sobre o tema. Uma busca pelo termo “Food Sovereignity” no Google Scholar resultou em 254.000 ocorrências, por “Soberania Alimentaria” em 16.300, por “Sovereignty Alimentaire” em 3.400 e por “Soberania Alimentar” o resultado foi de 30.100. Segundo revelou uma busca por tema, pelo termo “Soberania Alimentar”, no portal Capes, no Brasil esta questão ainda não ganhou a atenção devida dos centros de produção de conhecimento. O resultado foram trinta e nove ocorrências, dentre as quais, apenas seis eram dedicadas especificamente à questão 2. Analisamos os seus resumos e identificamos que os enfoques são variados, assim como o perfil dos autores. Mas, em comum, há uma avaliação positiva da Soberania Alimentar, seja interpretada como: conceito, prática, ideal de sociedade, modelo produtivo ou sistema alimentar. Segundo Wittman (2011), as primeiras pesquisas acadêmicas sobre Soberania Alimentar adotavam uma perspectiva histórica ou estavam inseridas nos debates sobre a geopolítica da fome e da alimentação. Avaliando os trabalhos mais recentes3, conferimos que

1

Dentre estes, BORRAS (2004), DESMARAIS (2002, 2007), PATEL (2005) E PATEL E MCMICHAEL (2004), são citados como as principais referências. 2 Os seis trabalhos aos quais me refiro são: "A Soberania Alimentar" (CHONCHOL, 2005); "Agroecologia, agricultura camponesa e Soberania alimentar" (ALTIERI, 2010); "Código florestal, função socioambiental da terra e soberania alimentar" (SAUER e DE FRANÇA, 2012); "Soberania alimentar como alternativa ao agronegócio no Brasil" (SOARES CAMPOS E SENHORINHA SOARES, 2007); "Trabalho, reforma agrária e soberania alimentar: elementos para recolocar o debate da luta de classes no Brasil" (THOMAZ JUNIOR, 2007); "Mulheres agricultoras no Brasil: sujeitos políticos na luta por soberania e segurança alimentar" (SILIPRANDI, 2011) e [In]sustentabilidade, desenvolvimento e segurança alimentar (DE VARGAS, BORBA, GODOY, 2013). 3 Entre os trabalhos recentes, destacam-se a edição especial da revista espanhola Desarrollo y Cooperación sobre “Derecho a La Alimentación, Cooperación y Soberanía Alimentaria em tiempos de Crisis Global”, organizada por Bringel e Stronzaque (2013), e os anais da conferência “Food Sovereignity: a Critical Dialogue”realizada pela universidade de Yale em setembro de 2013.

19

estes debates permanecem importantes (MCMICHAEL, 2013; STRONZAQUE, 2013; PERREY, 2013; BELLO, 2012, entre outros), mas os enfoques diversificaram-se. E assim como a Soberania Alimentar, a produção teórica e empírica sobre a questão tornou-se holística e multifacetada e o conceito passou a ser mobilizado em debates mais amplos, como: Direitos Humanos (PATEL, 2007; CLAYES, 2013; BRINGEL, ECHART, GILSANZE e SURALSKY, 2013); Gênero (RIBOT, 2013; SACHS, 2013; KERR et al., 2013); consumo (ANDERSON, 2013); nutrição e Saúde (KERR et al., 2013); propriedade intelectual e bens comuns (KLOPPENBURG, 2010; MENCHER, 2013; BHATTARAI, 2013), etc. E, não raro, um mesmo artigo associa a Soberania Alimentar a mais de uma questão. A nossa interpretação converge na direção de Wittman (2011, p. 88), que adota uma perspectiva epistêmica para a análise do fenômeno, percebendo-o como uma “ciência emergente” construída por meio das práticas produtivas e das propostas políticas de um conjunto heterogêneo de movimentos de base. E na direção de Torres e Rosset (2013, p. 1), para quem, “o paradigma da Soberania Alimentar foi construído mediante o encontro e o diálogo de saberes entre diferentes culturas rurais e do confronto político com o neoliberalismo e o agronegócio”. Neste trabalho, a Soberania Alimentar é interpretada como um programa social de conhecimento – ou uma forma de conhecimento-prático – que vem sendo desenvolvida pela rede transnacional de movimentos sociais Via Campesina e as suas organizações constituintes, em interação com os seus parceiros e opositores, em relação a diferentes contextos de ação, nas diferentes escalas: global, regional, nacional e local. Elegemos a Soberania Alimentar como objeto de análise, porque é um projeto que vem sendo desenvolvido por: “redes de solidariedade transnacional” engajadas em processos dialógicos transnacionais e transculturais e por movimentos sociais membros da Via Campesina em seus contextos e lugares. E esse duplo aspecto permite-nos desenvolver a nossa hipótese a partir da adoção de (i) uma perspectiva multiescalar e multidimensional, (ii) que permita revelar as dinâmicas constitutivas da Soberania Alimentar, a partir do foco nas relações entre: os movimentos sociais e as organizações, os camponeses e a militância, o Norte e o Sul Global, o profissional e o popular, o conhecimento tradicional e o científico, e as distintas escalas: global, regional, nacional e local. (iii) Na intenção de revelar que essas tensões e relações são criativas e potenciais geradoras de novas formas de conhecimento, como a Soberania Alimentar. Com a realização dessa pesquisa, pretendemos operacionalizar a nossa hipótese, de acordo com a qual, através de sua atuação prática e discursiva, os

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movimentos sociais estão travando uma luta que, além de política e cultural, é também cognitiva e epistêmica. Nosso interesse em revelar as tensões e relações entre o local e o global, na dinâmica da produção de conhecimento por movimentos sociais, induziu-nos à eleição de uma organização de movimentos sociais como sujeito-objeto privilegiado da pesquisa. E, no contexto da Via Campesina Brasil, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) é aquele que mais tem investido no desenvolvimento da Soberania Alimentar, em seus vieses como teoria, prática e estratégia de resistência social. O MPA é um movimento social rural criado nos meados dos 1990, por ex-líderes sindicais do DER-CUT descontentes com os rumos do sindicalismo rural e descrentes da adequação desse modelo organizacional para enfrentar o contexto de liberalização da agricultura inaugurado com a criação do MERCOSUL. A crise do sindicalismo rural, somada à crise da agricultura dos 1990, foi a principal motivação à criação do movimento social que já nasceu organizado em nível nacional, e a forte seca que atingiu o sul do Brasil, no fim de 1995, foi o estopim para que o processo fosse deflagrado a partir do Rio Grande do Sul. Fundado concomitantemente no Paraná, no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina, no Espírito Santo e em Rondônia, o MPA hoje está organizado em dezoito estados brasileiros: Pará, Roraima, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Rio de Janeiro, e o seu objetivo é atingir representação nacional. Nos seus primeiros anos, os investimentos concentraram-se na conquista de políticas públicas para a sua base, no entanto, a produção sempre foi o principal foco da sua meta síntese: o Plano camponês. O avanço de alternativas concretas para o fortalecimento do campesinato ganhou notoriedade no Brasil e além-fronteira, e, em consequência, desde 2011 a organização está envolvida em projetos internacionais. O primeiro, um acordo técnico-comercial firmado com o governo da Venezuela para a exportação de sementes varietais e crioulas e prestação de assistência técnica e política no referido país. O segundo, uma parceria firmada com a União Nacional de Camponeses (UNAC), com o intuito de contribuir com o projeto de recuperação da agricultura tradicional camponesa em Moçambique. E o terceiro é um projeto de recuperação de sementes conduzido junto à “Coordinadora Nacional de Organizaciones de Mujeres Trabajadoras Rurales e Indígenas" (CONAMURI) no Paraguai. Diferentemente do Movimento dos Trabalhadores Sem terra (MST), o MPA é um movimento pouco estudado. Além do nosso trabalho e de obras de autoria de intelectuais do próprio movimento, temos ciência de apenas duas outras pesquisas acadêmicas sobre a 21

organização: uma dissertação de mestrado defendida no curso de Pedagogia da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI), em 2004, por Célio Valdemar Cadoná. E uma tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em 2011, por Maria Cândida de Oliveira Costa, à qual não tivemos acesso. A importância adquirida pela Soberania Alimentar e pelo MPA e os poucos estudos acadêmicos realizados sobre ambas as questões justificam a relevância da nossa pesquisa. Soma-se a esse quadro, a carência de estudos sobre movimentos sociais e produção de conhecimento que levantam questões de ordem epistêmica e os poucos centros de pesquisa que estimulam essa produção. No Brasil e na América Latina, os focos desse debate têm sido nos processos de formação dos movimentos sociais, tantos os formais como os informais; nas relações entre os movimentos sociais, as universidades, as instituições e os intelectuais profissionais, e na problematização dos modelos de extensão e de assistência técnica. A nível de América atina, destaca-se a produção do grupo de trabalho “Educación, trabajo y exclusión social” coordenado pelos pesquisadores Pablo Gentili e Gaudêncio Frigotto, no Conselho Latino Americano (Clacso). E, no Brasil, deve-se reconhecer a emergência de um movimento contra-hegemônico, a partir de dentro das instituições, com destaque para: o Núcleo de Solidariedade Técnica (SOLTEC/UFRJ), o , a Escola de Serviço Social (CFCH/UFRJ), a Escola Politécnica Joaquim Venâncio Flores (ESPJV/Fiocruz), a Escola Nacional de Saúde Pública (ESNP/Fiocruz), o Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais (Ippri) da Unesp, o Instituto de Pesquisas e Planejamento Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUUR/UFRJ) e a Articulação Universidade e Movimentos Sociais, da qual faço parte. A articulação “Universidade e Movimentos Sociais” foi criada por iniciativa de um grupo de jovens pesquisadores egressos do IPPUR-UFRJ. “Esse trabalho consolidou-se em algumas atividades conjuntas como sessões de apresentação do tema em simpósios, seminários e congressos (na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, na Universidade Federal Fluminense e no congresso da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional), além de oficinas de discussão, realizadas na Fiocruz” (BRINGEL, 2012a). O grupo originário ampliou-se e deu origem ao projeto “Movimentos Sociais e Universidades no Rio de janeiro” (2013-2014) — financiado pela Faperj e coordenado pelo Prof. Dr. Breno Bringel do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP UERJ) —, que congregou pesquisadores de diferentes universidades do Rio de janeiro, das 22

Ciências Sociais e do Direito, na elaboração de estudos e pesquisas-ação acerca da relação entre a universidade e os movimentos sociais. Essa primeira etapa do projeto formal chegou a termo com a organização de um evento internacional, quando mais pesquisadores do Brasil e de outros países da América latina e da Europa uniram-se aos do Rio de Janeiro e criaram a articulação Universidade e Movimentos Sociais. A nossa tese, desenvolvida no programa de pós-graduação em Sociologia do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) sob a orientação do Prof. Dr. Breno Bringel, pretende contribuir para esse debate, a partir de uma investigação sobre “Movimentos Sociais como Produtores de Conhecimento: a Soberania Alimentar no Movimento de Pequenos Agricultores”.

Da Postura Epistêmica à Dimensão Metodológica

A adoção de uma leitura cognitiva dos movimentos sociais possui implicações teóricas e metodológicas. O avanço da ciência se dá mediante uma relação dialética entre teoria e empiria e o pesquisador “deve ser capaz de mobilizar um máximo de conhecimentos, criticálos, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e imaginação” (NETTO, 2009, p.10). O que implica na mobilização de instrumentos e técnicas de pesquisa os mais variados, que são os instrumentos e os meios “de que se vale o pesquisador para “apoderar-se da matéria” e que não devem ser confundidos com o método, porque “instrumentos similares podem servir (e de fato servem), [...] a concepções metodológicas diferentes” (IBID)”. Tendo isso como pressuposto, adotamos o pluralismo metodológico, por concordar com Klandermans e Staggenborg (2002), Melucci (1996), entre outros, que essa é a melhor estratégia para a superação de velhas dicotomias, como: micro e macro, e local e global e, assim, avançar na compreensão sobre movimentos sociais. De fato, Snow e Trom (2002) recomendam o recurso a uma metodologia plural para os estudos de caso, porque permite a realização de uma análise holista que dê conta da complexidade de fenômenos: histórica, social e localmente situados, como são os “sistemas culturais de ação”. De acordo com essa proposta, a metodologia deve ser adequada a pesquisas qualitativas, porque os objetos de análise são as ações, os eventos e os processos sociais, e os gráficos e tabelas estatísticos e numéricos, quando incorporados ao trabalho, têm função complementar (IBID). Eyerman e Jamison (1991) propõem a realização de uma pesquisa de viés histórico, que busque recuperar as principais influências teóricas, ideológicas e políticas que 23

impactaram o movimento e influenciaram na sua conformação, porque a análise do material cognitivo dos movimentos sociais pode revelar aspectos sobre a origem do seu pensamento, da sua ideologia e reconstruir a sua trajetória. Esse percurso está registrado em discursos textuais e imagéticos, o que justifica a sua eleição como importante fonte de pesquisa e a análise de discurso como metodologia de pesquisa. Mas não elimina a necessidade de realização de uma pesquisa de campo de viés etnográfico, se a intenção for acessar a dinâmica dos processos através dos quais o conhecimento é gerado, mobilizado e modificado pelos movimentos sociais. Isso porque essa metodologia permite acompanhar a produção de conhecimento em processo de construção, seja em nível local ou global, e favorece a identificação de aspectos de ordem subjetiva e emotiva que escapam aos registros documentais. Como metodologia de pesquisa para a análise de movimentos sociais entendidos como “espaços de conhecimento-prático”, Casas-Cortés, Osterweil e Powell (2008) propõem a realização de pesquisas empíricas situadas, em que o pesquisador constrói a sua análise em diálogo com as autorreflexões do seu sujeito-objeto. A sua proposta é o pesquisador abrir mão de suas próprias referências categóricas e culturais, para entender a agência humana em mundos culturalmente diversos. Ao promover o objeto a sujeito, confere-se validade ao conhecimento do outro sobre si mesmo e busca-se entender a sua práxis cognitiva nos seus próprios termos (IBID. p. 21). O estudo de movimentos sociais como “espaços de conhecimento-prático” implica no questionamento da distinção entre sujeito e objeto e no estabelecimento de uma relação tendencialmente horizontal entre pesquisador e pesquisado, porque parte do suposto que as análises realizadas pelo movimento social sobre si mesmo, assim como as suas teorias, conceitos e processos são dignas de credibilidade. Essa proposta tem, ainda, a vantagem de permitir a revelação de aspectos sobre a atuação política do fenômeno em foco, que as perspectivas que buscam na empiria a confirmação de processos pré-diagnosticados não têm condição de enxergar, porque a predeterminação implica na cegueira em relação ao que há de verdadeiramente novo na práxis dos movimentos sociais. Nas palavras dos autores: We believe that the commitment to a priori models, categories, and frameworks such as “political opportunities” or “resource mobilizations” not only obscures the meaning making and cultural aspects of social movements, but is ultimately tautological. Its redundancy lies in leading the researcher to always find what s/he is

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looking for, regardless of the analytical utility of the models they are using (CASAS-CORTÉS, OSTERWEIL e POWELL, 2008. p. 24). Esta crítica aplica-se às perspectivas de viés racionalista instrumental — claramente limitadas em seu alcance, porque o Interesse é a chave explicativa para toda e qualquer mobilização social — e, também, às perspectivas de viés construtivista ou culturalista que tratam a cultura como a variável independente que explica a ação social. Conforme evidenciado pelos autores, cultura, identidade e crença têm validade por si só e não apenas como recursos motivacionais à mobilização social. A adoção da perspectiva sugerida pelos autores implica em que a pesquisa deixe de ser movida pela confirmação de categorias teóricas e pela identificação de conexões causais e passe a ser mobilizada pelo interesse na revelação da produção reflexiva do sujeito coletivo em foco, percebida como um processo social de produção de conhecimento. A parte empírica dessa tese está embasada em documentos primários e secundários e em uma pesquisa de campo, de viés etnográfico, realizada em quatro momentos principais. Entre 2009 e 2010, no Rio de Janeiro, quando me coube orientar um grupo de educandos formado por todos os militantes do MPA inscritos no curso Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo (IPPUR-UFRJ). O III Encontro Nacional do MPA realizado em abril de 2010, em Vitória da Conquista, do qual participei, como membro convidado, na equipe de sistematização. Um estágio de quarenta dias junto ao MPA (SC), no extremo oeste de santa Catarina em 2011. E, por fim, em um período de duas semanas em 2012, quando participei do 3º Seminário Nacional de Formação Camponesa e da 5a FENAMIC realizados em Anchieta (SC) e tive a oportunidade de me agregar a uma caravana com destino ao Centro de Produção e Formação Camponesa São Francisco de Assis: uma escola de formação criada pelo MPA (SC) em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul. Desde a escolha do objeto, esse é um estudo comprometido com um projeto de emancipação social e essa premissa também influenciou a escolha das metodologias e das ferramentas de pesquisa e análise. A partir de critérios sugeridos pela Antropologia do Conhecimento (CASA-CORTÉS, 2009; CASAS-CORTÉS, OSTERWEIL e POWELL, 2008), realizei uma pesquisa de campo, de viés etnográfico, na qual procurei estabelecer uma relação horizontal com os sujeitos pesquisados, a partir da valorização das suas experiências, conhecimentos e análises e da exposição das minhas vivências e ideias à sua crítica. Durante esse processo, eu pude constatar que essa opção metodológica, ao invés de prejudicar o critério analítico do trabalho, contribuiu para a consolidação de um vínculo de 25

confiança entre eu e os meus informantes. O que, conforme Foote Whyte (1943), Wacquant (2002), entre outros antropólogos, é condição básica para a realização de uma boa etnografia. Essa postura também contribuiu para que eu não fosse estigmatizada e resumida ao meu papel de pesquisadora e fosse convidada para eventos familiares e sociais. E o que as conversas informais e a participação nesses episódios revelaram-me foram tão ou mais importantes do que o conteúdo das inúmeras entrevistas realizadas ao longo desse período. Foote Whyte explica que: A observação participante implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso de todos os sentidos. É preciso aprender quando perguntar e quando não perguntar, assim como que perguntas fazer na hora certa (p. 303). As entrevistas formais são muitas vezes desnecessárias (p. 304), devendo a coleta de informações não se restringir a isso. Com o tempo os dados podem vir ao pesquisador sem que ele faça qualquer esforço para obtê-los (VALLADARES, 2007. P. 154). A opção pela participação-observante (ou observação-participante), como meio de pesquisa, induziu-me a não agir apenas como observadora e a contribuir com o movimento, no que fosse possível e desejável. E, em razão da minha disponibilidade nos quarenta dias que duraram o meu estágio de vivência com o MPA (SC), além de acompanhar o cotidiano do movimento, eu atuei como designer e tradutora de textos para o inglês e contribuí com a ornamentação e a organização da festa de lançamento da 5ª FENAMIC. E ter assumido essas responsabilidades permitiu que eu desenvolvesse uma compreensão mais profunda do significado desse projeto para o MPA, pois eu mesma estava implicada no processo. Desde o início, o estabelecimento de uma relação próxima com o MPA deveu-se ao meu compromisso com a “pesquisa militante4”, porque foi a minha atuação como professoraorientadora no curso de extensão/especialização “Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo”, construído pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) em parceria com o laboratório Ettern do Instituto de Pesquisas e Planejamento Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUUR/UFRJ) que me oportunizou a construção desses laços. Nessa edição, que durou de 2009 a 2010, eu fiquei incumbida de orientar o grupo de educandos militantes do MPA, que pretendia desenvolver um projeto coletivo sobre Soberania Energética: uma noção derivada da Soberania Alimentar. Entre os meus orientandos estava o dirigente do MPA Nacional e do MPA (PR), Valter Israel DA SILVA, V., 4

Pesquisa militante entendida como “um espaço amplo de produção de conhecimento orientado para a ação transformadora, que articula ativamente pesquisadores, comunidades organizadas, movimentos sociais e organizações políticas” (BRINGEL e VARELLA, 2014).

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que me convidou para participar do III Encontro Nacional do movimento realizado em 2010 em Vitória da Conquista na Bahia. E essa foi a minha primeira oportunidade de convivência mais próxima com a base e a militância do MPA. O Encontro realizou-se entre os dias 12 e 16 de abril de 2010, mas a minha saga teve início dias antes, em Belo Horizonte, quando me agreguei à caravana do MPA vinda do Paraná, para seguir de ônibus com eles até o destino final. Em Vitória da Conquista, eu fiquei acampada com essa regional no estádio onde se realizou o encontro e como vários dos meus orientandos do curso Energia e Sociedade estavam presentes, eu transitei pelas outras regionais e pude me relacionar e trocar ideias com militantes vindos de outros rincões do Brasil. A relação construída com Valter, durante as etapas do curso Energia e Sociedade no Rio de Janeiro, foi consolidada em Vitória da Conquista e mantida, à distância, por e-mail e através das redes sociais e do skype. E ter estabelecido esses laços de confiança foi condição básica para a realização da etapa seguinte do meu trabalho de campo, quando passei quarenta dias no extremo oeste de Santa Catarina acompanhando a atuação política do MPA (SC), o cotidiano de sua militância e base, e o projeto de resgate de sementes crioulas, conduzido pelo MPA/Oestebio na região, justifica a escolha desse destino. Durante esse período, eu morei na casa de apoio do MPA em São Miguel do Oeste e me integrei à rotina da organização. Acompanhei os técnicos da Oestebio a campo, participei de reuniões políticas e de protestos e fui convidada para festas e confraternizações organizadas pelo movimento e a sua base. Essas oportunidades me permitiram conviver com dirigentes, militantes e técnicos vinculados ao MPA, políticos e religiosos locais, militantes e dirigentes do MMC e do MST, e com as famílias camponesas que formam a base do movimento. Em abril de 2012, retornei a Anchieta para participar da 5ª FENAMIC propriamente dita e conferi que o meu status de “professora” já havia dado lugar ao de “colaboradora”. Nessa ocasião, eu auxiliei o MPA no processo de inscrição dos participantes e na elaboração de uma denúncia contra a liberação de sementes transgênicas de feijão resistentes ao veneno 2,4-D, pela CTNBIO, que foi veiculada pelo MPA, pela CLOC e pela Rádio Mundo Real que estava cobrindo o evento. Na sequência, eu tive oportunidade de me agregar a uma caravana formada por membros internacionais da Via Campesina e um grupo de jovens estudantes de agroecologia do Mato Grosso, que estava a caminho do Centro de Produção e Formação Camponesa São Francisco de Assis, uma iniciativa criada pelo MPA (SC) em Santa Cruz do Sul no Rio Grande do Sul. Os internacionais iam conhecer as experiências conduzidas pelo 27

MPA nesse centro, e os jovens participar de um curso de formação política, que incluía visitas a essas experiências e a outras, em uma região próxima a Porto Alegre. Após 2012, eu não tive mais oportunidade de ir a eventos organizados pelo MPA fora do Rio de Janeiro, mas mantive-me conectada com os dirigentes e militantes que conheci, à distância, por e-mail e através das redes sociais. E construí uma relação próxima com Humberto Ribeiro, o dirigente responsável pela construção do MPA nesse estado. A documentação primária na qual baseei essa pesquisa tem natureza textual e imagética e consta de um vasto material produzido pelo MPA e por seus intelectuais, dirigentes e militantes, além de artigos jornalísticos e de documentos publicados pela Via Campesina, pelo MST, pelo MMC, por organizações estatais e internacionais e por ONGs com as quais esses movimentos mantêm relações. Este material é constituído por: análises de conjuntura, artigos teóricos, trabalhos de conclusão de curso (TCC), manuais técnicos e políticos, relatos históricos, relatórios técnicos, panfletos, matérias de jornal, notícias e matérias publicadas nos websites dessas organizações, vídeos e fotografias. Além desse material, para a pesquisa sobre o extremo oeste de Santa Catarina, também recorri a obras de autores locais. Na pesquisa de campo, propriamente dita, trabalhei com notas de campo, com fotografias e com a realização de entrevistas abertas e semiestruturadas registradas em áudio e em audiovisual. A opção pela realização de entrevistas abertas deveu-se à minha opção por não buscar no campo a confirmação de conexões causais pré-estabelecidas, e permitir que a pesquisa me revelasse aspectos ainda não pensados sobre o processo que me interessava conhecer. Por essa mesma razão, eu não me limitei às informações dadas por dirigentes do MPA e considerei as reflexões de militantes e lideranças de base. Durante a minha estadia em Santa Catarina, o movimento selecionou o grupo de pessoas que eu deveria entrevistar, mas além desses, eu aproveitei todas as oportunidades para dialogar com dirigentes e militantes de outros movimentos sociais, políticos locais e a base do movimento. O recurso ao material audiovisual foi por influência da Antropologia Visual (PEIXOTO, 1995; LATOUR, E. 1996), porque, conforme bem colocado por Clarice Peixoto (1995, p. 98): “a imagem captada espontaneamente pode traduzir uma situação que não se reproduz uma segunda vez; é o momento assim captado que dá conta da realidade: o filme e o vídeo etnográfico trazem o “algo mais” que a observação a olho nu muitas vezes não percebe ou deixa escapar”, e a gravação em áudio não tem condição da captar em toda a plenitude, porque o som não registra os olhares e os gestos que, muitas vezes, revelam mais do que as palavras. 28

As fotografias e as imagens em movimento por mim produzidas, além de recuperarem emoções e outros valores intangíveis, também foram recursos fundamentais para reavivar a memória desses momentos vividos entre 2010 e 2012, no momento de redação da tese. Para a análise do material textual e imagético recorremos à Análise de Discurso Crítica (ADC) desenvolvida por Fairclough (2004), por ser uma ferramenta de pesquisa pautada por princípios éticos e políticos e comprometida com a pesquisa crítica emancipatória. A ADC busca revelar relações de poder na sociedade, a partir da análise de ordens de discurso, com base na crença que o discurso hegemônico sustenta relações de dominação ao legitimar o senso comum sobre determinada questão (RESENDE, 2009). A ADC é uma teoria do discurso dialética e de viés realista crítico, que busca revelar relações de poder na sociedade, a partir da análise de ordens de discurso, com base na crença que o discurso hegemônico sustenta relações de dominação ao legitimar o senso comum sobre determinada questão. Em termos metodológicos, propõe uma abordagem transdisciplinar, que exponha as relações entre processos de mudança social e mudanças no discurso, e relações entre mudanças no discurso e mudanças em outras instâncias não discursivas da vida social. De acordo com Resende (2009, p. 15), a análise das práticas sociais permite conectar a análise das estruturas sociais à análise da (inter)ação, superando a já amplamente questionada divisão entre teorias da estrutura e teorias da ação. No sentido dado pela Análise de Discurso Crítica, o discurso é uma prática social que, quando operacionalizada em eventos sociais, influencia e é influenciada por outras práticas sociais. Os eventos sociais são descritos como relações dialéticas entre diferentes elementos sociais: atividades; relações sociais; objetos e instrumentos; tempo e lugar; sujeitos sociais com suas crenças, conhecimentos e valores e elementos semióticos, que se internalizam, sem se anular.

Estrutura da tese Essa tese está dividida em cinco capítulos, além das considerações finais. No primeiro capítulo, denominado como “Uma leitura cognitiva e escalar dos movimentos sociais contemporâneos”, desenvolvemos a perspectiva teórica com a qual estamos trabalhando, iniciando com (i) o questionamento dos sentidos e significados atribuídos ao conhecimento na sociedade ocidental moderna e do lugar da ciência nesse processo. (ii) Em seguida, apresentamos uma proposta de abordagem sobre movimentos sociais e produção de conhecimento, a partir do diálogo com pesquisadores que adotam essa perspectiva e com os 29

quais estamos trabalhando. (iii) A seguir, problematizamos o conceito de redes sociais mediante a incorporação de aportes trazidos da Análise de redes, das Relações Internacionais, da Sociologia de Movimentos Sociais e da Geografia, que contribui com a dimensão espacial e o conceito de território. (iv) Ao fim, apresentamos uma proposta de abordagem cognitiva e epistêmica de movimentos sociais, a partir da investigação das “Dinâmicas constitutivas da produção de conhecimento”, uma proposição teórica construída em diálogo com a empiria e que, embora ainda em fase de elaboração, apoiou a análise do nosso trabalho. O segundo capítulo: “A Soberania Alimentar como objeto, surgimento, usos e sentidos” está dividido em três partes. Nele, debruçamo-nos sobre a Soberania Alimentar em seu viés como objeto e analisamos o seu surgimento, usos e sentidos a ela atribuídos. (i) Na primeira parte, nominada como Geopolítica da fome e da alimentação, problematizamos o contexto que motivou a criação do conceito político, qual seja, o sistema agroalimentar neoliberal em vigência desde a falência do sistema de Bretton Woods. (ii) Na sequencia, enfocamos as tensões constituintes da Soberania Alimentar, uma trajetória que se inicia pela desconstrução do seu mito de origem e segue com a análise do embate conceitual entre Soberania Alimentar e Segurança Alimentar, evidenciando o efeito mutuamente constitutivo deste confronto. (iii) Seguimos com a exploração dos usos e significados atribuídos à Soberania Alimentar mais relevantes para essa tese, levando em consideração os distintos contextos níveis e escalas de ação em que atuam os sujeitos que os constroem. No terceiro capítulo, “Os sujeitos da Soberania Alimentar: da Via Campesina Internacional ao Movimento dos Pequenos Agricultores”, o foco recai sobre os sujeitos que constroem a Soberania Alimentar em todos os níveis e escalas de ação. (i) Iniciamos com a investigação da Via Campesina, abordada em seus vieses como ator, como rede estratégica e como arena de ação, a partir da investigação de aspectos relativos ao seu surgimento e processo de consolidação, com especial ênfase às suas ações no marco da Soberania Alimentar. (ii) Seguimos transferindo o foco para as redes transnacionais táticas construídas entre a rede transnacional de movimentos sociais e outros atores seus parceiros no processo de construção da Soberania Alimentar. (IV) Damos sequencia, transferindo o olhar do transnacional para o nacional, focalizando a Via Campesina Brasil e enfatizando o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), porque, apesar da relevância do Movimento dos Trabalhadores Sem terra (MST) no conjunto da rede transnacional de movimentos sociais, foram as ações dessas mulheres que tornaram a Via Campesina conhecida no Brasil. (v) Terminamos o capítulo apresentando o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), eleito como sujeito-objeto privilegiado dessa pesquisa, razão pela qual a sua análise é mais 30

detalhada do que a das outras organizações. Começamos o estudo do MPA, pela desconstrução do seu mito de origem e a investigação das razões que motivaram a sua criação, seguimos com a sua organicidade, a sua composição por gênero e geração e terminamos com um breve histórico do seu processo de consolidação, de 1996 até o presente momento. No quarto capítulo, propomo-nos à investigação da “Produção de conhecimento no MPA”. E, influenciados por Eyerman e Jamison (1991), segundo quem, a trajetória cognitiva de um movimento social pode revelar aspectos fundamentais sobre a construção da sua subjetividade coletiva, a qual, está diretamente relacionada à sua práxis cognitiva. Seguimos a sugestão dos teóricos e procedemos à investigação das principais influências teóricas e ideológicas no processo de formação do MPA e os padrões de relação estabelecidos com os diferentes atores. (i) Iniciamos com a problematização do lugar da teoria e da ideologia na ação política e evidenciamos o papel da Igreja e dos intelectuais profissionais no processo de formação dos movimentos sociais rurais no Brasil, pós-ditadura militar. (ii) Seguimos colocando o foco no MPA: na sua perspectiva sobre Formação e nos seus espaços de formação política. (iii) Continuamos com a investigação do trabalho de base, da cultura camponesa e da formação camponesa, reconhecidos como dimensões constitutivas da Soberania Alimentar na prática do MPA, onde o campesinato tem lugar de destaque como teoria e prática produtiva e a Agroecologia como tema e objeto central de diálogo entre o profissional e o popular. No quinto e ultimo capítulo, denominado como “A construção da soberania alimentar no MPA”, seguimos a sugestão de Casas-cortés, Osterweil e Powell (2008) e empreendemos uma pesquisa empírica de viés etnográfico, na intenção de capturar aspectos da construção de conhecimento em processo. Para tanto, deslocamo-nos para o extremo oeste de Santa Catarina para acompanhar o projeto de resgate e massificação de sementes, aí, realizado pelo MPA. (i) De início, situamos o local onde foi realizada a pesquisa, evidenciando a importância do lugar no processo constitutivo da Soberania Alimentar. (ii) Seguimos com uma recuperação histórica do processo de resgate de sementes crioulas na região, desde antes do MPA, destacando os principais atores que mobilizaram esse processo, com especial ênfase nas suas relações com os camponeses e os movimentos rurais locais. (iii) Na sequencia, o nosso interesse repousa na “Produção de sementes, produção de conhecimento”, iniciando com uma análise sobre a Festa Nacional de Sementes Crioulas (FENAMIC): uma comemoração que surgiu em âmbito local e transformou-se no principal evento transnacional da Via campesina Brasil, nos marcos da Soberania Alimentar, na sequencia investigamos diferentes aspectos do 31

trabalho de resgate de sementes e de produção de conhecimento realizado pelo MPA na região. (iv) E finalizamos com a ponte entre o local e o global, mediante a investigação do processo de transnacionalização do MPA, mediante a análise de três experiências em curso no Paraguai, na Venezuela e em Moçambique.

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1. UMA LEITURA COGNITIVA DOS MOVIMENTOS SOCIAIS CONTEMPORÂNEOS

Defendemos nesta tese que a Soberania Alimentar corresponde a um programa social de conhecimento contextual, situado e plural. Como teoria, a Soberania Alimentar não é neutra, porque é regida pelos valores sociais camponeses e por um critério de “Economia Moral” (EDELMAN, 2005) e, em seu viés prático, desenvolve-se por meio do diálogo entre o conhecimento tradicional, a ciência e a Agroecologia e é validada na prática. A partir dessas considerações, propomo-nos a investigar a Soberania Alimentar, percebida como uma forma de conhecimento-prático que vem sendo desenvolvida pela Via Campesina e as suas organizações constituintes, em interação com os seus parceiros e opositores, em relação a diferentes contextos de ação, nas escalas global, regional, nacional e local. Isso nos leva a reiterar nossa hipótese, de acordo com a qual, através de sua atuação prática e discursiva, os movimentos sociais rurais contemporâneos estão travando uma luta que, além de política e cultural, é também cognitiva e epistêmica. Nesta batalha, a Soberania Alimentar aparece com enorme centralidade no campo de disputa político por modelos de desenvolvimento, tendo em vista que coloca em cheque os fundamentos que sustentam a produção e reprodução do capitalismo. Defender uma leitura cognitiva epistêmica dos movimentos sociais exige mobilizar conceitos, teorias e quadros interpretativos diversos. Buscamos neste capítulo teóricometodológico colocar a Sociologia dos Movimentos Sociais em diálogo com alguns aportes da Teoria Social, da Filosofia da Ciência, das Relações Internacionais, da Antropologia do Conhecimento e da Sociologia dos Movimentos Sociais. O estabelecimento desse diálogo interdisciplinar, decerto parcial, não é simples, mas nos parece fundamental para avançar na discussão teórica sobre os movimentos sociais contemporâneos, para além de sua concepção como organizações muito delimitadas (social e territorialmente) ou como atores cristalizados em um positivo científico que impede captar suas subjetividades, elaborações e vivências. Para organizar a nossa reflexão e justificar essa necessidade, estruturamos o capítulo em eixos temáticos definidos pelos principais temas e questões com os quais estamos trabalhando. A nossa proposta não foi revisar toda a literatura pertinente a cada assunto (por exemplo, as teorias dos movimentos sociais de forma geral), mas selecioná-la de acordo com o sentido que tem para a realização desse trabalho. Traçando um fio condutor que conduza o leitor ao entendimento da nossa proposta teórica e analítica, iniciamos essa trajetória com: (i) uma problematização da noção de conhecimento e o questionamento do lugar e do papel 33

atribuídos à ciência em nossa sociedade; (ii) damos sequência com uma leitura teórica sobre Movimentos Sociais e Produção de Conhecimento; (iii) em seguida, introduzimos o debate sobre Territórios, Redes e Escalas em sua relação com as ações e práticas dos movimentos sociais contemporâneos; (iv) defendemos a importância de uma olhar analítico sobre três dinâmicas mobilizadoras da produção social de conhecimento: Diálogo, Tradução e Ação Estratégica; (v) e, finalmente, concluímos o capítulo com nossa proposta metodológica, construída de tal forma que permita captar o enfoque cognitivo e epistêmico proposto na tese.

1.1. Conhecimento para além da racionalidade científica

Parte-se do pressuposto que a ciência racional, embora naturalizada para parecer a única opção possível, é uma construção moderna onde o cientificismo substitui a religião na legitimação do conhecimento, instituindo novas relações de poder que eliminam outras formas de racionalidade e saberes do universo de possibilidades, em favor da imposição de um modelo de sociedade: o capitalismo. A opressão cultural e epistêmica não é novidade e foi uma das principais estratégias, moderna e colonialista, para garantir o poder sobre os povos colonizados e os subalternos. E, conforme reconhecido por Sousa Santos (2002), o colonialismo enquanto projeto político findou com a independência das colônias, mas o Colonialismo enquanto projeto social continua operante nas periferias, tanto das ex-colônias como dos países centrais, por meio de estratégias de opressão epistêmico-cultural (algo que os diversos autores vinculados ao pensamento pós-descolonial latino-americano definiram como colonialidade). A cientificidade tornou-se dogma e substituiu a religiosidade como parâmetro de legitimidade dos sentidos e significados atribuídos a questões chaves para a sociedade, como a Agricultura e tudo o que a envolve. Por conseguinte, a disputa é de ordem cultural, mesmo quando envolve o acesso e o direito aos meios de produção, como no caso dos movimentos camponeses, porque estão em cheque saberes, modos de vida e formas de reprodução social. Por meio da transformação de todas as formas de vida em mercadoria, o capitalismo cria novas formas de "acumulação por espoliação" (HARVEY, 2004) e, no domínio do rural, o advento da agricultura transgênica marca uma revolução na forma de produção e reprodução de alimentos e altera drasticamente a realidade de agricultores e camponeses do mundo inteiro, porque a semente, até então um bem natural, torna-se um código informacional e privado, cujo uso e reprodução estão sujeitos à cobrança de royalty. Conforme Sousa Santos: 34

A informação torna-se crucial a partir do momento em que a dimensão virtual da realidade começa a ser mais importante do ponto de vista econômico e tecnocientífico do que a sua dimensão atual. A lógica que preside a conduta da tecnociência e do capital com relação a seres vivos é a mesma que se explicita em toda parte: trata-se de privilegiar o virtual, e de preparar o futuro para que ele já chegue apropriado, trata-se de um saque no futuro e do futuro (SOUSA SANTOS apud LEITE, 2006, p.203). Além de colocar em perigo a segurança alimentar do planeta, este padrão de agricultura ameaça a cultura dos povos e a biodiversidade agrícola global, pois as sementes crioulas e tradicionais, que são o principal repositório do saber histórico e tradicional camponês, ficam ameaçadas de extinção. Nesse contexto, as universidades, os institutos de pesquisa, as comissões técnicas, as publicações científicas, as organizações, os editoriais de economia e a grande mídia são espaços privilegiados de legitimação da ideologia dominante, e os movimentos sociais encarnam um poder contra-hegemônico fundamental nessa batalha por corações e mentes, porque o seu lugar subalterno na sociedade obriga-os a desenvolverem “conhecimentoprático” (CASAS, CORTÉS, OSTERWEIL e POWELL, 2008) geralmente à margem das instituições.

Por outro lado,

sua não institucionalização (MELUCCI, 1996) ou

institucionalização frouxa (BORRAS, 2004) permite que ajam reflexiva e criativamente em relação aos constrangimentos sistêmicos, por meio da reinterpretação de velhos problemas e da problematização de questões até então naturalizadas. E esta mesma característica propicia que, através da sua práxis cognitiva, desenvolvam ideias e visões de mundo alternativas; as quais, apenas em um segundo momento, serão capturadas, sistematizadas e resignificadas nos espaços institucionais de produção de conhecimento 5 (EYERMAN E JAMISON, 1991). No contexto da ciência hegemônica, os saberes tradicionais, indígenas, camponeses, orientais e todos os que se desenvolveram apoiados por valores não modernos são considerados não científicos, independentemente do seu valor cognitivo. Isso porque a ciência moderna confundiu o valor social do controle com o valor cognitivo, ao transformar o primeiro no principal critério de validação do conhecimento, com enorme prejuízo para a pluralidade cientifica, porque nega direito de existência a qualquer forma de conhecimento

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Cabe, no entanto, notar, como fizeram Bringel e Echart (2010), que, dependendo da sua capacidade de organização, formulação, autonomia e (des)vinculação aos atores hegemônicos (como os partidos, a mídia e as grandes organizações), os movimentos sociais podem tanto gerar agendas e conhecimentos próprios, como reproduzir a agenda e formas de produção conhecimento hegemônica.

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que não atenda a esse parâmetro, independentemente de sua eficácia contextual (LACEY, 2008). A partir da Filosofia da Ciência, Lacey (1999) afirma que a ciência não é neutra como quer parecer, pois, desde o advento da Modernidade, adota o princípio de controle sobre a natureza, como valor de base, e é norteada por um conjunto específico de estratégias, as estratégias materialistas, subdivididas em três subteses hierárquica e logicamente interligadas: a objetividade, a neutralidade e a autonomia. A integridade da ciência dependeria desta refletir esses três valores, o que nunca ocorreu de fato, pois a ciência moderna sempre foi regida pelo valor do controle sobre a natureza (LACEY, 2008). E o conhecimento considerado científico é abstrato e tem validade universal, de forma que os fenômenos são abstraídos de sua inserção na experiência humana e nas atividades práticas e desconsiderados os seus valores morais e sociais. Destarte, a neutralidade científica é uma falácia que opera como instrumento político e ideológico a serviço dos interesses dominantes, porque exclui do universo de possibilidades qualquer forma de conhecimento alternativa. A proposta de Lacey (1999) é garantir a pluralidade científica, a partir da adoção do critério de objetividade em substituição ao critério materialista do controle, porque essa é a condição básica para que uma “ciência engajada” — regida por valores sociais e morais e comprovada na prática, como a agroecologia e a agricultura camponesa — tenha direito a existência e possa ser testada e validada pelas instituições que legitimam a ciência e determinam os critérios de modelos de desenvolvimento ou, no mínimo, o desenho de políticas públicas. Como resposta a esse dilema, Sousa Santos (2005) propõe a edificação de uma “epistemologia do Sul” que garanta direito de existência a todos os saberes, ao reconhecê-los, todos, como intrinsecamente válidos. Mobilizada pelo “diálogo de práticas e saberes” entre o conhecimento científico e o tradicional e entre culturas, de acordo com esta proposição, todo saber é ignorante de outro saber e a validação do conhecimento é relativa e dependente do contexto. O sociólogo português procede a uma crítica à noção de razão ocidental, a “Razão Indolente”, legitimada pela ciência e percebida pelo senso comum como a única conceituação possível, evidenciando que, antes de ser universal como propagado, a racionalidade ocidental reflete uma visão de mundo limitada e limitante: a modernidade. Essa é apenas uma dentre as muitas formas possíveis de racionalidade e a sua normatização e homogeneização foi e continua sendo uma estratégia de poder a serviço dos interesses colonialista e capitalista. Conforme Sousa Santos:

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Para combater o desperdício da experiência social, não basta propor um outro tipo de ciência social. Mais do que isso, é necessário propor um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante pelo menos durante duzentos anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito. (SOUSA SANTOS, 2002. p. 238). A razão indolente subjaz no pensamento científico ocidental sob quatro diferentes formas: a razão impotente, a razão arrogante, a razão metonímica e a razão proléptica (SOUSA SANTOS, 2002, p. 239-240). Como parte das estratégias que garantiram a expansão do capitalismo, a razão metonímica e a razão proléptica promoveram a homogenia para garantir a hegemonia. A primeira reduziu a multiplicidade de mundos ao mundo terreno e a segunda subjugou a multiplicidade de tempos ao tempo linear. Juntas desqualificaram quaisquer outras visões de mundo concorrentes como atrasadas ou místicas, relegando-as à condição de impossibilidade. “A razão metonímica não é capaz de aceitar que a compreensão do mundo é muito mais do que a compreensão ocidental do mundo” porque, pelos seus desígnios, só tem direito a existir aquilo que é parte contida na sua concepção de totalidade dicotômica. Subjacente a esta lógica está, por exemplo, o entendimento de cultura em oposição à natureza e de conhecimento científico em contraposição a conhecimento tradicional. A reação consiste em criar condições para que noções alternativas construídas no seio de outras culturas tenham sentido, significado e relevância per si e não em relação ao pensamento ocidental, resgatando a condição de totalidade da compreensão do mundo. A partir de uma perspectiva feminista, Haraway (1998) também prega o pluralismo científico e considera o ideal de universalidade uma falácia que mascara uma relação de poder, em que os valores ocidentais, machistas e capitalistas foram naturalizados para equivalerem à verdade. A teórica reconhece o valor do conhecimento coletivo teórico e prático gerado no cotidiano do mundo da vida e propõe a adoção de uma perspectiva parcial, com base em uma "política de localização e de implicação", em que se assuma o território concreto do qual se fala, se atua e se investiga e cujo sujeito do conhecimento, ao invés de abstrato, tem um corpo e está inserido em uma estrutura social concreta. O conhecimento subalterno denuncia a falácia da neutralidade da ciência na prática, demonstrando que a pluralidade científica só pode ser atingida, quando a sua referência ideal é outro padrão de objetividade: encarnado e contextualizado. E, em substituição à objetividade embasada pela racionalidade instrumental, que sustenta as relações de 37

dominação, a epistemologia feminista sugere uma “objetividade como racionalidade posicionada” (HARAWAY, 1988. p. 590). Um valor que serve para as relações entre humanos e não humanos, e entre humanos e eles mesmos, pois Haraway (1988, p. 592) afirma que um conhecimento situado deve tratar o seu objeto como ator e agente, levando em consideração não apenas as pessoas, mas também a natureza. Esta assertiva remete-nos a Latour (1997) e à sua proposta de ator-rede, de acordo com a qual, a sociedade é composta por entes humanos e não humanos. Em diálogo com muitos aportes da sociologia da ciência, Latour dá voz às coisas inanimadas e mostra como, sem elas, o sistema moderno simplesmente não funciona e nos leva a refletir que, em verdade, foi a Modernidade quem negou à natureza o seu status de sujeito, ao supervalorizar a cultura, mediante uma racionalidade instrumental que limita o mundo natural (e social) a uma fonte de recursos a serem controlados e explorados ao limite. Em seu viés como “conhecimento-prático”, a Soberania Alimentar vem se desenvolvendo a partir do diálogo entre o conhecimento tradicional e a Agroecologia, e conformando um “programa social de conhecimento”, no qual, as sementes além de ícone têm lugar de sujeito, ao terem as suas especificidades e conhecimento acumulado na sua existência material tomados em conta, quando na elaboração e desenvolvimento do projeto. O modelo de agricultura camponesa, assim como a Agroecologia, é regido por valores opostos aos capitalistas, porque adota um ideal de relação social que renega a mais-valia, assim como o ideal moderno de controle, ao “projetar a natureza e a cultura sobre um mesmo plano” (HABERMAS, 1999. p. 76) ou, pelo menos, em um plano de igualdade de direitos à existência.

1.2. Movimentos Sociais e Produção de Conhecimento

Entendemos que o debate pós-colonial e a emergência nas ciências sociais contemporâneas dos debates sobre as “Teorias do Sul” (ROSA, 2014) e a “Sociologia Periférica” (DOMINGUES, 2011) produziram um efeito ambíguo: por um lado, propiciaram um entendimento mais global e descentrado da modernidade, valorizando experiências, vozes e tradições muitas vezes antes marginadas; por outro lado, acabaram se restringindo mais ao plano da denúncia e menos ao campo da criação de novas interpretações teóricas. Os limites das concepções teóricas destes debates, para o entendimento da ciência e da modernidade contemporânea, não é foco deste trabalho e já foi bem assinalado por Domingues (2013). Interessa-nos, no entanto, evidenciar que a abertura epistemológica induzida por estas 38

perspectivas contribuiu para problematizar as tênues fronteiras entre objeto e sujeito, neste campo de estudos (BRINGEL, 2011). Este fator contribuiu para colocar questões abertas há décadas pela sociologia do conhecimento em outro patamar e permite posicionar os movimentos sociais como sujeitos coletivos que, mediante a sua atuação política, disputam material e simbolicamente os significados sociais, gerando, na dinâmica desse processo, conhecimentos específicos e complexos. Em diálogo com as contribuições de Alberto Melucci (1996, 2001), entendemos movimentos sociais mais como um recurso heurístico e uma categoria analítica, do que como um fenômeno empírico delimitado. Esta perspectiva ajuda-nos a entendê-los não como entes substancializados em grupos ou instituições, mas como processos de ação social. Para o sociólogo italiano, movimento social é uma categoria analítica que designa uma forma de ação coletiva específica que envolve, necessariamente, três processos: a mobilização de um ator coletivo (i) definido por solidariedades específicas, (ii) engajado em um conflito com um adversário pela apropriação e pelo controle de recursos válidos para ambos e (iii) cuja ação envolve a quebra dos limites de compatibilidade do sistema no qual a ação tem lugar (MELUCCI, 1996. p. 29-30; 68-83). Melucci (1996, 2001) está preocupado com os sentidos da ação social e a sua perspectiva busca conciliar as dimensões sistêmica e acionalista no estudo da produção da subjetividade individual e coletiva, por meio de uma perspectiva de análise relacional que considera movimentos sociais como “redes de solidariedade com fortes conotações culturais”, porque é nas redes de relações sociais que os indivíduos interagem, influenciam-se mutuamente e negociam os “quadros cognitivos e motivacionais necessários à ação” (MELUCCI, 2001. P. 23). Conforme o teórico, a Identidade Coletiva não é um dado e nem é essencial, é o resultado de trocas, negociações, decisões e conflitos entre atores. “Identidade Coletiva é o processo de construção de um sistema de ação” e envolve, necessariamente, três mecanismos em seu processo de constituição: a definição cognitiva dos fins, meios e campos de ação; a existência de redes ativas de relacionamentos, de comunicação, de influencia e de interação mútua e o investimento emocional necessário para que os membros se sintam parte de uma unidade comum. Movimentos sociais são sistemas de ação porque nas sociedades complexas não se pode pensar em totalidade sistêmica. O que antes era tido como o sistema social está decupado em quatro diferentes sistemas na sociedade: o sistema de produção social, o sistema político, o sistema organizacional e o sistema reprodutivo ou mundo da vida, entre os quais 39

existe uma relação com certo grau de hierarquia, autonomia e dependência, pois os limites e as possibilidades de um sistema são definidos em relação ao outro. E a ação social é definida em relação ao sistema ao qual se dirige, envolvendo sempre uma disputa por recursos a ele pertencentes. Sendo assim, deve-se iniciar o estudo pela investigação do campo do conflito, para somente então explicar como certos grupos sociais atuam sobre ele. Deve haver uma mudança de enfoque e a análise deve começar pela investigação da lógica e dos processos que permitem ao campo sistêmico tanto se reproduzir como mudar. É neste nível de generalidade que as questões e recursos vitais que provocam o conflito devem ser identificados e a especificação dos atores envolvidos tornase uma questão para a pesquisa empírica investigar (MELUCCI, 2001. p. 107). A análise da ação social em sociedades complexas deve, também, examinar as necessidades e as orientações sociais que alimentam o sistema em questão e levar em conta que o acesso diferenciado dos vários grupos e categorias aos recursos sociais simbólicos e cognitivos – como educação formal e as tecnologias de comunicação e informação – acentuam os processos de discriminação e de exclusão social e são uma forma do sistema controlar as tensões e os conflitos potenciais, porque: Quando os indivíduos possuem recursos suficientes para pensarem por eles mesmos como indivíduos e agirem como tal estão aptos a construírem a sua própria identidade como algo que não é dado, e, especialmente, como algo que depende da potencialidade de cada um para ser construído (MELUCCI, 1996. p. 93). E tanto nas sociedades centrais como na periferia do planeta, as novas formas de desigualdade surgem, exatamente, na forma de privação cultural, como, “a destruição de culturas tradicionais, substituídas pela marginalização ou pelo consumo dependente e pela imposição de modelos de vida que não mais provêem os indivíduos com a base cultural para a sua auto-identificação” (MELUCCI, 1996, p.93). E, sob este aspecto, a nova disputa é de ordem cultural, mesmo quando envolve a luta pelo direito aos meios de produção, como no caso da Via Campesina. Em nossa avaliação, teorizar os movimentos sociais como redes de relação, valorizar a dimensão interativa da ação coletiva e propor que a análise da ação social parta do contexto de ação e busque entender a correlação entre a construção da subjetividade individual e coletiva abre espaço para estudarmos os movimentos sociais como deflagradores e anunciadores de processos de mudança social. Em suma, os movimentos sociais confrontam a 40

sociedade com novas questões e novas formas de interpretar problemas pré-existentes, criando novas agendas políticas e pressionando por mudanças nos diferentes subsistemas sociais. No domínio da sociologia dos movimentos sociais, Eyerman e Jamison (1991) foram os autores que inauguraram o diálogo com a sociologia do conhecimento e mantém-se como referência para os que se propõem à realização de uma Leitura Cognitiva de Movimentos Sociais. Influenciados pela noção de movimento social Tourainiana e pelo conceito de “Conhecimento e Interesse” de Habermas, os teóricos desenvolvem uma abordagem comparativa e historicamente informada, que conecta o movimento social a uma teoria contextual de mudança social e assumem o compromisso de entender as trajetórias particulares das diferentes manifestações empíricas de um mesmo movimento em tempos e contextos diferenciados, considerando a trajetória histórica, o contexto e as culturas políticas particulares a cada um. Esta proposição está apoiada em uma noção de conhecimento, que considera modos formais e informais de produção de conhecimento como válidas e não estabelece uma dicotomia entre o trabalho intelectual e o prático. Por esta perspectiva, o conhecimento não é apenas, ou primeiramente, o conhecimento formal científico e acadêmico produzido por profissionais sancionados, é antes a prática cognitiva ampla que informa toda atividade social. É, portanto, formal e informal, objetivo e subjetivo, moral e imoral e, mais importante, profissional e popular (EYERMAN e JAMISON, 1991, p. 49) Essa noção de conhecimento refere-se “à visão de mundo compartilhada pelos participantes do movimento, bem como as questões levantadas e as noções criadas e apoiadas por estas ideias” (IBID, p.3). A distinção serve ainda para revelar a ocorrência de uma relação de mão dupla, onde o movimento tanto é influenciado pela sociedade como a influencia por meio da sua práxis cognitiva, a qual está registrada em: textos, livros, declarações, músicas, slogans, modelos institucionais, tecnologias e outros recursos cognitivos que, pela sua perenidade, transcendem os limites temáticos, geográficos e temporais do movimento social. Com o apoio da sua sua tese, pode-se problematizar o processo de criação de conceitos e o papel mediador dos movimentos na “construção social do conhecimento”, porque a práxis cognitiva dos movimentos sociais é vista como uma das principais fontes a partir de onde o senso comum e a ciência desenvolvem as novas perspectivas e as novas ideologias:

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Ao usar o termo práxis cognitiva, queremos enfatizar o papel criativo da consciência e da cognição em toda ação humana, seja individual ou coletiva. […] As dimensões da práxis cognitiva são as relações com o conhecimento que caracterizam e particularizam os movimentos sociais: conceitos, ideias, e atividades intelectuais que dão a eles a sua identidade cognitiva. […] Por conhecimento queremos dizer as ideias sobre o mundo, a visão de mundo que é compartilhada pelos participantes do movimento, assim como os tópicos específicos ou as questões que são criadas em torno destes (EYERMAN e JAMISON, 1991. p. 2-4) O termo praxis cognitiva é o equivalente operacional do conceito de Conhecimento e Interesse de Habermas decupado em três dimensões: a cosmológica, a tecnológica e a organizacional. A cosmologia de um movimento social corresponde à sua visão de mundo e é através dela que o movimento articula o seu significado histórico, realiza a sua missão utópica e o seu propósito emancipatório. A dimensão tecnológica faz referência ao conceito de Interesse tecno-prático e relaciona-se a questões de tecnologia, tanto aquela proposta pelo movimento como a por ele criticada. A dimensão organizacional equivale ao Interesse comunicativo e se refere ao paradigma organizacional particular de um movimento social: seus ideais e modos de organizar a produção e a disseminação do conhecimento (EYERMAN e JAMISON, p. 68). A revelação dos processos constitutivos de um movimento social demanda a investigação dos seus processos de interação comunicativa e a proposta de realização de uma análise comparativa entre movimentos sociais tem a intenção de identificar a ocorrência de mecanismos e processos de práxis cognitiva comuns aos mesmos movimentos sociais, em diferentes tempos históricos, países e contextos políticos e sociais. Para os teóricos, os movimentos sociais são os mediadores no processo de construção social do conhecimento, porque a dinâmica processual da sua práxis cognitiva favorece o surgimento dos “Intelectuais do Movimento ”, os responsáveis pela produção cognitiva dos movimentos sociais. Esse conceito está inspirado no “Intelectual Orgânico” de Gramsci e visa discriminar o intelectual forjado no seio do movimento social e aquele que o influencia a partir de cima; no entanto, a noção de “intelectual coletivo da classe”, associada ao papel exercido pelo movimento social – ou partido político – na construção da consciência coletiva da classe, passa despercebida para Eyerman e Jamison, que estão preocupados em descobrir o berço dos novos intelectuais. Na interpretação de Leher e da Motta (2012), “a abordagem gramsciana do intelectual não é subjetiva, mas sim, coletiva: são os intelectuais como massa – e não como indivíduos – 42

cuja função é produzir e difundir ideologias que o interessam”. Parafraseando Gramsci, os autores colocam que “manter ou modificar uma concepção do mundo, suscitar novas maneiras de pensar, transformar o mundo exterior e as relações gerais significa fortalecer e desenvolver a si mesmo, mas também consolidar uma vontade coletiva nacional-popular”. E “o conceito de “vontade coletiva nacional-popular” ou “vontade social coletiva” de Gramsci está estreitamente ligado ao de “reforma intelectual e moral”, ou seja, à questão da hegemonia, da atividade prática, política, correspondendo às necessidades objetivas históricas” (LEHER; DA MOTTA, 2012. P. 426-428). Sendo assim, apoiados pela concepção não elitista de produção de conhecimento de Eyerman e Jamison somada à noção de “intelectuais coletivos da classe”, os “Intelectuais do Movimento” passam a assumir o papel de sistematizadores das novas ideias e conceitos gerados por meio da dinâmica relacional constitutiva dos movimentos sociais. Com esta inflexão, a fonte gerativa de novos conhecimentos não é mais o indivíduo, mas a práxis cognitiva de um movimento social e o processo de interação comunicativa dele com ele mesmo e com os seus aliados e opositores. Uma dinâmica que envolve tradução e negociação, quando movida por relações cooperativas motivadas pela construção de consenso, e conflito e disputa, tendo em vista a derrota do oponente, quando está em jogo a legitimação de visões de mundo opostas e concorrentes sobre questões de interesse comum. Para capturar os processos através dos quais o conhecimento é gerado, modificado e mobilizado pelos movimentos sociais, devemos interpretá-los como espaços de “Conhecimento-prático”. A formulação de movimentos sociais como espaços de “Conhecimento-prático”, desenvolvida por Casas-Cortés, Osterweil e Powel (2008), a partir de Sousa Santos (2005), sintetiza a ideia de movimentos sociais como espaços importantes de criação, reformulação e difusão de conhecimento: Esses saberes assumem a forma de histórias, ideias, narrativa e ideologias, mas também teorias, conhecimentos, bem como análises políticas e entendimentos críticos de contextos particulares. A sua criação, modificação e diversas encenações são o que chamamos de "conhecimento prático" (CASAS-CORTÉS, OSTERWEIL e POWEL, 2008. P. 21) A noção de movimentos sociais enquanto “espaços de conhecimento-prático” estabelece diferença entre o conhecimento material, situado e político gerado no cotidiano das práticas dos movimentos em processo de constituição e o conhecimento abstrato,

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pretensamente neutro e universal, desenvolvido nos centros de pesquisa. Por conhecimento, os autores entendem: Experiências, histórias, ideologias e reivindicações de diversas formas de conhecimento que definem como os atores sociais vêm a conhecer e habitar o mundo. Ao fazê-lo, reconhecemos que o nosso trabalho não é simplesmente "sobre" os movimentos, mas com eles e em paralelo a eles. Como tal, ao invés de pretender que os estudos de caso caibam em estruturas conceituais ou ordens conceituais preconcebidas sobre como a ação coletiva é ou deveria ser, propomo-nos a acompanhar os atores que o constituem, escutando, rastreando e mapeando o seu trabalho e vivenciando com eles o processo de trazer um movimento à existência (IBID. 27 p.). Casas-Cortés, Osterweil e Powel (2008) enfocam a micropolítica em processo e revelam dinâmicas através das quais os movimentos sociais geram teorias, conceitos, visões de mundo e formas de organizar a vida, verdadeiramente originais, ao desafiarem a cultura vigente com a sua prática. O foco no processo constitutivo de novas formas de conhecimento por movimentos e coletivos sociais – e não no seu resultado – revela outro viés da sua ação política: a produção de conhecimento alternativo como uma forma de resistência social na disputa por poder que caracteriza a relação entre o instituinte e o instituído. O foco empírico destes autores é o movimento alter-globalização e as suas pesquisas buscam revelar que os processos de construção dos eventos, protestos, articulações e fóruns sociais motivados contra o Neoliberalismo geraram propostas inovadoras de processos de debate e de tomada de decisão e novos modelos organizacionais. Coalizões deste tipo não surgiram do limbo, foram fruto das lutas populares contra o livre comércio dos 1980 e são “exemplos concretos da emergência de know-how democrático, a partir das experiencias práticas de diversos movimentos que enfrentaram a necessidade de colaborar em todas as escalas, em face da consolidação da agenda neoliberal” (CONWAY, 2000. p.45). Powell (2008) enfatiza a “construção de novas verdades” pelo movimento Indigenous Environmental Justice, em diálogo com cientistas e políticos. Cortés (2008), por sua vez, mostra como o trabalho organizacional da “Rede de Ação Direta de Chicago” pode ser interpretado como uma nova forma de democracia; já Osterweil (2008) descreve o processo, através do qual, o ativismo alterglobalização italiano está produzindo “novas formas reflexivas de teorização e análise”. Os três pesquisadores acima eram parte integrante dos coletivos que se propuseram a analisar, e o resultado dessas experiências revelou que a realização de uma pesquisa situada e de viés etnográfico foi o que lhes permitiu enxergar que os atores individuais e coletivos são 44

permanentemente induzidos à reflexão e à autorreflexão no processo de construção da ação coletiva e que, através desta dinâmica, a subjetividade coletiva (e individual) vai se constituindo e novos conhecimentos sendo gerados. A interpretação de movimentos sociais como “espaços de conhecimento-prático” contribui para revelar como os movimentos sociais engajam-se na tarefa epistemológica de análise, concepção e elaboração de novas formas de se conceber e de se estar no mundo, mas não abarca a dimensão epistêmica da produção de conhecimento, o que, nos termos desta tese, equivale à ação prática, não essencialmente intelectual ou claramente política. Com a intenção de dar conta desse aspecto, mobilizamos a noção de “produção como uma forma de resistência social” de Van der Ploeg (2014) e incluimos processos cotidianos e não discursivos, de natureza prática e expressiva — dentre os quais, técnicas produtivas, formas de gestão, mitos e ritos — como parte das dinâmicas através das quais os movimentos sociais geram novos conhecimentos ou novas “formas de conhecimento-prático”. Van der Ploeg (IBID, p. 18-19) remete a James Scott (2008 [1985]), para afirmar que a luta social não é necessariamente contenciosa e pode se dar, também, por dentro e pelas beiradas, no cotidiano da resistência oculta e camuflada dos dominados em relação aos seus dominadores. E acrescenta aos discursos ocultos, valorizados por Scott como formas de resistência, os espaços de produção. Em tais formas de resistência, as estruturas técnico-institucionais de trabalho e dos processos produtivos são ativamente alteradas. Rotinas, ritmos, padrões de cooperação, sequências, mas também máquinas, seus ajustes e misturas de materiais utilizados são todos alterados visando melhorar o trabalho e os processos produtivos e alinhá-los aos interesses expectativas e experiências dos trabalhadores envolvidos (VAN DER PLOEG, 2014, p.19). A partir dessa ideia, o autor elenca três formas de resistência interconectadas por uma miríade de inter-relações ligadas no tempo e no espaço: a luta velada e a sabotagem, que equivale à “arma dos fracos” revelada no trabalho de Scott (2000); a luta aberta, dentre as quais inclui diferentes formas de ação contenciosa e de ação direta, excluindo a ação institucional. E a intervenção direta nos processos produtivos e no trabalho e a sua alteração, que contempla expressões urbanas, rurais e rururbanas, como: a recuperação de fábricas, a autogestão, a organização em cooperativa, a agroecologia e a agricultura camponesa, urbana e periurbana. Em suma a resistência reside na multiplicidade de reações (ou respostas ativamente construídas) que tiveram continuidade e/ou que foram criadas no intuito de confrontar os modos de ordenamento que atualmente dominam nossas sociedades (IBID, p.19). 45

O estudo de Van der Ploeg (2014) está centrado na agricultura camponesa, interpretada como um conjunto de conhecimentos e de valores que sustentam um modo de produção não capitalista, cuja realização prática corresponde a uma estratégia de resistência social, porque implica em uma forma alternativa de estar e de se relacionar com o mundo social e natural. Em suas palavras: A condição camponesa consiste na luta por autonomia e por progresso, como uma forma de construção e reprodução de um meio de vida rural em um contexto adverso caracterizado por relações de dependência, marginalização e privação. [...] A luta por autonomia resultante dessa condição tem como objetivo e materializa-se na criação e no desenvolvimento de uma base de recursos autogestionada, envolvendo tanto recursos sociais como naturais (conhecimento, redes, forças de trabalho, terra, gado, canais de irrigação, terraços, estercos, cultivos, etc.) [...] Essa base de recursos, por sua vez, propicia diferentes formas de coprodução entre o ser humano e a natureza viva [...] A coprodução também retroalimenta e fortalece a base de recursos, melhorando, portanto, o próprio processo de coprodução [...] por meio de melhorias qualitativas [...] que podem traduzir-se em ampliação da autonomia e na consequente redução da dependência. [...] a agricultura camponesa tende a se basear principalmente em um capital de recursos não-mercantilizado associado a uma circulação de recursos também não-mercantilizada (VAN DER PLOEG, 2014, p. 12-13) A Soberania Alimentar pode ser interpretada nesses termos, porque está apoiada em um princípio de economia moral (EDELMAN, 2009) e pelos valores camponeses de solidariedade, autonomia, autossuficiência e independência em relação ao mercado. Eyerman e jamison (1991), Casas-Cortés, Osterweil e Powel (2008) e Van der Ploeg (2014) contribuem para entender as dinâmicas que mobilizam a produção de conhecimento por movimentos sociais, mas não especificam os agentes. Seja em seus vieses como: teoria, prática política ou prática produtiva, a Soberania Alimentar se desenvolve com a contribuição de diferentes atores. Sendo assim, o nosso interesse em desvendar aspectos da sua dinâmica constitutiva induz-nos à investigação das redes de relações que a constituem.

1.3. Territórios, Redes e Escalas

É relativamente consensual nos estudos sobre os movimentos sociais contemporâneos a ideia de que as formas e expressividades da ação coletiva são hoje múltiplas e variáveis e 46

que uma de suas particularidades é a articulação em rede. Também há um consenso amplo, principalmente entre os estudiosos latino-americanos, na consideração dos territórios como uma dimensão central para a localização dos conflitos e das disputas de projetos de sociedade. Outrossim, as escalas também emergem como uma variável fundamental para captar a multiterritorialidade da ação coletiva e como os atores sociais constroem, de forma concomitante, ações políticas em diversas escalas (entendidas aqui como o local, o nacional, o regional e o global). No entanto, a despeito da centralidade destas três noções para entender o ativismo contemporâneo, poucos foram os autores que conseguiram avançar em uma concepção integrada destas dimensões. Uma exceção é o trabalho de Bringel (2014), o qual avança no entendimento teórico e empírico das relações entre territórios, redes e escalas, tratadas de forma conjugada na sua conceituação de espacialidades das ações coletivas. Bringel nota como redes e territórios se converteram em instrumentos fundamentais para os estudiosos da contestação política e social, embora as definições e apropriações desses termos sejam múltiplas e, com frequência, contraditórias. Alguns autores priorizam a rede como referente organizativo e de intersubjetividade entre os diferentes atores e movimentos sociais, enquanto, para outros, o território aparece como elemento privilegiado de análise, interpretado como a base da própria existência de determinados movimentos sociais, como os indígenas e campesinos. No entanto, analisa Bringel (2014), com frequência, a escolha de uma categoria analítica referencial acaba se traduzindo em diferenciação e o resultado é a oposição (e não a complementaridade) entre a base material e de coesão estrutural para a ação coletiva identificada, o Território, versus as Redes, que sintetizam a fluidez e as interações contingentes das formas organizativas e dinâmicas interativas contemporâneas dos movimentos sociais. Bringel (2014) afirma que Redes e Territórios não são elementos excludentes nem tampouco dissociados. Inspirado em algumas perspectivas críticas da geografia política e da sociologia, o teórico sugere que, longe de constituir-se em uma disjuntiva excludente manifestada no predomínio da fluidez sobre a estabilidade, do centrífugo sobre o centrípeto, do topológico sobre o topográfico, etc., ambas as dimensões são complementares e o foco da análise deve ser na tensão entre elas, porque esta é uma das principais forças mobilizadoras do processo de espacialização da (contestação) política. Quando lutas sociais territorializadas se unem e/ou criam uma ou mais redes flexíveis passam a estar conectadas a lugares diferentes e a uma variedade de escalas geográficas – do global ao local – e a serem partes constitutivas e nós entre diferentes longitudes na rede. Embora façamos uma distinção analítica entre as noções de território e rede, esta perspectiva integradora é aquela adotada nesta tese, quando 47

referindo-nos à dinâmica multiescalar, relacionamos um movimento territorializado específico (o MPA) a outros atores e construções.

Territórios e multiterritorialidade Fernandes (2008, p.17) utiliza o “conceito de território como um espaço de vida” ou “como um espaço vital, compreendido pela sua multidimensionalidade”, mas esclarece que Territórios são totalidades mas não são uno. A partir dessa premissa, discrimina territórios materiais de territórios imateriais, porque as disputas territoriais são travadas em diferentes dimensões: econômica, social política, cultural, teórica e metodológica. E distingue entre três tipos de territórios materiais, inter-relacionados, na intenção de revelar a dimensão do conflito e de disputa de poder entre classes que os define. Em suas palavras, o “desafio é compreender como as diferenciações da produção espacial e territorial são organizadas e reproduzidas e por quais relações e classes sociais”, porque “relações e classes sociais produzem diferentes territórios e espaços que as reproduzem em permanente conflitualidade” (FERNANDES, 2009). O primeiro território material é formado pelo país, seus estados e municípios, ou seja, são espaços de governança. O segundo território é o da propriedade privada capitalista e não capitalista. E o terceiro, por diferentes espaços relacionais, ou seja, são territórios controlados por relações de poder que atuam por sobre o estado ou com o seu apoio, como: o narcotráfico e as vastas áreas destinadas à soja no Brasil. Os territórios materiais são objeto de disputa entre classes sociais e quem controla o território do estado – as suas estruturas de poder – controla os outros territórios, porque influencia em suas definições. E, no que tange ao universo rural, no modelo de sociedade capitalista vigente, a balança pende a favor das transnacionais e do agronegócio e, uma classe não se realiza no território de outra classe. Por essa razão, os territórios do agronegócio e os territórios campesinos e indígenas são distintos. Os territórios do campesinato e os territórios do agronegócio são organizados de formas distintas, a partir de diferentes relações sociais [...] Enquanto o agronegócio organiza seu território para produção de mercadorias, o grupo de camponeses organiza seu território, primeiro, para sua existência, precisando desenvolver todas as dimensões da vida6 [...] Compreender essa tipologia de territórios é fundamental para o uso mais amplo do conceito. Se por um lado, o uso do conceito de território possibilitou a superação de leituras setoriais, por outro lado, predominam as leituras de territórios únicos que ignoram as conflitualidades, que promovem as disputas territoriais (FERNANDES, 2008, p. 10-11). 6

Grifo nosso

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Os territórios materiais são frutos de uma relação de poder sustentada pelo território imaterial através da produção de conhecimento e da ideologia, e o território imaterial pertence tanto ao campo da ciência como da política, porque as explicações, os paradigmas e os conceitos são produzidos com uma intencionalidade, como, por exemplo, a definição do sistema agroalimentar. Compreendemos que as relações sociais produzem os territórios e são produzidas por estes. Que os territórios são multidimensionais, onde se realizam todas as dimensões da vida, desde que, é lógico, sejam desenvolvidas por projetos políticos. Nestes territórios temos diferentes formas de organização do espaço e do trabalho [...] Temos, portanto, duas relações sociais que produzem dois territórios distintos e, que para se expandirem, precisam destruir um ao outro ou se reproduzir ou se territorializar em outros territórios (FERNANDES, 2008, p.17) O controle do território material e imaterial é definido pela luta de classes e o desenvolvimento da nossa perspectiva teórico-analítica, em diálogo com a empiria, levou-nos a entender que os movimentos sociais levam essa prerrogativa em conta, quando buscam se fortalecer mediante a construção de redes de alianças; as quais, independentemente da escala, podem variar entre redes de alianças táticas e redes de alianças estratégicas. Desde a origem, o conceito de território tem dupla conotação: material e simbólica, e ambas as dimensões são inter-relacionadas e definidas por relações de dominação e de poder, porque estabelecem limites que definem dentro e fora, inclusão e exclusão. O território imaterial – o universo das ideias, conceitos, teorias e ideologias – é o que conforma e legitima a definição e o controle sobre o território material, percebido como espaço físico e como recurso (HAESBAERT, 2005). A noção de território é histórica e a sua variação no tempo correspondeu aos diferentes modelos de sociedade. As sociedades tradicionais conjugavam a construção material – ou funcional – do território à sua dimensão simbólica, como abrigo e referente fundamental à preservação de sua cultura. Nas sociedades modernas, os territórios funcional e simbólico foram dissociados até certo ponto e, mais recentemente, o território passa gradativamente de um território mais “zonal”, onde se pretende o controle de áreas, para um “território-rede” caracterizado pela fluidez e a mobilidade, onde se objetiva o controle de redes e de fluxos. E uma marca fundamental desse tempo histórico é a vivência cada vez mais intensa da multiterritorialidade (IBID).

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Multiterritorialidade aparece como uma resposta a esse processo identificado por muitos como “desterritorialização”: mais do que a perda ou o desaparecimento dos territórios, propomos discutir a complexidade dos processos de (re)territorialização em que estamos envolvidos, construindo territórios muito mais múltiplos ou, de forma mais adequada, tornando muito mais complexa nossa multiterritorialidade [...] Falar não simplesmente em desterritorialização mas em multiterritorialidade e territórios-rede, moldados no e pelo movimento, implica reconhecer a importância estratégica do espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade [...] O território, como espaço dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido multi-escalar e multidimensional que só pode ser devidamente apreendido dentro de uma concepção de multiplicidade, de uma multiterritorialidade. (HAESBAERT, 2005, p. 6774, 6778-6790). Haesbaert questiona a possibilidade de articulação de movimentos políticos de resistência, através de um espaço tão fragmentado, multi-escalar e desarticulado, concluindo que: Toda ação que se pretenda transformadora, hoje, necessita, obrigatoriamente, encarar esta questão: ou se trabalha com a multiplicidade de nossos territórios, ou não se alcançará nenhuma mudança efetivamente inovadora (IBID, p. 6791).

Redes e concepções relacionais A discussão sobre multiterritorialidade permite avançar em uma concepção mais integrada das relações entre redes e territórios. A proposta de Bringel (2014) é próxima à de Haesbaert e visa entender os territórios a partir da dimensão relacional entre os lugares, evidenciando, assim, a capacidade potencial das redes (independentemente de sua morfologia) de conexão de diferentes atores localizados em territórios diversos. Conforme a avaliação de Diani (2003), a tendência tem sido a de tratar as redes como uma pré-condição ou como um mecanismo facilitador da ação coletiva, mas Ao invés de serem pré-condições e recursos para a ação (individual ou de grupo), as redes são a ferramenta analítica que nos permite captar a natureza dualística da ação. E a observação das suas configurações permite abordar, explícita e empiricamente, a dualidade entre a ação e a estrutura. Os laços sociais desencorajam certas linhas de ação e facilitam outras, o que por sua vez afeta a forma como os atores atribuem significado aos seus vínculos sociais, (re)criando, assim, regras e arranjos percebidos como, relativamente, estáveis e "estruturais". (DIANI, 2003. P. 303)

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A partir da análise de redes, Diani (2003. P. 305) desenvolveu uma perspectiva cultural e relacional, cujo propósito principal é a investigação das dinâmicas constitutivas dos movimentos sociais, entendidos como processo e não como organização ou outro fenômeno empírico. Movimentos sociais são redes de interação informais formadas por uma pluralidade de indivíduos, grupos ou associações engajados em um conflito político ou cultural, com base em uma identidade coletiva compartilhada (DIANI, 1992, p. 13). Para que um processo de articulação em rede gere um movimento social, é necessário que haja uma identidade coletiva compartilhada em grau suficientemente forte para que os entes em relação percebam-se como parte de um todo. Que a articulação não se cristalize em uma estrutura hierárquica e mantenha-se relativamente aberta à entrada (e saída) de grupos, pessoas e organizações. E a terceira e última condição é que os participantes da rede identifiquem, ao menos, um opositor ou inimigo em comum que sustente a sua identidade coletiva e justifique a sua ação colaborativa continuada como movimento social. No ativismo contemporâneo as redes têm transcendido os territórios nacionais, criando dinâmicas transnacionais crescentemente complexas. O crescimento do ativismo social global é, em grande medida, um reflexo da globalização neoliberal, mas esta mera atribuição, apesar de ter sido a principal explicação para o fenômeno durante o fim dos 1990 e a década de 2000, tem pouco recurso explicativo (BRINGEL, 2011). A despeito das suas diferenças, as perspectivas mais influentes compartilham a ideia que os impactos da globalização neoliberal induziram o ativismo social a mudar o foco do plano doméstico para o internacional, passando a direcionar as suas demandas e ações contra as instituições internacionais e as grandes multinacionais (TARROW e MCADAM, 2005; BENNET, 2005; KLEIN, 2002, DELLA PORTA, 2005). Em comum a esses estudos há a adoção do nacionalismo metodológico como ponto de partida e o principal critério para que um movimento social seja considerado transnacional é o fato de estar organizado em mais de um país. Isso porque tendem a adotar o que Bringel (2014) conceituou como uma “visão teleológica e linear” das escalas de ação política, ou seja, a ideia que a sua construção se dá sempre do local para o global. De acordo com Tarrow (2001, p. 11), movimentos sociais transnacionais são “socially mobilized groups with constituents in at least two states, engaged in sustained contentious interaction with power-holders in at least one state other than their own7, or against an international institution, or a multinational economic actor”. Para Della Porta (2006, p. 18), 7

Grifo meu

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“global social movements are supranational networks of actors that define their causes as global and organize protest campaigns, that involve more than one state8”. Já para Sikkink (1999, p.305), “um movimento social transnacional é um conjunto de atores vinculados entre si, atravessando fronteiras nacionais com objetivos e solidariedades comuns e com capacidade de gerar ações coordenadas e sustentadas em mais de um país, tendo como objetivo influir publicamente em processos de mudança social 9”. Em 2003, Sikkink (2003) refina a sua proposta, e apresenta uma tipologia que diferencia entre três tipos de atores não estatais transnacionais, distinguidos pelo grau de identidade coletiva. Todos os três têm como objetivo final atingir uma mudança social, mas a amplitude desta mudança, assim como o elemento de identificação coletiva, varia em função da formalização das relações estabelecidas. As Redes Transnacionais de Ativistas (TANs) sustentam-se em valores comuns, na troca de informações e de serviços e em um discurso compartilhado; são as que dispõem de menor grau de identificação coletiva, não desenvolvem uma coordenação duradoura de táticas e apoiam-se na mobilização estratégica de informação usada como meio de pressão sobre os Estados, as organizações internacionais e as empresas transnacionais. Por sua vez, as Coalizões são caracterizadas pelo desenvolvimento de táticas comuns, tendo em vista a construção de campanhas transnacionais conjuntas, o que, diferentemente das TANs, demanda certo grau de identidade coletiva e contatos mais formalizados. Já para um movimento social ser considerado transnacional, é necessário que tenha ativistas capazes de empreender uma mobilização conjunta e sustentada, em no mínimo três países diferentes. Assim como os conceitos elencados mais acima, aqui também se estabelece a fronteira política como linha divisória entre o local e o global. Os que adotam este critério argumentam que a construção de um movimento social transnacional é um desafio maior do que a empreitada em nível nacional, devido ao alto grau de heterogeneidade da sua composição (ESCHLLE e STAMMERS, 2004. P. 352). Ao que Eschlle e Stammers (IBID) retrucam dizendo que a articulação em território nacional não é necessariamente mais fácil, porque esta dimensão também não é culturalmente homogênea, razão, pela qual toda comunidade é imaginada (ANDERSON, [1983], 1991). A questão de fundo é que o conceito de movimento social transnacional tem o estadonação como referência e a adoção deste critério induz a uma interpretação reducionista do fenômeno. Nós defendemos que a teorização de movimentos sociais em um contexto global 8 9

Grifo meu Grifo meu. Tradução livre

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deve propiciar um entendimento mais complexo, holístico e crítico de fenômeno. O pesquisador deve buscar entender a relação mutuamente constitutiva entre as diferentes escalas: global, transnacional, nacional e local, sem diluir as suas diferenças e especificidades. E direcionar a sua atenção ao grau de densidade das relações sociais através do globo, à reconfiguração do tempo e do espaço e ao papel da consciência, da reflexividade e da agência no processo (ESCHLLE e STAMMERS, 2004).

A espacialidade transnacional da ação coletiva Voltamos assim à questão proposta inicialmente: captar as espacialidades da ação coletiva de maneira mais integral. Nicholls (2009) oferece um quadro conceitual para a interpretação da complexa geografia das redes dos movimentos sociais contemporâneos, a partir da premissa que redes e espacialidades são dimensões diferentes, mas não excludentes, e a questão principal é entender como os distintos lugares de ativismo contribuem na conformação de movimentos sociais espaciais. Partindo do pressuposto que os movimentos sociais estão estruturados em redes sociais, Nicholls incorpora Granovetter (1983 [1973]) para discriminar entre redes sociais globais e locais e os seus distintos papeis na consolidação dos movimentos sociais. Enquanto os "laços fortes" respondem pelo alto grau de confiança e de capital social, que garantem a coesão das redes locais, os "laços fracos" das redes globais contribuem para o estabelecimento de relações à distância e para a difusão da mensagem e da ideologia do movimento social. E, sob esse aspecto, as redes sociais locais e globais são complementares. The different geographical features of networks play different functions in social movements. Activists have important connections to distant allies and these connections permit the flow of information, financing and political backing between them. However, activists are typically embedded in strong tie relations with allies in their localities. These strong tie relations provide a distinctive set of resources (emotional, material and symbolic) that are essential for successful mobilisations. In this sense, the weaker connections of distant allies and the stronger ties of their proximate counterparts permit the flow of distinctive yet complementary resources. Thus, understanding social movements requires us to account for the particular geographical constitution of the complex networks that underlie them (NICHOLLS, 2009, P. 78). Em consonância com Bringel (2006), esta proposta teórica contribui para entendermos como o ativismo social em rede contribui para interconectar o local ao global e um local a outro local. Nessa proposição, a ideia de lugar é um conceito territorial e relacional, pois tanto 53

está referido a um lugar geograficamente determinado, como ao fluxo de interações entre ativistas. Em suas palavras: While the concept of place employed thus far is consistent with the territorial view of place, place is also an area that harbours multiple ‘contact points’ that spur new interactions between diverse others (IBID, p. 84). Os “pontos de contato” surgem em oportunidades de encontro e interação entre ativistas e organizações em eventos de naturezas e objetivos diversos: protestos, coalizões, encontros promovidos por organizações nacionais e internacionais e por outros movimentos sociais, seminários, fóruns sociais; cursos de formação, brigadas, etc. E o fluxo dessas interações é mantido presencialmente, nesses episódios, e à distância, por meio das tecnologias de comunicação. À medida que as interações se intensificam, as barreiras cognitivas são diminuídas e os valores comuns vêm à tona; em consequência, as pessoas (e organizações) tornam-se mais propensas à colaboração mútua, porque as partes em relação adquirem a confiança necessária para exporem os seus saberes e ideias nas “zonas de contato” – conforme teorizado por Sousa Santos – influenciando mutuamente os seus repertórios de ação e contribuindo para a edificação de um corpo de saberes sobre as questões que lhes são caras. Na ausência de hierarquias formais, o que mantém estas redes unidas é um princípio de Solidariedade Transnacional e Desigual. Transnacional porque ultrapassa fronteiras nacionais (FEATHERSTONE, 2003; NICHOLLS, 2009) e desigual porque o baixo nível de capital social compartilhado limita a capacidade de controle e de coordenação dessas redes (NICHOLLS, 2009). Nesse processo, os ativistas migrantes têm papel estratégico “na construção de quadros interpretativos comuns e na conexão entre ativistas locais e pessoas distantes” (IBID, p. 87) e as brigadas internacionalistas ganham destaque como os espaços que oportunizam a consolidação dos laços entre as organizações, porque tem maior duração no tempo e implicam na construção de projetos comuns. Complementando Nicholls, pode-se dizer que os ativistas enviados para as brigadas são os agentes que fazem a ponte entre um local e outro local, porque atuam, como veremos mais adiante, como tradutores — nos termos de Carou e Bringel (2010) — que decodificam uma cultura para a outra e tendem a estabelecer laços afetivos e de confiança nos novos lugares onde estão baseados e, quando retornam aos seus locais de origem, levam esse legado consigo. Por conseguinte, a análise da construção da Soberania Alimentar e de outras formas de ação dos movimentos sociais rurais contemporâneos demanda a adoção de uma perspectiva 54

que conjugue essa noção ampliada de espacialidade às suas consequencias em termos de criação de formas de ação e geração de novos conhecimentos. Um exemplo é o próprio conceito político de Soberania, o qual, no processo de intercâmbio transnacional que forjou a conceituação de Soberania Alimentar, foi sociologizado e deixou de representar o direito de um Estado exercer domínio sobre as suas fronteiras territoriais, passando a legitimar o direito dos povos sobre os seus territórios materiais e imateriais. Finalmente, é importante ressaltar, como adverte Bringel (2015), que os padrões de interação transnacional e de internacionalização dos movimentos variam enormemente no tempo, no espaço e de acordo com os diferentes tipos de sujeito coletivo. No caso dos movimentos sociais rurais membros da Via Campesina costuma haver uma diferenciação, feita pelos próprios movimentos, entre redes de alianças táticas e redes de alianças estratégicas (BRINGEL e FALERO, 2008; BRINGEL, 2014). Conforme tive chance de verificar em conversas com dirigentes e intelectuais do MPA, essa categorização foi trazida de Lênin e serve para diferenciar entre os tipos de alianças estabelecidas entre os movimentos sociais e outros atores, os critérios definitórios dessas redes de alianças não são a escala de ação e nem a sua composição, mas o interesse que une os atores na rede ser de longo prazo ou pontual, o que coincide com a existência ou não de uma identidade coletiva forte. As alianças táticas são pontuais e mais fáceis de serem construídas, porque articulam organizações, pessoas, ONGs e instituições que não compartilham, necessariamente, as mesmas crenças e ideais e nem sempre defendem os mesmos interesses, e as inúmeras redes formadas em torno da Soberania Alimentar servem de exemplo. Dentre estas, podemos citar as campanhas “Sementes”, “Combat Monsanto”, “OMC fora da Agricultura” e “Ban terminator”, a coalizão transnacional “O nosso mundo não está à venda” (Our world is not for sale), o boletim “Nyeleni" e a plataforma global “International Planning Committe for Food Sovereignity” (IPC). Já as alianças estratégicas são mais duradouras e difíceis de serem construídas, porque implicam na existência de alto grau de capital social compartilhado — normas, confiança, emoção e quadros interpretativos — e no desenvolvimento ou pré-existência de uma identidade coletiva comum. E, no marco da Soberania Alimentar e em nível transnacional, a única rede de alianças estratégicas que reconhecemos é a Via Campesina, que acolhe uma diversidade de culturas, origens sociais e procedências sob a identidade coletiva comum de Camponês. Embora a identidade coletiva não seja essencial e esteja sempre em construção, para que haja um movimento social é necessário que se conforme uma subjetividade coletiva 55

sustentada não apenas pelo reconhecimento de um inimigo comum, mas também pela existência de uma necessidade comum compartilhada pelo conjunto de atores envolvidos, como reconhecido por Bringel e Falero (2008) em sua análise sobre a Via Campesina. Quando, por exemplo, os camponeses se organizam num movimento social transnacional, como a Via Campesina, ou numa rede de movimentos sociais, defendendo seus interesses de forma articulada e duradoura no tempo e fomentando novas formas de produção, de consumo e de comercialização que transcendem a lógica puramente econômica, tecem-se novas horizontalidades. Nestas, embora ganhem uma dinâmica reticular transnacional em sua forma organizativa que afeta o alcance de suas práticas, está presente uma forte base territorial local/nacional, onde também atuam e canalizam os conflitos ao espaço público (BRINGEL e FALERO, 2008, p. 276). Esta necessidade tem natureza material (e simbólica) e está associada à posição dos atores nas suas respectivas sociedades, mas não pode ser resumida a uma noção simplista de classe social, porque as fronteiras de ação do capitalismo ampliaram-se, gerando novas possibilidades de espoliação da natureza e novas formas de opressão social que estimularam a formação de alianças originais e inesperadas tanto entre opressores como entre oprimidos. Bringel e Falero (Ibid) acrescentam que a sua proposta é “enfatizar a ideia de construção, de movimento (e não de percepções cristalizadas), do potencial envolvimento em processos coletivos – que, por sua vez, produzem subjetividade social – e de atribuições de significação e sentido que os próprios atores vão dando sobre um conjunto de necessidades sociais”. Neste processo, dialógico e não isento de percalços, constituem-se as dinâmicas mobilizadoras de ação, mas também de novos conhecimentos.

1.4. Diálogo, Tradução e Ação Estratégica: Dinâmicas Mobilizadoras de Novos Conhecimentos

A proposta de uma abordagem cognitiva e epistêmica sobre movimentos sociais implica em colocar o foco de atenção nos processos e não nos resultados. É na dinâmica de sua práxis que os movimentos sociais constroem a sua ideologia própria, constituem-se como sujeito coletivo, produzem conhecimento social e exercem o seu papel como “intelectuais coletivos da classe” na disputa pela construção da hegemonia. Esses processos não se resumem a discursos e a atos de fala, englobam ainda conhecimento técnico, manifestações

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artísticas e sistemas organizacionais e nem são exclusivamente cognitivos, pois aspectos emotivos, normativos e expressivos também os influenciam. O produto derivado dessas dinâmicas está registrado em discursos textuais e imagéticos, vídeos, livros, performances, poesias, técnicas e tecnologias, etc., o que permite a realização de uma análise retrospectiva da trajetória do movimento social, como sugerem Eyerman e Jamison (1991). No entanto, nestes produtos não é possível inferir toda a significação da construção coletiva do processo. Nossa proposta é ir além e entender o processo em processo, como proposto por Casas-Cortés, Osterweil e Powell (2008) e Bringel e Falero (2008) e esse interesse induziu-nos a querer sistematizar as principais dinâmicas através das quais os movimentos sociais mobilizam a produção de novos conhecimentos. Para o desenvolvimento dessa proposta analítica, partimos da ideia que as redes de movimentos sociais têm dupla natureza, como ator e como arena de ação (BORRAS, 2004). Como arena, são os espaços onde os distintos sujeitos que as constituem intercambiam saberes e negociam as questões e os significados que vão definir o sentido da ação do ator movimento social, quando em interação com os seus parceiros e opositores em um determinado contexto. Dependendo da intenção do agente com a sua ação, essas dinâmicas podem ser espontâneas ou estratégicas, colaborativas ou autointeressadas. Em nosso entendimento, é mediante as suas relações intramovimento e com os de fora da rede que os movimentos sociais mobilizam a produção de novos conhecimentos. A partir dessas reflexões, sugerimos a existência de três principais dinâmicas interacionais mobilizadoras de novos conhecimentos pelos movimentos sociais: o diálogo, a tradução e a ação estratégica. Esse pensamento surgiu de uma leitura crítica de diferentes perspectivas para o estudo dos movimentos sociais de origem norte-americana, desde a “Mobilização de Recursos” de Zald e McCarthy (1977), que, nos 1970, representou uma ruptura com as explicações psicosociais para o entendimento da ação coletiva, dominantes nos Estados Unidos na década de 1960. Influenciados pela Microeconomia de Olson (1965), Zald e McCarthy estavam interessados em entender os fatores responsáveis pelo sucesso ou insucesso das organizações de movimentos sociais, a partir de uma perspectiva diferente das explicações psico-sociais e a sua resposta apontava que a ação social sustentada era sempre autointeressada e o Interesse dado. O determinismo dessa teoria levou à sua superação, no entanto, o que se constata, é que as perspectivas norte-americanas desenvolvidas em resposta às suas limitações, como a Frame Analysis (SNOW e BENFORD, 1986), não romperam com os seus principais pressupostos, quais sejam, a não problematização da cultura e do Interesse (CEFAI, 1999; MELUCCI, 1996). 57

Indo além deste debate, observamos que outras teorias norte-americanas para a análise de movimentos sociais, incluindo algumas voltadas ao estudo do ativismo transnacional tratam o Interesse de forma semelhante. O que nos motivou a ir mais fundo e buscar a resposta no fundamento que as sustenta: o modelo de ação social Weberiano. Na interpretação de Habermas (1999), em Weber (1973), a ação social é sempre autointeressada e o interesse dado, e a conclusão a que se chega é que a primeira premissa impossibilita acessar a dimensão dialógica e colaborativa da interação social e a segunda impede a investigação do processo de construção social de conhecimento. Sobre as relações sociais, Weber afirma que: A relação social é assim, para ambos os lados, objetivamente "unilateral". Não deixa, todavia, de estar referida na medida em que o agente pressupõe uma determinada atitude de seu parceiro diante dele [...] naturalmente ela só é objetivamente bilateral na medida em que haja "correspondência" no conteúdo significativo da ação para cada qual, segundo as expectativas médias de cada um dos participantes (WEBER, 1973, p. 419-420) O que se depreende é que as relações sociais são bilaterais, mas não dialógicas. É necessário que haja referências em comum para que haja entendimento, mas não existe espaço nesta formulação para a negociação de sentido. E se não há negociação de sentido, nenhum pensamento novo pode ser gerado. Para além da racionalidade instrumental weberiana, Habermas (1999, p.21-32) propõe a Racionalidade Comunicativa, que “tem menos a ver com o conhecimento ou com a aquisição de conhecimento e mais com a forma como os sujeitos capazes de linguagem e de ação fazem uso desse conhecimento” (IBID. p.24). Diferentemente do modelo weberiano, a ação racional comunicativa deve estar direcionada ao entendimento e há espaço para diferentes interpretações e afirmações, porque o interesse não está pré-definido e desenvolve-se, na relação, pautado pela busca do consenso, desde que cumprida a condição das argumentações remeterem a um “saber de fundo compartilhado” intersubjetivamente pela comunidade de comunicação. O teórico alemão elabora uma versão cognitiva de racionalidade que discrimina entre dois tipos de saberes descritivos: a Racionalidade Cognitiva Instrumental associada ao uso de um saber propositivo em ações teleológicas e a Racionalidade comunicativa referida à utilização comunicativa de um saber propositivo em atos de fala. O critério de racionalidade é próprio a cada tipo, mas ambos devem: ter um propósito, estarem referidas à objetividade do mundo, serem falíveis, suscetíveis à crítica e passíveis de fundamentação, tendo como critério a sua proposição inicial. 58

Diferentemente da ação teleológica, a racionalidade imanente à prática comunicativa “remete a diferentes formas de argumentação, assim como a outras tantas possibilidades de prosseguir a ação comunicativa por meios reflexivos” (HABERMAS, 1999). As ações reguladas por normas, as autorrepresentações expressivas e as manifestações ou emissões avaliativas complementam os atos de fala constatativos na configuração de uma prática comunicativa, cuja base é o mundo da vida e tende à consecução, manutenção e renovação de um consenso assentado no reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade suscetíveis à crítica (IBID, p. 36) Ampliando o escopo do debate, Boaventura de Sousa Santos questiona a hegemonia da racionalidade ocidental e propõe a noção alternativa de “Racionalidade Cosmopolita” e a edificação de uma ecologia de saberes construída a partir do diálogo intercultural entre povos e entre o conhecimento científico e o popular. E resolve o dilema da falta de um saber de fundo compartilhado entre a comunidade de comunicação, por meio do procedimento da tradução de práticas e de saberes. Boaventura (2002, 2007) desenvolve a noção de “Racionalidade Cosmopolita” fundamentada sobre três procedimentos sociológicos: a Sociologia das Ausências, a Sociologia das Emergências e o Trabalho de Tradução, consideradas como as condições necessárias ao afloramento da diversidade de experiências submersas no esquecimento, pelos critérios de legitimação restritivos impostos pelo “conhecimento abissal”. À Sociologia das Ausências cabe revelar as experiências classificadas como não existentes e à Sociologia das Ausências fazer emergir aquelas consideradas impossíveis. A partir dessa recuperação, a ciência moderna deixa de ser o referente e passa a ter o mesmo valor que os outros conhecimentos em uma “Ecologia de Saberes”, onde o debate epistemológico se dá através da tradução mútua de práticas e de saberes. “Ao invés de uma Teoria Geral, proponho uma teoria ou um processo de tradução capaz de criar uma inteligibilidade mútua entre experiências possíveis e disponíveis” (SOUSA SANTOS, 2007, p. 239). A ideia central da Sociologia das Ausências é que não há ignorância em geral e nem saber em geral. Toda ignorância é ignorante de certo saber e todo saber é a superação de uma ignorância em particular (SOUSA SANTOS, 2002. p. 250). Esta concepção evidencia a incompletude inerente a cada saber e a sensação de carência só é satisfeita mediante o debate e a disputa epistemológica entre saberes. O que demanda a substituição da credibilidade exclusiva no conhecimento científico — o conhecimento abissal — pelo reconhecimento da existência de uma "ecologia de saberes", de acordo com a qual, “práticas e saberes 59

diferentemente ignorantes passam a serem percebidos como diferentemente sábios”. A abertura epistemológica proporcionada por Boaventura de Sousa Santos é interessante, conquanto os desdobramentos teóricos desta perspectiva possam ser bastante problemáticos, como discutiremos mais adiante. Identificamos o Diálogo, a Tradução e a Ação Estratégica como três dinâmicas fundamentais para a mobilização de novos conhecimentos, mas é importante frizar que não pretendemos que sejam as únicas e nem reconhecemos que haja uma relação evolutiva e linear entre elas. Essa separação é meramente analítica, pois, em nosso entendimento, a produção de conhecimento é dinâmica e essas três instâncias afetam-se mutuamente e continuamente. Diálogo Iniciemos pelo diálogo. Nas palavras de Habermas: somente o conceito de ação comunicativa pressupõe a linguagem como um meio de entendimento, no qual, os falantes e ouvintes se referem, desde o horizonte pré interpretado que o seu mundo da vida representa, simultaneamente a algo no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo, para negociar definições da situação que possam ser compartilhadas por todos” (HABERMAS, 1999. p. 137138). O processo de interação social que a teoria Habermasiana prescreve aproxima-se da forma como os movimentos sociais percebem os seus próprios processos de negociação internos. A descrição que Habermas faz do processo de argumentação, como sendo uma dinâmica permanentemente aberta e orientada por uma pretensão de verdade, onde os discursos nunca são “conclusivos” e os argumentos “definitivos” (HABERMAS, 2003, p. 47) designa a forma como os movimentos referem-se aos seus próprios processos de discussão e de tomada de decisão interna. O que, se não espelha integralmente a realidade dos fatos, reflete o seu modelo ideal de comunicação. Notemos que o que Ação Comunicativa explica em teoria, a Comunicação Participativa (entre outras formas de organização e de debate, de viés democrático e participativo) explicita na prática. De acordo com Tauk Santos (2001, p. 4), a Comunicação Participativa estabelece distinção entre Informação e Comunicação, “onde o objeto e a função da comunicação não são a mera informação ou a dominação pela persuasão, mas a compreensão recíproca, o enriquecimento mútuo, a comunhão e, sobretudo, a participação na descoberta e na transformação da realidade”. Por esta perspectiva, a Informação é percebida 60

como “um processo unidirecional orientado predominantemente ao conhecimento e à sua transmissão verbal”, enquanto Comunicação, é entendida em termos semelhantes aos de Habermas, como um processo de interação dialógica, onde “fonte e receptor são ambos ativos em pé de igualdade” e “o diálogo passa a ser a forma de comunicação soberana”. A noção de interlocutor substitui as noções dicotômicas de fonte e receptor porque, no diálogo, não há distinção, todos os participantes se afetam mutuamente. O modelo de Comunicação Participativa visa “desenvolver a capacidade de comunicação daqueles diretamente afetados pela desigualdade de poder. Os quais, sem esta competência, não têm como exercer o direito e nem a capacidade para intervirem na ordem social e mudá-la, através da prática política” (RYAN E GANSOM, 2006: 15). De acordo com Ryan e Gansom (Ibid), o desenvolvimento de um modelo de Comunicação Participativa abrange três fases: O primeiro passo é o mapeamento das relações de poder que moldam as desigualdades estruturais em um dado contexto sócio-histórico. Esta análise estratégica informa a próxima fase, na qual, as comunidades diretamente afetadas pelas desigualdades estruturais cooperam para atingir a mudança desejada; o que significa empoderamento através de ação coletiva. Finalmente, o modelo de comunicação participativa inclui um último passo que é a Reflexão (IBID). Já pela conceituação de Bordenave: A Comunicação Participativa é o processo social, mediante o qual, 10 protagonistas com interesses não antagônicos constroem, em comum, discursos que podem ser utilizados como luta para a modificação real de suas condições de existência, para as mudanças das estruturas de poder econômico, político, social e cultural dominante e para a inversão das formas de comunicação vigentes. A comunicação Participativa é uma pedagogia popular, um processo educativo que parte da análise da realidade, rechaça a ideologia dominante e mobiliza as classes populares para uma ação de transformação social (BORDENAVE apud. TAUK SANTOS, 2001, p. 5) Tauk Santos (2001) realizou uma pesquisa sobre a utilização da Comunicação Participativa em projetos de desenvolvimento realizados na América latina, entre as décadas de 1970 e 1980, destinados a “populações de contextos populares urbanas e rurais” e promovidos por diferentes instituições, além da Igreja Católica progressista, que esteve, direta ou indiretamente, envolvida em todos os casos considerados. E os materiais analisados 10

Grifo nosso.

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revelam os preceitos marxistas, a pedagogia Freiriana e a religião amalgamados em um projeto de transformação social. Mas, se nas décadas de 1970 e 1980 os promotores desse processo eram a Igreja e as Instituições, enquanto as comunidades e os movimentos eram os seus beneficiários. No século XXI, o que se constata é a incorporação da Comunicação Participativa ao repertório de ação dos movimentos sociais latino-americanos, que fazem uso cotidiano desta metodologia e de seus instrumentos nos seus processos de interação comunicativa e no desenvolvimento de campanhas de comunicação voltadas para a sociedade em geral. A base organizada tornou-se o principal sujeito da transformação social e é quem toma a iniciativa de desenvolvimento de projetos que atendam aos seus interesses, instrumentalizando o Estado a seu favor, através do estabelecimento de parcerias construídas com instituições públicas, mediante um processo dialógico, embora desigual nas relações de força, em que os termos são definidos por ambas as partes e o resultado deve atender ambos os interesses11. A despeito das particularidades próprias da cultura de cada povo, tendo o subsistema da ciência como referência, nós reconhecemos dois polos, onde, de um lado encontram-se o conhecimento tradicional e o popular e, do outro, o conhecimento profissional. A razão desta classificação dual é evidenciar as diferenças de classe e de poder político, econômico e social que separam os sujeitos coletivos que se encontram de um lado e do outro. O que, no contexto do Sul global, fica ainda mais evidente, pois os povos originários, assim como os "trabalhadores" da cidade e do campo, são aqueles com menos acesso à educação formal especializada, menor poder socioeconômico e, consequentemente, menor capacidade de influência política. Apesar de movida pelo ideal de uma "ecologia de saberes" (SOUSA SANTOS, 2007), a troca colaborativa entre o conhecimento científico e o conhecimento tradicional não é isenta de tensões, pois o ethos científico entra em choque com certos valores e visões de mundo que sustentam e legitimam a sabedoria popular, como o misticismo e a religiosidade. O que, consequentemente, torna mais difícil aos cientistas qualificarem certas práticas, rituais e modos de vida, como equivalentes às suas. Mas, apesar das dificuldades, o diálogo entre técnicos cientistas e pesquisadores, de um lado, e dirigentes, intelectuais e militantes dos movimentos sociais, de outro, é uma

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Um exemplo é o curso Energia e Sociedade no Capitalismo Contemporâneo, onde atuo como professoraorientadora, e que é fruto de uma demanda do Movimento dos atingidos por Barragens: MAB ao Laboratório ETTERN vinculado ao IPPUR-UFRJ e financiado pela Eletrobras.

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prática constante. Pelo ponto de vista dos movimentos sociais, existe o interesse na capacitação cognitiva da sua militância, pois esta estratégia amplia tanto a capacidade dos seus membros contribuírem criticamente nos debates internos e nos encontros promovidos pelos movimentos e os seus colaboradores, como de participarem ativa e criticamente em processos de negociação política e técnica, em espaços sociais e institucionais, muitas vezes em embates com os seus opositores. A capacitação cognitiva também facilita que os militantes atuem, proativamente, na árdua batalha conceitual e ideológica pela conquista de corações e mentes travada entre os movimentos antissistêmicos e aqueles interessados na manutenção do status quo econômico, político e social. Esta aliança também é fundamental para a legitimação da visão de mundo, ideias e valores dos movimentos junto às organizações responsáveis pela certificação do conhecimento. E, pelo lado dos cientistas, o estabelecimento de uma relação de troca colaborativa justifica-se pela identificação pessoal ou institucional com o projeto e os valores promovidos pelo movimento social. O diálogo entre o conhecimento científico e os grupos de base pode também ser mobilizado em prol da realização de um ideal comum e esse interesse compartilhado pode motivar a construção de “Diálogos de Saberes” verdadeiramente horizontais e geradores de “novos discursos, teóricos e políticos, que se entrelaçam, hibridizam-se, mimicam-se e confrontam-se em um diálogo entre as comunidades e academia, entre a teoria e a prática, e entre o conhecimento tradicional e o científico” (LEFF, 2004, apud. ROSSET e MARTÍNEZTORRES, 2013, p. 5). Por outro lado, o diálogo entre diferentes culturas camponesas também não é isento de conflitos, porque os povos e os movimentos interpretam diferentemente as mesmas questões e dão sentidos dessemelhantes aos mesmos objetos, tal como sugerido de maneira explícita pelo trabalho de Rosa (2012a). A despeito das dificuldades, o interesse em evoluir o entendimento sobre determinada questão e a necessidade de enfretamento de um inimigo comum podem estimular o “Diálogo de Saberes” entre diferentes. Em ambos os casos, Diálogo de Saberes refere-se a: A collective construction of emergent meaning based on dialog between people with different historically specific experiences, knowledges, and ways of knowing, particularly when faced with new collective challenges in a changing world. Such dialog is based on exchange among differences and on collective reflection, often leading to emergent re-contextualization and re-signification of knowledges and meanings related to histories, traditions, territorialities, experiences, knowledges, processes and actions. The new collective 63

understandings, meanings and knowledges may form the basis for collective actions of resistance and construction of new processes (ROSSET e MARTÍNEZ-TORRES, 2013, p. 4) Tradução A tradução é a dinâmica que possibilita o entendimento mútuo e o procedimento por meio do qual os sujeitos se fazem entender. Trata-se de um procedimento relacional e interativo, mediante o qual, atores coletivos intercambiam e produzem novos conhecimentos, contextuais e historicamente enformados, por meio do diálogo e do confronto entre culturas e saberes distintos, incluindo o conhecimento científico. Assim como os saberes em contato, o conhecimento gerado no processo não é exclusivamente semântico, abrange todo o contexto das práticas sociais, porque “toda prática social implica em conhecimento e, por este sentido, são todas formas de conhecimento prático” (SOUSA SANTOS,1995). No caso dos movimentos sociais, o “diálogo de saberes” pode se dar internamente à rede, entre os seus membros constituintes e a sua base em potencial, com os seus aliados e mesmo com os seu opositores. Isto porque o tipo de relação pode variar entre colaborativa e conflituosa, mas todas colocam saberes em contato e a tradução é um procedimento importante, tanto para a garantia do entendimento mútuo como para a discordância, desqualificação e desconsideração do argumento do outro. No entanto, “a Tradução não se limita a uma técnica, é antes uma forma de deliberação democrática, um trabalho dialógico e político com um componente emocional” (SOUSA SANTOS, 2005. P. 20), o que leva ao questionamento de quais são as condições que possibilitam a realização desta tarefa. Sousa Santos (IBID) salienta a importância dos fóruns sociais para a construção de uma “epistemologia do sul”, porque são espaços sociais para o qual conflui uma babel de saberes dispostos ao empreendimento de diálogos e debates tendencialmente democráticos e horizontais e voltados ao entendimento mútuo e nós acrescentamos, a esta lista, os cursos de formação de militantes e as brigadas populares. Os cursos de formação são estrategicamente concebidos como espaços verticais de aprendizado voltados à capacitação cognitiva da militância, mas, terminam sendo, também, oportunidades valiosas para a articulação, o contato e o diálogo horizontal entre os diferentes saberes colocados em contato. A pedagogia da alternância obriga os educandos a conviverem intensamente durante um período significativo de tempo e cria oportunidade para que pessoas provenientes do campo e da cidade: militantes, sindicalistas e estudantes, de diferentes países e localidades, troquem experiências e saberes. Uma vivência da qual ninguém sai ileso, 64

inclusive os representantes do conhecimento acadêmico e institucional: os professores e orientadores do curso. As brigadas populares são espaços de cooperação sul-sul movidos pela solidariedade e pelo objetivo de promover o desenvolvimento, segundo os critérios ditados por uma "economia moral" (EDELMAN, 2005) e não pelos valores capitalistas. Na condução destas experiências, não se estabelece uma relação vertical e monológica — como nos projetos de cooperação norte-sul promovidos por instituições ou por estados —, o conhecimento local é valorizado e a prática é tão ou mais importante do que a teoria, porque o contexto, as necessidades e a cultura do receptor são tomados em conta, conforme ilustra o intercâmbio entre o Movimento dos Pequenos Agricultores: MPA e a União Nacional de Camponeses de Moçambique: UNAC (MPA, 2013) que discutiremos no final desta tese. O que implica em que os diferentes saberes e experiências entrem em diálogo, e o novo conhecimento, desenvolvido a partir deste encontro, seja julgado pela sua aplicação prática e adequação ao contexto e não por critérios abstratos de validação universal, como preconiza a ciência moderna. No entanto, salvo raras exceções, como Bringel (2014; 2015) e Rosa (2012a; 2012b), que complexificam os intercâmbios transnacionais entre os movimentos rurais, ainda impera uma visão normativa sobre o internacionalismo e as solidariedades entre os movimentos sociais, que impede captar as potencialidades e limites das dinâmicas de tradução. A identificação dessa limitação estimulou Carou e Bringel (2010) a problematizarem a tarefa do tradutor no ativismo transnacional, a partir de uma interpretação sui generis do clássico texto A Tarefa do Tradutor, de Walter Benjamim. De acordo com essa proposta, fundamental é identificar quem são os tradutores em potencial, bem como questionar como a tradução é realizada e qual a sua motivação. Isso porque, fora do seu contexto original, um saber ou prática perde o seu sentido e significado e a exemplo do tradutor literário de Benjamin, o tradutor de práticas e saberes, mais do que almejar uma tradução literal, deve pretender a captura e a tradução do sentido de uma prática e saber para uma outra cultura (CAROU E BRINGEL, 2010). Emerge assim a tensão entre fidelidade e adaptabilidade ou, em outros termos, a escolha entre ser fiel com relação à palavra ou adaptá-la para que o conteúdo a ser traduzido faça sentido em outra cultura e contexto. O desconhecimento aqui é uma etapa prévia ao reconhecimento e daí as dificuldades, apontadas por Carou e Bringel (IBID), para que a tradução se mantenha fiel ao sentido do saber em foco, de acordo com sua cultura de origem.

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Além da tradução ser constitutiva da ecologia de saberes, também é o procedimento que decodifica os conhecimentos, a visão de mundo e as ideias de um antagonista com quem não se tem a pretensão de dialogar ou entrar em entendimento. Por este aspecto, a Tradução é um mecanismo imprescindível na criação da política, considerando a definição das metas e objetivos do movimento social e a elaboração dos seus conceitos, ideias e processos produtivos e organizativos. Pois, somente a partir da compreensão da visão de mundo concorrente, pode-se desenvolver um arsenal simbólico, ideológico e pragmático capaz de enfrentar os opositores na batalha pela conquista dos corações e mentes da sociedade e na disputa pela apropriação das instituições e dos meios de (re)produção da cultura. Por outro lado, o que traduzir depende de quais saberes e práticas estarão disponíveis na "zona de contato" (SOUSA SANTOS, 2002), uma seleção idiossincrática realizada pelas culturas em diálogo e que está diretamente relacionada ao grau de confiança estabelecido entre os seus representantes: os tradutores em potencial. Para Sousa Santos (2002), os tradutores em potencial são "intelectuais cosmopolitas", que podem tanto estar entre os dirigentes dos movimentos como em suas bases. No entanto, como a construção de uma ecologia dos saberes pressupõe a troca entre diferentes saberes, incluindo o ocidental moderno, os sujeitos tradutores envolvidos na tarefa de construção de novos conhecimentos podem ser tanto representantes do movimento social e de culturas do sul global, como ativistas sociais, intelectuais, cientistas e acadêmicos do norte global. Todos seriam intelectuais cosmopolitas, no sentido em que se disponibilizam para o diálogo e para o entendimento intercultural e, no contexto de movimentos sociais globais, todos os envolvidos pensam e agem “trans-escalarmente”. A partir de perspectiva similar, Carou e Bringel (2010. p. 49) desenvolvem o conceito de "ativista diaspórico", cujo ativismo não está atrelado ou é motivado pelo pertencimento a um local ou Estado-nação, mas "por um projeto político e social específico marcado por várias territorialidades". Este conceito foi desenvolvido em diálogo com a noção de “ativistas transnacionais” desenvolvida por Tarrow (2005, p. 29), em alusão a "pessoas e grupos que, apesar de enraizados em um contexto nacional especifico, engajam-se em atividades politicas contenciosas articulados em redes transnacionais de contatos e conflitos". Os ativistas transnacionais são um subgrupo do que Tarrow (2005. p. 29) classificou como "cosmopolitas enraizados": "pessoas e grupos que mobilizam recursos e oportunidades, internacionais e domésticos, para atuar em pró de atores externos, contra oponentes externos ou em favor da consecução de metas compartilhadas com aliados transnacionais". Este é um conceito amplo, que contempla pessoas e grupos que estabelecem contatos transnacionais por diferentes 66

motivações, não apenas políticas. Também estão abarcados os grupos epistêmicos internacionais, os funcionários de multinacionais, de governos, de OGIs e de ONGIs e inclusive terroristas. Tanto o "ativista diaspórico" como o "cosmopolita enraizado" estão articulados em redes policêntricas, têm múltiplas referências, identidades flexíveis e são tradutores em potencial. Mas à diferença do cosmopolita enraizado, o ativista diaspórico tem uma trajetória política marcada pela dispersão e estabelece relações com as redes transnacionais de forma direta, sem a intermediação de uma militância enraizada em um Estado nação (CAROU e BRINGEL, 2010. p. 48). Ambas as categorias são válidas e complementares, mas nenhuma delas está pensada para interpertar a mobilidade dos ativistas da base. Estes atuam como representantes da organização de movimentos sociais da qual fazem parte em: eventos internacionais, fóruns, encontros

transnacionais

de

natureza

social

e

estatal,

articulações

e

brigadas

internacionalistas. Diferentemente dos sujeitos contemplados por aquelas categorias, o ativista migrante proveniente da base aprende uma segunda língua, na prática, movido pela necessidade, e, muito embora a capacitação cognitiva seja valorizada tanto pelo indivíduo como pela organização, não costuma ter alta escolaridade e a oportunidade de frequentar uma universidade ou cursos de formação e de especialização surge em razão da militância. À semelhança do “cosmopolita enraizado” e do “ativista diaspórico”, estas pessoas também têm uma trajetória biográfica migrante, atuam politicamente em redes transnacionais e podem viver longe do seu local de origem pelo resto de suas vidas. Mas, diferentemente dos dois primeiros, a sua identidade pessoal está intimamente vinculada à subjetividade coletiva do movimento do qual fazem parte, não vivem uma separação clara entre a vida privada e a militância e, tal qual um funcionário de Estado, a sua rotina – inclusive onde moram e atuam politicamente – é regida pelas necessidades e prioridades do movimento.

Ação estratégica Denominamos Ação estratégica àquelas interações que podem ser explicadas pelo conceito weberiano de ação racional instrumental, porque a sua finalidade é o convencimento e não o entendimento, a manipulação e não a construção do consenso. De acordo com Weber (1973), uma ação social é considerada racional quando é objetiva, clara e não se deixa influenciar por aspectos emotivos e subjetivos. Em suas palavras:

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No domínio da ação é racionalmente evidente, sobretudo, o que, referente à "conexão de sentido", se compreende intelectualmente de uma maneira exaustiva e transparente. Racionalmente compreensível – isto é, neste caso, captável intelectualmente no seu sentido de um modo imediato e unívoco – são sobretudo, em grau muito elevado, as conexões significativas em relação recíproca que são encontradas nas proposições lógicas e matemáticas.[...] o método científico que consiste na construção de tipos investiga e expõe todas as conexões de sentido irracionais e afetivas sentimentalmente condicionadas do comportamento que tem influência sobre a ação como "desvios" de um desenvolvimento desta mesma ação que foi construído como sendo puramente racional em relação a fins (WEBER. 1973, p. 401) Com o apoio de Habermas (1999), pode-se afirmar que, para Weber, as relações sociais são estruturadas monologicamente e não dialogicamente, porque o referente da ação é o indivíduo que leva em consideração o outro, apenas para selecionar os melhores meios e recursos para atingir o seu interesse pessoal e individual e não visando o diálogo. Conforme o teórico Frankfurtiano, o critério de racionalidade da ação teleológica-instrumental weberiana é a “pretensão de eficácia”, cujo referente é o próprio agente e a finalidade da sua ação; o fim é dado e só é problematizado quando se conhece, ao menos parcialmente, a acessibilidade e a eficácia dos meios empregados (HABERMAS, 1999). Em nossa percepção, esse é o sentido que o conceito de ação racional adquire na maioria das perspectivas norte-americanas para o estudo dos movimentos sociais e com base nesse pressuposto, não se pode captar a dimensão dialógica e colaborativa das relações sociais. No entanto, embora defendamos que nem toda ação teleológica caiba nesse modelo, aquelas ações movidas pelo interesse por ganhos absolutos, onde os entes em relação entram em um jogo de soma zero, cujo objetivo é a derrota do oponente e não o entendimento, podem ser explicadas a partir do conceito de ação racional weberiano. Um exemplo é a disputa entre o agronegócio e a agricultura camponesa, em que não existe possibilidade de convivência, porque “uma classe não se realiza no território de outra classe” (FERNANDES, 2008, p. 10), Recuperando a nossa proposta de sistematização das dinâmicas mobilizadoras da produção de conhecimento por movimentos sociais, reconhecemos que a Tradução é tão indispensável para a viabilização do Diálogo intercultural como para a realização da Ação estratégica. Isso porque a decodificação do pensamento do inimigo, mediante o procedimento da tradução, é fundamental para a elaboração de campanhas sociais e a sistematização dos quadros de ação coletiva, cujo processo construtivo se dá mediante o enquadramento dos problemas, de forma a atribuir-lhes sentidos e significados que reflitam os interesses de quem os promove. 68

Como ilustra o exemplo do embate entre o agronegócio e o campesinato, esta é uma guerra pela construção da hegemonia e as alianças táticas e estratégicas são vitais para a difusão das ideias, dos conceitos e da ideologia do movimento social, porque amplia as suas chances de conquista dos corações e mentes da sociedade. Munidos desses recursos, os movimentos entram na “disputa política pela construção da realidade social” com o Estado, a mídia e as instituições. Mas se o processo de elaboração das campanhas e dos quadros de ação coletiva envolve diálogo e a tradução intercultural, a sua aplicação na prática é uma ação estratégica com o propósito claro de mobilização da base e convencimento da sociedade. Em situações extremas, quando não há espaço para negociação com o oponente, o movimento pode, ainda, mobilizar esse arsenal cognitivo para promover a destruição moral ou física do opositor, como ilustra a campanha da Via Campesina pelo fim da OMC, que será mencionada mais a frente nessa mesma tese. A elaboração da proposta analítica aqui apresentada foi motivada por inquietações surgidas no processo da pesquisa, as quais se viram sem resposta, devido à carência de elaborações teóricas voltadas ao entendimento dos elementos constitutivos do processo de geração de novos conhecimentos e, com o seu desenvolvimento, esperamos ter contribuído para a ampliação desse debate. Em nosso entendimento, o Diálogo, a Tradução e a Ação estratégica não resumem as instâncias mobilizadoras da produção de conhecimento, mas apontam a tensões importantes das dinâmicas relacionais e interativas intramovimento e entre o movimento e outros atores, afins ou opositores. A discriminação que estabelecemos entre elas é meramente analítica, pois entendemos que, na dinâmica do mundo da vida, afetam-se mutuamente e continuamente e reconhecemos a intencionalidade do agente com a sua ação, como o principal elemento diferencial. Todas as três dinâmicas propostas a mobilizam relações sociais iniciadas com alguma intenção e, nesse caso, a diferença é de grau. Assim como podem referir-se a manifestações semânticas, expressivas e práticas. O Diálogo é, até certo ponto, uma ação espontânea e não consciente, mas o sujeito em relação tem sempre uma intenção com o seu ato de fala ou com a sua ação prática. Com o procedimento da Tradução, o sujeito em relação tem o interesse evidente de se fazer entender e de entender o outro. Já a Ação estratégica é uma ação autointeressada, em que a consecução do interesse do um implica necessariamente na não realização do interesse do outro.

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2. A SOBERANIA ALIMENTAR COMO OBJETO: SURGIMENTO, USOS E SENTIDOS

Após apresentar nosso referencial teórico no capítulo anterior, pretende-se aqui abordar a emergência da soberania alimentar nos debates políticos e teóricos contemporâneos, bem como sua polissemia e centralidade no quadro da discussão sobre a fome, a alimentação e as formas de emancipação. Pretende-se localizar o surgimento da soberania alimentar em um contexto de transformações globais do capitalismo, mas também de redefinição dos movimentos sociais que reinventaram estratégias de luta, articulações internacionais e criaram novas bandeiras (como a própria soberania alimentar). A argumentação divide-se em quatro partes: em primeiro lugar, discute-se a emergência e contornos do sistema agroalimentar neoliberal e suas consequências para o campo e os atores que nele vivem e se organizam; em segundo lugar, o foco é a disputa pelo controle das sementes como embate central da soberania alimentar e das formas de controle do atual sistema agroalimentar; em terceiro lugar, apresentamos o surgimento da soberania alimentar em escala global, examinando seus principais momentos e eventos de origem; finalmente, discutimos seus usos e sentidos principais, o que nos aproxima da diversidade de formas de entender e praticar a soberania alimentar.

2.1. Geopolítica da Fome e da Alimentação: o sistema agroalimentar neoliberal

Não é possível entender o surgimento da soberania alimentar, sem discutir o contexto estrutural mais amplo que estimulou o seu desenvolvimento: o sistema global de agricultura e alimentação de viés neoliberal, em vigência desde o final do século XX, e os seus impactos sobre os pequenos agricultores e os sujeitos rurais de todo o mundo. É importante, ademais, reforçar o papel estratégico da agricultura e da alimentação no desenvolvimento do capitalismo e na construção da economia capitalista internacional (MCMICHAEL, 2009; FRIEDMAN, 2003), desde os seus primórdios na Inglaterra (POLANYI, 2000) até os dias de hoje, quando, por exemplo, com a crise financeira iniciada em 2008 e o fechamento de certos mercados globais, como o imobiliário, radicalizou-se a visão do alimento como mercadoria. Nesse capítulo, a nossa intenção é localizar as diferentes fases do sistema agroalimentar neoliberal inaugurado no final do século XX, em relação ao desenvolvimento do capitalismo 70

nessa mesma época, de forma a fundamentar o nosso argumento e escapar ao discurso globalófilo dos 1990. Em uma perspectiva de longo prazo, o “primeiro regime agroalimentar global” (MCMICHAEL, 2009) emerge em meados do século XIX, inserido na lógica de expansão do sistema capitalista liderado pela Inglaterra em nível internacional, na década de 1870. Este regime, que vigorou aproximadamente até 1930, constou de duas redes agrícolas complementares. A primeira, o sistema de agricultura colonial especializado na produção de trigo e de gado e mobilizado pelo excedente de mão de obra gerado pela expansão capitalista na Inglaterra e em outros países da Europa. A outra, o sistema de produção colonial, desenvolvido nos países periféricos, especializada na produção de: açúcar, tabaco, café e cacau para exportação para os mercados europeus, e na produção de matérias primas (como o algodão, a madeira, a borracha, o índigo, a juta, o cobre e o estanho) para alimentar a revolução industrial em curso na Europa (MCMICHAEL, 2009; BELLO, 2012). Após um interregno de crises, protecionismo e guerras, e o fim da segunda grande guerra, emerge, em um olhar de médio prazo, o segundo regime alimentar global (BELLO, 2012, p. 45), que tampouco pode ser entendido sem a consideração da nova geopolítica mundial emergida em razão desses acontecimentos. De acordo com McMichael, "um regime agroalimentar é a estrutura de governança mundial que regula a produção e o consumo de alimentos em escala global" (MCMICHAEL, 2009, p. 91) e tanto é influenciado pelas relações internacionais como pela economia política, pois é definido por meio das práticas e dos embates entre uma constelação de atores em relação: os Estados, as organizações internacionais, as empresas capitalistas, os grandes e pequenos agricultores, os camponeses, além de outros atores sociais domésticos e transnacionais (FRIEDMAN, 2003). McMichael, (2009), Friedman (1999, 2003) e Bello (2012) estabelecem o período compreendido entre o fim dos 1940 e os 1970, como o marco temporal de vigência do segundo regime agroalimentar denominado, por Friedman, como o “regime de alimentação mercantil-industrial”, para enfatizar a sua origem no estado protecionista e o seu assentamento na agroindústria. Este regime estava baseado em um sistema de produção agrícola e de alimentos concentrado nos países centrais intensivos em capital e desenvolvido segundo um modelo que imitava a organização fordista da indústria do pós-guerra. Em termos de comércio mundial, o sistema estava marcado pela competição entre diferentes interesses: os Estados, o capital e os pequenos e grandes produtores rurais, estes últimos apoiados pelos seus respectivos Estados, por meio de subsídios e apoios financeiros.

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O que é frequentemente denominado como a exportação do modelo de produção e consumo norte-americanos é resultado de práticas específicas do regime agroalimentar do pós-guerra. Mas, como estão inseridos em contextos históricos, os seus efeitos foram diferenciados na Europa, no Japão e no terceiro mundo. Na Europa ocidental, a ajuda norteamericana veio através do Plano Marshall, que destinou 40% dos seus recursos à reconstrução da agricultura, principalmente por meio da exportação de fertilizantes e da importação de produtos europeus para os Estados Unidos, uma medida que vigorou até a recuperação do setor, quando os norte-americanos passaram a impor cotas de importação aos derivados de leite entre outros produtos europeus. Além das políticas de ajuda externa, o investimento direto das empresas norte-americanas também contribuiu para integrar a Europa ocidental à agroindústria norte-americana e a despeito da política protecionista norte-americana, criou-se um complexo transnacional agroalimentar centrado na economia atlântica, no qual a Europa entrava com o fornecimento de milho e de soja para a produção animal norte-americana e matéria-prima para a sua indústria alimentar. O sistema agroalimentar regido por Bretton Woods não impactou a vida dos pequenos agricultores norte-americanos e europeus da mesma forma como afetou os camponeses do Terceiro Mundo. Muito embora os subsídios europeus e norte-americanos fossem, na sua maioria, destinados às agroindústrias, a pequena agricultura também contou com o apoio dos seus respectivos países (BELLO, 2012), e o pior efeito da “Revolução Verde” para os camponeses do Norte Global foi, em verdade, o seu “êxito”. Já que a adoção de um modelo de agricultura químico e industrial, baseado na aquisição de insumos e de sementes híbridas, teve, como consequência, a perda da memória sobre os conhecimentos tradicionais camponeses destes países (RODRIGUES, 2003). Em relação ao mundo em desenvolvimento, é importante frisar que, no imediato pósguerra, os países da África e Ásia ainda eram, em sua maioria, colônias europeias e estavam excluídos do sistema internacional. Mas este quadro muda com o processo de descolonização afro-asiática, e o Terceiro Mundo torna-se um território em disputa entre os Estados Unidos e a União Soviética. Entre 18 e 24 de abril de 1955 ocorreu a conferência de Bandung, que reuniu líderes de 29 países provenientes da Ásia, Oriente Médio e África. Todos, exceto o Japão faziam parte do que posteriormente veio a ser conhecido como terceiro mundo. “Foi a partir desta data que os países de economia de dependência se deram conta de sua situação de fome e miséria e decidiram congregar os esforços para se auxiliarem mutuamente e libertarem-se de todas as formas de colonialismo” (CASTRO, 2003, p. 167), inclusive o neocolonialismo imposto pelas duas grandes potências da época: os Estados Unidos e a União 72

Soviética. “Os países ricos, perante essa nova realidade, estabeleceram planos concretos para acelerar o desenvolvimento, perigosamente lento, desses povos revoltados: foi a origem da cooperação internacional e da assistência técnica para o desenvolvimento” (CASTRO, 2003, p. 167). Os projetos de cooperação para o desenvolvimento tinham o objetivo explícito de promover a industrialização do terceiro mundo e modernizar a sua agricultura, inserindo-a na cadeia do regime de alimentação agro-industrial. E a intenção implícita de abrir uma nova fronteira para o capital, que penetrou nestes países através da exportação de tecnologias e de modos de gestão e organização racionais e modernos, que não tinham qualquer identificação com a cultura e os modos de organização social original. No domínio da agricultura, os países em desenvolvimento internalizaram o modelo agroindustrial promovido pela Revolução Verde e implementaram reformas agrárias, na intenção de conter as revoltas camponesas e ampliar as relações de mercado no campo (MCMICHAEL, 2009). Simultaneamente, o agronegócio norte-americano articulou o mundo em cadeias globais de abastecimento, caracterizadas pela complementaridade da produção destes países em relação aos Estados Unidos, estabelecendo, assim, uma nova “divisão internacional de trabalho” na agricultura mundial (MCMICHAEL, 2009, p. 141), da qual, os países do bloco soviético estavam excluídos e a Ásia parcialmente integrada (FRIEDMAN, 2003. P. 31). A doação de alimentos foi outra política de cooperação internacional implementada pelos Estados Unidos durante a Guerra-Fria, cujos maiores benefícios foram para o doador e não para o receptor da ajuda. Esta estratégia foi motivada tanto pelo interesse norte-americano em garantir o seu perímetro de influência no Terceiro Mundo, como pela sua necessidade de encontrar um destino para o seu excedente agrícola, resultado das políticas de apoio e subsídio à agricultura doméstica, somado ao processo de modernização tecnológica e de industrialização do setor e à recuperação da agricultura europeia. A "Public Law 480", principal instrumento de ajuda norte-americano para o terceiro mundo, foi uma adaptação de mecanismos específicos do Plano Marshall. Mas, diferentemente deste, não possuía clausulas que protegessem a agricultura local. Em consequência, países anteriormente autossuficientes na produção de trigo, no final de duas décadas estavam dependentes da importação do produto, enquanto, paralelamente, os produtos tropicais, dentre os quais: o açúcar e os óleos vegetais, sofriam declínio nos termos de troca. Apesar do seu viés caritativo, as políticas de doação e exportação de alimentos para a África, por um valor abaixo do custo de produção, contribuiu para desmantelar as estruturas 73

agrícolas locais e aumentar a fome nos países receptores. Já para a agroindústria norteamericana representou uma solução para o escoamento de sua produção excedente, redirecionada, através desta política, para os estados pós-coloniais. Além da exportação de alimentos subsidiados ao terceiro mundo, a Revolução Verde e o processo de modernização do campo colaboraram para desmantelar a estrutura agrícola tradicional dos países pós-coloniais. A rápida expansão das relações de mercado contribuíram para erodir as relações tradicionais de cooperação e de ajuda mútua e a prática de uma agricultura diversificada e com respeito aos limites e demandas da natureza (BELLO, 2012). Em suma, a imposição de um modelo de desenvolvimento descontextualizado, pretensamente universal, erigido sem consulta aos beneficiários dos projetos foi um dos principais fatores responsáveis pelo fracasso das políticas de desenvolvimento do terceiro mundo, entre as décadas de 1950 e 1970 (CASTRO, 2003). O sistema agroalimentar, em curso desde a década de 1980, caracteriza-se por ter integrado a totalidade do mundo por meio das suas políticas de viés neoliberal e pela intensificação da concentração corporativa do setor (MCMICHAEL, 2009; BELLO, 2012; HOLT-GIMÉNEZ e ALTIERI, 2013; FRIEDMAN, 2003) e pode ser subdividido em dois momentos diferentes: um primeiro momento, na década de 1990 e na mudança de século, quando o conceito de soberania alimentar surge e se difunde no cenário internacional, a crise alimentar foi devida ao baixo preço dos alimentos (FRIEDMAN, 1993; BELLO, 2012; VIA CAMPESINA, 2003); em um segundo momento, cristalizado a partir da crise financeira iniciada em 2008 nos países centrais, o mundo vive uma nova crise alimentar, a qual, diferentemente da primeira, é caracterizada pelo alto preço dos alimentos (HOLT-GIMENEZ, 2012; CLAPP, 2013; BRINGEL e STRONZAKE, 2013). De forma que, se na década de 1990 o maior problema para os camponeses e pequenos agricultores era a queda no preço dos produtos agropecuários, devido à concorrência desleal provocada pelas exportações a baixo custo e a prática de dumping (VIA CAMPESINA, 2003), e pela perda da autonomia dos Estados sobre a definição de suas políticas agrícolas, o principal problema, nos últimos anos, é a crescente especulação e a concentração alimentar. Ao olharmos para a década de 1990, quando se consolida o sistema agroalimentar neoliberal, é imprescindível mencionar a fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1995. A qual está diretamente relacionada à crise agrícola da década de 1970, que intensificou as disputas comerciais entre os Estados Unidos e a Europa, e levou as duas partes a pressionarem em favor da criação de uma organização mais poderosa e mais equipada: técnica, jurídica e financeiramente do que o GATT (DELGADO e MALUF, 74

2002). As mudanças implementadas pela política agrícola da OMC beneficiaram principalmente as grandes empresas transnacionais, em detrimento dos interesses dos sindicatos de camponeses e trabalhadores, entre outros atores sociais (FLORES e ALMEIDA, 2002). Isto se deve à mudança no direcionamento da política agrícola dos Estados, que passou a ser definida segundo regras internacionais que prescrevem: o fim dos subsídios agrícolas, a liberalização dos mercados e a exportação, tendo como objetivo principal, a liberalização total da agricultura. Levando-se em consideração que o Estado não é uma caixa preta, a política agrícola da OMC refletiu a relação de força entre os distintos atores sociais por ela afetados, e o segundo fator que explica o longo processo de negociação e o seu desfecho é o controle corporativo do sistema agroalimentar, em processo desde o fim da segunda guerra-mundial. Fomentado pelas políticas norte-americanas de apoio à exportação dos seus excedentes agrícolas, somado à impossibilidade do estado controlar ou mesmo monitorar essas exportações (FRIEDMAN, 1993, p. 53), o processo de industrialização e tecnologização do setor agroalimentar contribuiu para a criação de uma rede global formada por produtores e consumidores e controlada pelas grandes empresas norte americanas de alcance transnacional (IBID). E essas grandes corporações foram os principais agentes da regulação das regras de funcionamento do regime agroalimentar neoliberal, seja agindo por meio da influência direta sobre o congresso norte-americano ou do lobby junto às organizações internacionais (SCHOLTE, 2005). O Acordo sobre Agricultura (AoA) da Rodada do Uruguai foi desenhado a partir de duas premissas básicas: a sua primeira e principal finalidade era a redução de barreiras governamentais à circulação de bens e serviços, incluindo a liberalização do comércio agrícola realizada de forma indiscriminada, sem que se considerasse o nível de desenvolvimento econômico dos países. A segunda recomendação estipulava que os compromissos e regras formulados em relação aos limites aos subsídios agrícolas obtivessem o consenso dos dois principais atores: os Estados Unidos e a Comunidade Econômica Europeia. Apesar de suas disposições reformistas em relação ao acesso a mercado, ao apoio doméstico e aos subsídios à exportação, o acordo final resultou muito mais favorável aos países desenvolvidos do que aos demais, pois manteve as políticas domésticas dos Estados Unidos e da União Europeia “não só generosamente afastadas das intenções reformistas, como acabou legitimando seu caráter protecionista através da introdução das chamadas ‘caixas’ de políticas, complementadas pelo patético Artigo 13, da ‘Devida Moderação’” 75

(DELGADO e MALUF; 2002, p.9). Por outro lado, a proposta do Regime de Bretton Woods de estabilização do campo e aumento da produção dos pobres a partir da ajuda externa e da concessão de subsídio fracassou em todas as partes (BELLO, 2012, p. 56) e findou por completo no princípio dos 1980, sendo substituída pelos planos de ajuste estrutural conduzidos pelo Banco Mundial. No caso específico da agricultura, o ajuste estrutural implicou: A desregulação dos mercados de terra e a mudança de rumo da reforma agrária, cortes drásticos nas subvenções agrícolas e no controle dos preços e a retirada do apoio à irrigação por parte dos Estados pós-coloniais e do Banco Mundial; a expansão do uso das biotecnologias agrárias e a mercantilização das sementes e da sua reprodução; uma dependência cada vez maior dos produtos agrícolas químicos e biológicos e dos hidrocarbonetos; o desvio da produção de alimentos para a produção de gado para exportação; a expansão dos cultivos comerciais voltados à alimentação de gado para exportação; a exportação de produtos muito especializados: frutas frescas, verduras e flores ornamentais para os centros de consumo mundiais (ARAGHI, apud BELLO, 2012, p. 23-24) Avançando no tempo e, conforme já adiantado, em 2008 o mundo viveu uma nova crise alimentar, desta vez devido a um pico no preço das commodities agrícolas no mercado internacional, e, com exceção dos anos de 2009 e 2010, os preços mantiveram-se a um valor bem acima do ano de 2008 (FAO, 2013). A alta do preço dos alimentos é devido à soma de diferentes fatores, todos associados à dominância do capitalismo financeiro na economia mundial e à intensificação dos processos de liberalização, privatização e comodificação do sistema agroalimentar, que se retroalimentam e são tanto causa como efeito uns dos outros. Harvey (2004b) ajuda-nos a entender esse processo. Conforme o autor, o sistema de crédito e o capital financeiro, identificados por Marx como mecanismos importantes de acumulação primitiva, foram aprimorados e somados a mecanismos inteiramente novos de “acumulação por espoliação” que conferem novo valor de uso aos recursos produtivos da agricultura. Ademais, a preocupação com o aquecimento global e a finitude das reservas de petróleo criou a oportunidade para o capitalismo desenvolver um novo paradigma: a “economia verde” definida pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente: PNUMA como “aquela que resulta em melhoria do bem-estar humano e da igualdade social, ao mesmo tempo em que reduz significativamente os riscos ambientais e a escassez ecológica” (PNUMA, 2011, p. 1-2). 76

Embora caracterizada como “eficiente no uso dos recursos e socialmente inclusiva” (Ibid), a economia verde tem contribuído a ampliar o aquecimento global, a perda da biodiversidade, e, principalmente, o agravamento do controle corporativo sobre os recursos naturais (sementes, o código genético de plantas, água, terra agriculturável, territórios, biossistemas, rios, oceanos, etc.), porque abriu duas novas fronteiras muito atraentes para o grande capital: a transformação de biomassa em energia e o desenvolvimento de novas tecnologias para a transformação de açucares derivados de plantas em produtos industriais. A agricultura transgênica, a propriedade intelectual sobre “formas de vida”, a transformação da biomassa em energia e de alimento em fonte de energia alternativa ao petróleo, e o processo de financeirização dos alimentos e dos meios de produção agroalimentar criaram novas oportunidades de “acumulação por espoliação” e despertaram interesse, pelo setor agrícola, em atores antes fora do circuito. Em consequência, o controle corporativo de todo o complexo agroalimentar tem se intensificado, incluindo os setores de produção, distribuição e pesquisa a ele relacionados e é este conjunto de fatores associados que responde pela atual crise alimentar e define o seu perfil. Outra decorrência do interesse de novos atores capitalistas pelo setor agrícola foi uma alteração no perfil da luta de classes no campo. Se antes o embate era entre o pequeno produtor, o posseiro, o sem terra e o latifundiário. Na atual conjuntura, a oposição é entre o capitalismo transnacional – eventualmente associado à velha oligarquia rural – e os pequenos e médios produtores rurais, camponeses, indígenas, além de todos os outros atores do campo que não adotam o modelo do agronegócio ou terminam sendo expulsos do mercado, pela sua dinâmica concentradora e perversa. A crise imobiliária do fim da década de 2000 impeliu os investidores – notadamente os fundos de Risco, os fundos especulativos de cobertura (hedge funds) e os Fundos de Pensão – a buscarem novas frentes onde alocarem os seus investimentos, e o mercado futuro de alimentos e o de matérias primas transformaram-se no destino preferencial destes recursos (CLAPP, 2013; BELLO, 2012). Embora o mercado de futuros agrícola não seja uma criação recente, ele vem sendo paulatinamente desregulado nos últimos anos e a falta de regulação transformou os alimentos em uma commodity sujeita à manipulação artificial de preços, o que estimulou a criação de novos fundos de investimento, exclusivamente, especializados em terras de cultivo. As maiores empresas de produção de grãos: a Archer Daniels, a Midland, a Bunge, a Cargill e a Louis Dreyfus passaram a vender produtos financeiros vinculados à agricultura e os bancos comerciais, por sua vez, participam cada vez mais do comércio de matérias primas, como demonstra o exemplo do mercado de trigo norte-americano, cuja 77

participação dos especuladores financeiros passou de 12% nos meados dos 1990 a 61% no ano de 2011 (CLAPP, 2013, p. 21). Tanto a cadeia de produção como a de distribuição de alimentos está em poder da iniciativa privada e a consequência é o aumento da insegurança alimentar dos povos e dos países. Diferentemente dos estoques públicos, que têm como finalidade manter o equilíbrio do preço dos alimentos, os estoques privados servem à especulação. Quando o preço de um dado alimento cai, o mercado retira os estoques de venda, elevando artificialmente o seu preço, antes de reinseri-lo no mercado e vendê-lo. A volatilidade dos preços dos alimentos, associada ao incremento dos investimentos financeiros nos derivados de matérias primas agrícolas, também impactou a vida dos pequenos agricultores e camponeses, no que tange ao acesso aos recursos produtivos e à terra (CLAPP, 2013; BELLO, 2012; IPCGROUP, 2013; COTULA, DYER e VERMEULEN, 2008). Além de incitar a volatilidade do mercado de alimentos (BELLO, 2012) e impactar diretamente no preço de culturas como o açúcar, o milho e a soja12 (COTULA, DYER e VERMEULEN, 2008), a disseminação do plantio comercial de agrocombustíveis, seja para exportação ou para os mercados internos, tem implicações significativas sobre a destinação, o valor e o acesso à terra agriculturável nos países produtores. Em consequência, apesar do grau atual de desenvolvimento tecnológico ter reduzido a importância da manutenção de um exército de reserva de mão de obra, como garantia de funcionamento do sistema capitalista, a expulsão de populações camponesas e a formação de um proletariado sem terra têm se acelerado. De acordo com um estudo patrocinado pelo Instituto Internacional para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (IIED na sigla em inglês), em 2006, aproximadamente 14 milhões acres de terra agriculturável (o que equivale a 1% do total mundial) foram destinados à produção de agrocombustíveis e derivados. E a estimativa é que, em 2030, a produção mundial de agrocombustíveis demande 35 milhões de acres (25% da terra agriculturável disponível, o que equivale, aproximadamente, aos territórios da França e da Espanha somados) ou 53 milhões de acres, no pior cenário (COTULA, DYER e VERMEULEN, 2008). Ainda de acordo com essa análise, as reservas mundiais de terra agriculturável são muito limitadas e desigualmente distribuídas. Quase toda a área cultivável da Ásia, Europa e 12

65% do óleo vegetal norte-americano, 50% da produção de cana de açúcar brasileira e 40% do milho europeu estão sendo destinados à produção de agrocombustíveis (FAO, 2012. P. 90).

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América do Norte já estão em produção ou são cobertas por florestas, e os 80% restantes estão concentrados na América do Sul e na África. E as principais regiões nas quais a produção de agrocombustíveis para exportação devem se ampliar são: o Brasil e países da Ásia, África e Caribe. Em longo prazo, os países tropicais devem ampliar a sua participação nesse mercado, devido às suas condições biofísicas e ao baixo custo de mão de obra e da terra (COTULA, DYER e VERMEULEN, 2008). Mas, embora gere divisas, a produção de agrocombustíveis ou de matéria prima para a sua produção em outros países, não tem impulsionado o desenvolvimento sustentável nessas regiões, pois além dos impactos ambientais, a dinâmica do agronegócio induz à concentração de terras e ao aumento da desigualdade social. Um exemplo emblemático é o Brasil: o maior produtor e exportador de cana de açúcar (FAO, 2013, p. 8), a maior parte destinada à produção de etanol. Em 2008, 70% das terras destinadas ao cultivo da cana pertenciam a apenas 340 usinas de escala industrial e os 30% restantes estavam distribuídos por 60.000 pequenos proprietários de terras, com participações médias de 27,5 ha, e muitas destas terras não eram exploradas pelos agricultores, mas arrendadas para grandes usineiros (COTULA, DYER e VERMEULEN, 2008, p. 37). Conquanto a economia verde também reconheça o papel inegável da manutenção das florestas para a garantia do esfriamento do planeta, este quadro aponta para sérias consequências futuras, de natureza social e ambiental, em nível mundial e particularmente nessas regiões. Por meio da criação de um mercado internacional de crédito de carbono, os países do Sul, detentores da maior parte das florestas, recebem pela redução certificada das emissões derivadas do desmatamento e da degradação florestais. No entanto, o setor florestal é interpretado de forma abrangente, o que permite que as monoculturas industriais de árvores para a produção de biomassa — apelidadas de Deserto Verde, pelas consequências danosas ao meio ambiente — sejam consideradas como florestas tanto pela FAO como pela UNFCCC (Moreno, 2012). Além de destruir o solo, a expansão deste tipo de cultivo em larga escala tem contribuído para a concentração de terras e para o deslocamento forçado de camponeses, agricultores e indígenas, como aconteceu no Sul da Bahia e no Espírito Santo e em outras regiões do Brasil e do mundo (DE SOUZA e OVERBEEK, 2008). Finalmente, outra questão particularmente importante para esta tese é o controle corporativo sobre as sementes — o primeiro elo da cadeia alimentar — e a concentração de sementes na mão de poucas empresas transnacionais tem gerado consequências dramáticas, de natureza cultural, social e ambiental, conforme pretendemos mostrar a seguir.

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2.2. Quem Controla as Sementes Controla o Sistema Alimentar O mercado global de sementes é cada vez mais concentrado e quem controla as sementes ganha um controle substancial sobre todo o sistema alimentar (KLOPPENBURG, 2010). Entre 2004 e 2005, a ETC realizou um estudo sobre o mercado mundial de sementes, cujo resultado apontou que apenas dez empresas controlavam 49% do mercado mundial, com um faturamento da ordem de US$21 Bilhões ao ano. Em 2009, a organização atualizou este estudo e constatou que a concentração é ainda maior, pois as mesmas dez empresas passaram a controlar 73% do mercado mundial de sementes, com um faturamento estimado (em 2009) na ordem de US$27bilhões a/a (ver tabela 1). Tabela 1 — As 10 maiores companhias de sementes Empresa

Venda de sementes / 2009

Fatia de mercado

1. Monsanto (USA)

7,297

27%

2. DuPont (Pioneer) (USA)

4,641

17%

3. Syngenta (Switzerland)

2,564

9%

4. Groupe Limagrain (France)

1,252

5%

5. Land O’ Lakes/Winfield Solutions (USA)

1,100

4%

6. KWS AG (Germany)

997

4%

7. Bayer CropScience (Germany)

700

3%

8. Dow AgroSciences (USA)

635

2%

9. Sakata ( Japan)

491

2%

10. DLF-Trifolium A/S (Denmark)

385

1%

Total

20,062(US$ million)

73%

Fonte: ECTGroup, 2011, p. 22

A concentração do mercado de sementes em apenas 10 empresas transnacionais, provavelmente ainda maior nos últimos cinco anos, representa uma grave ameaça à segurança alimentar dos Estados, porque os países perdem soberania sobre a sua agricultura. No estudo de 2005, a análise específica do setor de sementes geneticamente modificadas revelou que as pesquisas, produção e comercialização de sementes transgênicas estavam sob o domínio de apenas três empresas: a Monsanto, a Dupont e a Syngenta, as mesmas empresas líderes no mercado de pesticidas, cujo faturamento neste mesmo período foi da ordem de $35,400 milhões a/a. O resultado do estudo recente aponta que as mesmas três empresas controlam

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53% do mercado global de sementes comerciais e a Monsanto continua a líder do setor, com 27% do mercado comercial de sementes, mais de um quarto do total. Na área de agroquímicos, cinco das seis maiores empresas dominam também o mercado de sementes, e a Basf, única sem presença neste setor, tem acordos e projetos conjuntos com a Monsanto e a Bayer. Vejamos a Tabela 2.

Tabela 2 — As 10 maiores companhias de agroquímicos Empresa

Venda de agroquímicos /2009

Fatia de mercado

1. Syngenta (Switzerland)

8,491

19%

2. Bayer CropScience (Germany)

7,544

17%

3. Basf (Germany)

5,007

11%

4. Monsanto (USA)

4,427

10%

5. Dow AgroSciences (USA)

3,902

9%

6. DuPont (USA)

2,374

5%

7. Sumitomo Chemical (Japan)

2,082

5%

8. Nufarm (Australia)

2,042

5%

9. Makhteshim-Agan Industries (Israel)

2,042

5%

10. Arysta LifeScience (Japan)

1,196

3%

Total

39,468

89%

Fonte: ECTGroup, 2011, p. 25

Por meio do domínio sobre as sementes, as grandes corporações também controlam a produção de alimentos, o que será produzido, os insumos que serão utilizados e onde os alimentos serão comercializados. E a consequência tem sido uma perda dramática da diversidade genética, já que as empresas oferecem para venda apenas as sementes com mais alto valor comercial e abandonam o restante (ITC GROUP, 2011). E todo este processo tem sido beneficiado pelos acordos de propriedade intelectual sobre variedades genéticas, os quais vêm paulatinamente reduzindo os “direitos do melhorista” e os “direitos do agricultor”, com prejuízos incomensuráveis para a agro-biodiversidade.

A Propriedade Intelectual sobre formas de vida A agro-biodiversidade, ou diversidade agrícola, constitui uma parte importante da biodiversidade e engloba todos os elementos que interagem na produção agrícola: os espaços cultivados ou utilizados para criação de animais domésticos, as espécies direta ou indiretamente manejadas, como as cultivadas e seus parentes 81

silvestres, as ervas daninhas, os parasitas, as pestes, os polinizadores, os predadores, os simbiontes (organismos que fazem parte de uma simbiose, ou seja, que vivem com outros) etc., e a diversidade genética a eles associada – também chamada de diversidade intraespecífica, ou seja, dentro de uma mesma espécie. E a diversidade de espécies, também chamada de diversidade interespecífica (SANTILLI, 2009, p. 91-92). Até 1930, os camponeses detinham completa soberania sobre as sementes, decidiam quais sementes plantar, quais armazenar e quem mais iria receber estas sementes, seja como alimento ou como insumo. Estas decisões eram tomadas segundo as normas estabelecidas por cada cultura e comunidade da qual eram membros (KLOPPENBURG, 2011). A ideia de criação de um sistema que regulamente a propriedade intelectual sobre as espécies de plantas está vinculada à transformação do trabalho de desenvolvimento de uma nova variedade vegetal, antes visto como uma prática tradicional realizada por agricultores desde tempos imemoriais, em um trabalho “científico” e especializado e, portanto, passível de ser explorado pelo capital. Este foi um processo capitaneado pelos Estados Unidos, que editou o primeiro mecanismo legal voltado à proteção de obtenções vegetais. No início do século XX, os melhoristas profissionais, principalmente as grandes empresas, pressionaram pela criação de um sistema de patentes para a proteção de plantas, sob a alegação que a fácil reprodução das sementes impedia-os de auferirem ganhos econômicos com o seu investimento. A introdução dos híbridos, nos 1920-1930, alterou um pouco esta situação, pois esse tipo de semente não mantém a mesma produtividade de uma safra para a outra, mas, como os híbridos não funcionam bem para espécies de alto valor comercial, como o trigo, o arroz, a soja, o algodão e algumas hortaliças, as empresas pressionaram pela criação de um mecanismo legal que impedisse os agricultores de continuarem a guardar e a replantar sementes, o chamado “controle legal”, que difere do “controle biológico” ou “natural” de que gozam os híbridos. Em resposta a essa pressão, em 1930, os Estados Unidos editam a “Lei de Patentes de Plantas” voltada, exclusivamente, à propriedade intelectual sobre variedades de plantas de propagação vegetativa. Em 1970, os Estados Unidos editam a “Lei de Proteção às Variedades de Plantas” que, ao contrário da “Lei de Patentes” de 1930, só se aplica a espécies de variação sexuada, como o milho, e, nesta lei, os “privilégios do melhorista” e os “direitos do agricultor” ainda estavam salvaguardados. Em 1952 é editada a Lei de Patentes que estendeu a proteção por “patentes de utilidade” a outras invenções da área agrícola, como máquinas, equipamentos e agroquímicos, 82

e a ampliação do escopo abriu a brecha para o futuro patenteamento de inovações biotecnológicas e dos organismos geneticamente modificados, quando foi aprovada uma emenda à “Lei de Proteção às Variedades de Plantas”, que adequou a legislação norteamericana à convenção da UPOV. Esta emenda estendeu a proteção às plantas que se propagam por tubérculos e às primeiras gerações de híbridos (denominados como F1), e às variedades “essencialmente derivadas” resultantes de engenharia genética. Esta emenda também passou a proibir os agricultores de venderem sementes de variedades protegidas, sem a permissão dos titulares das patentes, mas ainda admitia a guarda de sementes para plantio na terra do agricultor, em uma próxima safra. A legislação, criada nos Estados Unidos, foi considerada inadequada pelos europeus, segundo quem, um sistema de patentes não se aplicava à propriedade intelectual de obtenções vegetais e o mais correto seria a criação de um sistema de proteção sui generis, que garantisse o chamado “direito do melhorista” e não interviesse no “privilégio do agricultor”. Em 1957, então, realiza-se em Paris, por iniciativa da França, a Conferência Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas, em que foram desenvolvidos os princípios posteriormente incorporados à Convenção Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais: UPOV13 assinada em 1961. Mas, mesmo tratando-se de um sistema de propriedade intelectual mais adequado à proteção de obtenções vegetais, do que o sistema de patentes norte-americano, o Sistema de Proteção de Cultivares europeu foi desenhado para atender aos interesses do capital, pois foi concebido tendo em vista proteger o “trabalho de inovação realizado por melhoristas de instituições públicas e privadas, por meio de métodos e técnicas considerados “científicos”, que resultam, em geral, em cultivares homogêneos e estáveis, adaptados ao modelo agrícola industrial”. E, embora não crie restrições aos “direitos dos agricultores”, desconsidera que, até então, o trabalho de seleção e desenvolvimento de novas espécies vegetais e animais era exclusivamente realizado pelos agricultores (SANTILLI, 2009, p. 174). Diferentemente do sistema norte-americano, a UPOV protege as inovações realizadas pelos melhoristas, mas garante o chamado “direito do melhorista”, ou seja, o acesso livre e gratuito aos recursos genéticos. O que, na prática, significa que o direito de propriedade sobre as variedades protegidas não impede os melhoristas de utilizarem quaisquer variedades como fonte de variação genética, mesmo sem autorização do melhorista que obteve as variedades

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UPOV é a sigla da “Union Internationale pour La Protection des Obtencions Vegétales”: a organização intergovernamental responsável pela gestão e implementação da Convenção Internacional para a Proteção das Obtenções Vegetais.

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que lhes deram origem, pois se entende que o trabalho de criação e de inovação demanda acesso a mais ampla diversidade genética possível. O “privilégio do agricultor” ou “direito dos agricultores” também é assegurado no modelo europeu, que reconhece a prática milenar do agricultor, de reservar e reproduzir sementes para uso próprio – ainda que de variedades protegidas – como um direito costumeiro e, portanto, isento de qualquer restrição. Mas, a convenção da UPOV tem passado por sucessivas revisões (1978, 1991), que instituem uma restrição cada vez maior aos “direitos dos agricultores” e aos “direitos dos melhoristas” e a aproxima, cada vez mais, do sistema de patentes norte-americano. Em relação aos “direitos do agricultor”, a ata de 1978 estabelece que os agricultores podem guardar as sementes de variedades protegidas para utilizá-las nas safras seguintes, sem necessidade de autorização do obtentor. Mas, pela ata de 1991, os agricultores só podem guardar as sementes, se as suas leis nacionais assim o permitirem. A venda de variedades de sementes protegidas, pelos agricultores, fica proibida, assim como o intercâmbio de sementes. Caso a lei doméstica assim o permita, os agricultores podem reproduzir as sementes guardadas em suas próprias terras e plantá-las, apenas, em suas propriedades. As leis nacionais podem limitar a extensão de áreas e a quantidade de sementes e de espécies a que se aplica o direito do agricultor de reutilização de sementes. Como visto, antes da criação do Tratado de Propriedade Intelectual (TRIPs) da OMC, havia dois modelos bastante distintos: o sistema de patentes para a proteção de plantas criado nos Estados Unidos, e o Sistema de Proteção de Cultivares europeu, e as suas diferenças incidem diretamente sobre os “direitos do melhorista” e os “direitos dos agricultores”. Com o tempo, ocorreu um processo de convergência entre os dois modelos e quando o Acordo TRIPs foi firmado, as suas principais diferenças haviam sido atenuadas. O sistema UPOV deixou de ser uma alternativa ao sistema de patentes, já que a Ata de 1991 passou a permitir que o direito de obtentor seja utilizado como proteção adicional às patentes e, atualmente, todo país que queira se tornar membro da UPOV deve obrigatoriamente aderir à ata de 199114. De acordo com Santilli (2009), o Acordo TRIPS é um marco porque rompeu com os princípios adotados pelas convenções internacionais editadas até a sua entrada em vigor. Até a edição da TRIPS, os países não eram obrigados a aderirem a qualquer convenção internacional sobre propriedade intelectual, o que se tornou obrigatório após a conclusão do tratado, porque virou condição sinen quan non para um país tornar-se membro na OMC. Até 14

Para mais detalhes sobre o processo, consultar “Agrobiodiversidade e direito dos agricultores”, de autoria de Juliana Santilli (2009)

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então, as questões relativas à propriedade intelectual eram tratadas, internacionalmente, na OMPI: uma agência da ONU, na qual a atuação dos países em desenvolvimento se dava em bloco. Na OMC isso não acontece, porque o interesse em barganhar vantagens comerciais individuais inviabiliza uma tomada de posição comum e deixa os estados mais vulneráveis à pressão norte-americana. De acordo com o TRIPS, todos os países-membros devem conceder proteção a variedades vegetais, podendo optar entre: um sistema de patentes, um sistema sui generis ou a combinação de ambos. Como o texto não explica o que é um sistema sui generis, a maioria dos estados optou por seguir a convenção da Upov, por meio da aprovação de leis nacionais com base em uma de suas atas (de 1978 ou de 1991), ou apenas inspirada em seu modelo. A Lei de Cultivares do Brasil, editada em 199715, é um exemplo. A opção pela UPOV, diz Santilli (2009), se deve a duas principais razões, uma delas é que as leis desenhadas de acordo com este modelo tendiam a ser aceitas com mais facilidade pelo Conselho do acordo TRIPS. A segunda razão era a concessão de ajuda técnica na formulação da Lei, por parte da UPOV e da OMPI, com a qual a primeira tem um vínculo estreito 16. De acordo com a TRIPS, os países-membros não são obrigados a implementar, em suas legislações nacionais, uma proteção mais ampla do que aquela prevista no acordo. Mas, na prática, isso acontece por meio de acordos bilaterais e regionais de Livre comércio, os chamados TRIPs-Plus, os quais impõem obrigações não previstas no Trips, como a obrigação de patenteamento de plantas, animais e invenções biotecnológicas e a adesão obrigatória à convenção da UPOV de 1991, diferente daquela ratificada em 1961. Um estudo realizado por economistas do Banco Mundial (ACTIONAID, 2003, p.3) afirma que os custos da implementação das TRIPS para os países em desenvolvimento são extremamente altos. O Banco estima que a perda total é da ordem de 10,1% do PIB da Coréia do Sul, 1,4% do PIB da China e 0,6% do PIB da Índia. O estudo conclui que a implementação da TRIPS desloca recursos já limitados, de áreas prioritárias, como: agricultura, saúde e educação, para resolver uma questão de harmonização legal que facilita as operações das multinacionais. Como visto, os diferentes sistemas agroalimentares são definidos de acordo com as relações de poder entre os Estados e para atender os interesses capitalistas. Mas, muito embora os processos de internacionalização e concentração da cadeia agroalimentar tenha se 15 16

Lei 9.456, de 25/04/1997, regulamentada pelo decreto 2.366 de 1997. Como demonstra o fato do secretário-geral da UPOV, Francis Gurry, ser também diretor geral da OMPI

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iniciado com o regime de Bretton Woods, no sistema agroalimentar neoliberal, este fenômeno está associado ao domínio e à privatização do conhecimento agricultural e de sementes e de outros recursos naturais nas mãos de poucas empresas multinacionais. Até o advento da revolução verde, a semente era uma dádiva da natureza e o conhecimento milenar nela contido era propriedade dos povos. Com o advento da agricultura transgênica, no final da década de 1980 e início dos 1990, a situação agrava-se, pois o modelo altera a lógica de (re)produção no campo, ao transformar a semente, até então um bem público e um insumo natural, em um bem privado e um código informacional, cuja reprodução passa, ainda, a estar sujeita à cobrança de royalts. Pelo seu alcance global, esta nova fase da geopolítica da alimentação representa o maior desafio histórico para os sujeitos do campo, mas, contraditoriamente, também criou a principal oportunidade para a construção de alianças com aqueles não diretamente relacionados à agricultura. As consequências da globalização também ampliaram o espaço de questionamento da racionalidade e da ciência moderna, percebidas como instrumentos a serviço do desenvolvimento da modernidade e do capitalismo, e a Soberania Alimentar surge no fim do século XX, não por acaso.

2.3. O Mito de Origem e suas Tensões Constituintes Como forma de resistir à globalização do sistema agroalimentar neoliberal, à visão restringida de segurança alimentar preconizada pela maioria dos governos e instituições nacionais e internacionais e a todo o cenário até aqui descrito, no início da década de 1990 é criada a noção de soberania alimentar, no seio do movimento camponês internacional Via Campesina. De acordo com o qual, fome e alimentação não são questões limitadas ao domínio da economia e não podem ser resolvidas com medidas exclusivamente técnico-produtivas, como postulado pelo atual sistema agroalimentar neoliberal. Trata-se de um conceito guarda-chuva que serve à legitimação de práticas tradicionais de agricultores de todo o mundo, assim como à validação de soluções inovadoras desenvolvidas pelos movimentos sociais membros da rede Via Campesina, em seus contextos e lugares. A conceituação surgiu como um conceito político, tornou-se um "quadro de ação coletiva" e, em nossa avaliação, evoluiu como um "programa de conhecimento" socialmente construído por meio da troca e do diálogo entre os diferentes sujeitos coletivos que compõem a Via Campesina, cientistas e outros atores sociais e institucionais críticos do sistema agroalimentar neoliberal dominante.

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A soberania alimentar é, ao mesmo tempo, direito humano, cultura, identidade, bem comum, saúde, respeito à natureza e ao meio ambiente, agroecologia, economia moral, igualdade de gênero, consumo consciente, autonomia, solidariedade, soberania popular e estatal. E o seu conteúdo polissêmico fez com que conquistasse lugar de destaque na resistência popular à globalização neoliberal e passasse a legitimar discursos e ações de atores desconectados da questão rural e tão diversos como: hackers, feministas, movimentos étnicos e separatistas, cientistas, promotores do comércio justo, ambientalistas, etc. A versão mais conhecida sobre a gênese da Soberania Alimentar afirma que o conceito foi originalmente criado pelo movimento internacional Via Campesina e tornado público durante a Assembleia Global sobre Fome e Alimentação: AGFA organizada pela FAO, em 1996 (DESMARAIS, 2003). Esta narrativa é confirmada pela Via Campesina, segundo quem, a noção de Soberania Alimentar teria sido forjada em 1996 durante a sua Segunda Conferência Internacional realizada em Tlaxcala no México (VIA CAMPESINA, 1996). No entanto, conforme Edelman (2013, p. 2-8), a origem da expressão “soberania alimentar” é anterior à década de 1990 e mesmo à criação da Via Campesina. Edelman investiga as origens remotas do conceito e descobre que o termo foi usado pela primeira vez em 1983, pelo governo mexicano, em seu “Novo Programa Nacional de Alimentação”: PRONAL, cujo objetivo principal era atingir a “Soberania Alimentar” entendida como: Mais do que autossuficiência em alimentação, implica o controle nacional sobre diversos aspectos da cadeia alimentar, reduzindo a dependência do capital externo e da importação de alimentos básicos, imput e tecnologia. O fator chave desta estratégia é a adoção de um foco holístico nas políticas relacionadas às fases da produção, transformação, comercialização e consumo (EDELMAN, 2013, p. 6). Este autor aponta ainda que o conteúdo e o sentido posteriormente atribuídos, pela Via Campesina, à sua versão de Soberania Alimentar não difere muito do sentido dado à Segurança Alimentar por governos da América Central, ainda nos 1980. E que há registros do uso da própria expressão Soberania Alimentar em discursos de governos e de movimentos sociais da região, nesta mesma época. Assim como a noção de Soberania Alimentar dos 1990, a conceituação de Segurança Alimentar adotada pelo “Ministério do Desenvolvimento, da Agricultura e da Reforma Agrária” da Nicarágua em1983, quando o governo sandinista estava no poder, também valorizava a cultura e pregava a autossuficiência dos estados na produção de alimentos para a sua população. Nessa mesma época, na Costa Rica, tanto o governo como 87

movimentos sociais rurais de viés mais radical defendiam que a autossuficiência do estado na produção de grãos básicos e de arroz era o que garantiria a “autonomia alimentar”. Um destes movimentos, a União dos Pequenos Agricultores da Região Atlântica (UPAGRA), formada prioritariamente por produtores de milho, era uma força dominante na coalizão camponesa denominada como “Conselho Justiça e Desenvolvimento”, de onde saíram vários líderes da então futura Via Campesina. De acordo ainda com Edelman, ativistas rurais da Costa Rica também já haviam usado o termo "Soberania Alimentar" em discursos contra o dumping e a favor do controle nacional sobre as exportações agrícolas, ainda em 1991. E, pelo menos, dois destes líderes estiveram envolvidos nas reuniões seminais onde se discutiu a criação da rede (EDELMAN, 2013). Os “Programas de Formação em Segurança Alimentar” (PFSA) organizados pela Comunidade Europeia no Panamá para ativistas camponeses de toda a América Central, entre o final de 1990 e 1991 são outro exemplo. Embora não haja registros do termo Soberania Alimentar nos materiais produzidos para os seminários, diz Edelman (2013), muitos camponeses retornaram do treinamento usando o termo Soberania Alimentar, muitas vezes, em substituição à Segurança Alimentar. Independente de quando o termo tenha sido usado por primeira vez, o fato é que este se estende globalmente a partir dos anos 1990, após vários anos de discussões e consultas aos movimentos sociais que compõem a Via Campesina. Por outro lado, a fundação da Via Campesina contou com a participação ativa de oito organizações provenientes da América Central, o que torna bastante provável que lideranças de movimentos sociais desta região tenham apresentado uma noção com a qual já vinham trabalhando às outras organizações da rede e tenham influenciado a sua transformação em um conceito político. Mas, a proposta de Soberania Alimentar desenvolvida pela Via Campesina não sofreu influência apenas das organizações da América Central. Desde quando a conceituação foi criada, uma das principais questões em pauta é o modelo de agricultura transgênica que a FAO estava tendendo a adotar como solução de política agrícola para acabar com a fome no mundo. Até os 2000, os transgênicos não eram uma questão na América Central e nem na América do Sul, mas já eram problema para os camponeses da França e da Índia, desde os 1980. O que nos leva a inferir que a incorporação desta questão na agenda da Soberania Alimentar, ainda nos 1990, é devido à influência da organização indiana Karnakata Rajya Ryota Sangha (KRRS) e da Confedération Paysanné, da França (NIEMEYER, 2006). Estas constatações contribuem para o nosso entendimento de que não é possível atribuir uma origem unívoca à noção de Soberania Alimentar, pois esta não é autoral, mas sim 88

fruto de um processo social de construção de conhecimento movido pela troca de ideias, conhecimentos, impressões e experiências entre diferentes sujeitos individuais e coletivos, onde cada qual traz a sua bagagem cultural e as suas influências pregressas.

Soberania Alimentar versus Segurança Alimentar: tensões constituintes e disputa por sentidos A noção de Soberania Alimentar consolidou-se, deste modo, como conceito político, em 1996, quando a Via Campesina empregou a expressão para resumir o seu ponto de vista sobre as problemáticas associadas à fome e à alimentação e utilizou-se dela para confrontar a noção de Segurança Alimentar com a qual a FAO estava trabalhando à época, e que definia as diretrizes a serem tomadas, desenvolvidas e aprovadas pelos 186 países presentes à “Assembleia Global sobre Segurança Alimentar” (FAO, 2000). O conceito de Segurança Alimentar não é essencial, mas contextual, e as suas inúmeras versões refletem o cenário das relações internacionais, da política internacional e da geopolítica da alimentação (FAO, 2003. P. 26; MAXUELL e SMITH, 1992. p. 68-70). O Direito à Alimentação consta da carta dos Direitos Humanos promulgada pela ONU em 1948, mas somente em 1974 é que o termo Segurança Alimentar é reconhecido como um conceito formal. Em 1975, é criado o comitê pela “Segurança Alimentar Mundial” para supervisionar os avanços da Segurança Alimentar e, no início dos 1980, a Segurança Alimentar é reconhecida como um “conceito tripartite que reflete os critérios de disponibilidade, acesso e estabilidade” (FAO, 2003). E um dos fatores cruciais, que responde pelas diferentes interpretações oficiais de Segurança Alimentar deste 1974, é o reconhecimento do insucesso da Revolução Verde na redução da pobreza e da desnutrição mundial (FAO, 2003. p.45). Em 1974, o foco do conceito era no volume e na estabilidade dos estoques de alimentos (FAO, 2003. p. 45), e o contexto de fome extrema na região do Sahel e de ápice do poder do grupo dos “Não Alinhados” na ONU justifica o significado dado à conceituação à época, quando os Estados eram vistos como os únicos atores da política internacional e fazia sentido falar em controle de preços e de estoque (PATEL, 2009). Segurança Alimentar significa a disponibilidade, a qualquer tempo, de um estoque de alimentos básicos, em quantidade suficiente para sustentar uma expansão constante do consumo e compensar possíveis flutuações na produção e nos preços dos alimentos (FAO, 2003. P. 27)

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Em 1983, a FAO expandiu o conceito para incluir a garantia de acesso aos estoques disponíveis às pessoas mais vulneráveis, “refletindo uma preocupação com a manutenção de um equilíbrio entre a oferta e a demanda” (FAO, 2003, p. 27). […] ensuring that all people at all times have both physical and economic access to the basic food that they need 17 E, em 1986, o conceito é mais uma vez atualizado, desta vez sob influência do relatório Pobreza e Fome produzido pelo Banco Mundial. Com foco nas dinâmicas temporais da insegurança alimentar, esta versão incluiu uma distinção entre “insegurança alimentar crônica” associada a problemas estruturais e a baixa renda e “insegurança alimentar transitória” causada por desastres naturais, conflito ou colapso econômico (FAO, 2003, p. 27). A década de 1990 é o auge do Neoliberalismo, em seus vieses como ideologia e como doutrina política socioeconômica. Com o fim da União Soviética, os Estados Unidos imperam absolutos sobre a quase totalidade do mundo e a nova balança de poder é marcada pelo unilateralismo. Apesar do cenário pouco favorável nas relações internacionais, esta é também a época do florescimento de uma “sociedade civil global” pressionando por mudanças na política mundial. Agindo por meios institucionais, onde possível e desejável, ou por meios contestatórios, quando o espaço de participação política estava fechado. Os seus alvos preferenciais eram as Organizações Econômicas (ditas) Multilaterais, principalmente, mas não exclusivamente: a OMC, o Banco Mundial e o FMI, e as grandes corporações multinacionais, principais beneficiárias das políticas neoliberais. Este é o contexto da Assembleia Mundial pela Alimentação e a Fome organizada, pela FAO, em 1996, em Roma, quando o conceito de Segurança Alimentar é mais uma vez atualizado. Pela análise de Patel (2009, p. 665), a Declaração de Roma recusa-se a discutir o controle social do sistema alimentar, o que contribui para a legitimação de estratégias políticas — como o dumping — que inundam os mercados domésticos com produtos abaixo do custo de produção, contribuindo com o aumento da pobreza e da fome, principalmente no campo, onde a situação é mais grave. A definição de Segurança Alimentar, de então, favorece a adoção de um modelo de agricultura baseado no alto consumo de insumos e de defensivos agrícolas, entre outras opções do interesse das empresas capitalistas e não dos pequenos agricultores; refletindo a nova realidade institucional, em que os interesses da OMC davam o tom do discurso na FAO (DESMARAIS, 2003). 17

Grifo no original

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Segurança Alimentar [é atingida] tanto a nível: individual, doméstico, nacional, regional e global, quando todas as pessoas, a qualquer momento, têm acesso físico e econômico a um alimento suficiente, saudável e nutritivo, em quantidades suficientes para atender as suas prioridades alimentares e necessidades nutricionais necessárias a uma vida ativa e saudável (FAO, 2003. P. 28). A primeira versão do conceito de Soberania Alimentar é apresentada pela Via Campesina neste evento, como um contraponto à interpretação descontextualizada da problemática da fome e da alimentação presente no conceito da FAO. Para a Via Campesina: Garantir a Segurança alimentar, a longo prazo, depende daqueles que produzem os alimentos e cuidam do meio ambiente natural. Como zeladores dos recursos produtivos dos alimentos, nós sustentamos que os seguintes princípios básicos são condição necessária para atingir a segurança alimentar [...] O Alimento é um Direito Humano básico. E este direito só pode ser realizado em um sistema, no qual, a Soberania Alimentar seja garantida. Soberania Alimentar é o direito de cada nação manter e desenvolver a sua própria capacidade de produzir a sua base alimentar, respeitando a sua diversidade cultural e produtiva. Nós temos o direito de produzir o nosso próprio alimento em nosso próprio território. A Soberania Alimentar é pré-condição para uma segurança alimentar verdadeira. (VIA CAMPESINA 1996 apud. PATEL, 2009. p. 665) O conceito político de Soberania Alimentar está embasado na experiência tradicional de agricultores de todo o mundo e evoluiu a partir da análise crítica desses e de outros sujeitos rurais, diretamente afetados pelas mudanças nas políticas agrícolas introduzidas nos 1980 e início dos 1990 (WITTMAN, DESMARAIS e WIEBE, 2010; BRINGEL, 2010). Os sujeitos implicados no desenvolvimento da conceituação consideravam que a Segurança Alimentar não contemplava a complexidade do debate sobre a fome, pois limitava a questão ao acesso e ao potencial nutricional do alimento, sem levar em consideração "como, onde e por quem" seria produzido. A primeira versão do conceito levou 6 anos sendo elaborada pelas organizações que compõem a Via Campesina, por meio de processos dialógicos e de negociação conduzidos, concomitantemente, nas esferas: local, regional e global (DESMARAIS, 2003). E somente após tornada pública, no AGFA de 1996, foi abraçada por um número mais amplo de organizações.

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A coalizão internacional Nosso Mundo não é Uma Mercadoria: OWINFS (sigla em inglês), da qual a Via Campesina fazia parte à época, contribuiu para articular uma rede internacional formada por movimentos sociais rurais e urbanos, instituições de pesquisa e ONGs interessados no conceito de Soberania Alimentar. Boa parte deste grupo veio a compor o International Planning Committe for Food Sovereignity: IPC (WITTMAN, DESMARAIS e WIEBE, 2010), cuja importância reside em ser o principal canal de diálogo dos movimentos sociais junto à FAO. No início dos 2000, essa articulação participou de dois encontros importantes para a consolidação do conceito político: o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar realizado em Havana em 2001, e o Fórum pela Soberania Alimentar articulado em paralelo à Cimeira mundial da Alimentação: cinco anos depois organizada pela FAO em Roma (Ibid). A versão do conceito consolidada por esse grupo foi lançada na conclusão do encontro de Havana e amplia o escopo, mas não contradiz o sentido originalmente dado à conceituação pela Via Campesina. De acordo com a Declaração de Soberania Alimentar dos Povos: Soberania Alimentar designa o direito das populações, dos países e das Uniões, de definirem suas políticas agrícolas e alimentares, sem a prática de dumping em relação a terceiros países Soberania Alimentar implica em: Prioridade à produção agrícola local voltada à alimentação das pessoas, o acesso dos camponeses e dos Sem Terra à terra à água, a sementes e a crédito. Daí a necessidade de implementação de: reformas agrárias populares, de lutas contra os organismos geneticamente modificados: OGM, pelo livre acesso às sementes e pela garantia da água como um bem público sustentavelmente distribuído. O direito dos fazendeiros e camponeses produzirem comida. O direito dos consumidores decidirem o que vão consumir, como e por quem será produzido.O direito dos países protegerem-se contra a importação de alimentos a custo muito baixo Que o preço dos produtos agrícolas esteja relacionado ao seu custo de produção, o que pode ser garantido se os países e uniões puderem taxar importações muito baratas; se estiverem comprometidos com uma produção agrícola sustentável e se controlarem o mercado interno para evitar excedentes estruturais. Que a população tome parte nas decisões políticas sobre agricultura O reconhecimento dos direitos das mulheres camponesas, que exercem o papel principal na produção agrícola e de alimentos (VIA CAMPESINA, 2003).

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No ano de 2001, a definição de Segurança Alimentar é mais uma vez refinada passando a dar “nova ênfase ao consumo, à demanda e ao acesso dos miseráveis à alimentação” (FAO, 2003, p. 28), o que, de acordo com a FAO (2003, p. 28), deve-se à influência de Armatya Sem, e, no entender de Patel (2009), é resultado da pressão dos atores sociais sobre a organização. O conceito de Segurança Alimentar publicado no relatório sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial, 2001 ficou assim definido: Food security [is] a situation that exists when all people, at all times, have physical, social and economic access to sufficient, safe and nutritious food that meets their dietary needs and food preferences for an active and healthy life (FAO, 2003,p. 28). Muito embora essa ainda seja a definição de Segurança Alimentar que norteia o trabalho da FAO e de outras organizações internacionais (FAO, 2010; 2013), os contornos do debate sobre fome e alimentação são cada vez mais influenciados pela noção de Soberania Alimentar, tanto em nível nacional quanto internacional, porque os atores empenhados na sua realização — apesar de economicamente fracos — foram eficientes em colocar novos problemas na agenda (WITTMAN, DESMARAIS e WIEBE, 2010). Um exemplo é o relatório sobre fome e alimentação de 2003, no qual a FAO reproduz uma das principais críticas da Soberania Alimentar ao atual sistema agroalimentar. Neste documento, a FAO reconhece a incapacidade do mercado em promover crescimento econômico com desenvolvimento social, denunciando o processo de oligopolização dos mercados de produção e distribuição de alimentos, como um dos principais fatores responsáveis pelo aumento da pobreza e da fome em níveis local e mundial. De acordo com o documento, "um pequeno grupo de empresas controla a maior parte do comércio de comodities internacional" e "a dominação, pelas transnacionais, não se caracteriza, apenas, pela integração horizontal de um determinado setor, mas pela dominação de múltiplos setores da produção, além do transporte e o processamento". E a Cargill, maior exportadora de grãos em nível mundial, é apontada como o principal exemplo (FAO, 2003, p. 121-22). O mercado de café também é destacado, porque "90% do comércio mundial é controlado por apenas três companhias, cada qual com um volume de negócios maior do que as principais economias africanas" (FAO, 2003, p. 121) O que o relatório da FAO revela é característico do sistema agroalimentar neoliberal da década de 2000, visto em detalhe no capítulo dois desta mesma tese. Se na década de 1990, quando o conceito de Soberania Alimentar surge, o principal problema para os camponeses e pequenos agricultores era o baixo preço dos alimentos e o dumping, nos 2000 surgem novas 93

pressões e a crise agrícola de 2008 é caracterizada pela alta dos alimentos. Este novo contexto demanda a revisão do conceito de Soberania Alimentar, o que é feito, em 2007, durante o Fórum Internacional pela Soberania Alimentar realizado em Nyéléni na África. De fato, a incorporação de novas questões não eliminou as anteriores e a noção de Soberania Alimentar, consolidada neste encontro, ainda reflete a ideia originalmente defendida pela Via Campesina na Assembleia Global sobre Segurança Alimentar de 1996. De acordo com esta declaração: A soberania alimentar é o direito dos povos a alimentos nutritivos e culturalmente adequados, acessíveis, produzidos de forma sustentável e ecológica, e ao direito de decidirem o seu próprio sistema alimentar e produtivo. O que implica em que os que produzem, distribuem e consomem alimentos estejam no coração dos sistemas e das políticas alimentares e acima das exigências dos mercados e das empresas. Inclui as futuras gerações e defende seus interesses. Oferece-nos uma estratégia para resistir e desmantelar o comércio livre e corporativo e o regime alimentar atual, e canalizar a gestão dos sistemas alimentares, agrícolas, pastoris e piscicultor para os produtores e produtoras locais. A Soberania Alimentar prioriza as economias locais e os mercados locais e nacionais, e outorga este poder aos camponeses e à agricultura familiar, à pesca artesanal e ao pastoreio tradicional. E coloca a produção alimentar, a distribuição e o consumo sobre uma base ambiental social e economicamente sustentável. A soberania alimentar promove o comercio transparente, que garanta uma renda digna para todos os povos e os direitos dos consumidores controlarem a sua própria alimentação e nutrição. Garante que os direitos de acesso e gestão de nossa terra, de nossos territórios, de nossas águas, de nossas sementes, do nosso gado e da biodiversidade estejam nas mãos daqueles que produzem os alimentos. A soberania alimentar supõe novas relações sociais livres de opressão e desigualdades entre homens e mulheres, povos, grupos raciais, classes sociais e gerações (NIELENY, 2007) A versão atualizada da conceituação reconhece a diversidade de sujeitos envolvidos na construção da Soberania Alimentar e coloca nova ênfase sobre os territórios e os recursos biodiversos em geral, admitindo que a nova proposta capitalista de "Economia Verde" ampliou a dimensão do problema para além da produção de alimentos. Ao explicitar o papel de pastores e pescadores na defesa da Soberania Alimentar, o conceito revisitado reconhece que as novas estratégias e interesses capitalistas no campo vão além das sementes, da terra e dos recursos produtivos e passam a englobar todas as formas de vida e que a aliança entre todos os sujeitos rurais é fundamental para a consolidação da 94

Soberania Alimentar. Ao incluir o consumidor como sujeito do processo, a conceituação reforça a aliança entre o campo e a cidade e explicita que a alimentação diz respeito à toda a sociedade e não apenas àqueles que vivem no campo, posto que é um Direito Humano.

2.4. Usos e Sentidos da Soberania Alimentar

Pela perspectiva daqueles que a constituem, a Soberania Alimentar é mais do que um conceito, um quadro de ação coletiva, um ideal normativo ou um programa de conhecimento. É um projeto político e social holístico, que configura um modelo de desenvolvimento oposto ao capitalista dominante, pois é sustentado por um princípio de “economia moral” (EDELMAN, 2005). E, se a sua realização plena é ainda um ideal, a Soberania Alimentar é o horizonte para onde são direcionadas as energias daqueles que ainda acreditam que “outro mundo é possível” e não desconsideram o “papel causal da esperança” (LACEY, 2013). No marco da Soberania Alimentar, a problemática camponesa é tratada de forma abrangente e multifacetada: No mundo, vêm sendo discutidos aspectos que estão estreitamente relacionados com nossa vida cotidiana e com nossa ação camponesa. Tais como: a regulação e aproveitamento da biodiversidade, o uso e conservação dos recursos genéticos e a liberação de organismos transgênicos que afetam a saúde da população, o ambiente rural e a economia camponesa. Os organismos internacionais responsáveis por estes temas enfrentam um grande dilema: adotar a opção pelo uso racional e inteligente dos recursos naturais para um desenvolvimento sustentável ou adotar o caminho que, imposto pela pressão do livre comércio e pelo domínio do capital financeiro, leva ao abandono da segurança alimentar (VIA CAMPESINA, 2000). Enquadradas desta forma, as campanhas a favor das sementes livres, contra a propriedade intelectual sobre recursos biodiversos e contra as políticas neoliberais, prescritas pela OMC, criaram oportunidades para que grupos de consumidores, ambientalistas, cientistas, naturalistas e outros não diretamente interessados na problemática camponesa identificassem-se com a Soberania Alimentar e viessem a apoiar as causas da Via Campesina. Mas, se o conteúdo polissêmico da Soberania Alimentar fez com que a conceituação tenha se tornado uma das ferramentas mais importantes na luta contra a Globalização Neoliberal, por outro lado, diz Patel (2009), também responde pelas inconsistências presentes no conceito, e

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uma forma de contrabalançar estas disparidades, diz o autor, é através da introdução explícita da linguagem do Direito. Os movimentos sociais que compõe a Via Campesina também não formam um todo homogêneo, provém de diferentes países do Norte e do Sul Global e são política, ideológica e culturalmente muito diversos. E, segundo Clayes (2013), é a Soberania Alimentar enquadrada como um Direito humano que confere a linguagem comum que permite o entendimento entre essa miríade de sujeitos rurais. De acordo com a pesquisadora, através de sua práxis, a Via Campesina foi além da mobilização de direitos já codificados e está forjando uma nova concepção de direito, que rompe com a raiz liberal do conceito ao reconhecer o “direito das pessoas à Soberania Alimentar” e o “Direito dos Camponeses” como direitos coletivos e cosmopolitas e não individuais e cidadãos. Estes direitos estão inscritos na noção de Soberania Alimentar percebida, aqui, como um poderoso “Rigths master frame”18. A primeira proposta da declaração da campanha Sementes explicita “dez Direitos do Agricultor relativos à biodiversidade, aos recursos genéticos e ao conhecimento”. E, de acordo com o escrito, os direitos do agricultor remontam ao tempo em que o homem criou a agricultura para resolver suas necessidades de sobrevivência, o que lhe concede um profundo caráter histórico. Ao valorizar o papel milenar dos camponeses na conservação da biodiversidade e nos processos de geração de novos recursos e melhoria das espécies, a Via Campesina legitima a sua demanda pelo reconhecimento dos “direitos dos camponeses” sobre os recursos genéticos e os seus conhecimentos associados. O que inclui a participação destes sujeitos na definição do marco jurídico de propriedade sobre estes bens e nos processos de definição, elaboração e execução das políticas e programas vinculados aos recursos genéticos. Ainda de acordo com o texto, os “Direitos do Agricultor” devem ser reconhecidos por marcos jurídicos diferentes dos da propriedade privada e da propriedade intelectual, porque têm “caráter eminentemente coletivo” e, portanto, a sua negociação deve estar fora do âmbito da OMC. Conforme expresso no documento, os acordos e considerações sobre biossegurança e acordos multilaterais sobre meio ambiente devem ter predominância sobre os acordos e as políticas comerciais, e a prescrição é que haja uma consulta pública a qualquer decisão internacional que envolva geneticamente modificados e soberania alimentar. A garantia dos direitos dos camponeses implica, ainda, na soberania dos estados sobre os seus recursos biodiversos, como pode ser conferido no trecho da declaração a seguir.

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A autora refere-se ao conceito de “Rigths Master Frame” desenvolvido por Snow Et al (1986).

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Estes Direitos devem ter uma aplicação nacional e o compromisso deve promover que se legisle a respeito, respeitando a soberania de cada país para estabelecer leis locais sobre as bases dos ditos princípios (VIA CAMPESINA, 2000). A conclusão a que chega o documento é que a preservação da biodiversidade e a segurança alimentar dos povos só pode ser atingida por meio da implantação de um modelo econômico que seja alternativo ao padrão neoliberal vigente e privilegie uma agricultura dedicada à produção de alimentos, diversificada, em pequena escala e voltada ao mercado local. A biodiversidade deve ser a base para garantir a segurança alimentar como um direito inegociável, fundamental e básico dos povos. Direito que deve prevalecer sobre as diretrizes da Organização Mundial do Comércio. Devemos voltar à origem, o homem desenvolveu a agricultura para resolver suas necessidades de alimentos, agora existem no mundo 800 milhões de pessoas com fome. Para resolver este problema, devemos pensar em utilizar os alimentos locais com que nos brinda a biodiversidade, apoiar os mercados regionais e locais, aplicar a investigação e a tecnologia com maior equidade (VIA CAMPESINA, 2000). A declaração da Campanha Sementes está apoiada em um conjunto de leis internacionais que garantem os Direitos dos Agricultores ao uso e manejo da biodiversidade, as quais, de acordo com a Via Campesina, “ultrapassam os marcos jurídicos da propriedade intelectual”. Apoiar essa campanha em normas e regimes internacionais pode parecer um contrassenso, visto que um dos objetivos da Soberania Alimentar é a garantia do direito dos estados nacionais à definição das suas políticas domésticas, sem que haja pressão internacional nesta ou naquela direção. O cerne dessa questão reside na interpretação que se dá ao conceito de soberania, e as diferentes interpretações levam a diferentes entendimentos sobre os Direitos Humanos e o papel dos Estados em sua promoção. Quando se fala em Soberania, em termos westfalianos, está se falando em governo sobre um território político, o que equivale, em última análise, ao Estado nação moderno. O qual, diferentemente do preconizado pela Soberania Alimentar, garante direitos apenas aos seus cidadãos, excluindo os outros: os estrangeiros e expatriados. Mas os limites do Estado capitalista, ainda dominante em termos mundiais, vão além. Muito embora a filosofia liberal afirme a igualdade de direitos, o estado capitalista é garantidor dos interesses e dos direitos de uma minoria privilegiada e “os outros” não são definidos apenas em termos geopolíticos, mas também socioeconômicos. O neoliberalismo tende a resumir o Direito ao direito individual e à propriedade privada. Todavia, quando o controle sobre a propriedade está na 97

mão de poucos, é porque existe uma desigualdade de poder estrutural e persistente (PATEL, 2009). E a negação de direitos básicos, como: educação, saúde, assistência social e investimento público é uma forma de impedir o exercício do direito à propriedade privada, mesmo que o seu acesso indiscriminado esteja garantido por lei. A Globalização Neoliberal também desafia o conceito de Soberania westfaliano a partir da instituição de um tipo de governança policêntrica, por meio da qual a soberania dos estados é compartilhada entre o estado nacional e entidades supranacionais: as organizações e outras instituições internacionais, e entidades subnacionais: os municípios e os estados federados (SCHOLTE, 2005). Em consequência, a essencialidade da relação entre cidadania e estado nação é colocada em cheque, abrindo espaço para a teorização de uma “soberania popular pós-liberal” cosmopolita e desatrelada dos órgãos constitucionais representativos (BRINGEL, 2011). E este é o sentido inscrito no conceito de Soberania Alimentar que, apelando a múltiplas geografias, substitui o conceito de soberania estatal por Soberania dos povos. Todavia, na prática, a Soberania Alimentar está limitada pelo sistema internacional (PATEL, 2009), razão pela qual os seus promotores agem tanto em prol do fortalecimento dos estados nacionais, como das organizações e regimes internacionais que contribuem com a promoção dos direitos humanos. Sob o atual sistema agroalimentar, só é possível atingir a Soberania Alimentar, se as negociações internacionais sobre agricultura e propriedade intelectual sobre formas de vida forem retiradas da OMC e passarem a ser negociadas na FAO e outras agências do sistema ONU. A simples eliminação das organizações, acordos e regimes multilaterais não é desejável, porque fortalece apenas os estados mais fortes, notadamente os Estados Unidos e a China, os quais dispõem de poder de barganha para negociarem clausulas draconianas nos seus acordos bilaterais. As leis internacionais que apoiam a campanha Sementes — movida pela Via Campesina em favor da sementes livres de royalts e de transgênicos — são: a resolução 5-89 da FAO, a cláusula 8-J do Convênio da Biodiversidade e o ponto 14.60 da Agenda 21 e o Convênio 169 da Organização Internacional do Trabalho 19. As principais propostas contidas nessa declaração estão apoiadas no conjunto de leis mencionadas anteriormente e não estão limitadas aos interesses dos camponeses, mas referem-se a todos os setores da sociedade, apoiando-se, principalmente, nos riscos de precaução e previsão contidos: na agenda 21, na Cúpula da Terra e no Protocolo de Cartagena 19

Para maiores detalhes sobre esse conjunto de Leis e a sua relação com a campanha Sementes, consultar Niemeyer (2006, p. 121-125).

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sobre Biossegurança. Com base nestes princípios, a Via Campesina e os demais promotores da campanha demandam o direito à informação adequada, para que todos os setores da sociedade possam debater e ser consultados sobre todas as decisões relacionadas ao uso, manejo e liberação de organismos transgênicos. Além de exigir que os acordos e considerações sobre biossegurança e os acordos multilaterais sobre meio ambiente prevaleçam sobre os acordos e políticas comerciais. Estas leis foram firmadas pelos chefes de estado de quase todos os países do mundo, mas quase nunca são respeitadas. E, se implementadas, afetariam a governança global da agricultura e a regulação da propriedade intelectual sobre os recursos genéticos, já que reduzem o poder da OMC sobre estas questões. E "quem controla as sementes, controla o direito à alimentação, a soberania alimentar e a política dos povos" (VIA CAMPESINA, 2013). As sementes têm um lugar especial na luta pela soberania Alimentar. Estes pequenos grãos são a base do futuro. Elas determinam, em cada ciclo vital, que tipo de alimento consomem os povos, como se cultiva e quem o cultiva. Mas, as sementes também são o recipiente que transporta o passado, a visão, o conhecimento e as práticas acumuladas das comunidades camponesas em todo o mundo que, durante milhões de anos, criaram a base de tudo aquilo que sustenta o presente (VIA CAMPESINA, 2013 Soberania Alimentar: mais do que terra é território Nos marcos da Soberania Alimentar, a luta pela Reforma Agrária não está limitada ao acesso à terra, porque, na contemporaneidade, além da distribuição de recursos dentro do sistema, estão em jogo normas e valores institucionais. No que se refere aos movimentos do campo, a disputa é por modelos de reprodução social, pois a agricultura, mais do que uma atividade econômica, corresponde a diferentes formas de viver e de saber. No contexto atual, a parcela da antiga oligarquia rural que sobreviveu ao Agronegócio aliou-se às empresas transnacionais da agricultura e da alimentação, na promoção de um modelo de agricultura desumanizado, descontextualizado, tecnológico e apoiado no consumo e no uso abusivo de insumos e de venenos (BRUNO, 2009). Nas últimas décadas do século XX, este modelo tornou-se dominante em nível mundial, porque houve mudanças que favoreceram os interesses do capitalismo transnacional, em detrimento das necessidades dos povos e das nações (BELLO, 2012; MACMICHAEL, 2013; FRIEDMAN, 2003). Na nova realidade institucional, as organizações econômicas internacionais passaram a dispor de poder de barganha para forçar os países à harmonização das suas políticas agrícolas domésticas, 99

segundo as prescrições neoliberais de: redução de políticas públicas de cunho social, privatização, desregulação da economia e abertura indiscriminada dos mercados ao capital externo e às exportações. Nas palavras de Fernandes (2009): “o âmago da conflitualidade é a disputa pelos modelos de desenvolvimento em que os territórios são marcados pela exclusão das políticas neoliberais, produtora de desigualdades, ameaçando a consolidação da democracia”. E, de acordo com a análise do IPC Group: The promotion of individual private property through land cadastres and alienable titles has hastened the commercialization of land. Market based policies of access to land promoted by the World Bank and bilateral donors have led to heavy indebtedness among poor, small scale producers and resulted in the reconcentration of land in the hands of traditional and modern elites. At the same time, the state has stepped back from the redistribution of land and has abdicated its obligation to deliver essential services such as health, education, social security, protection for workers, public food distribution systems and marketing support for small scale producers. Instead, governments have chosen to implement the neo liberal policies demanded by international financial institutions, bilateral donors and private investors, and have often used violent means including armed forces and militias to quell the resistance of peasants, workers and indigenous communities to the expropriation of their natural resources and territories. (IPC, 2006, p. 10). Esta situação não é exclusividade dos países do Sul Global, a suspensão dos subsídios agrícolas levou a processos de transferência de propriedade e de transnacionalização da agricultura também na França e outros países desenvolvidos. Isso alterou o perfil da luta de classes no campo e demandou mudanças na estratégia de luta pela reforma agrária e, conforme a Soberania Alimentar, a realização de uma reforma agrária integral depende da garantia de acesso aos camponeses e camponesas: pequenos agricultores, pescadores, coletores, indígenas, sem terra, entre outros, aos territórios necessários à manutenção da sua forma de produção particular e culturalmente adequada. Essa proposta contrasta com a noção de terra como mero recurso produtivo gerador de lucro que vigora no capitalismo, porque "a terra de viver e a terra de trabalhar estão imbricadas de modo a atender às necessidades de reprodução social.” (FIGUEIREDO, 2008, p. 206), e a satisfação desta exigência demanda mais do que o acesso a um pedaço de terra qualquer, porque o lugar importa. The alternative model of peoples’ food sovereignty is based on the rights of women and men farmers, rural workers and fisher folk to produce food for their own local and national markets, with access to 100

and control over their own territories including land and natural resources, and on peasant based agroecological farming and artisanal fishing practices for a sustainable, people based food and farming system[...]The realization of human rights should go beyond the notion of individual rights and also ensure the collective rights of communities and peoples (IPC, 2006, p. 10). No tocante às relações intra-movimento, a luta é por uma reforma agrária igualitária em termos de raça, etnia, e, principalmente, de gênero: De acordo com dados da FAO (2010), as mulheres representam 43% da força de trabalho agrícola nos países em desenvolvimento, mas detém menor acesso a recursos produtivos e menos oportunidades do que os homens. Apoiadas pelo conceito de Soberania Alimentar, mulheres rurais de todo o mundo têm denunciado e lutado contra este padrão de desigualdade estrutural e demandado a construção de políticas, em nível internacional e nacional, que garantam igualdade de gênero no acesso à terra, à tecnologia, a serviços financeiros e à educação. Todos os pilares de sustentação da Soberania Alimentar são imprescindíveis à realização de uma reforma agrária genuína que, assim como o acesso à alimentação, também é enquadrada como um Direito . food sovereignty rests on the concepts of economic and social human rights, which include the right to adequate food. Food sovereignty argues, as does the Special Rapporteur, that there is a corollary right to land, and even, the “right to produce” for rural peoples [Ziegler, 2002, 2004], which can in most cases only be achieved via agrarian reform. But, what kind of agrarian reform? Not all agrarian reforms are redistributive in nature; that is, not all agrarian reforms alter the existing structures of land tenure and land holdings, and in particular, not all address inequality in land holdings. It is the belief of the authors of this paper that food sovereignty and the right to adequate food can only be achieved by agrarian reforms which are redistributive in nature, and/or based on the defense of, or restitution of, the territories of indigenous, farming, forest dwelling, pastoral and fishing peoples [Rosset, 1999,2001a] (IPC, 2006, p.13). A partir dessa leitura, pode-se entender porque a reforma agrária proposta pela Soberania Alimentar não se limita à disputa pela terra e ao acesso por recursos produtivos e crédito, mas também abarca o direito ao uso, desenvolvimento e reprodução de conhecimento. Ou seja, trata-se de uma "disputa por territórios materiais e imateriais", como evidenciado por Rosset e Torres (2013) em sua análise sobre a Soberania Alimentar entendida como “diálogo de saberes”. Neste estudo, os autores apropriam-se da tipologia de território de Fernandes (2008) para evidenciarem as diferentes facetas da disputa por territórios.

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A disputa por territórios materiais refere-se à luta pelo: acesso, controle, uso, conformação ou configuração da terra ou território físico constituído pelas comunidades, infraestrutura, solo, água, biodiversidade, ar, montanhas, vales, planícies, rios e costas. Enquanto o território imaterial refere-se ao terreno das ideias, dos conceitos teóricos, das estruturas interpretativas, e não existem territórios materiais dissociados de territórios imateriais. Portanto, a disputa pelos territórios reais e tangíveis e pelos recursos que ele contém andam, de par em par, com a disputa pelos territórios imateriais, ou seja, o espaço das ideologia e das ideias (ROSSET e TORRES, 2013, p. 3). A contestação dos territórios imateriais é caracterizada pela formulação e pela defesa de conceitos, teorias, paradigmas e explicações usadas para convencer outros. Em outras palavras, o poder de interpretação e definição do conteúdo de conceitos é, em si, um território em disputa porque a conquista de corações e mentes é indispensável. No Brasil, em anos recentes, a luta pela Reforma Agrária tem sido uma bandeira do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), enquanto o modelo de produção tem sido o principal foco do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Até então, a "divisão de trabalho" justificava-se pelo público alvo de ambos os movimentos serem diversos, enquanto a base do MST eram os “sem terra”, a base do MPA eram os pequenos produtores rurais. Mas, no atual contexto, o que se percebe é a convergência de agendas, com o MST incorporando aspectos do "Plano Camponês 20" (MPA, 2013) ao seu projeto de "Reforma Agrária Popular". A Reforma Agrária Popular tem, como princípios básicos, além da garantia de acesso à terra, "o fortalecimento da agricultura camponesa que alimenta os povos" a partir do enfrentamento da crise energética e climática, através da disseminação de um sistema alimentar local; da construção de um novo modelo energético que priorize a produção e distribuição descentralizada de energia; do desenvolvimentos de formas de consumo e de comercialização de produtos, de forma solidária e sustentável da realização de políticas públicas voltadas à promoção da Soberania Alimentar; da promoção de um modelo de agricultura agroecológico; por meio da promoção de uma reforma agrária democrática, que garanta à mulher camponesa o direito à terra, aos recursos naturais e às decisões sobre o seu uso, e aos indígenas e aos quilombolas, o direito aos seus territórios (STRONZAQUE, SANTOS e SILVA, 2013, p. 71). Essa é uma disputa de Davi contra Golias, mas, conforme reconhecido por Wittman, Desmarais e Wiebe (2010), "a teoria da Soberania Alimentar tem potencial para desafiar o modelo agroalimentar neoliberal, seu concorrente, porque a sua prática implica na adoção de 20

O "Plano Camponês" será visto em detalhes no capítulo destinado ao Movimento dos Pequenos Agricultores.

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um modelo de produção integrado, democratizado e localizado", embasado em valores sociais de justiça e igualdade e balizado por um princípio de economia moral. Neste ponto do debate, somos levados a concluir que não é possível tratar de soberania alimentar (como objeto de estudo e de luta política), sem investigarmos e problematizarmos os sujeitos que a praticam. Por conseguinte, este é o tema do próximo capítulo.

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3. OS SUJEITOS DA SOBERANIA ALIMENTAR: DA VIA CAMPESINA INTERNACIONAL AO MOVIMENTO DE PEQUENOS AGRICULTORES

N o capítulo anterior apresentamos a noção de soberania al imentar como objeto de estudo e de luta política. Analisamos seu contexto de surgimento, suas tensões constituintes e seus múltiplos usos e sentidos.

C ontudo,

conforme já adiantado, não é possível entender a prática da soberania alimentar e sua operacionalização no cotidiano do embate político , sem nos debruçarmos so bre os sujeitos que a constroem. D estarte, este capítulo propõe uma análise multi-escalar de alguns sujeitos fundamentais na construção da soberania alimentar. Iniciamos nosso percurso na escala global, a partir da análise da rede transancional estratégica Via Campesina Internacional, baluarte da luta pela difusão da soberania alimentar no mundo, e de algumas redes transnacionais táticas e atores de mediação importantes no contexto global e regional (notadamente latino-americano), que a apoiam e complementam na luta pela soberania alimentar. Na sequência, nosso olhar se volta para o nacional e o foco se desloca para a Via Campesina Brasil, que aglutina alguns dos principais movimentos sociais rurais brasileiros, e alguns atores de mediação. A despeito da centralidade do MST na articulação nacional e internacional em torno da soberania alimentar e da luta camponesa no mundo, outros movimentos sociais camponeses têm contribuído no processo constitutivo da Soberania Alimentar no Brasil, com as suas interpretações próprias do conceito e as suas estratégias particulares de construção de conhecimento. Independentemente da escala, este processo é movido pelo diálogo, pela tradução e pela troca entre diferentes atores e distintos tipos de saberes tradicionais e profissionais. Em escala local e nacional, os movimentos sociais membros da Via Campesina Brasil interagem entre si e influenciam-se mutuamente, assim como também relacionam-se com outros atores: movimentos sociais, instituições, universidades, organizações não governamentais, cientistas, técnicos em agroecologia, entre outros. Nas escalas regional e global impera o mesmo processo e, através dessa dinâmica, a Soberania Alimentar e outras formas de conhecimentos são geradas, desenvolvidas e atualizadas. Devido à necessidade de estabelecimento de um recorte, somado às razões explicitadas na introdução desta mesma tese, o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) foi eleito como sujeito objeto privilegiado dessa pesquisa. Consequentemente, na seção dedicada à Via Campesina Brasil, damos especial ênfase a essa organização. 104

3.1. A Via Campesina Internacional: Ator Global, Rede Estratégica e Arena de Ação

A Via Campesina é o movimento internacional que agrega milhões de camponeses, pequenos e médios agricultores, pessoas sem terra, mulheres agricultoras, indígenas, migrantes e trabalhadores rurais de todo o mundo. Defende a agricultura sustentável de pequena escala como uma forma de promover a justiça e a dignidade. Opondo-se fortemente à agricultura corporativa e às empresas transnacionais que estão destruindo os povos e o planeta (VIA CAMPESINA, 2014). A Via Campesina data de 1992 e despontou como ator transnacional significativo em 1996, durante a Assembleia Global sobre Segurança Alimentar (AGFA) realizada pela FAO em Quebec, tendo conquistado a atenção do público, em geral, durante o antológico encontro da OMC realizado em Seattle em 1999 (DESMARAIS, 2003a; EDELMAN, 2003), quando lançou o conceito político de Soberania Alimentar em contraponto ao de Segurança Alimentar adotado pela FAO. A Via Campesina se autodefine como um “movimento campesino internacional”. Sem desprezar a possibilidade de uma emic perspective, entendemos nesta tese que a Via Campesina tem caráter duplo: como ator e como arena de ação (BORRAS, 2004). Como ator encarna a voz internacional camponesa e como arena é o espaço onde a multiplicidade de organizações e movimentos, seus constituintes, dialogam, trocam experiências e saberes e negociam os seus diferentes pontos de vista, tendo em vista atingir um mínimo denominador comum que os permita atuarem como um sujeito coletivo. Vía Campesina se ha revelado como un importante escenario de acciones, debates e intercambios entre distintos grupos nacionales y locales de campesinos y agricultores. Es precisamente este carácter dual de actor y escenario lo que há convertido a Vía Campesina en una importante ‘institución’ no sólo formada por movimientos campesinos locales y nacionales, sino también al servicio de éstos (BORRAS, 2004, p.5). Estruturalmente, “a Via Campesina constitui tanto um movimento, dado que é algo amorfo, como uma organização com certo nível de coerência e regras associativas formais que definem os contornos do amplo movimento rural que representa” (BORRAS, 2004, p. 3). Ao mesmo tempo, consideramos que é uma rede transnacional estratégica formada pela articulação de organizações e movimentos sociais provenientes de diferentes países e culturas e representantes de sujeitos os mais diversos: pequenos e médios agricultores, mulheres, 105

pastores, coletores, pescadores, migrantes, indígenas, etc. E se há um elo comum à babel de sujeitos que a constitui é o fato de serem todos marginalizados nos seus respectivos países e lugares (BORRAS, 2004). Conforma, assim, a principal rede estratégica de movimentos sociais camponeses do mundo, uma arena onde podem dialogar e articular-se politicamente entre si e com outros sujeitos confrontados com desafios e problemas similares e com objetivos e inimigos políticos semelhantes. A Via Campesina articula 164 organizações organizadas em escala local e nacional, em 73 países da África, Ásia, Europa, e as Américas. Juntas, representam em torno de 200 milhões de agricultores. Este é um movimento autônomo, pluralista e multicultural independente de qualquer filiação política, econômica ou de qualquer tipo (VIA CAMPESINA, 2014). Este conjunto díspar identifica-se coletivamente pelo conceito político e identitário de camponês que, desde os 1990, vem sendo recuperado e resignificado pelos próprios sujeitos a quem se refere. O “novo camponês” representa um sujeito de resistência: aquele que defende o direito à manutenção de um padrão de "vida boa" (MPA, 2010) baseado em valores diferentes dos neoliberais, questionando a primazia do lucro, da tecnologia e da individualidade, em relação ao bem estar social, ao “amalgama de saberes” e à comunidade (WIEBE apud EDELMAN, 2003, p.187). Nas palavras de Wiebe: […] somos ambos camponeses e é a terra e a nossa relação com a terra e a produção alimentar que nos distingue[…]não somos parte da máquina industrial[...]A linguagem em torno dessa questão interessa porque começa a nos fazer entender que as ‘pessoas da terra’ representam o campesinato de qualquer lugar, os milhares de pequenos agricultores de subsistência, com os quais pensamos ter tão pouco em comum – identifica a eles e a nós. Eles estão sendo expulsos da suas terras e tendo suas identidades e comunidades dizimadas, e nós também estamos sendo recolocados em nossa sociedade (WIEBE APUD EDELMAN, 2003, p.187). A Via Campesina tem um “grau de institucionalização leve” (BORRAS, 2004), porque não existe destituída dos movimentos sociais que lhe constituem. Os seus líderes e representantes são escolhidos entre os militantes e dirigentes dessas organizações e falam em nome da rede, da sua organização ou de ambas, de acordo com o papel que estão exercendo na situação posta. Está dividida em oito secretarias regionais: África 1, África 2, América do Norte, América do Sul, Sudeste e Leste da Ásia, Sul da Ásia, América Central, Caribe e Europa (VIA CAMPESINA, 2014). Os seus órgãos mais importantes são: o Comitê 106

Coordenador Internacional (CCI) formado por representantes de todas as regiões em que a Via está organizada, sendo um homem e uma mulher para cada região, e o Secretariado Operacional Internacional (SOI), o órgão que coordena as CCIs (DESMARAIS, 2003). O Secretariado Internacional não é fixo e a proposta é que mude a cada quatro anos, que é o prazo entre as suas conferências internacionais. O primeiro Secretariado Operacional Internacional (SOI) funcionou na Bélgica (1993-1996), o segundo em Honduras (1997-2004), em seguida na Indonésia, onde ficou até 2013, e o atual está baseado em Harare, no Zimbawe. A Via Campesina apresenta-se como um movimento autônomo, pluralista, democrático e multicultural, sem tendência política ou filiação partidária (Via Campesina, 2014), o que favorece que, além de representar múltiplos sujeitos, possa agregar movimentos sociais e organizações de perfis políticos os mais variados: socialista, anarco-sindicalista, liberal, entre outros (BORRAS, 2004). As relações no seio da rede são tendencialmente horizontais e mobilizadas pelas dinâmicas do diálogo, da tradução e da troca de conhecimentos e experiências, porque existe o interesse compartilhado na construção de um “amalgama de saberes” – o que difere de um consenso – sobre questões de interesse comum. O que não implica em que as relações entre essas organizações estejam isentas de conflitos ou disputas por poder, mas significa que estão norteadas pela preocupação com a equidade e o respeito às diferenças. Conforme explicitado por Rafael Alegria: Não podemos ter, ou aspirar a ter, somente uma maneira de pensar porque somos muitos, somos muito grandes. O importante é discutirmos, engajarmo-nos no debate e acordarmos sobre algumas maneiras de avançar, de não pararmos. Se há contradições e diferenças isso é normal. O que precisamos fazer na Via Campesina é assegurar que sempre tenhamos capacidade de escutarmos uns aos outros e sempre agir com profundo respeito pela maneira de pensar de cada uma das organizações e sempre discutir de modo aberto e transparente e depois prosseguir. O dia em que a Via Campesina tentar impor maneiras de pensar ou linhas verticais, então teremos deixado de ser um movimento social verdadeiramente comprometido com a construção de um modelo alternativo (ALEGRIA apud DESMARAIS, 2013. P. 47). A identidade coletiva da Via Campesina é construída a partir do princípio da unidade na diversidade, ou seja, do reconhecimento que o direito à igualdade não suprime o direito à diferença, e a construção de um “nós” coletivo que represente a posição unificada de uma organização com um perfil tão heterogêneo não foi (como ainda não é) simples. E nos induz ao seguinte questionamento: como foi possível reunir, em uma mesma organização, pessoas 107

com culturas e interesses aparentemente tão distintos como camponeses e pequenos agricultores do Norte e do Sul Global, além de pastores, coletores, pescadores, migrantes e indígenas? Iniciamos essa análise recuperando Melucci, segundo quem: O estudo de movimentos sociais deve começar pela investigação da lógica e dos processos que permitem ao campo sistêmico tanto se reproduzir como mudar porque é neste nível de generalidade que as questões e recursos vitais que provocam o conflito podem ser identificados e a especificação dos atores envolvidos torna-se uma questão para a pesquisa empírica investigar (MELUCCI, 1996. p. 107). Segundo a proposta analítica de Melucci (1996, 2001), além do campo do conflito, deve-se identificar quem são os atores em relação e averiguar se há, ao menos, um inimigo comum, pois essa é uma condição necessária (embora não exclusiva) à construção da subjetividade coletiva que diferencia um movimento social de outros fenômenos correlatos. Desmarais (2003; 2013), Edelman (2003) e Borras (2004) afirmam que a rejeição explícita à globalização neoliberal e a convicção de que as necessidades, questões e interesses das pessoas que "trabalham a terra" estavam completamente excluídos das negociações do GATT foram as principais motivações à criação da Via Campesina. No contexto da globalização, os Estados nacionais perdem poder absoluto sobre o seu território, porque não têm mais como controlar totalmente o fluxo de produtos, de informação e de pessoas como em épocas anteriores, e passam a definir as suas políticas econômicas e sociais pressionados por acordos e regimes definidos internacionalmente (HELD e MC GREW, 1999; SCHOLTE, 2005; BORRAS, 2004). Institucionalmente, este momento é caracterizado pela emergência de um “sistema institucional policêntrico” (FOX apud BORRAS, 2004), em que os Estados nacionais passam a compartilhar o poder com instâncias supranacionais: as organizações internacionais; subnacionais: os estados e municípios e as multinacionais. E de um “multilateralismo complexo” (O’BRIEN et al, 2000), em que as organizações internacionais, as empresas multinacionais e atores sociais: ONGs e movimentos sociais incidem na governança global da Economia. Um cenário que impulsionou tanto a transnacionalização dos movimentos sociais rurais, como a sua localização (BORRAS, 2010). Desmarais (2013) aponta que a identidade, estratégias e planos de ação da Via Campesina foram se desenvolvendo em relação ao contexto – o sistema agroalimentar neoliberal inaugurado nos 1980 – e em interação com os principais atores nele envolvidos: a FAO, a OMC e outras instituições internacionais; as grandes transnacionais do agronegócio, 108

da agrotecnologia e da Economia Verde; as ONGs parceiras e a Federação Internacional de Produtores Agrícolas (IFAP na sigla em inglês), sua concorrente. Desmarais (2003) e Edelman (2003) também sustentam que um fator fundamental para a formação da Via Campesina foi a relação pregressa entre ativistas de organizações rurais do norte e do sul global, durante as década de 1970 e 1980, e o reconhecimento que as grandes empresas transnacionais da agricultura e as instituições econômicas internacionais, principalmente o GATT que antecedeu a OMC, eram os seus inimigos comuns. Durante os 1980, ocorreu um movimento de aproximação entre organizações de agricultores da Europa e da América do Norte e entre estas e organizações de outros lugares do mundo, principalmente da América Latina, e esses processos estão intimamente vinculados às mudanças na natureza da governança global da economia e ao viés neoliberalizante adotado nas políticas agrícolas mundiais à época. Uma dessas formas de aproximação deu-se por conta da construção de projetos conjuntos e do intercâmbio entre organizações locais de distintos países, principalmente da América do Norte, Europa e América latina. A média dessas viagens era de uma a seis semanas e em ambas as direções, o que propiciou o intercâmbio de conhecimentos e de saberes entre agricultores do Norte e do Sul Global e a oportunidade de vivenciarem formas diferentes de produzir, de viver e de enfrentarem as dificuldades, mas também de identificarem semelhanças em realidades tão distintas, porque o sistema agrícola neoliberal, então em processo de constituição, estava criando problemas semelhantes para os pequenos agricultores de todo o mundo. (DESMARAIS, 2002; 2013). Outra forma de aproximação foram os protestos e coalizões transnacionais, os quais reuniram organizações rurais das Américas, Europa e Ásia em torno de um mesmo objetivo. Dentre estes, Edelman (2003) destaca as campanhas contra o GATT porque foram oportunidades, nas quais, as organizações rurais do norte e do sul superaram as suas diferenças e empreenderam uma ação concertada em pró de uma meta comum: colaborar para o fracasso das negociações. De acordo com a pesquisa de Edelman (2003), em 1987, um grupo de mais de 50 ativistas rurais, provenientes da Europa, América do Norte e Japão, encontrou-se em Genebra para discutir as negociações do GATT e lançou uma Carta de Princípios. Estes esforços conjuntos contribuíram para a formação de uma coalizão composta de pequenos produtores rurais, ambientalistas e consumidores que se reuniu, na mesma cidade, em 1990, para protestar contra o GATT. Em 1991, apesar dos Estados Unidos e Europa defenderem posições opostas nas negociações do GATT, a Coordenação Europeia de Agricultores (EFC) e a 109

organização norte-americana US National Family Farm Coalition unem-se no lançamento de um comunicado conjunto, que propunha reformas ao Programa de Política Agrícola Comum (CAP, sigla em inglês) da Comunidade Comum Europeia. Em 1992, dez mil ativistas da Europa, Japão, Coréia do Sul, América Latina e Canadá voltaram a reunir-se em Genebra e Estrasburgo, para novamente protestarem contra as negociações do GATT, e, em 1993, agricultores da Europa, Canadá, Estados Unidos, Japão e Índia reúnem-se também em Genebra, com a mesma intenção (EDELMAN, 2003). Além das reações ao GATT, os protestos contra as grandes empresas transnacionais do agronegócio – principalmente as ligadas aos transgênicos – também foram fatores que colaboraram para a união de ativistas rurais. Porque, embora essa problemática tenha tomado proporções mundiais somente nos 2000, as organizações de agricultores da América do Norte, Europa e Índia já agiam em favor da manutenção do status público dos recursos genéticos e contra as transnacionais dos transgênicos, desde a década de 1980 (Ibid). Rafael Alegria e Paul Nicholson, líderes da Via Campesina, expõem o que levou agricultores de países desenvolvidos e em desenvolvimento a engajarem-se em uma proposta comum, apesar dos seus respectivos governos estarem se digladiando nas disputas sobre comércio agrícola travadas no GATT e posteriormente, na OMC. Nas palavras dos ativistas: Mesmo que a marginalização tome feições diferentes de acordo com as regiões do mundo, os mesmos conflitos de interesse se apresentam nos países industrializados e nos países ditos em desenvolvimento; de um lado, uma grande massa de população marginalizada, que defende a sua cultura e seu direito a viver decentemente; de outro, uma minoria que impulsiona os seus mega projetos econômicos, em nome do “livre” comércio internacional, e coloca em concorrência todos os habitantes do planeta, em lugar de criar entre eles, laços de cooperação e solidariedade (ALEGRIA e NICHOLSON, prefácio, 2002). Francisca Rodrigues (2003), líder latino-americana da Via Campesina, complementa: O clamor era pelo estabelecimento de um movimento camponês, um movimento de famílias camponesas. […] um convite à criação de uma alternativa ao modelo econômico existente, no qual, nós, como camponeses, iríamos criar a nova estrutura (RODRIGUES, 2003). Nesse contexto, um grupo de 8 organizações camponesas da América Central, América do Norte e Europa encontrou-se em Manágua, durante o Congresso da União Nacional de Agricultores e Criadores de Gado (UNAG) e junto com a ONG holandesa Paulo Freire 110

Stichting (PFS) propuseram-se à criação de uma nova organização representante de pequenos agricultores e camponeses de abrangência global: a Via Campesina. Quando surgiu, o perfil da Via Campesina ainda não estava bem definido. A ONG Paulo Freire Stichting pretendia que o novo projeto político tivesse o objetivo principal de influenciar políticas governamentais e a alocação de recursos em projetos do interesse de camponeses, e operasse como um programa de pesquisa coordenado com centros de estudo voltados às prioridades dos agricultores. Mas essa não era expectativa da maioria das lideranças camponesas, que vislumbravam a Via Campesina como uma organização que desafiasse o modelo de desenvolvimento neoliberal dominante (BORRAS, 2004a, 2004b). Outra discordância foi em relação à participação da Federação Internacional de Produtores Agrícolas (IFAP na sigla em inglês) na nova rede, enquanto os movimentos rurais e camponeses eram radicalmente contra a sua participação, a PFS defendia a sua inclusão (DESMARAIS, 2003). A IFAP é uma rede internacional de organizações rurais criada no imediato pós-SegundaGuerra, em resposta ao novo contexto institucional internacional inaugurado com a criação da ONU e algumas de suas principais agências, dentre as quais a FAO, e, até o surgimento da Via Campesina, essa era a única organização internacional representante de agricultores de abrangência mundial. Diferentemente da Via Campesina, a IFAP tem viés reformista e aposta na relação colaborativa com a OMC, o que combina com o seu perfil dominante, pois é reconhecida por defender os interesses dos grandes produtores rurais. O que não a impede de disputar a base com a Via Campesina, porque é da sua representatividade que deriva a legitimidade que lhe garante assento em todos os encontros internacionais que são do seu interesse (DESMARAIS, 2013; NIEMEYER, 2006; IFAP, 2006). Esse ponto de atrito fez com que as lideranças camponesas revissem o papel e o status que a ONG Paulo Freire Stichting (PFS) deveria ter na nova organização e se decidissem pelo rompimento com a ONG holandesa, antes mesmo da formalização da Via Campesina em 1993. É possível inferir que, enquanto a PFS concebia uma organização de viés reformista, que agisse dentro dos mecanismos de governança global existentes, os líderes dos movimentos camponeses tinham uma proposta transformadora para a Via Campesina, percebida como a oportunidade de criação de um movimento social liderado e conduzido por camponeses e pequenos agricultores, através do qual pudessem falar por si mesmos, sem a intermediação de ONGs ou outros atores. Esse evento marcou a trajetória da Via Campesina, que fez a opção de não trabalhar com ONGs até a sua consolidação e dedicou o seu primeiro ano à construção e ao fortalecimento da rede na Europa, no Caribe e nas Américas. Na Europa, a Coordination 111

Paysanne Européene (CPE) aproveitou os protestos contra o GATT, como oportunidade para estreitar laços com outras organizações rurais presentes em Genebra. Enquanto, paralelamente, as organizações da América do Norte, Caribe e América Central planejaram um encontro em Tegucigalpa, que culminou no estabelecimento de um plano de ação, o qual dividiu as tarefas coordenativas da rede entre as áreas de línguas hispânica e inglesa (DESMARAIS, 2003). Estes esforços surtiram resultados e, em maio de 1993, realizou-se em Mons, na Bélgica, a Primeira Conferência Internacional da Via Campesina, ocasião em que se constituiu como rede mundial de movimentos sociais e definiu as suas estruturas e primeiras linhas estratégicas de trabalho. Já, nesta ocasião, ficou definido que “prevaleceriam objetivos e princípios sobre estatutos e estruturas” e o desafio seria a construção de um novo caminho: uma via alternativa ao modelo econômico prevalente, daí a escolha do nome Via Campesina (RODRIGUES, 2003, p.1). As conferências internacionais são fundamentais para o fortalecimento e estruturação da Via Campesina. Durante estes encontros, o movimento planeja e define as metas e planos de ação para os anos seguintes, ratifica ou define os seus principais posicionamentos, lança as suas campanhas internacionais e incorpora novos movimentos à sua estrutura (RODRIGUES, 2003; DESMARAIS, 2003, 2013). Até 2014 foram realizadas seis conferências internacionais. A primeira, já mencionada, em Mons, na Bélgica; a segunda em Tlaxcala no México, a terceira em 2000, em Bangalore na Índia; a quarta em 2004, em Itací no Brasil; a quinta em 2008, em Maputo em Moçambique e a sexta em 2013, em Jacarta na Indonésia (Via Campesina, 2014). E, embora eu não vá me aprofundar nesses eventos 21, a análise dessa trajetória me permite apontar alguns aspectos do processo de consolidação da Via Campesina ao longo desses 20 anos. Cada uma dessas conferências aconteceu em um continente diferente, o que revela tanto uma preocupação da Via Campesina com a equidade em termos regionais, como o seu interesse em abrir novas frentes e consolidar-se em diferentes regiões. O compromisso com a construção de um movimento social equilibrado em termos geracionais e de gênero também fica explícito, quando se constata que as mulheres e, posteriormente, os jovens foram ganhando cada vez mais espaço no movimento, como se pode conferir abaixo. Na sua I Conferência Internacional, a Via Campesina criou cinco diferentes regionais distribuídas entre: América do Sul, América do Norte, América Central, Europa Oriental, 21

Para informações detalhadas sobre as quatro primeiras conferências internacionais da Via Campesina, consultar Desmarais (2003; 2013) e Niemeyer (2006).

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Europa Ocidental e Ásia, cada qual com uma comissão coordenadora composta, à época, por uma só pessoa. A II Conferência Internacional da rede contou com a presença de 69 organizações representando camponeses de 37 países diferentes e, nessa ocasião, a rede já estava presente na África (VIA CAMPESINA, 1996), e a CCI contava com 8 membros, um para cada região, sendo que apenas um destes era mulher. A partir da sua IIIa Conferência Internacional, realizada em 2000 na Índia, as mulheres passaram a compartilhar com os homens a responsabilidade pelas coordenações regionais da Via Campesina. Por ocasião dessa conferência, foi organizada a “Ia Assembleia de Mulheres da Via Campesina” e a partir de deliberações aí tomadas, as coordenações regionais passaram a ser compostas, obrigatoriamente, por um homem e uma mulher (DESMARAIS, 2003, 2013). Os jovens também conquistaram o seu espaço na organização e em 2004, durante a IV Conferência Internacional, foi realizada a “Ia Assembleia de Jovens Camponeses" voltada à discussão de problemas específicos da juventude, entendida como a garantia do futuro do campesinato. E, desde então, tanto as assembleias de mulheres como a de jovens são realizadas a cada encontro internacional da rede (VIA CAMPESINA, 2004a).

A Soberania Alimentar na Via Campesina O tema da Soberania Alimentar foi colocado em debate na Via Campesina durante a sua II Conferência Internacional realizada em abril de 1996 no México. E, segundo a pesquisa de Desmarais (2003), a conceituação levou seis anos sendo negociada coletivamente pelas organizações membros da rede nos níveis: local, regional e transnacional e o resultado desse processo é a versão do conceito político de Soberania Alimentar divulgado publicamente durante a Assembleia Global sobre Segurança Alimentar (AGFA), quando a Via Campesina firmou-se como a voz camponesa no sistema internacional e voltou a atuar em parceria com ONGs e outras organizações urbanas. A Soberania Alimentar também foi tema da primeira campanha internacional movida pela Via Campesina com estratégias de ação pensadas para as escalas: global, nacional e local (DESMARAIS, 2003). E, embora não tenhamos registro da evolução desse processo, a análise das ações movidas nessa campanha revela como as dimensões local e global do ativismo social influenciam-se mutuamente. Os processos de negociação na arena Via Campesina são tendencialmente dialógicos, e, embora existam divergências e disputas por poder e influência no interior da rede, o

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interesse comum faz deste um confronto salutar gerador de novos conhecimentos e a construção da Soberania Alimentar é um exemplo. De acordo com Francisca Rodrigues (2003), liderança da Via Campesina à frente da campanha pela Soberania Alimentar desde a década de 1990, as campanhas da Via Campesina passam por um processo evolutivo, onde o acréscimo de uma nova questão não equivale ao abandono daquela em que se estava trabalhando antes. E à medida que o contexto foi se tornando mais complexo, com a inclusão de novos atores e o surgimento de novos desafios, a Soberania Alimentar foi ampliando o seu escopo, de forma que: reforma agrária, gênero, recursos genéticos, biodiversidade, direitos humanos, desenvolvimento rural, comercio justo, direito dos trabalhadores, agricultura sustentável e migração são todas questões interrelacionadas e legitimadas pela Soberania Alimentar. Neste processo, o local e o global influenciam-se mutuamente na criação de uma identidade e cultura camponesa cosmopolita e global. As místicas que hoje pontuam os encontros de todos os movimentos da Via Campesina são uma prática tradicional dos camponeses mexicanos e refletem a religiosidade e a influência da Igreja no mundo rural latino-americano. Assim como o troca-troca de sementes é uma prática ancestral de indígenas e pequenos agricultores em toda a América Latina, e as ações diretas contra empresas transnacionais e a organização de ações espetaculares nos protestos transnacionais devem-se à influência de organizações de pequenos agricultores da Europa e da Ásia. De forma que as práticas, assim como os sentidos e significados atribuídos à Soberania Alimentar, pela Via Campesina, conformam uma ecologia de saberes resultante dessa dinâmica. Como já visto, a oposição à agricultura transgênica é uma questão contemplada já na primeira declaração da Soberania Alimentar lançada em 1996 e a nossa pesquisa levou-nos a inferir que duas organizações membros da Via campesina foram especialmente influentes nesse ponto. Os transgênicos são questões relevantes para os pequenos agricultores da França e da Índia desde os 1980, e a rede de movimentos rurais indianos Karnataka State Farmers’ Union (KRSS) e a associação sindical francesa Confedération Paysanné atuam contra os Organismos geneticamente Modificados (OGMs) e a propriedade intelectual sobre formas de vida, em seus respectivos países e em nível transnacional, desde essa época. Ambas as organizações tiveram relevância no movimento de resistência à Globalização Neoliberal no final dos 1980 – 1990 e, a despeito das suas diferenças, privilegiam a ação direta e as ações espetaculares como estratégias de ação. A análise dos protestos realizados pela Via Campesina durante os encontros ministeriais da OMC revela que as ações espetaculares de forte conteúdo simbólico tornaram114

se marcas distintivas desses eventos, mas não só. Desmarais (2003) relata que a primeira ação da Via Campesina, como ator transnacional, em nível nacional, foi o ataque a filial da Monsanto no Sul do Brasil coordenado por José Bové — dirigente da Confedération Paysanné —, por ocasião do Fórum Social Mundial de 2001 e, desde então, essa estratégia vem sendo replicada pelas organizações membros da Via Campesina no Brasil. Da mesma forma, a ocupação de terras por camponeses, principal estratégia do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), também veio a ser adotada por outras organizações membros da Via Campesina, em seus países e lugares (Ibid). Os pequenos agricultores, membros da Confedération Paysanné, lutam pela preservação da agrobiodiversidade e dos conhecimentos agriculturais apoiados na ideia que o alimento é o principal legado histórico de um povo e, por essa razão, os Organismos geneticamente Modificados (OGMs) devem ser banidos. Nos 1990, a federação sindical atuava contra as transnacionais da agrobiotecnologia, a União Europeia e as instituições econômicas internacionais, privilegiando as ações diretas contra as empresas transnacionais e a organização de protestos e eventos criativos e espetaculares que rendessem espaço na mídia e o apoio da sociedade. Em 1990, na França, a organização promoveu uma ocupação da sede europeia da Monsanto situada nos arredores de Paris, que, segundo José Bové, influenciou a União Europeia a suspender a autorização de comercialização do hormônio BST produzido pela empresa. Em 1996, a “Aliança Camponeses Ecologistas Consumidores”, formada pela confederação em parceria com consumidores e ecologistas franceses, expôs uma vaca e um bezerro vivos no Museu de História Natural de Paris, tendo em vista influenciar o Parlamento Europeu a manter o embargo à importação de carne com hormônio norte-americana, que, votado dias após a manifestação, atendeu a expectativa dos ativistas. Em 1999, a Confedération Paysanné promoveu a destruição de plantações de arroz transgênico do Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (CIRAD) e também firmou presença no antológico encontro ministerial da OMC em Seattle, com José Bové distribuindo gratuitamente queijo Roquefort à população, em frente a uma loja do McDonalds, em protesto contra o embargo norte-americano ao queijo francês (HELLER, 2002; DESMARAIS, 2003). A propriedade intelectual sobre recursos biodiversos afeta os camponeses indianos desde a década de 1980, e a sua oposição à OMC está intimamente relacionada à imposição dos Tratados de Propriedade Intelectual (TRIPs). Segundo Edelman (2003), nos 1980, a empresa transnacional W.R.Grace adquiriu patentes norte-americanas de ingredientes ativos 115

da neen tree: uma planta tradicionalmente usada, pelos indianos, como remédio, inseticida e substituto de pasta de dente. Em 1990, a W.R.Grace iniciou a fabricação de produtos derivados da Neen na Índia e, apoiada no seu domínio da patente, tentou proibir o uso tradicional da planta pelos agricultores locais, que interpretaram o “seqüestro da neen” como o preâmbulo de um ataque corporativo a todo o material genético desenvolvido por eles e por seus ancestrais desde séculos (EDELMAN, 2003). A rede indiana de movimentos rurais Karnataka State Farmers’ Union (KRSS) atua contra a agricultura transgênica em nível nacional e transnacional, desde os 1990. A KRSS se autodefine como um movimento gandhiano, e os seus principais instrumentos de ação são a desobediência civil e a ação direta (KRSS, s/d). Já nos 1990, a organização pressionava o seu governo pela rejeição do TRIPs, sob a alegação que o tratado equivaleria a um tipo de protecionismo, por facilitar o monopólio de sementes e de produtos farmacêuticos. Durante essa mesma década, promoveu diversas ações diretas na Índia contra empresas norteamericanas ligadas à agricultura genética ou cuja imagem remete ao “Império”, como, por exemplo, a ocupação de uma loja da Kentucky Fried Chicken e ataques a dependências da Cargill e da Monsanto (KRSS, s/d). Uma dessas ações, perpetrada em 1992 contra a Cargill, provocou um protesto formal da parte de Washington, o que contribuiu para a divulgação das consequências negativas da TRIPs na imprensa mundial (EDELMAN, 2003). Internacionalmente, a rede de movimentos sociais foi uma das deflagradoras da “Ação Global dos Povos contra o Livre Comércio e a OMC” (Peoples' Global Action against 'Free' Trade and the WTO), e uma das principais idealizadoras da “Caravana Intercontinental Internacional” (CCI, na sigla em inglês): uma rede social transnacional lançada em 1999, que articulou movimentos sociais e ativistas do Norte e do Sul Global em ação contra as instituições neoliberais e os OGMs (FEATHERSTONE, 2003; KRSS, s/d). De acordo com a pesquisa de Featherstone (2003), nessa caravana, os movimentos camponeses do Sul global foram mais influentes do que as ONGs e os movimentos do Norte global e essa questão remete-nos ao tema da relação entre as organizações de movimentos sociais rurais e as Organizações Não Governamentais. As relações entre ONGs e organizações populares e rurais nunca foram de simples administração (DESMARAIS, 2003, JELIN, 1998), e parte deste conflito é devido à diferença estrutural e de capital econômico e social que as diferencia. Enquanto as ONGS costumam dispor de suporte técnico e financeiro e de uma equipe formada por funcionários com alta capacitação técnica, formação superior e proficiente em línguas, as organizações rurais e camponesas, em geral, sofrem com a falta de equipe e a escassez de recursos. E muitas ONGS 116

adotam uma postura controladora ou superior aos movimentos sociais rurais, colocando as lideranças camponesas em posição de segunda ordem e aproveitando-se da relação estabelecida, mais para a realização de suas próprias metas do que em pró do movimento. Todavia, embora não estejam livres de tensões, as relações construídas entre as ONGs e a Via Campesina tendem ser mais equilibradas e horizontais, porque a rede de movimentos sociais estabeleceu os seus próprios critérios para o estabelecimento dessas relações. Na interpretação de Francisca Rodrigues (2003), a Soberania Alimentar é o marco da retomada da relação entre a Via Campesina e as organizações não governamentais, porque foi a partir da sua divulgação pública que a rede conquistou o respeito de atores urbanos e se impôs como a representante dos interesses camponeses em nível transnacional. Em 1997, quando voltou a atuar em parceria com organizações não governamentais, a Via Campesina promoveu um encontro com ONGs europeias para estabelecer os critérios dessa colaboração. Primeiramente, esclareceu que a sua prioridade seria o fortalecimento da rede e, portanto, não estaria totalmente disponível a demandas externas. Em segundo lugar, demandou das ONGs o seu reconhecimento como a voz camponesa junto ao sistema internacional. E, em terceiro, esclareceu que não estabeleceria relações com ONGS exclusivamente dependentes de financiamento público (DESMARAIS, 2003). Desmarais (2003) avalia que essas alianças são tão importantes para a Via Campesina como o são para as ONGs; pois se o movimento lucra ao conseguir apoio às suas demandas e ações, as organizações conquistam legitimidade ao trabalharem com a maior rede mundial de movimentos sociais camponeses. Na prática, essas relações são complementares e pressupõe uma colaboração mútua. Nas mobilizações contestatórias, as ONGs e instituições tendem a ficar na retaguarda, dando apoio logístico e financeiro, enquanto os movimentos sociais posicionam-se na linha de frente, com a sua militância participando ativamente nos protestos e as suas lideranças exercendo o papel de “porta vozes” (no sentido dado por Bourdieu, 2007). No acompanhamento dos processos de negociação de acordos internacionais, as ONGs auxiliam os representantes dos movimentos sociais, mas não respondem por eles. Os funcionários das ONGs dispõem do seu conhecimento formal e do seu domínio de línguas para atuarem como tradutores de práticas e saberes, decodificando o conhecimento técnico para os movimentos sociais e transcrevendo os seus saberes e práticas tradicionais para uma linguagem aceita pelas instituições. E se há posições comuns, o consenso é conseguido por meio do diálogo e da negociação entre as ONGs e os movimentos sociais, durante as reuniões preparatórias para a participação nos eventos. 117

Em 1999, a Via Campesina soma-se àqueles que gritavam “Globalizar a luta, globalizar a esperança” na coalizão “O Nosso Mundo Não Está à Venda” em Seattle e, desde então, tem articulado alianças táticas com ONGs e outros atores urbanos em prol da Soberania Alimentar e outros temas do seu interesse, como também ilustra a parceria com a Food First Information and Action Network (FIAN) em prol dos Direitos Humanos dos Camponeses. A FIAN é uma organização internacional pelos Direitos Humanos que há mais de 25 anos luta pelo direito à alimentação, dedicando-se a documentar e a analisar casos concretos de violação do direito dos agricultores e a lutar contra todas as formas de exclusão ao direito à alimentação (FIAN, 2013). E a sua parceria com a Via Campesina dista de 1999, quando lançaram conjuntamente a campanha global “Comida, Terra e Liberdade” (DESMARAIS, 2003). A falta de registro sobre a violência cometida contra camponeses em todo o mundo motivou a FIAN e a Via campesina a realizarem o projeto conjunto de produção de um relatório anual com o registro dessa violação em vários países do mundo, na intenção de usálo como instrumento de pressão sobre a ONU e, apesar do alvo dessa ação ser uma organização internacional, a fase de levantamento e pesquisa foi conduzida em níveis local e nacional e a evolução desse processo culminou na publicação da “Declaração dos Direitos dos camponeses: homens e mulheres”, pela Via Campesina, em 2009, e na criação de um grupo de trabalho aberto para debater o “Direito dos camponeses e de outros trabalhadores em áreas rurais”, na Comissão de Direitos Humanos da ONU em julho de 2013. A parceria estabelecida entre a Via Campesina e a FIAN pode ser classificada como uma aliança tática, porque, mesmo que as organizações compartilhem ideias e metas comuns, não adotam a mesma identidade coletiva. Em nossa avaliação, esse é também o caso da coalizão “O Nosso Mundo Não Está à Venda” e de todas as outras redes sociais cuja motivação seja exclusivamente a oposição à globalização neoliberal ou a Soberania Alimentar, como pretendemos demonstrar a seguir.

3.2. Redes Transnacionais Táticas e Atores de Mediação

Argumentamos até aqui que a Via Campesina é a principal rede transnacional estratégica dos movimentos do campo na contemporaneidade. No entanto, é importante considerar também as redes táticas e outros atores de mediação, conforme já discutido teoricamente no capítulo 1. Incluem-se aqui uma vasta lista de atores, alianças e campanhas que apoiam os movimentos camponeses, mas que, eventualmente, também geram atritos 118

políticos, cuja origem varia. Podem ser devidos ao caráter de representatividade que alguns deles acabam tendo, aos nós nas redes, ou, também, pela assimetria de recursos na construção de iniciativas diversas. Mas, o que nos interessa destacar, aqui, é que as várias redes transnacionais táticas e atores de mediação (ONGs, universidades, institutos de pesquisa, policy makers, plataformas, campanhas, etc.) também disputam e interferem nos sentidos dados à soberania alimentar. Desde o Fórum Mundial pela Soberania Alimentar realizado em Havana em 2001, quando a Via Campesina se articulou com outros sujeitos coletivos para debater os significados da Soberania Alimentar, a conceituação transformou-se em uma grande tenda: um programa político cujo enunciado reflete os interesses de diferentes grupos e movimentos de oposição à globalização neoliberal (PATEL, 2009). Mobilizado estrategicamente por esses atores, o conceito gerou um “quadro de ação coletiva” — nos termos de Snow e Benford (2000a, 200b) — que motivou a criação de comitês, coalizões e campanhas sociais que articulam os mais diferentes interesses e identidades unidos pelo ideal comum de construção da Soberania Alimentar. A relevância do fenômeno fez com que alguns atores e autores viessem a interpretar a Soberania Alimentar como um movimento social. Dependendo do contexto, a FAO refere-se à Soberania Alimentar como um conceito político ou como um movimento social (FAO, 2009. P. 19) e, a partir de distintos lugares, Holt-Giménez (2010), McMichael (2013) e Akram Lodi (2013) defendem a ideia que a Soberania Alimentar configura um movimento social. No entendimento de Holt-Giménez (IBID, p. 2-3), existe um movimento social amplo pelo direito à alimentação com duas principais tendências: os Radicais e os Progressistas, os quais, apesar da dificuldade de construírem alianças estratégicas, são “os braços e as pernas de um mesmo movimento” que atua de forma complementar e não concorrente. Ambos têm o ideal de construção de um regime mais justo e equitativamente distribuído, considerando os critérios de raça, gênero e status econômico. Mas, enquanto o “movimento pela Justiça Alimentar” — o progressista — acredita na possibilidade de uma reforma sistêmica, o “movimento pela Soberania Alimentar” — o radical — luta pela sua superação. O “movimento pela Justiça Alimentar” abarca certos movimentos de pequenos agricultores, o movimento pelo Comércio Justo, o movimento “Slow Food”, conselhos de Política de Alimentação — como o Consea no Brasil — os movimentos pela certificação e pela denominação de origem dos alimentos, movimentos de trabalhadores, entre outros. Enquanto o “movimento pela Soberania Alimentar” luta por reformas distributivas e estruturais, incluindo o acesso à terra, à água e ao mercado, e dentre esses constam: a Via 119

Campesina, o International Planning Committee (IPC), a Marcha das Mulheres e outros movimentos de base pela justiça social. Para Holt-Giménez, os dois movimentos são complementares, porque o desafio é enfrentar os problemas imediatos: a fome, a má nutrição, a insegurança alimentar e a degradação ambiental, sem abrir mão da luta por reformas estruturais. Uma segunda interpretação é a de McMichael (2013), que a partir de uma perspectiva histórica e contextualmente situada interpreta a Soberania Alimentar como um “contramovimento estratégico vinculado ao Regime da Alimentação” e, por esta razão, redefinido em função das diferentes fases do capitalismo. Tendo o capitalismo como referencial, McMichael afirma que já houve outros movimentos sociais em pró da Soberania Alimentar, mesmo que o conceito ainda não tivesse sido inventado e interpreta o movimento surgido no fim do século XX como uma resposta ao modelo de capitalismo neoliberal no campo, adotado mundialmente por pressão do sistema internacional. Para sustentar a sua hipótese, remete a experiências conduzidas em nível micro e em escala local e identifica como elemento comum, independentemente do momento histórico, o fato de serem movidas não pelo lucro ou pela acumulação, mas pelo direito à reprodução de relações sociais e de modos de vida ancorados em princípios de autodeterminação ou auto-organização. Do século XIX, o autor traz o movimento de resistência de ex-escravos norte-americanos pelo direito de manterem hortas para a sua subsistência. Da atualidade, cita as experiências de conservação de milho crioulo in situ no México, as iniciativas pelo comércio justo, o movimento Slow Food, as redes de troca de sementes, entre outras (Ibid, p. 3). McMichael parte da ideia que a base do contramovimento pela Soberania Alimentar é o campesinato, mas entende que a conjuntura atual transformou a geopolítica da alimentação em uma questão de interesse geral e, como consequência, ambientalistas, cidadãos urbanos, consumidores, entre outros, passaram a se identificar com a causa camponesa e a apoiá-la. Destarte, no século XXI, o movimento pela Soberania Alimentar configura-se como um “movimento civilizacional” que, assentado na ideia de alimentação como um direito humano inalienável, contrapõe-se ao processo de mercantilização dos alimentos e demanda a democratização do conceito de segurança alimentar, apelando à formação de “uma aliança política ampla com foco na saúde humana e na preservação ambiental” (Ibid, p.7). Uma terceira abordagem é a de Akram Lodi (2013), que tece uma crítica às “contradições do movimento pela Soberania Alimentar” e identifica duas principais tendências intramovimento: a ala reformista (onde entrariam boa parte do que aqui estamos 120

denominando como “redes transnacionais táticas”) e a ala transformadora (representada exclusivamente pela Via Campesina). De acordo com a sua análise, o movimento pela Soberania Alimentar não tem atingido resultados concretos, por duas principais contradições: a primeira é conseguir influenciar os discursos, mas não as práticas das instituições, e a segunda dificuldade é transcrever uma agenda transformadora em ações concretas que garantam a realização de um regime de alimentação alternativo ao capitalista dominante. O autor conclui que os princípios que embasam e sustentam a Soberania Alimentar só podem ser atingidos se houver uma mudança sistêmica, e essa necessidade imperiosa é reconhecida apenas pela Via Campesina. A resposta do autor a este desafio é a criação de um novo “senso comum” mais radical, por ele denominado como “Soberania Agrária”. A partir de diferentes pontos de vista, os autores chegam à conclusão de que a Soberania Alimentar configura um movimento social amplo dividido internamente em duas tendências, uma transformadora e outra conformista. Também compartilham a ideia que a amplitude de interesses envolvida é o que responde pela sua aceitação e adoção pela maioria dos atores contrários ao sistema agroalimentar neoliberal vigente, e que a abrangência do conceito fez com que ultrapassasse os limites do universo da agricultura e alimentação e viesse a figurar em outros discursos do movimento altermundialista. Concordamos que a Soberania Alimentar vem sendo construída coletivamente por movimentos e organizações de perfil reformador e transformador e que os seus sentidos e significados são derivados desse amalgama de saberes. Mas discordamos que as redes formadas em prol da Soberania Alimentar façam parte de um movimento social porque os diferentes sujeitos unidos nessa luta não compartilham uma identidade comum e atuam concertadamente apenas quando atende aos seus interesses particulares. Em nosso entendimento, esse conjunto configura uma ampla rede transnacional de solidariedades desiguais (FEATHERSTONE, 2003; NICHOLS, 2009) subdividida entre redes de alianças táticas e uma única rede de alianças estratégicas: a Via Campesina. A diferença entre redes de aliança tática e redes de aliança estratégica foi explicitada na parte teórica dessa mesma tese, mas cabe recuperar que essa é uma classificação nativa adotada pelos próprios movimentos sociais para referirem-se aos diferentes tipos de alianças que estabelecem com outros atores (BRINGEL, 2014). As alianças táticas são pontuais e mais fáceis de serem construídas, porque articulam organizações, pessoas, ONGs e instituições que não compartilham, necessariamente, as mesmas crenças e ideais e nem sempre defendem os mesmos interesses. E, no marco da Soberania Alimentar, podemos citar: as campanhas “Sementes”, “Combat Monsanto”, “OMC fora da Agricultura” e “Ban terminator”, a coalizão transnacional “O 121

nosso mundo não está à venda” (Our world is not for sale), o boletim “Nyeleni" e a plataforma global “International Planning Committe for Food Sovereignity” (IPC), entre outras. Já as alianças estratégicas são mais duradouras e difíceis de serem construídas, porque implicam na existência de alto grau de capital social compartilhado — normas, confiança, emoção e quadros interpretativos — e no desenvolvimento ou pré-existência de uma identidade coletiva comum. E a única “rede transnacional de alianças estratégicas” articulada em prol da Soberania Alimentar que reconhecemos é a Via Campesina, que acolhe uma diversidade de: culturas, origens sociais e procedências geográficas sob a identidade coletiva comum de Camponês. A identificação que existe nas redes sociais articuladas em prol da Soberania Alimentar não é suficientemente forte para que as distintas organizações negociem e superem as suas diferenças, a ponto de agirem como um sujeito coletivo, mesmo quando isso contraria a sua posição individual. O que explicaremos melhor, através de dois exemplos brevemente mencionados: o International Planning Committe for Food Sovereignity (IPC) e a já mencionada coalizão: O Nosso Mundo Não está à Venda (OWINFS, na sigla em inglês). O International Planning Committe for Food Sovereignity (IPC) O International Planning Committe for Food Sovereignity (IPC) foi criado pela maioria das entidades civis que organizaram o fórum paralelo à Cúpula Mundial pela Alimentação de 1996, quando o conceito de Soberania Alimentar foi lançado como um contraponto ao conceito de Segurança Alimentar (IPC, 2014). O IPC é uma “plataforma global, auto-organizada e autônoma” formada por entidades representativas de: indígenas, camponeses, pescadores, sindicatos de trabalhadores agrícolas, ONGS e movimentos sociais preocupados com questões relacionadas à Soberania Alimentar (IPC, 2006), e deve ser interpretado como uma aliança tática e não estratégica, porque algumas de suas organizações membros mantêm relações entre si exclusivamente neste espaço. As organizações envolvidas em sua criação compartilhavam a ideia que as negociações internacionais sobre agricultura não podiam ficar restritas ao tema do comércio internacional e deveriam contemplar também: o direito à alimentação e à soberania alimentar; o acesso, a administração e o controle de recursos locais; a produção de alimentos de base familiar, agroecológica e em pequena escala e a soberania alimentar. E perceberam a necessidade de dispor de um canal de comunicação e de participação institucional que facilitasse o diálogo entre a sociedade civil e as organizações internacionais. Com este intuito, a aliança foi criada em 2000, mas o seu reconhecimento formal se deu apenas em 2003, 122

quando foram estabelecidos os princípios governadores da sua relação com a FAO e, desde então, o IPC é o principal canal de comunicação entre a sociedade civil e a dita organização (IPC, 2014; DESMARAIS, WIEBE e WITMAN, 2010). O comitê é formado por ONGs e por organizações e movimentos sociais transnacionais, regionais e nacionais representantes de pequenos produtores, pescadores, indígenas, mulheres rurais, camponeses, ecologistas, etc. O comitê atua nos níveis regional e internacional, principalmente, através da organização de grupos de trabalho cujo objetivo principal é facilitar a participação dos movimentos sociais e das pequenas organizações nas conferências regionais e nos comitês técnicos da FAO. O processo de debates é descentralizado e há uma divisão de tarefas: colaboradores das ONGs dão suporte técnico e atuam como tradutores (CAROU e BRINGEL, 2010) e facilitadores, preparando os militantes que atuam como representantes do IPC nas conferências organizadas pela FAO. Os representantes internacionais são escolhidos entre os membros das redes de abrangência transnacional e os que atuam em nível regional entre aquelas de representação regional22. Desde 2003, o IPC desenvolve um plano de trabalho focado nos seguintes temas principais: o direito à alimentação e à soberania alimentar; acesso a, administração e controle de recursos locais; produção de alimentos de base familiar, agroecológica e em pequena escala, e comércio e soberania alimentar (DESMARAIS, WIEBE e WITMAN, 2010). E os seus grupos de trabalho estão subdivididos em: Terra, Agricultura e Biodiversidade, Agroecologia, Animais de criação, Crises prolongadas, indígenas e água (IPC, 2014). O resultado das suas atividades está publicado em relatórios e documentos que, além de contemplar os temas mencionados acima, traz análises sobre a relação da FAO com a sociedade civil (IPC, 2002; 2003; 2004). E a leitura deste material contribui para mostrar a relação mutuamente constitutiva entre as dimensões global e local do ativismo social. De acordo com os textos, muitas organizações e movimentos sociais membros do IPC tomaram a iniciativa (alguns pela primeira vez) de empreenderem negociações e debates sobre a 22

Em 2014, a organizações que atuam em nome do IPC em nível internacional são: La Via Campesina (LVC), World Forum of Fishers People (WFFP), World Forum of Fish Harvesters & Fish Workers (WFF), World Alliance Mobile Indigenous People (WAMIP), Mouvement International de la Jeunesse Agricole et Rurale Catholique (MIJARC), {The International Union of Food, Agricultural, Hotel, Restaurant, Catering, Tobacco and Allied Workers’ Associations – (IUF)}, URGENCI, International Indian Treaty Council (IITC), Habitat International Coalition (HIC), World March of Womens and International Federation of Rural Adult Catholic Movements (FIMARC). E as que atuam em nível regional são: Roppa, Propac, Asia Rural Women Coalition, Coalition of Agricultural Workers International, Arab Network Food Sovereignty, Movimento Agro Ecologico Latino Americano, Enlaces Continentales Mujeres Indigena, Coordinadora Andina de Organizaciones Indígenas, Coordinadora de Organizaciones de productores Familiares del MERCOSUR (COPROFAM), Austrialian Food Sovereignty Alliance, US Food Sovereignty Alliance. AS principais ONGs que fazem parte do IPC na atualidade são: FIAN, Friends of the Earth International, Centro Internazionale Crocevia, PANAP, Terra Nuova, Norway Development Fund, International Collective in Support of Fishworkers, Cenesta, ETC Group (IPC, 2014).

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Soberania Alimentar com os seus respectivos governos em nível nacional, influenciados pela sua participação nessa plataforma internacional (IPC, 2006). O Nosso Mundo Não está à venda (Our World Is not For Sale) A oposição à OMC é um tema que agrega inúmeros atores na luta contra a globalização neoliberal e o olhar sobre essa questão contribui para evidenciar as tensões entre as diferentes vertentes da luta pela Soberania Alimentar. Diferentemente do sistema ONU, que dispõe de canais reais de comunicação e interação com a sociedade civil, a OMC não é uma instituição aberta ao diálogo com a sociedade civil, para o que contribuem a sua natureza e perfil e o fato de lidar com o comércio internacional. Outro aspecto a ser considerado é o poder de influência que as grandes empresas têm na organização, através do lobby junto aos representantes dos seus respectivos governos, e a importância relativa destes países na estrutura da OMC (O’BRIEN, 2000). Pressionada a dar mais transparência aos seus processos de negociação, desde 2006 a instituição promove um fórum anual aberto à participação de: acadêmicos, mídia, empresários, governos, parlamentares, organizações intergovernamentais e atores da sociedade civil. Contudo, somente algumas organizações de perfil conformista e reformista têm espaço na instituição (O’BRIEN. et al, 2000; DESMARAIS, 2003), que se preocupa mais em conquistar o apoio de grupos de interesse e organizações influentes junto ao Congresso Americano, do que atender ao interesse geral (O’BRIEN. et al, 2000). Estes fatores fizeram com que coalizões e movimentos sociais que aceitam sentar à mesa com a FAO recusem-se a participar do fórum social promovido pela OMC, optando por pressionar a organização por meio de ações contestatórias, e a Via Campesina é parte deste grupo. A Via Campesina tem se destacado na luta em oposição à OMC, através da realização de campanhas permanentes e da organização de protestos e manifestações durante os encontros ministeriais em sua maioria não violentos e espetaculares 23, como a campanha pela “OMC fora da agricultura” que, em 2001, ganha a adesão de outros movimentos sociais e ONGS que, em novembro deste mesmo ano, lançam a campanha “Pela prioridade dos povos à soberania alimentar: OMC fora da agricultura” (DESMARAIS, 2003). Esta campanha foi elaborada pelo “Agri Trade Group”, um subgrupo da coalizão internacional Our World Is Not For Sale (OWINFS) e, desde então, a coalizão é um espaço importante de articulação e de ação conjunta de organizações representantes das alas 23

Para saber mais sobre as ações da Via campesina em relação à OMC, consultar Desmarais (2013).

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progressista e radical da luta pela Soberania Alimentar, porque reúne diferentes tipos de organização, com inclinações políticas, interesses e identidades os mais diversos, como: grupos de consumidores, alianças trabalhistas, ONGs, associações de imigrantes, uniões sindicais, órgãos governamentais, movimentos sociais camponeses, a coalizão ATTAC, entre outros24. The “Our World is not for Sale” (OWINFS) network is a loose grouping of organizations, activists and social movements worldwide fighting the current model of corporate globalization embodied in global trading system. OWINFS is committed to a sustainable, socially just, democratic and accountable multilateral trading system (OWINFS, 2014) Essa coalizão foi criada por organizações e ativistas envolvidos na luta altermundialista, desde antes da conclusão do acordo de Marrakech, quando os protestos transnacionais reuniam pessoas de diferentes nacionalidades e culturas identificadas pela oposição à Globalização Neoliberal, incluindo a Via Campesina que fez parte dessa articulação desde a sua gênese até dezembro de 2013, quando publicou uma carta anunciando formalmente o seu desligamento da coalizão. E a análise dessa crise revela como a ausência de um compromisso normativo e ideológico forte, somado à estrutura não hierárquica e difusa das redes, dificulta a manutenção de alianças táticas a largo prazo. Desde a criação da OMC, a Via Campesina não acredita na possibilidade de uma reforma da instituição que seja favorável aos interesses dos camponeses e dos povos em geral, por isso defende a retirada das negociações sobre agricultura e propriedade intelectual sobre formas de vida dessa organização e a sua transferência para o sistema ONU, onde tem mais possibilidades de intervir. As ações e campanhas movidas pela coalizão OWINFS iam nessa mesma direção, mas a Via Campesina alega que, desde 2009, a OWINFS adotou uma posição tendencialmente reformista em relação à OMC e que essa postura não reflete mais as suas ideias e posições. Ainda de acordo com a rede transnacional de movimentos sociais, o manifesto A guinada da OMC em 2013: Alimentação, Trabalho e Desenvolvimento em primeiro lugar, publicado pela OWINFS, não reflete as prioridades dos movimentos sociais, especialmente as suas, e “as diferenças teriam tornado-se muito grandes para serem ultrapassadas” e, assim sendo, decidiu-se por abandonar a coalizão.

24

A relação de organizações membro da Our World Is Not For Sale (OWINFS) pode ser acessada no site da coalizão em:

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A partir dos exemplos escolhidos, pode-se entender que a diferença entre uma aliança tática e estratégica é de grau de identificação e não a opção pela ação institucional ou conflituosa. O IPC é um comitê que tenta influir nos destinos do sistema agroalimentar mundial atuando de forma colaborativa com as organizações da ONU, enquanto a coalizão OWINFS age de forma contestatória em relação às empresas transnacionais e a OMC. Embora os casos mencionados sejam de redes transnacionais, a diferença que estabelecemos aqui não é de escala, porque as redes de aliança táticas ou estratégicas podem ser construídas em níveis local, regional, nacional e transnacional. Um exemplo de rede de aliança tática articulada em nível nacional é a “Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida”, coordenada pela Via Campesina Brasil em articulação com outros atores.

3.3. A Via Campesina Brasil

A Via Campesina está organizada no Brasil, desde quando a rede criou a regional América do Sul, durante a sua 1a Conferência Internacional realizada em 1993 e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi o primeiro movimento social brasileiro a se filiar à Via Campesina e também o primeiro encarregado da coordenação regional da Via Campesina América do Sul. A partir da 3a Conferência regional, realizada em 2000 na Índia, as regionais da Via Campesina têm a sua coordenação compartilhada entre um homem e uma mulher pertencentes a organizações de diferentes países e o Brasil nunca deixou de ser contemplado. Inicialmente a cargo do MST, a coordenação da Via Campesina América do Sul passou para a responsabilidade do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e, atualmente, está a cargo do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Quando uma organização se candidata a fazer parte da rede transnacional, o primeiro critério é ter a sua filiação aprovada pelas outras organizações membro da Via Campesina, no seu país de origem. Na etapa seguinte, a candidata é mantida em observação por um período de tempo (em geral, o período entre um encontro internacional e o outro), para que as suas metas, objetivos e estratégias sejam avaliadas e cotejadas com os da rede, antes de ser aceita como membro efetivo. Não existe um critério político e ideológico definido para fazer parte da rede transnacional, que congrega organizações e movimentos sociais com os mais variados perfis, “desde aquelas oriundas de uma estrutura comunista de estado até as de tradição anarcosindicalista; desde aquelas com uma procedência amplamente liberal, àquelas provenientes do 126

ativismo ambientalista” (BORRAS, 2004, p.10), no entanto, um critério categórico é a organização candidata não fazer parte da IFAP (DESMARAIS, 2006; BORRAS, 2004). No Brasil, a Via Campesina está composta por sete organizações e movimentos sociais de base rural com perfis bastante diferenciados. Além do MST, fazem parte da rede os outros três principais movimentos sociais brasileiros de base rural não sindicalista: o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), o Movimento de Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Além destes, na última conferência internacional da Via Campesina, em 2013, foram incluídos o Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e a Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas (CONAQ). E, por fim, a Pastoral de Juventude Rural (PJR), que difere dos outros movimentos por ser ligada à Igreja Católica e cuja presença na rede reflete a influência que teve a Teologia da Libertação no processo de formação dos movimentos sociais rurais brasileiros, durante e logo após a ditadura militar, como se pode conferir em Boff (1986) e em Medeiros (1989). No universo acadêmico, quando se fala em Via Campesina Brasil, somos levados a pensar, em primeiro lugar no MST, porque tem sido objeto privilegiado de pesquisa, tanto no Brasil como no exterior. Em segundo lugar, somos remetidos ao MAB, que embora não com a mesma ênfase que o primeiro também tem sido objeto de estudo. No entanto, não se pode entender a construção da soberania alimentar no interior da Via Campesina Brasil, sem a consideração tanto do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) como do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), pelos seus respectivos investimentos na recuperação e na preservação do conhecimento tradicional e das sementes. No Brasil, a Via Campesina ganhou notoriedade a partir de uma ação de protesto comandada pelas Mulheres da Via Campesina no dia 8 de março de 2006, quando duas mil militantes invadiram as instalações da Aracruz Celulose no Rio Grande do Sul, com o objetivo de destruir as suas experiências com eucalipto e o seu viveiro com mudas da planta. A questão, a raiz do problema, é o eucalipto. Sabidamente, essa árvore altera o solo e afeta a biodiversidade. E, mais que tudo: agrava as secas no Sul do continente. Porque o eucalipto precisa sugar toda a água possível, em seu redor, para se desenvolver. Em apenas sete anos, por aqui, o eucalipto já oferece a fibra necessária para fabricar papel. [...] Talvez esteja aí o principal motivo pelo qual as multinacionais de celulose se deslocam, cada vez mais, para a América Latina para produzir aqui o produto que lá estão impedidas de fazer, em função de leis ambientais mais rigorosas. (OBSERVATÓRIO DE IMPRENSA apud. BERGER, 2006, p. 4) 127

Esta foi uma ação orquestrada pela Via Campesina, tendo em vista a divulgação dos problemas associados à monocultura de Eucalipto para o conjunto da sociedade, e tanto o sigilo como a cobertura pela grande imprensa eram necessidades estratégicas. Para resolver esse dilema, não só o movimento informou a imprensa sobre uma ação secreta no dia 8 de março, como providenciou o transporte dos jornalistas para o local até então desconhecido. A ação gerou um fato político com grande repercussão e a citação acima é exceção, pois as matérias publicadas na grande imprensa demonizaram as Mulheres da Via Campesina, classificando-as de vândalas e de terroristas (BERGER, 2006). Sem julgar o mérito da ação, a importância de recuperar esse evento deve-se à sua relevância. A Via Campesina está organizada no Brasil, desde a sua 1a Conferência Internacional, quando os seus fundadores criaram a Via Campesina América do Sul e outorgaram ao MST a coordenação da regional (DESMARAIS, 2013), mas foi em decorrência deste evento emblemático que a Via Campesina tornou-se conhecida da sociedade brasileira. A importância desse fato, somado à invizibilidade do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) e à sua relação próxima com o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), sujeito e objeto principal dessa pesquisa, estimulou que eu começasse a narrativa sobre a Via Campesina Brasil dando vóz às mulheres do campo. Durante o meu trabalho de campo, eu tive a oportunidade de entrevistar uma militante do MMC que participou dessa mobilização emblemática. O seu relato revela, por um lado, a importância das redes de relações próximas, de parentesco e de vizinhança, para angariar ativistas para ações desse tipo. E, por outro, a indispensabilidade da autoidentificação da militância como membro da Via Campesina, para manter a coesão do grupo e garantir que os coordenadores não perdessem o controle da ação. E, nesse caso, a confiança é o valor comum tanto à rede de relações próximas, como à rede de relações distantes. Em suas palavras: Nós ficamos acampadas em um assentamento lá em Porto Alegre, o motorista não sabia, se não ele não iria. Nós não sabíamos o que ia acontecer, porque não tem como. Ninguém sabia. Disseram: a tal hora amanhã nós vai sair e daí de noite fizeram uma reunião; algumas mulheres sabiam, mas não quiseram contar para ninguém. Saímos ainda estava escuro, chegamos lá ainda era umas 6 horas, ainda estava escuro. Nosso ônibus foi o terceiro que chegou lá[...] tinha umas mulheres muito amigas nossas que chegavam e viravam as caixas [de muda] tinha gente que sabia, dos laboratórios e da pesquisa. Pegaram uma turma e foram lá

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nos laboratórios. Imagina! [ponderando] Mas é uma coisa que destrói, que acaba com a natureza (informação verbal)25. De acordo com a militante, eram 36 ônibus com mulheres filiadas ao MST e ao MMC, vindas de todo o Brasil, “mas quando os últimos chegaram, o trabalho já estava feito”. Na véspera da ação, todas as mulheres receberam o lenço lilás da Via Campesina e foram instruídas a estar com o rosto tampado. E todas agiram com “muita coragem”, porque “a polícia podia chegar baixando”. Após esta ação, “algumas lideranças tiveram de passar anos escondida da polícia”, como na região de Eledi, onde “nenhuma mulher esteve lá, eu mesma não estive lá” (risos). Todo “8 de março”, o Movimento das Mulheres Camponesas organiza ações em todo o Brasil. Em 2007, as mulheres da Via Campesina da região Sul foram distribuir “comida da roça às famílias pobres” na periferia de Florianópolis, “foi de chorar”, conta a ativista. Em outro ano, participaram de uma palestra sobre agrotóxicos, realizaram uma mística contra os agrotóxicos em frente à cooperativa local e distribuíram alimentos em um hospital de Florianópolis (informação verbal) 26. Mas as ações pacíficas não conseguem espaço na imprensa e foi o extremismo da ação contra a Aracruz Celulose que deu à Via Campesina espaço para divulgar a sua mensagem sobre os efeitos danosos do eucalipto no horário nobre da televisão. E, apesar do perigo da empreitada, aos olhos da militante camponesa, a importância do ato justificou todo o risco e consequências. As mulheres são protagonistas na luta pela Soberania Alimentar em todo o mundo e, no Brasil, o Movimento das Mulheres Camponesas carrega essa bandeira há mais de 30 anos, mediante um consistente trabalho de base conduzido em diversos estados do Brasil, mas desconhecido da sociedade brasileira. Durante o meu trabalho de campo no extremo oeste de Santa Catarina também conheci Mirian Delavechia, dirigente do MMC desde a época em que ainda se chamava Movimento das Mulheres Agricultoras. Mirian nasceu no Rio Grande do Sul e sempre trabalhou como agricultora, na juventude participou do projeto “4S: saber, sentir, servir, saúde” e da Comissão Pastoral da Terra e está no MMC desde a sua fundação. Segundo a sua narrativa, o “Movimento das Mulheres Agricultoras” foi renomeado como “Movimento das Mulheres Camponesas: MMC, “porque tudo o que significa produção de alimentos e quem trabalha com a terra se tornou camponês”.

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MILITANTE DO MMC. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, nov. 2011. MILITANTE DO MMC. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, nov. 2011.

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O MMC está presente em 23 estados brasileiros e representa: Mulheres camponesas: agricultoras, arrendatárias, meeiras, ribeirinhas, posseiras, boias-frias, diaristas, parceiras, extrativistas, quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, sem terra, assentadas... Mulheres índias, negras, descendentes de europeus. Somos a soma da diversidade do nosso país. Pertencemos à classe trabalhadora, lutamos pela causa feminista e pela transformação da sociedade (MMC, 2014) De acordo com o relato de Mirian, o movimento surgiu motivado pela necessidade de reconhecimento que o trabalho exercido pelas mulheres do campo era uma profissão e “não o trabalho de uma doméstica”. Depois de atingida essa meta, a luta foi pela conquista da aposentadoria aos 60 anos de idade, pelo auxílio maternidade para as mulheres agricultoras e pelo auxílio doença para os homens e as mulheres agricultores. “Tudo conquista das mulheres agricultoras”. A família é o valor central para o MMC, mas o movimento critica o viés machista da instituição e atua em favor da conscientização das mulheres sobre o seu papel na reprodução da sociedade patriarcal: A família é um valor central nessa sociedade, mas por um viés muito machista, o homem é quem fala, a mulher está sempre em segundo lugar. E o MMC tem contribuído para as mulheres não romperem com o valor da família, mas se libertarem dessa opressão. Tem todo um planejamento a longo, médio e curto prazo. Nos encontros, se fala para romper com esses padrões. Não é porque sempre foi assim que precisa continuar sendo assim. São as mulheres, mães e professoras, que educam as crianças, então como o mundo é machista? Então, fomos nos perguntando e agindo assim. Os meus filhos homens já agem diferente, na casa deles não há diferença. Eles e as esposas fazem tudo junto (informação verbal) 27. Mirian me explica que “As Mulheres da Via Campesina” correspondem ao “Movimento das Mulheres Camponesas” organizado em nível nacional e eu pude conferir que à época o movimento não tinha uma coordenação nacional. Em 2013, o seu arcabouço foi revisto e o MMC passou a estar estruturado em: grupos de base, direções municipais, direções regionais, direções estaduais, uma coordenação nacional e uma direção executiva (MMC, 2014). Segundo Mirian, a coordenação estadual elabora o material que é trabalhado junto às comunidades de base e, de três em três anos, o resultado deste trabalho é levado para os encontros estaduais, quando são escolhidas as representantes de todos os níveis. São seis 27

DELAVECHIA, Mirian. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Anchieta (SC), nov. 2011.

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pessoas na coordenação de cada município e as candidatas são selecionadas pelas mulheres da base que “pensam e fazem sugestões de dois a três nomes”, os quais serão votados no Encontro municipal, quando aquela que obtiver mais votos será eleita coordenadora geral; a que ficar em segundo lugar será a coordenadora de finanças, e as quatro seguintes serão eleitas secretárias. Cada regional tem uma representante na Coordenação estadual, e cada coordenação municipal tem uma pessoa na regional e “assim a gente trabalha tudo em grupo”. Em 2011, a percepção das militantes do MMC com quem tive contato era que a ascensão do PT ao governo federal havia melhorado a situação do pequeno agricultor, mediante a criação de políticas e incentivos públicos, como: o perdão de dívidas, as políticas compensatórias e o pleno emprego e estes fatores somados teriam contribuído para a desmobilização da base. Nas palavras de Mirian: naqueles tempos [década de 1990], a gente não tinha carro mas a gente fazia, pegava a carroça e ia; levava fogão a gás, colchão, acampava e assim eu consegui muita coisa. Só que, daquela vez, o povo ia, agora muita gente não vai, porque aquele que vai consegue para todo mundo, então o povo não vai (informação verbal) 28. Apesar dessa análise pouco otimista, entre todos os movimentos sociais rurais brasileiros, o MMC é reconhecido como aquele que, nos 2010, consegue desenvolver o trabalho de base mais consistente, por meio de: reuniões periódicas com as mulheres e as famílias camponesas, feiras de troca de sementes, oficinas e palestras sobre o poder das ervas e das plantas medicinais, entre outras ações. Esse é um trabalho de fundo que vem sendo desenvolvido há 30 anos, desde quando a conceituação política de Soberania Alimentar ainda nem havia sido forjada como tal. Mas, desde o fim dos 1990, outro movimento social rural brasileiro somou-se ao MMC na defesa do conhecimento tradicional camponês, investindo no resgate e na preservação das sementes crioulas e tradicionais no país: o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Na percepção de Mirian, o MMC e o MPA foram os primeiros movimentos sociais a entenderem a importância das sementes tradicionais e crioulas e a investirem no seu resgate, atuando, inicialmente, separadamente e desarticulados da Via Campesina, que à época ainda não estava consolidada no Brasil. No seu entendimento, a superação das diferenças que possibilitou a união dos movimentos sociais rurais na Via Campesina se deu pela necessidade de enfrentamento de um inimigo comum: “poderoso e unificado” identificado, por ela, como o “sistema capitalista”: 28

DELAVECHIA, Mirian. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Anchieta, nov. 2011.

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O MMC e o MPA foram os dois movimentos que iniciaram o trabalho com as sementes crioulas. Aqui ainda não existia a Via Campesina, a gente nem tinha ouvido falar, a Via está mais presente agora nos últimos anos, porque com o sistema capitalista, os movimentos vieram a perceber que se eles unificam as coisas do lado deles, a gente tem de unificar as coisas do lado dos movimentos sociais, porque todos têm o mesmo objetivo e a gente precisava unificar a luta dos movimentos sociais para enfrentar. E aí a gente percebeu a necessidade de unificar, foi por necessidade mesmo (informação verbal) 29. Tanto o MMC quanto o MPA têm como base os agricultores proprietários de pequenos lotes de terra e não os agricultores sem terra, como o MST. E talvez este fator contribua para explicar o investimento destes movimentos na preservação das sementes tradicionais, desde antes da Via Campesina e da penetração da agricultura transgênica no Brasil e, no que se refere à construção da Soberania Alimentar no país, reconhecemos o trabalho do MMC e do MPA como complementares. O MMC é um movimento de mulheres e a sua forma de ação reflete a sua composição. A dinâmica da vida no campo, somada ao modelo de família patriarcal e machista e às obrigações de mãe e esposa, favorece às mulheres rurais a condução do trabalho de base e dificulta as ausências prolongadas. E, em meu entendimento, a principal contribuição do MMC para a construção da Soberania Alimentar no Brasil tem sido o trabalho de conscientização dessas mulheres sobre o valor do conhecimento tradicional preservado em seus quintais. No seu trabalho junto à base, o MMC estimula a preservação das sementes tradicionais e crioulas, muitas vezes heranças de família, e fomenta a troca de experiências e de conhecimentos sobre o poder curativo das ervas e plantas medicinais e aromáticas, e a troca de receitas de doces, compotas e licores com as frutas do pomar. Nos 2010, o MPA é o movimento social que mais investe no desenvolvimento da Soberania Alimentar em seus vieses como teoria e prática, razão pela qual consideramos que o seu estudo favoreça o desenvolvimento da nossa hipótese e explica porque a partir deste ponto da tese a nossa atenção concentrar-se-á nesse Movimento. O MPA foi criado em 1996 e já surgiu praticamente articulado à Via Campesina, pois é membro da rede desde o seu segundo ano de existência formal, para o que contribuiu as suas relações próximas com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Eleito como objeto e sujeito privilegiado dessa pesquisa, a sua análise difere daquela realizada sobre as outras organizações, tanto em profundidade como em forma. Tratado como 29

DELAVECHIA, Mirian. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Anchieta, nov. 2011.

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objeto, buscamos analisar o contexto de sua práxis, confrontando a sua trajetória com a de outras organizações e tomando em conta as referências bibliográficas disponíveis sobre o tema. Percebido enquanto sujeito, damos voz e legitimidade às narrativas produzidas coletivamente e pelos seus intelectuais e dirigentes e buscamos identificar as principais referências teóricas e ideológicas que influenciam o pensamento da organização.

3.4. O Movimento de Pequenos Agricultores

A beira da estrada viu nascer um gigante. Destes que parecem surgir do nada, como que num passe de mágica (GÖRGEN, 1998. p.19) Assim como outros movimentos sociais rurais surgidos no fim do século XX em diferentes lugares do mundo, o Movimento dos Pequenos Agricultores teve a sua formação impulsionada pelo processo de liberalização da agricultura característico do sistema neoliberal vigente. Conforme já visto no início do capítulo 2, as décadas de 1980 e 1990 representaram o auge da globalização neoliberal, como ideologia e como política econômica. Em paralelo, houve uma tendência de regionalização da economia, por meio da criação de blocos econômicos regionais e de tratados de livre comércio em todo o mundo. Neste contexto é criado o Mercado Econômico Regional para a América do Sul (MERCOSUL), integrando inicialmente Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai em um mercado comercial comum, onde o Brasil entrou como o principal exportador de produtos industrializados e os demais países como exportadores de produtos agropecuários. Nesta conjuntura, foram tomadas três medidas político-econômicas que prejudicaram enormemente o setor agropecuário brasileiro, porque contribuíram para fazer do país um grande importador de alimentos. Uma destas foi a liberalização comercial e o desmonte de instrumentos de intervenção do estado na economia, que implicou na redução do volume de recursos aplicados nas principais políticas agrícolas, na extinção da política governamental de estoques públicos de alimentos que foi reduzida em 85% em cinco anos, e na queda das tarifas de importação de produtos alimentares. Outra foi a adoção do plano Real em 1994, que implicou na queda da renda real do setor agrícola em cerca de 20 a 30%. E, por último, a valorização da taxa de câmbio, atrelada ao alto volume de recursos disponíveis no sistema financeiro internacional e às taxas de juros domésticas bastante elevadas, que constituíram um

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grande incentivo ao aumento das importações agrícolas (DELGADO apud. PICOLOTTO, 2011. p. 165). Antes de evoluir esta seção, considero importante esclarecer que a ausência de trabalhos secundários sobre o MPA limitou o material empírico a documentos fornecidos pela própria organização, dentre os quais: documentos públicos e privados e textos de seus militantes e lideranças. Somam-se a este material, as minhas próprias observações e notas de campo e algumas análises sobre outros movimentos sociais, sindicatos e organizações de base rural que auxiliam no entendimento das questões tratadas. Também é importante recuperar alguns dos pressupostos que nortearam a realização dessa pesquisa. Na parte metodológica desta tese, assumimos o nosso compromisso com a realização de uma pesquisa situada e esclarecemos que levamos em conta o valor teórico e analítico do material produzido por líderes e militantes sobre a sua organização e assumimos a intenção de investigar e compreender as bases teóricas e ideológicas que influenciaram a sua visão de mundo. Ter ciência dessa limitação e dos princípios que regem a construção deste trabalho contribui para a compreensão de porquê a nossa análise sobre o MPA apoia-se em documentos internos e dialoga com interpretações realizadas pelo próprio movimento sobre si mesmo e com teóricos que influenciaram a construção de sua ideologia própria, como Lenin. A mobilização da Seca: o mito de origem do MPA30 Na década de 1990, muitos agricultores familiares e pequenos proprietários rurais do sul do país estavam filiados aos sindicatos rurais ligados à recém-criada Central Única dos Trabalhadores (CUT) e percebidos como uma alternativa ao sindicalismo mais burocratizado da Contag. De acordo com a análise de Görgen (1998) e conforme diferentes estudos da sociologia do trabalho, embora originalmente combativo e responsável por conquistas importantes, como os direitos previdenciários dos trabalhadores rurais, com o tempo, este sindicalismo também foi se distanciando da base e tornando-se cada vez mais burocrático e envolto em alianças conjunturais, que o imobilizaram e fizeram com que deixasse de ser um legítimo representante do pequeno produtor e se limitasse a ser um braço do estado junto à base. Os trabalhadores rurais do Sul do país estão sindicalizados desde os 1970, mas, nos 1990, a globalização da agricultura, unida a outros fatores internos, contribuiu para quebrar o sindicato tanto econômica como politicamente. Em um contexto de hegemonia neoliberal, os pequenos proprietários rurais que desenvolviam uma agricultura de base familiar, 30

Esta seção está embasada principalmente em informações publicadas no livro de Frei Sergio Görgen (1998) e em relatos de militantes do MPA.

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diversificada e voltada para o mercado doméstico foram tendo cada vez menos apoio e influência junto ao governo brasileiro, o qual passou a privilegiar e a investir crescentemente em um modelo de agricultura capitalista, altamente mecanizada, monocultora e voltada para o mercado exportador. No ano de 1995, somou-se a este quadro uma forte seca no sul do país, que arrasou com toda a safra de feijão e de milho e prejudicou outras culturas, como a soja. A estiagem tornou essa situação insustentável para os pequenos agricultores da região, que passaram de vítimas a agentes do seu destino, transformando a tragédia em espaço de oportunidade política através da mobilização do Acampamento da Seca: a pedra fundamental de criação do MPA. Simultaneamente à crise do modelo sindical, vale destacar o surgimento de outras formas de organização: grupos de produção e de cooperação agrícola, associações e cooperativas e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), com estratégias novas e bem sucedidas junto ao governo. Este conjunto de fatores estimulou os pequenos agricultores a pressionarem o sindicato por mudanças, exigindo a sua reaproximação com a base e um posicionamento mais assertivo e menos complacente em relação ao Estado. Em resposta, um grupo de dirigentes sindicais assume uma nova postura e a sua primeira medida efetiva é a “Mobilização da seca”. Todavia, às vésperas do evento, a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (FETAG) recua e propõe o adiamento da data da mobilização, ao que um grupo de dirigentes sindicais cutistas reage, tomando as rédeas do processo e dando sequência, mesmo sem o apoio da federação sindical. Como nos lembra Edelman (2013, p. 2), os mitos servem “para afirmar identidades e valores compartilhados, mobilizar e unir coletividades, definir adversários e conectar o presente ao passado”. No caso do MPA, a “Mobilização da Seca” tornou-se mito de origem, porque, embora tenha sido um evento limitado ao Sul do Brasil, foi uma resposta bem sucedida às crises econômica, institucional e de representatividade que afetavam os agricultores familiares mais empobrecidos de todo o país. A comunalidade dos problemas, somada à carência de respostas satisfatórias, facilitou que esses fizessem empatia com aqueles e propiciou a transformação dessa mobilização no evento mítico de origem do MPA, o que favoreceu a consolidação do movimento em nível nacional. De acordo com a narrativa de Frei Sergio Görgen (1998), a Mobilização da Seca foi deflagrada em 15 de janeiro na região de Palmeiras das Missões (RS), conforme originalmente programado, e no dia 21 de janeiro no restante do estado. Mas, permanece ao longo de todo o processo dividida em duas estratégias: de um lado ficaram os dirigentes que apostavam na mobilização de base e, de outro, aqueles que estavam mais interessados no

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fortalecimento dos setores cutistas no interior da Contag e menos nas aspirações do povo mobilizado nas estradas. Para o grupo de sindicalistas combativos, tornou-se clara a necessidade de criação de um instrumento político alternativo ao modelo sindicalista, e o processo de lutas concretas iniciado com a mobilização da seca contribuiu para construção de uma aliança entre diferentes movimentos populares do campo. Conforme Görgen: A Mobilização da Seca forjou uma consciência popular nova entre uma enorme massa de pequenos agricultores e criou uma esperança para os agricultores familiares em todo o Brasil [...] É neste contexto que surge o Movimento dos Pequenos Agricultores, construído a partir da prática31 por um grupo de sindicalistas do Rio Grande do Sul e logo a seguir espalhando-se para outros estados brasileiros (GÖRGEN, 1998. p. 14). No entanto, limitar as motivações para a criação do MPA à Mobilização da Seca e à iniciativa aos pequenos agricultores sulistas é reducionista, pois a organização responde a uma demanda surgida, concomitantemente, em diferentes estados brasileiros e, por essa razão, o Movimento dos Pequenos Agricultores já nasceu organizado em nível nacional. De acordo com depoimentos de lideranças do MPA de todo o Brasil coletados por Valter Israel DA SILVA, V. (2011, n/p), por meio de entrevistas e de conversas informais anexadas a um trabalho em fase de elaboração, sabe-se que a ideia de criação de um novo instrumento político alternativo ao modelo sindical já vinha sendo debatida há pelo menos um ano antes da criação do MPA, por inúmeras lideranças sindicais rurais em diferentes estados do Brasil. Nas palavras de Valter: Informações oriundas de conversas informais com lideranças do MPA dão conta de que houve uma reunião entre lideranças de diversos estados Brasileiros que já apontava para a necessidade da organização de um Movimento Camponês, tendo em vista que o sistema sindical não estava mais respondendo a esta necessidade. Esta reunião teria acontecido um ano antes do Acampamento da seca no Rio Grande do Sul, nos bastidores da Plenária Nacional do Departamento dos Rurais da CUT em 1995 em SP. Participaram lideranças dos STRs, CPT, MST e chegam a conclusão que deveríamos criar um outro movimento. Cerca de um ano depois, com a seca no Sul esta conversa inicial se converte em luta concreta e, na sequencia, em organização política que articula aqueles que estavam se sentindo órfãos e que agora tinham para onde convergirem suas inquietações (DA SILVA, V., 2011, n/p)

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Grifo nosso.

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Ter ciência desse processo ajuda a entender como, apesar da dimensão continental do país e dos poucos recursos financeiros e estruturais da base do MPA, o movimento pôde ter surgido organizado simultaneamente em cinco estados brasileiros: Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo e Rondônia, sendo três no sul, um no norte e outro no sudeste (DA SILVA, V., 2011; FOLGADO, 2011). As bases de criação do MPA Isabel Ramalho, liderança nacional do MPA de Rondônia e filiada ao movimento desde a sua origem, relata como se deu este processo no seu estado (RAMALHO apud DA SILVA, V., V., 2011). Isabel iniciou a sua militância no movimento sindical em Rondônia e afirma que a motivação para a criação do MPA neste e em outros estados foi a crise do modelo sindical. Segundo o seu relato, na década de 1980, a direção nacional da CUT, que representava o sindicalismo combativo no país, decide criar um departamento rural nos estados. Mas este “teve uma vida muito curta”, exatamente porque a própria CUT, em curto espaço de tempo, também foi “contaminada pelo sindicalismo pelego“, e ”nesse processo, puxou um grande seminário nacional para refletir [...] sobre as condições e a própria necessidade de prosseguir construindo o departamento rural”, concluindo que o melhor era extingui-lo e disputar a CONTAG por dentro. Mas, o período de sindicalismo combativo havia sido de muita reflexão e os militantes de Rondônia, para não “deixarem morrer aquele processo tão importante”, ainda mais levando em conta o isolamento do estado, reconhecem a necessidade de se articularem em nível nacional e foi quando teve início: Uma construção mais orgânica com o MPA [...] nós fizemos muita oposição sindical, começamos a formar as comissões de base, que depois se transformaram nos grupos de base do MPA, com o processo de formação da militância nas escolas de formação (RAMALHO apud DA SILVA, V. 2011, n/p.). Durante o período em que o sindicalismo combativo tinha uma articulação no estado foram realizadas várias atividades com a presença de lideranças sindicais de outros estados do Brasil e uma destas: Reuniu em torno de sessenta pessoas: militantes destes sindicatos nossos [...] refletindo sobre este momento de ruptura com a estrutura sindical, mas nós não sabíamos para onde ir, a gente tinha muita insegurança. E o Geraldo [Geraldo Garcia do Mato Grosso do Sul] nessa atividade nos disse: olha, não tem nada pronto onde vocês 137

conseguem desembocar isso que vocês vêm construindo; agora, o que precisa ficar claro é que, com certeza, em muitos cantos deste país, há outros grupos de militantes que têm a mesma angustia que vocês, que perseguem o mesmo caminho que vocês e nós vamos ter que achar um jeito de fazer esses grupos se encontrarem (RAMALHO apud DA SILVA, V., 2011, n/p.). Na sequência, os sindicalistas combativos de Rondônia tiveram acesso a uma cartilha produzida por militantes de um novo movimento social rural que estava surgindo no sul do país. [a qual] trazia um relato das atividades que eles estavam fazendo, Dizia inclusive que ali se dava a luz a um grande movimento de massas, com perspectivas de se tornar uma grande articulação nacional dos camponeses. Então, quando a gente leu aquele material a gente se viu ali. É isso aqui! É esse que é o nosso movimento! É por aqui que nós vamos! E foi muito interessante que, no mês de novembro do mesmo ano, nós conseguimos fazer uma reunião nacional com cinco estados, foi quando a gente batizou e se deu o nome de Movimento dos Pequenos Agricultores, e dali pra frente os nossos problemas estavam resolvidos (risos) (Ibid). Conforme narra Sergio Conte, membro da Coordenação Nacional do MPA, no Espírito Santo, assim como nos outros estados, o principal motor à adesão ao projeto do MPA foi a crise do modelo sindical (CONTE apud DA SILVA, V., 2011, n/p.). À época, Sergio era dirigente estadual do DETR da CUT do Espírito Santo e a sua função deu-lhe oportunidade de conhecer outros companheiros de militância pelo Brasil que, como ele, estavam insatisfeitos e reconheciam a necessidade de desenvolvimento de um novo modelo de organização alternativa ao sindicalismo. Nesse período, eu participava do Departamento Estadual da CUT, no Departamento dos Rurais, e tive a oportunidade de circular um pouco pelo Brasil participando de atividades e de conhecer vários outros companheiros e companheiras em nível nacional, que estavam vivendo e sofrendo as mesmas angustias, os mesmos dilemas dentro da estrutura Sindical Brasileira Camponesa. [...] Com isso começamos a debater entre nós, quando nos encontrávamos, o que fazer para dar outros passos que viessem de encontro ao atendimento e as necessidades pelas quais passava o campesinato (CONTE apud DA SILVA, V. 2011). Em 1996, houve dois encontros, nos quais, lideranças sindicais rurais de diferentes estados, insatisfeitas com o modelo, tiveram a oportunidade de "trocar ideias e de pensar como dar este passo". E, durante a Mobilização da Seca, o processo que vinha sendo construído a partir da 138

reflexão e do debate coletivo em nível nacional, toma a forma de uma organização de movimentos sociais batizada como Movimento dos Pequenos Agricultores: MPA. Em janeiro de 1998, é oficializada a criação do MPA no Espírito Santo, a partir da organização da "primeira atividade específica de discussão para a implantação e aprofundamento do que é o MPA", e o ano termina com o movimento organizado em dez municípios do Estado (CONTE apud. DA SILVA, V., 2011). Também no Paraná, o principal estímulo à criação do MPA foi a crise da pequena agricultura somada à inoperância dos sindicatos para lidar com a questão. E, conforme Francisco Domingues Neto, em depoimento ao vídeo produzido durante o III Encontro Nacional do MPA, os primeiros contatos do MPA no Paraná deram-se ainda em 1997, mas a primeira mobilização no estado ocorreu apenas em 2000, movida pela liberação de recursos para a pequena propriedade rural. De acordo com Francisco, de início o MPA não foi bem aceito na região, mas "a partir da hora em que conseguimos a liberação do primeiro PRONAF, percebemos uma inversão muito grande e a consideração e o respeito pelas lideranças e pelo movimento" (NETO apud DA SILVA, V., 2011, n/p.). Esse conjunto de depoimentos revela que o Movimento dos Pequenos Agricultores resultou de um processo que estava em gestação em inúmeros estados brasileiros há mais tempo e a forte seca, que assolou o sul do Brasil em 1995 e motivou o Acampamento da Seca, foi a crise transformada em oportunidade pelos dirigentes envolvidos na sua criação, mas não explica o seu surgimento. Como visto, a criação do MPA deve-se a um complexo de fatores e o principal deles é a percepção, por parte dos atores envolvidos na sua gestação, que o movimento sindical rural havia “pelegado” e não os representava mais. A declaração de Isabel Ramalho resume o cenário: Quando a CUT decide acabar com o departamento rural, ali se decretou o fim de um espaço nacional de articulação dos camponeses. Nós nos sentimos expatriados, entregues às traças e foi a partir dali que nós, particularmente em Rondônia, começamos a discutir o que nós íamos buscar para nos articular em nível nacional. A avaliação que temos é de que pra nós de Rondônia, o MPA surgiu exatamente neste período, não com este nome, não tinha nome, não tinha sido batizado, mas nós não mudamos em nada o nosso método de nos organizar depois que foi dado o nome MPA. [...] nós fizemos uma opção por não ficar dentro da estrutura “contaguiana” e o trabalho que a gente começou a fazer começou a ser fortalecido por dentro das oposições sindicais (RAMALHO apud. SANTOS,V. n/p).

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Além da globalização neoliberal e suas faces internas, e da crise de representatividade dos sindicatos rurais na década de 1990, há outros fatores que devem ser tomados em conta, principalmente se quisermos entender o porquê da nova organização ter sido criada nos moldes de um movimento social e não como um novo sindicato. Um deles é o sucesso das estratégias do MST junto ao governo. Enquanto os sindicatos rurais haviam se afastado da base e tornado-se agentes do governo, o MST, com sua pressão e formas de atuação em pró da reforma agrária, estava conseguindo resultados significativos. Soma-se a isso o fato de alguns de seus fundadores, como Frei Sergio Görgen, estarem ligados tanto ao DNTR/CUT como ao MST, e a influência exercida pela Igreja progressista nas organizações sociais, por meio dos cursos de formação promovidos pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e o apoio da Comissão pastoral da Terra (CPT). Outro elemento a ser considerado é o MPA ter surgido como a opção de representação para os setores mais empobrecidos da pequena agricultura, sem vez e nem voz na estrutura sindical (ROSSETO apud PICOLOTTO, 2011, p. 203). Pois, à mesma época é criada a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF): uma organização de viés sindicalista formada, também, por egressos da CONTAG insatisfeitos com os rumos do sindicalismo rural (PICOLOTTO, 2011). No entanto, faz-se mister salientar que, embora os relatos sobre a gênese do MPA sugiram que o movimento surgiu de um rompimento com os sindicatos rurais, a minha pesquisa revelou que, passados quase vinte anos desde a sua criação, o MPA mantém uma relação próxima, de colaboração e, em alguns casos, orgânica, com diferentes sindicatos rurais pelo Brasil 32. Por conseguinte, as razões para a criação de um movimento social com o perfil do MPA, na metade da década de 1990, transcendem a fatalidade da seca e deve-se a um complexo de fatores: o processo de liberalização da agricultura característico do sistema agroalimentar neoliberal global e colocado em prática, no Brasil, com a criação do MERCOSUL; a crise do modelo sindical somada às relações pregressas entre algumas de suas lideranças insatisfeitas com os rumos do movimento; o sucesso das estratégias do MST; a falta de um instrumento que representasse os pequenos produtores rurais mais empobrecidos, e a influência da Igreja progressista na formação dos movimentos sociais. No final de 1997 houve um primeiro encontro nacional de lideranças com o intuito de constituir um movimento nacional. Em julho de 1998 já houve um segundo e o movimento deu passos em sua construção. Estes encontros foram dando formato, definindo características que 32

A relação entre o MPA e os sindicatos rurais será explorada no capítulo 5 desta mesma tese.

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apontavam para a construção de um movimento de massas, de luta permanente, com organização de base e com bandeiras simples, claras e objetivas (DA SILVA, V., n/p). Embora tenha construído a sua identidade a partir da negação do modelo sindical, o MPA não rompeu com a sua origem e, passados quase vinte anos de sua fundação, pode-se constatar que, em alguns lugares, a relação entre o movimento social e os sindicatos rurais é de colaboração estreita e, em alguns casos, até orgânica, como poderá ser conferido no capítulo 5 desta mesma tese. Identidade De acordo com o publicado no seu website, o Movimento dos Pequenos Agricultores é: Um movimento camponês, de caráter nacional e popular, de massa, autônomo e de luta permanente, constituído por grupos de famílias camponesas. Seu principal objetivo é a produção de comida saudável para as próprias famílias e também para todo o povo brasileiro, garantindo assim, a soberania alimentar do país. Além disso, busca o resgate da identidade e da cultura camponesa, respeitando as diversidades regionais. [...] O MPA integra a Via Campesina, articulação internacional de movimentos camponeses, e junto com outros movimentos e setores da sociedade luta, por um Projeto Popular para o Brasil (MPA, 2014). E o fato de uma organização denominada como Movimento dos Pequenos Agricultores identificar-se como um movimento camponês é, no mínimo, contraditório, mas o que se constata é que, em 1996, ano da criação do MPA, a categoria política e identitária de "camponês" estava em declínio, enquanto a categoria de “agricultor familiar” estava ganhando substância como categoria analítica, política e identitária e a de “pequeno produtor” em processo de redefinição. No Brasil, o termo camponês vigorou nos estudos de populações rurais pobres durante três décadas, dividido entre duas principais influências: entre 1950 e 1970 prevaleceu o referencial marxista clássico e, na década de 1970, a perspectiva de Chayanov. Em termos teórico-conceituais, não havia uma só versão de campesinato, mas, tendencialmente, tomava-se como referência o domínio do econômico, privilegiando-se as relações de produção, em detrimento dos aspectos sociais e culturais que caracterizam as vidas dos sujeitos referidos pela categoria. E a despeito dos diferentes enfoques, nos debates marxistas “a categoria analítica de campesinato era carregada de conteúdo político e

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ideológico, visto que a preocupação era identificar seu papel no desenvolvimento capitalista e na revolução socialista” (WERSHEIMER, 2009. P. 91). Nos 1970, os estudos sobre campesinato no Brasil buscaram articular a categoria Campesinato a de pequeno produtor, a partir da noção teórica de “modo de produção camponês” Chayanoviana, que busca integrar a política econômica de Marx à teoria marginalista, em uma teoria microeconômica sobre o campesinato (IBID). A unidade elementar do Modo de Produção Camponês é a Família Camponesa: uma totalidade indivisível, posto que é, simultaneamente, proprietária dos meios de produção, realizadora do trabalho e gestora do empreendimento produtivo. E, diferentemente do modelo capitalista de produção, que explora a mais valia tendo como meta o lucro, a unidade camponesa de produção visa satisfazer as necessidades da família com a menor autoexploração de sua capacidade de trabalho e o conceito de Pequeno Produtor com o qual o MPA identificou-se estava associado à ideia de Família Camponesa de Chayanov. A dominância da noção de "pequeno produtor" deveu-se a dois fatores (ibid). Um destes foi o interesse do governo brasileiro na desarticulação de vários grupos e movimentos organizados, entre os quais se destacavam as Ligas Camponesas. E, o outro, a implantação da “Modernização Conservadora” no campo, marcada, dentre outros aspectos, pelo estímulo à adoção de pacotes tecnológicos da "Revolução Verde", então considerados sinônimos de modernidade, e o aprofundamento das relações de crédito na agricultura mediando a adoção desses pacotes com volumosas subvenções financeiras (DELGADO, 2001). Diferentemente da categoria campesinato, a noção de "pequena produção" era uma categoria operacional, com viés mais técnico do que político, sendo usada em referência às realidades empíricas dos grupos estudados. Ao longo da década de 1980, ao termo "pequena produção" agregam-se as noções de "integração" e de "exclusão" "demarcando a forma de relação estabelecida com o capital, notadamente o industrial" (WERSHEIMER. p. 92). Os integrados eram aqueles cuja produção estava voltada às demandas da agricultura e do mercado consumidor e os excluídos aqueles cuja produção não estava voltada aos complexos agroindustriais e que não haviam se modernizado. Nos 1990, muitos pesquisadores tenderam a trocar os “Estudos Camponeses” pelos “Estudos Agrários”, na intenção de cobrir a relação entre as populações rurais pobres e outros atores que não estavam contemplados na primeira perspectiva. Em seu viés como categoria analítica, "Agricultor Familiar" surgiu em referência a um sujeito empreendedor, capacitado tecnicamente, ambicioso e integrado ao modelo capitalista de produção na agricultura, em contraste com a categoria "Camponês" referida a um sujeito ignorante, preguiçoso, sem 142

perspectivas e atrasado em relação ao seu tempo histórico. E, no campo político, o conceito passou a ser mobilizado pelos movimentos sociais do campo, especialmente os sindicatos rurais ligados a CUT e a CONTAG, que passaram a usar o termo em defesa dos seus interesses frente ao Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) (Ibid). Ao longo da década de 1990, o termo é utilizado nas mobilizações anuais do "Grito da Terra", para legitimar as suas demandas por políticas públicas diferenciadas para os agricultores familiares (WERSHEIMER. 2009; GRISA, 2010). E uma dessas conquistas é o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), criado em 1995 com o intuito de atender de forma diferenciada "os mini e pequenos produtores rurais que desenvolvem suas atividades mediante emprego direto de sua força de trabalho e de sua família" (ceplac.gov.br). A noção de “Pequeno Agricultor” adquiriu consistência política nos 1990, associado ao contexto de globalização da agricultura e de criação do MERCOSUL, tendo ganhado significância como categoria identitária, ao longo desse processo. Na fase que antecedeu a vigência do acordo, o governo organizou seminários nos estados do sul e sudeste do Brasil para debater o processo de integração regional e, em especial, a definição de políticas agrícola diferenciadas para o pequeno produtor rural. E, após a sua criação, foram organizados encontros, seminários e fóruns internacionais envolvendo pequenos produtores da Argentina, Uruguai, Paraguai e Brasil, para tratar da viabilização dos pequenos produtores no processo de integração regional. No caso específico do Brasil, o Ministério de Agricultura, Abastecimento e Reforma Agrária (MAARA) incluiu a CONTAG em uma comissão técnica do Pequeno Produtor formada para analisar temas relacionados à pequena produção e elaborar propostas na área de política agrícola. E, na percepção da central sindical, esta foi a primeira vez que o governo admitiu sentar à mesa em condições de igualdade com os trabalhadores rurais, e, como resultado desta comissão, foi publicado um relatório denominado "Propostas e Recomendações de política agrícola diferenciada para o pequeno produtor rural" (PICOLOTTO, 2011, cap. IV). Nas propostas apresentadas no documento, as mais destacadas diziam respeito à classificação dos pequenos produtores e à proposta de crédito diferenciado para este público.A proposta de nova classificação dos pequenos produtores rurais estabelecia critérios importantes que passariam a ser adotados na definição das políticas para o campo desse período em diante (IBID. p. 168-69).

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Destarte, na década de 1990, quando o MPA surgiu, a categoria Pequeno Produtor era a categoria vigente e a de Agricultor Familiar estava em processo de ascensão como categoria analítica e identitária, enquanto campesinato estava em desuso, por representar um sujeito ignorante, ineficiente e deslocado do seu tempo histórico. Inicialmente, o MPA trabalhou operacionalmente com Agricultor Familiar, identificando-se como tal; no entanto, à medida que a categoria consolidou-se como a identidade do pequeno produtor alinhado ao modelo do agronegócio, o movimento deixa de identificar-se como tal e passa a reconhecer-se como uma organização de camponeses. Isso porque, ao longo dos 2000, essa categoria foi recuperada e resignificada, em seus viéses político e identitário, pelos próprios sujeitos a quem se refere. A exemplo do Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA), que atualizou o nome para Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) na década de 2000, o MPA também considerou a troca. Mas, em face de um conflito interno, o movimento rachou e o grupo dissidente — formado por lideranças do MPA de Goiás — apropriou-se do novo nome, criando o Movimento Camponês Popular: MCP em agosto de 2008 (MCP, 2014). Outra justificativa dada para a manutenção do nome original é o fato de o movimento já ser razoavelmente conhecido nos 2000, e a troca de nome poder trazer mais prejuízos do que benefícios. Acreditamos que essa conjugação de fatores explique porque uma organização denominada como Movimento dos Pequenos Agricultores está à frente da construção do Campesinato e da recuperação e positivação da identidade camponesa no Brasil 33. Organicidade Pela sua capilaridade, Valter Israel da Silva (2010) afirma que "o movimento já nasceu organizado em rede", todavia, apesar de relativamente descentralizado, o MPA não é uma construção espontânea, mas uma organização hierarquicamente dividida em: grupos de base, coordenações municipais, coordenações regionais, coordenações estaduais e, por fim, a instância máxima que é a coordenação nacional. A sua estrutura organizativa e proposta revolucionária parecem ter sido inspirados no conceito de Partido Leninista. A identificação existe e pode ser constatada em inúmeros textos produzidos pelo MPA e por seus intelectuais, mas o grupo de fundadores do movimento social era majoritariamente composto por sindicalistas e pequenos agricultores formados politicamente no seio da Igreja e sem conhecimento das teorias Marxista e Leninista.

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A contribuição do MPA para o desenvolvimento do conceito de camponês e de campesinato será desenvolvido no próximo capítulo.

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A partir de declarações de Frei Sergio (1998) e de outras lideranças do MPA, sabe-se que o modelo organizacional do MPA foi inspirado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e, como veremos com mais detalhes no próximo capítulo, o fato é que muitos dos seus militantes frequentaram os cursos de formação política promovidos pelo MST, nos primeiros anos do MPA. Mas, se este movimento social serviu de inspiração, Medeiros (informação verbal)34 acrescenta que a influência do “cutismo” no sindicalismo rural também não pode ser negligenciada. O DNTR é berço da maioria das lideranças envolvidas com a gênese do MPA e a sua estrutura organizativa seguia o modelo de sindicalismo urbano da CUT, muito mais descentralizado do que o da CONTAG, que contava com uma estrutura sindical tradicional composta por: Presidente, Secretário e Tesoureiro. Figura 1 — Organograma do MPA

Fonte: DA SILVA, Valter I. [S.l.: s.n., 2009]

A partir da avaliação do material sobre a organicidade do MPA, produzido pelo próprio movimento, entendi que o movimento está apoiado em dois alicerces distintos e complementares: a sua "estrutura legítima" e a sua "estrutura legal". A primeira refere-se ao movimento político propriamente dito e é composta pelas seguintes instâncias: os grupos de base, as coordenações, as Direções, os Coletivos, os Encontros, as Secretarias Políticas e as 34

MEDEIROS, Leonilde. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun. 2014.

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Secretarias Operativas. A estrutura legal é composta pelos instrumentos políticos, que são as cooperativas e associações que têm status jurídico e podem firmar acordos e buscar financiamentos para a realização de projetos junto ao Estado e outros atores sociais e institucionais. Nessa estrutura, os instrumentos políticos apoiam o movimento político e estão a ele subordinados. Assim como o MST e outras organizações de movimentos sociais membros da Via Campesina, o MPA manifesta preocupação com o equilíbrio de gênero e de geração nos cargos de representação da sua estrutura organizativa. De acordo com os documentos sobre a sua estrutura organizativa, sempre que possível, os Grupos de base devem ser coordenados por três pessoas: um homem, uma mulher e um/uma jovem e as Coordenações municipais, regionais e estaduais compostas por um homem e uma mulher. Todavia, quando a pirâmide aproxima-se do topo, os critérios mudam e são escolhidos os "quadros mais preparados para dirigir a organização" (MPA, 2009). O que, na prática, equivale a que estes lugares sejam majoritariamente ocupados por homens, o que revela o viés androcêntrico — embora não assumido — da organização. As Secretarias Políticas e as Secretarias Operativas têm naturezas distintas. As primeiras são responsáveis por passar as orientações políticas para o corpo da organização e devem ser compostas pelos seus quadros mais preparados. Já as Secretarias Operativas têm função burocrática e política e devem contar com um corpo técnico competente e serem acompanhadas por um dirigente político (MPA, 2009). Os Coletivos estão subdivididos em: Produção e autossustentação; Educação e formação; Comunicação e Gênero e Juventude (MPA, 2009. p. 18). Essas são instâncias operativas que tem a finalidade principal de formação e articulação da militância, "trabalhando as questões gerais do movimento a partir da sua perspectiva particular". (informação verbal)35. Também devem propor ações e metodologias para a execução dessas atividades, mas colocar em prática apenas o que for definido pela coordenação nacional. Os Encontros "são instâncias de animação e de reflexão que, por sua vez, têm a tarefa de apontar os grandes eixos de atuação; ou seja, as linhas políticas que a organização deve seguir" (MPA, 2009). E, por fim, há os Instrumentos Jurídicos que podem firmar convênios e acordos com o governo e outros atores porque têm existência legal. O Organograma do MPA, reproduzido mais acima, corresponde a um esquema ideal, que difere de acordo com a necessidade e capacidade do MPA no estado ou município. Nem

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PALMEIRA, Humberto. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun. 2014.

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sempre um município tem capacidade operacional para manter, além da coordenação, uma direção municipal, e também há casos, como o da Bahia, que, pela sua extensão e diversidade geográfica, comporta seis coordenações municipais. De acordo com as suas lideranças, o MPA opera com base no princípio do “Centralismo Democrático” entendido como liberdade de discussão conjugada à unidade de ação (DA SILVA, V., 2011), como revela o texto de um documento interno do MPA reproduzido abaixo. A proposta da organização é que as questões e temas que subsidiam as metas, campanhas e conceitos sistematizados pelos intelectuais e quadro de dirigentes do MPA passem por processos de reflexão coletiva, desde a base até a Coordenação Nacional. O Grupo de base é uma das principais instâncias da organização, pois é onde as famílias que compõem o movimento se organizam para aplicar na prática as orientações e definições políticas do MPA [...] o desafio é transformar as coordenações de grupo em militantes comprometidos com a causa [que assim] não serão meros coordenadores, mas sim, agentes transformadores que estarão ajudando o movimento a caminhar na marcha certa (MPA, 2009). Conforme o documento (Ibid), as deliberações têm início nos grupos de base, cujas posições são levadas às instâncias imediatamente superiores até chegarem à Coordenação Nacional, de onde retornam até a base na forma de: metas, campanhas e planos de ação. E os Encontros são as oportunidades, nas quais, o movimento tem oportunidade de dialogar e de diagnosticar os problemas que a sua base está enfrentando e as inúmeras soluções que vêm sendo construídas nos distintos contextos e lugares, tendo como critério o seu Plano nacional. Assim como os Coletivos propõem tarefas e ações à coordenação, que toma as decisões e os orienta na sua implementação, as análises dos problemas e soluções diagnosticados pelas diferentes Coordenações Estaduais são debatidas com a Organização Nacional e subsidiam as metas e ações tomadas em nível nacional (MPA, 2009). E, por meio dessa dinâmica dialética, as diferentes instâncias do MPA, a começar pelos grupos de base, influenciam a consolidação da identidade e do projeto político do movimento. No curso da pesquisa, eu também tive acesso a textos produzidos por membros do movimento que não fazem parte do quadro dos principais dirigentes e intelectuais do MPA. E, na minha interpretação, a importância deste material é ser revelador do grau de assimilação e identificação da militância com os valores, ideologia, metas e projeto político que conformam a subjetividade coletiva da organização. E o texto para debate nas instâncias do MPA, de autoria de Raimundo dos Santos Vieira (n/p), é um exemplo.

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O artigo intitulado A Organicidade do MPA analisa o papel das suas diferentes instâncias na construção, manutenção e motivação dos grupos de base, considerados como "a parte da estrutura orgânica mais importante da organização, pois sem ela o movimento não consegue avançar" (Ibid). Nas palavras de Vieira: [...] Uma boa coordenação municipal é determinante para a formação do MPA no município, a garantia da organicidade está na capacidade política e orgânica da coordenação municipal. [...] Uma das grandes tarefas da coordenação municipal é a garantia da unidade das famílias organizadas nos grupos de base, dentro de uma estratégia definida pela organização a nível nacional. [...] É necessário ter um bom conhecimento da conjuntura e da realidade política e econômica local. Conhecer a força do movimento e a força do inimigo de classe: inimigo tático e inimigo estratégico, aliado tático e aliado estratégico. [...] A coordenação e a direção municipal devem manter as coordenações dos grupos de base em atividade de formação permanente junto à coordenação estadual. Ter sempre o cuidado para não cair no municipalismo, no corporativismo no oportunismo político eleitoral, fazer as avaliações das atividades desenvolvidas pela a organização (o dito e o feito, avaliar e encaminhar sem cair no reunismo). Evitar o centralismo de tarefas nas mãos de poucos; decisão coletiva para evitar o chefismo e o oportunista político e econômico dentro das estâncias da organização (VIEIRA, s/d). Composição por gênero e geração A organização identificou que a maior parte dos seus membros são mulheres e jovens (MPA, 2010). Mas, se em termos quantitativos o MPA é feminino, no que tange às relações de poder, é masculino. As mulheres são maioria no movimento, mas a sua participação em espaços de direção ainda é muito limitada e, embora as relações de gênero estejam em debate, a organização ainda reproduz o padrão característico da sociedade patriarcal, onde as mulheres ocupam os postos na base da pirâmide e os homens, os cargos com maior poder decisório. De acordo com Maria José da Costa (informação verbal) 36, líder do MPA Nacional e da estadual do Piauí, as mulheres conduzem o trabalho com as famílias nos grupos de base e têm participação expressiva nas coordenações municipais e regionais, já nas coordenações estaduais este percentual diminui e o principal problema é a sua ausência nos espaços de direção, que são “aqueles onde se decide a vida maior do movimento”. Nas direções 36

Essa informação foi extraída da exposição oral de Maria José da Costa, no Io Encontro Nacional de Mulheres do MPA realizado durante o III Encontro Nacional do MPA, em Vitória da Conquista em 2010.

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estaduais, diz Maria, as mulheres são minoria e “nos espaços de negociação dificilmente tem companheiras”. O sujeito do MPA é a família camponesa e o trabalho com a base é em geral conduzido pelas mulheres junto aos seus vizinhos e às comunidades próximas, e os "laços fortes" contam mais do que a extensão das redes sociais (GRANOVETTER, 1973), porque a confiança é um valor fundamental e o trabalho é consolidado no cotidiano e em eventos sociais, como: churrascos, festas camponesas, torneios de bocha, peladas de fim de semana, etc., como tive oportunidade de conferir, durante o meu trabalho de campo em São Miguel do Oeste. Este desequilíbrio deve-se a um complexo de fatores. A carga de trabalho no movimento é sempre mais pesado para as mulheres, por conta do seu papel como esposa e mãe de família. Mesmo quando em acordo com o marido, a mulher militante dificilmente é liberada dos seus afazeres domésticos e termina acumulando tarefas, e o seu lugar de mãe dificulta que se afaste de casa por temporadas mais longas. Mas, conforme reconhecido por Maria, a responsabilidade é em grande parte das mulheres, que reproduzem com os filhos os padrões de família e de sociedade patriarcal que criticam. A minha pesquisa revelou que o movimento consolidou-se, nos 2000, pela ação da militância da “juventude do MPA” e pude conferir que, nos 2010, boa parte dos jovens de então faz parte do quadro de dirigentes da organização. De acordo com o movimento, o cenário mudou nos 2010 e a juventude está mais desmobilizada em todo o país. No entanto, apesar da conjuntura adversa, o relatório estatístico sobre a participação no III Encontro Nacional da organização revela que o MPA ainda é um movimento de "rosto jovem" e, de acordo com os dados, 42% dos militantes presentes tinham entre 12 e 30 anos (MPA, 2010). No que tange à participação da juventude, eu identifiquei diferenças de região para região, como revela uma comparação entre os estados de Santa Catarina e Bahia. De acordo com dirigentes do MPA (SC), no Sul, o jovem tem optado por deslocar-se para cidades próximas à casa dos pais, para trabalhar nas agroindústrias do agronegócio, seduzido pela vida na cidade e pela facilidade de consumo. Enquanto que, na Bahia, a juventude rural tem interpretado a adesão ao movimento como uma oportunidade de continuar os estudos e escapar ao controle das famílias, e a maioria dos dirigentes estaduais são jovens com menos de 30 anos. Acredito que as dessemelhanças culturais e de estrutura fundiária sejam os principais fatores que respondam por essas diferenças e reconheço a educação como outra questão relevante. Como apontado por Wersheimer (2009, p.27), a escolarização é um processo socializador e influencia as disposições dos jovens permanecerem no campo. No sul, o jovem vai para a cidade principalmente por razões culturais e eu depreendi que o 149

fechamento das escolas rurais contribuiu para esse processo de aculturação, porque o camponês fica alijado da sua cultura e aprende a valorizar o modelo urbano, desde criancinha. Enquanto que, na Bahia, as “Escolas Famílias Agrícolas” são alinhadas ao movimento camponês e muito fortes em todo o estado37. O processo de consolidação do MPA Esta subseção propõe-se a fornecer um breve panorama sobre o processo de consolidação do MPA, ao longo dos seus quase vinte anos de existência. O nosso fio condutor é o Plano de Construção Nacional que o movimento vem construindo desde os seus primeiros anos, tendo em vista enfrentar as pressões impostas pelo Agronegócio. Neste processo, a organização analisa o contexto e aproveita as suas contradições para construir alianças táticas e estratégicas com outros atores sociais e institucionais e ampliar os seus espaços de oportunidade política. O material empírico é exclusivamente composto por documentos produzidos por intelectuais do movimento e a proposta é traçar uma linha do tempo, a partir da recuperação de momentos importantes dessa trajetória, pontuando-os com as palavras de ordem a eles associadas, porque, conforme proposto por Valter Israel da Silva, sintetizam "o sentimento, o desejo e as reivindicações da organização naquele momento" (DA SILVA, V., 2011). O MPA surge em 1996, já como movimento nacional, organizado nos estados do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, além de Rondônia e Espírito Santo 38. Em 1997 e 1998 foram realizados os dois encontros que definiram o formato e as principais características do "novo movimento de massas, de luta permanente, com organização de base e com bandeiras simples, claras e objetivas" (DA SILVA, V., s/d). E, nessa mesma época, a nova organização filia-se à Via Campesina 39, pois esse processo foi concomitante à sua criação. O primeiro momento do MPA foi marcado pela luta por crédito e por políticas públicas especialmente desenhadas para os pequenos produtores, especialmente aqueles com até quatro módulos rurais (DA SILVA, V., 2010) e as suas primeiras pautas contemplaram as 37

Dados embasados em conversas informais com Leila Santana, dirigente do MPA (BA), em nov. 2014 e com Fabiano Baldo, dirigente do MPA (SC), em nov. 2011. 38 Em 2014, o MPA está organizado em 18 estados brasileiros: Pará, Roraima, Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais, Bahia, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e Rio de Janeiro, e o seu objetivo é atingir representação nacional. 39 Questionados sobre o processo de filiação do MPA à Via Campesina, vários dos seus dirigentes e intelectuais respondem que o MPA é parte da Via Campesina “desde o início” e a informação mais precisa que eu obtive aponta que entre o seu primeiro e segundo encontros nacionais, o MPA já estava filiado à rede transnacional de movimentos sociais.

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necessidades imediatas da sua base: os pequenos agricultores mais empobrecidos do norte e do sul do Brasil negligenciados pelo sindicalismo Contagiano. A sua primeira palavra de ordem: "Faça chuva, sol ou vento, queremos 1500" surgiu em decorrência da seca no sul do Brasil e demandava um crédito emergencial para as suas vítimas, porque o sistema havia induzido os pequenos agricultores a deixarem de produzir para o autoconsumo e com a estiagem prolongada havia "o medo de se passar fome" (DA SILVA, V., 2010). Nos seus primeiros anos, o movimento priorizou a "luta imediata" pelo "crédito subsidiado para viabilizar a Agricultura Familiar; o Seguro Rural, a Saúde e a Previdência para o trabalhador e a trabalhadora do campo”. E as "lutas gerais" contra a política de liberalização da agricultura, demandando "o controle de importação de alimentos; preços agrícolas que viabilizem a produção; e o aumento do poder aquisitivo do povo; agricultura Familiar como base para a produção de alimentos para o povo brasileiro e reforma agrária" (DA SILVA, V., 2011). E, não por acaso, essa pauta é semelhante àquela revindicada pelo "I Grito da terra Brasil": uma mobilização nacional formada em 1994 pela aliança de diferentes organizações membros do fórum da agricultura familiar: o DNTR/CUT (berço de muitas lideranças do MPA), a CONTAG, o MST, o MAB, a CNS, a Coordenação das Articulações dos Povos Indígenas do Brasil e o Movimento Nacional de Pescadores40. Esta fase foi marcada por um trabalho de base consistente e por muita luta e confronto direto com o poder público, como quando o movimento promoveu a invasão simultânea de agências do Banco do Brasil em vários estados do país, para pressionar pela liberação do Pronafinho 41. Outro exemplo é o Ferramentaço organizado em 1997, cujo nome deve-se ao fato de milhares de famílias terem levado as suas ferramentas para a mobilização. E o resultado mais efetivo de suas ações junto ao governo foi a conquista de um programa nacional de habitação camponesa em 1998 (DA SILVA, V., 2011; MPA, 2014). Em 24 de maio de 2000, em Cruz Alta no Rio Grande do Sul, teve lugar o Io Encontro Nacional do recém-criado Movimento dos Pequenos Agricultores: MPA, cujo nome é 40

A “Pauta Nacional de Reivindicações” desta mobilização organizava-se em torno de sete eixos: reforma agrária, política agrícola, direitos sociais e trabalhistas, previdência social, saúde e segurança no trabalho, política energética e meio ambiente (Grito da Terra Brasil, 1994). No que concerne à política agrícola, as demandas dirigiam-se à construção de crédito rural diferenciado aos pequenos agricultores (recursos exclusivos, juros e prazos de pagamentos específicos); institucionalização de uma nova classificação de pequeno produtor; garantias de comercialização; políticas específicas para a borracha, babaçu e pescadores artesanais; suspensão e renegociação das dívidas; ampliação do prazo para a desregulamentação das tarifas de importação do setor primário para o Mercosul; destinação de no mínimo 30% dos Fundos Constitucionais para a “pequena agricultura familiar”; além de outras demandas específicas, (GRITO DA TERRA BRASIL, 1994 apud. GRISA, 2010. p. 96). 41 A criação do Projeto Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar Especial (Pronafinho) visa a atender as famílias com renda bruta anual até R$ 8 mil ou R$ 16 mil, no caso e produtores que se dedicam à avicultura, piscicultura, sericultura, bovinocultura de leite e fruticultura (Radar, 1998).

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legitimado pelo lema: "M de Movimento, P de produção, A de agricultura que alimenta a nação". A segunda palavra de ordem lançada no evento: "Organizar; Produzir; Alimentar" resume a pauta de luta definida para o ano de 2001, que ainda priorizou as políticas públicas para a base, mas foi além da demanda por créditos emergenciais. Em resumo, essa pauta de lutas contemplou: a criação de "Linhas Permanentes de Crédito para a Agricultura Familiar"; a "Implantação de um Seguro Agrícola Nacional"; a "defesa da agricultura familiar" contra os efeitos danosos causados pela abertura do mercado aos produtos agrícolas importados dos países do MERCOSUL; uma "solução para as dívidas dos pequenos agricultores", mediante a renegociação ou perdão das mesmas; a "implantação de uma linha de Crédito para Habitação Rural" para pequenos produtores com até quatro módulos rurais e "previdência rural" (DA SILVA, V., 2011). Em 2002, entre o seu primeiro e segundo encontro nacional, o MPA envolveu-se na promoção da II Festa Nacional do Milho Crioulo (FENAMIC), realizada desde 2000 em Anchieta (SC) por atores locais e transforma o evento regional em uma festa de âmbito nacional42 (MPA, 2014). O segundo encontro nacional realizou-se em Ouro Preto (RO) em fevereiro de 2003, quando "o movimento deu um salto político na direção de sua consolidação como movimento nacional" (informação verbal) 43.

A pauta de luta, então definida, é

semelhante a de 2001, com a diferença de ter propostas mais bem elaboradas e menos imediatistas, e questionar o modelo produtivo vigente apontando novas soluções, como se pode conferir na citação abaixo: Queremos um programa de Assistência Técnica e Educação Rural diretamente vinculado aos Movimentos Sociais e seus projetos prioritários, com apoio do governo para contratar técnicos que possam acompanhar diretamente a produção e a capacitação da base organizada dos Movimentos e voltada a implementação de um novo modelo tecnológico, passando da agricultura química das multinacionais para a agroecologia e a agricultura orgânica44. (DA SILVA, V., 2011). O terceiro Encontro Nacional só realizou-se em 201045, mas ao longo dos dez anos que separam um evento do outro, o MPA não ficou estagnado e algumas palavras de ordem incorporadas ao longo desse período refletem uma mudança na sua identidade e vocação. 42

A Festa Nacional de Sementes Crioulas será vista em detalhes, mais à frente, nesta mesma tese. III Encontro Nacional do MPA - DA COSTA E FOLGADO, 2010 44 Grifo nosso 45 Eu não tenho informações sobre o porquê desse hiato de tempo, mas posso inferir que a crise interna, que culminou na criação do Movimento Camponês Popular por antigos militantes do MPA, tenha sido um fator determinante. 43

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“Che, Zumbi, Antonio Conselheiro, na luta por justiça nós somos companheiros" e "Brasil, Cuba, América Central, a luta socialista é internacional" revelam que, de uma organização restrita aos interesses imediatos da sua base, o MPA "incorpora posições políticas mais sólidas e o horizonte socialista passa a fazer parte do debate do movimento" (DA SILVA, V., 2010), que abraça a missão de vir a ser o "Intelectual orgânico da classe camponesa" (relato verbal)46. Na atualidade, o MPA é o movimento social que mais investe na construção de uma proposta de desenvolvimento alternativa para o campesinato no Brasil. Não obstante, esse processo teve início de forma modesta, por volta de 2004, movido pelo interesse na qualificação da sua pauta de luta e a partir do entendimento que "Agronegócio, só traz pobreza, propomos para o mundo agricultura camponesa". O interesse pelo estudo e promoção do Campesinato levou a organização a estabelecer parcerias com intelectuais profissionais, mobilizada pelo interesse duplo de promoção da formação teórica e política da sua militância e de fomento de estudos e análises que comprovassem o valor histórico do campesinato e do seu modo de produção para o Brasil. Transformando, dessa feita, a produção de conhecimento teórico em ferramenta estratégica de apoio à luta política da classe camponesa. Como resultado desses investimentos, em 2004 é publicado o livro “O campesinato no século XXI” e, em 2005, tem início a construção da coleção "História Social do Campesinato Brasileiro"47. Em 2006, o movimento organiza o "I Seminário nacional de educação camponesa" em Senhor do Bonfim na Bahia e, em 2007 realiza o "Seminário Nacional de Produção Camponesa", dando início à implementação do Plano Camponês, tema do seu III Encontro nacional realizado em 2010 em Vitória da Conquista, quando foi lançado o slogan "Plano Camponês, Soberania alimentar e poder popular!", que sintetiza as principais metas e estratégias do projeto transformado em meta síntese do MPA48. Diferentemente da crise da agricultura dos 2000, a crise de 2008 foi caracterizada pela alta dos preços dos alimentos (BELLO, 2012) e este contexto favoreceu a consolidação da aliança entre os trabalhadores do campo e da cidade, porque "se o campo não planta, a cidade não janta" (MPA, 2010) e, de acordo com o MPA, "a produção de alimentos para a mesa do trabalhador" é a principal contribuição da classe camponesa na luta pela conquista do poder

46

PALMEIRA, Humberto. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, out. 2014 Esta questão será abordada em detalhes no capítulo quatro dessa mesma tese. 48 Esta questão será retomada no capítulo quatro dessa mesma tese. 47

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popular e, movida por este ideal, a organização aproveita diferentes oportunidades para consolidar laços de solidariedade entre o campo e a cidade. Uma estratégia é aproximar o produtor do consumidor direto e um exemplo concreto é o "Mercado Popular de Alimentos" conquistado pelo MPA (ES) em 2011, que possibilita aos camponeses venderem a sua produção diretamente aos consumidores. E outro é uma iniciativa do MPA (RS) que aproveita a oportunidade de entrega das cestas de alimentos adquiridas pelo Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) para promover o encontro entre os produtores e a população carente da periferia da cidade beneficiada pelo programa. Ambas as estratégias contribuem para valorizar o camponês perante o sujeito urbano e a iniciativa do MPA (RS) contribui, ainda, para desmistificar a ideia, largamente disseminada no campo, que a vida na cidade é sempre mais fácil e melhor. A defesa de uma agricultura saudável, sem veneno e acessível ao conjunto da população é uma questão chave para a construção de “redes de solidariedade” entre o campo e a cidade. E se a agricultura transgênica foi um problema emblemático nos 2000, os agrotóxicos ganham relevância nos 2010 com a “Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida: uma “aliança tática” formada pela Via campesina Brasil e inúmeras organizações nacionais e regionais representantes das seguintes categorias: movimentos sociais; escolas, universidades e instituições de pesquisa; movimentos sindicais e entidades de classe; entidades, ONGs, assessorias, associações, cooperativas; movimentos estudantis e órgãos do Legislativo 49. Esse projeto é uma ideia original do MPA, posteriormente encampada pela Via Campesina Brasil, e, desde a criação da campanha, a sua coordenação está a cargo de Cleber Folgado, dirigente nacional do MPA. O próximo encontro nacional do MPA está agendado para 2015 e, nesse período, o movimento social continua investindo na consolidação do seu projeto político junto à base, às instituições e aos sujeitos urbanos. Esta é uma das chaves do processo de produção de conhecimento no movimento, a ser analisado com maiores detalhes no próximo capítulo.

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Neste caso, o termo regional refere-se a regiões do estado brasileiro, conforme definido na campanha; a relação de organizações membro pode ser conferida em:

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4. A PRODUÇAO DE CONHECIMENTO NO MPA

Apoiado na ideia de que política, ideologia e técnica são partes de um todo e que o conhecimento sobre a sua realidade concreta é o que vai promover a consciência da classe e garantir consistência à sua prática política, o MPA vem construindo um Plano Nacional de Formação, no âmbito do Plano camponês, a sua meta síntese. Conforme o “intelectual do movimento” Valter Israel DA SILVA, V. (2013, n/p), “o Plano Camponês é uma construção histórica da classe camponesa e não uma construção acadêmica. É um processo que os camponeses do Brasil vêm construindo e responde a uma necessidade concreta da base camponesa”. E, para Marcelo Leal (s/d), também dirigente e intelectual do MPA, “é resultado do debate militante somado à particular contribuição de dezenas de renomados cientistas brasileiros”. O movimento busca a conciliação de ambas as dimensões no “Plano Nacional de Formação do MPA”, cujo objetivo é promover a unidade ideológica e organizativa do movimento, sem suprimir as diferenças regionais e culturais entre as suas organizações membro pelo Brasil (MPA, 2009). De acordo com o documento, as reflexões devem partir “do dia-a-dia dos camponeses e do conhecimento sistematizado por pensadores e lutadores do povo”, ou seja, devem levar em consideração o saber, a cultura, as tecnologias de produção, o conhecimento, os saberes do povo e a sua análise estar apoiada no pensamento dos intelectuais que inspiram e influenciam as reflexões do MPA, dentre os quais se destacam: Marx, Lenin, Engels, Mao Tse Tung, Rosa Luxemburgo, Che Guevara, José Marti, Mariategui e Florestan Fernandes (Ibid, p. 13). O referido plano está subdividido em seis eixos principais: Produção, Educação e Formação, Vida de Qualidade, Comunidade Camponesa, Contradições e Soberania (MPA, 2009. p. 10). A sua leitura revela que o MPA investe na transformação dos seus militantes em “intelectuais orgânicos”, apoiado na crença que o embate com o “inimigo” vai além das vias institucionais e que, cada vez mais, a luta pela construção do “poder popular” envolve a conquista dos corações e mentes dos sujeitos oprimidos pelo sistema e prescinde de organizações que tenham capacidade de ação, reflexão e práxis (MPA, 2009. P. 13), porque o embate se dá em diferentes frentes: econômica, política e ideológica. O que nos remete a Melucci (1996, 2001) e a outros que defendem que a mudança sistêmica é precedida de uma mudança cultural na sociedade. A capacidade de ação é a mobilização dos sujeitos a quem representa, por meio do fortalecimento de sua identidade e da promoção da sua ideologia. A capacidade de reflexão é 155

entendida como capacidade de análise conjuntural e como estudo e valorização do seu conhecimento e cultura. Finalmente, a práxis é entendida como o desenvolvimento de formas de ação transformadoras da vida concreta, a partir da ação e da reflexão. Com base nessa compreensão, o MPA estimula a formação teórica de sua militância e a reflexão individual e coletiva em todos os níveis da organização, dos grupos de base aos dirigentes. Em resumo, para o MPA: A formação é um processo contínuo de elevar a consciência dos camponeses, de toda classe trabalhadora. Ter formação é ter conhecimento. O conhecimento é nossa capacidade de ter informação, de assimilação e aplicação. Ou seja, entender a realidade e intervir, ter proposta de mudança (MPA, 2009. p. 13) Esta breve introdução ao capítulo objetivou revelar a importância atribuída pelo MPA aos seus processos de formação, assim como a sua concepção própria de produção de conhecimento. Também pretendemos, com isso, justificar os eixos norteadores da nossa análise, que se inicia com o Lugar da Teoria e da Ideologia na Ação Política.

4.1. O Lugar da Teoria e da Ideologia na Ação Política

Tendo em vista a centralidade da teoria na ação política do MPA, nos debruçamos aqui sobre as influências ideológicas, teóricas e políticas que embasam as ideias e a ideologia defendida pelo Movimento dos Pequenos Agricultores e que, consequentemente, norteiam a sua práxis cognitiva, epistêmica, produtiva e política. A leitura de inúmeros textos produzidos pelo MPA revelou a predominância de uma leitura marxista-leninista da realidade social. Esta perspectiva é mobilizada pelos seus intelectuais, dirigentes e militantes, em manuais de formação política, análises de conjuntura, palestras e cursos de formação. Alguns destes textos são públicos e outros são documentos de trabalho e de circulação interna; a maioria foi sistematizada pelas principais lideranças e intelectuais do movimento, mas parte foi assinada por militantes e lideranças médias. O que se constata é que, invariavelmente, esses escritos buscam aplicar o método de análise marxista em suas análises — embora com diferentes níveis de sofisticação — o que se justifica tanto pelos diferentes graus de escolaridade dessas pessoas como pela fonte a partir de onde extraíram a sua noção de marxismo. Pois, conforme reconhecido por José Paulo

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Netto (2009, p. 3), há muitas interpretações equivocadas do método de análise marxista, inclusive por parte de seus adeptos e promotores: Delas resultou uma representação simplista da obra marxiana: uma espécie de saber total, articulado sobre uma teoria geral do ser (o materialismo dialético) e sua especificação em face da sociedade (o materialismo histórico). Sobre esta base surgiu farta literatura manualesca, apresentando o método de Marx como resumível nos “princípios fundamentais” do materialismo dialético e do materialismo histórico, sendo a lógica dialética “aplicável” indiferentemente à natureza e à sociedade, bastando o conhecimento das suas leis (as célebres “leis da dialética”) para assegurar o bom andamento das pesquisas (Ibid). Questionado sobre as principais influências teóricas no processo de construção da identidade política do MPA, o dirigente do MPA, Humberto Palmeira, avalia que: O MPA se reconhece em Marx, no debate sobre o capitalismo e no método; em Lênin, a partir do debate sobre a teoria da organização e o papel da organização política; em Gramsci no debate sobre hegemonia e nas reflexões de Chayanov sobre o campesinato (informação verbal)50. O militante ressalva que o MPA surgiu da práxis política e a "aproximação com a teoria escrita foi depois do movimento real e espontâneo", mediante o contato com intelectuais de fora do movimento e das leituras realizadas nos cursos de formação política. Nesse processo, o MPA deu-se conta da sua identificação com a proposta Leninista e da superioridade da interpretação marxista sobre o capitalismo e, desde então, a sua elite intelectual tem se dedicado ao estudo coletivo e periódico de “O que fazer” e “Carta a um camarada” de Lênin, e ao estudo do método e da teoria geral marxianos. O objetivo desse estudo tanto é ampliar o grau de compreensão do sistema capitalista, tendo em vista a sua superação, como a tradução desses conceitos para uma linguagem que seja compreensível para a base do movimento, posto que “todos os homens são intelectuais” (GRAMSCI, 2000a; LEHER e DA MOTTA, 2012, p. 578), mesmo que nem todos exerçam na sociedade o papel de intelectuais. E se Lênin afirma que “o portador da ciência não é o proletariado, mas os intelectuais burgueses”, já Gramsci recusa a identificação do intelectual na sociedade burguesa com os intelectuais tradicionais e critica a concepção de intelectual como sujeito altamente escolarizado e considera um erro metodológico distinguir as atividades intelectuais das 50

PALMEIRA, Humberto. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, out, 2014

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atividades manuais (LEHER e DA MOTTA, 2012), afirmando que “em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora” (GRAMSCI, 2000a; LEHER e DA MOTTA, 2012, p.427). Tendo isso em conta, o MPA convoca a sua militância: À superação do desafio da prática permanente do estudo enquanto uma das tarefas importantes em nossa organização. Precisamos fazer da leitura um hábito e do estudo um compromisso com a luta da classe trabalhadora. Sabemos que isso não é fácil, pois não estamos acostumados a encará-los como uma tarefa política (MPA, 2013). Segundo ainda o relato de Palmeira, "Gramsci chegou mais tarde no movimento" (informação verbal)51, a partir de 2011. As ideias deste autor foram introduzidas pela Academia e as categorias de: Intelectual orgânico, hegemonia e contra-hegemonia passaram a ser mobilizadas pelo MPA, que percebe a si mesmo como "o intelectual orgânico da Classe Camponesa" (Ibid). Conforme salientado por Leher e Da Motta (2012), “a concepção de intelectual em Gramsci é congruente com a categoria “intelectuais coletivos de classe”, pois a função do intelectual não está encarnada em um indivíduo, mas numa coletividade organizada e dirigente, caso contrário, não poderia haver luta de classes protagonizada de modo autônomo pela classe trabalhadora. Ainda de acordo com os autores: Gramsci amplia o conceito de intelectual demonstrando sua função político-social, conservadora ou transformadora, num determinado bloco histórico (organicidade entre a estrutura e a superestrutura de determinada formação histórico-social.). [...] Para Gramsci, o conceito de “vontade coletiva nacional-popular” ou “vontade social coletiva” está estreitamente ligado ao de “reforma intelectual e moral”, ou seja, à questão da hegemonia, da atividade prática, política, correspondendo às necessidades objetivas históricas (LEHER e DA MOTTA, 2012, p. 427-429). Mas, embora o “príncipe moderno” seja o partido e não um indivíduo, Gramsci reconhece que “qualquer grupo social que nasce de uma função essencial no âmbito da produção econômica forma seu grupo orgânico” (LEHER e DA MOTTA, 201, p. 427) e “cria para si [...] uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no social e político (2000a., p.

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PALMEIRA, Humberto. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. Rio de Janeiro, jun. 2014

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15)” (GRAMSCI apud LEHER e DA MOTTA, 2012, p. 427), e daí a importância dos intelectuais orgânicos formados a partir da base. No percurso da pesquisa, foi observada a força do ideário marxista-leninista na proposta política e ideológica do MPA, mas identificamos que este pensamento não está na base de sua criação. De acordo com a interpretação de Medeiros, a prevalência do ideário Marxista nos movimentos sociais membros da Via Campesina Brasil deve-se à influência do MST, que passou por um processo de “autonomização progressiva e de afastamento em relação à Igreja e de aproximação de uma leitura leninista do Marxismo” (informação verbal)52. A Igreja foi um ator fundamental na formação dos sindicatos rurais, na década de 1940, e dos movimentos sociais rurais, na fase de abertura política que marcou o fim do regime militar que vigou de 1964 a 1982 no Brasil. Durante os primeiros anos do regime militar, a Igreja afasta-se dos movimentos do campo, mas na década de 1970 convence-se que o “Estatuto da Terra” era uma estratégia política, retórica e falaciosa, criada com a única intenção de conter os ânimos no campo, mas jamais seria implementado de fato. Assim, a Instituição reaproxima-se da base rural, trabalhando a questão da terra a partir de uma nova perspectiva: a legitimação da ideia de distribuição frente à de acumulação (FERNANDES, 2012). Essa Igreja progressista adquire, então, papel decisivo na organização e na formação ideológica dos movimentos sociais e sindicatos rurais desde esse período até os anos 2000, como poderá ser conferido no último capítulo dessa mesma tese. Uma ilustração desse período é o título da carta pastoral de D. Pedro Casaldáliga: “Uma Igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e com a marginalização social” que resume o espírito que moveu a criação da “Comissão Pastoral da Terra” (CPT) na Amazônia Legal, em 1975. O documento “explicitava uma linha de compromissos com posseiros, índios, peões e outros marginalizados” e serviu para denunciar a realidade da região, que vivia uma “convulsão anárquica” (MARTINS apud MEDEIROS, 1989) desconhecida do conjunto dos brasileiros. Nas palavras de Medeiros (1989, p.11): Investindo no trabalho cotidiano de organização, que passava pela análise e Crítica das práticas sindicais concretas, a CPT dispunha a seu favor o fato de que, sendo um organismo vinculado à CNBB e contando com alguns bispos entre seus membros, podia fazer valer em determinadas situações o peso institucional. Assim, num período de 52

MEDEIROS, Leonilde. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. Rio de Janeiro, jun. 2014

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intensa repressão, pôde assumir o papel de canal de denúncia da violência, adquirindo importância na formação de uma consciência nacional em relação à problemática do campo. A ação da Igreja na região foi duramente reprimida pelo regime militar, o que não a impediu de continuar o seu trabalho e nem a CPT de ganhar o país, atuando tanto na zona rural como na periferia das grandes cidades. Em 1979, a CPT já contava com 15 regionais, onde as dioceses a apoiavam ou ao menos toleravam a sua presença, e a sua ação estava muito pautada pela questão da terra (IBID). As “Comunidades Eclesiais de base” (CEBs) emergem nesse contexto, movidas pela ação da CPT e apoiadas na Teologia da Libertação. As CEBs eram “pequenos grupos de trabalhadores ligados à capela”, animados por agentes pastorais leigos ou religiosos que estimulavam e conduziam os camponeses a refletirem sobre a sua realidade social, valorizando a sua cultura tradicionalmente comunitária, familiar e solidária, a partir da sua associação com mensagens bíblicas. A conjugação da dimensão religiosa à cultura camponesa, somada ao estímulo e ao trabalho de base, favoreceu as CEBs expandirem-se rapidamente na zona rural. Através desse processo, promoveram uma visão de mundo calcada no igualitarismo que era trabalhada junto à base, em encontros em que se fomentava a reflexão sobre a realidade concreta e a troca de experiências e onde os camponeses podiam denunciar e compartilhar as violências de que eram vítimas (FERNANDES, 2012). Conforme Fernandes (2012, p. 2): As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), surgidas a partir do início dos anos sessenta, foram os lugares sociais onde se constituíram os espaços de reflexão sobre a realidade e, onde se desenvolveram as experiências para a organização dos trabalhadores rurais contra a política agrária em questão. Assim as CEBs representaram, nesses anos, os espaços de confronto, de ponto de partida para a luta organizada contra a política de desenvolvimento agropecuário implantada. É desses espaços que vão surgir os novos sujeitos que se politizam e começam um processo de construção de novas formas de organização social (IBID). Na dinâmica de seu trabalho, a CEB encontrou-se com o sindicato e, sob a sua influência, foi se desenvolvendo uma leitura crítica da prática sindical, o que estimulou o surgimento de chapas de oposição com propostas alternativas de trabalho com as bases e de encaminhamento das lutas (MEDEIROS, 1989). Embora no seu mito de origem, o MPA

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renegue esse legado, é desse sindicato combativo, surgido no fim dos 1980 e início dos 1990, que provém os seus fundadores. Além dos novos sindicatos em ascensão, as CEBs apoiaram outras lutas e movimentos sociais surgidos no período, dentre os quais, o mais representativo é o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), criado, em 1984, em um contexto de abertura política e de ascensão das lutas populares no campo e na cidade e como resultado de um processo amadurecido na dinâmica de ocupações de terra nos estados do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul. Segundo Fernandes (2012, p. 13), “as experiências de luta, construídas a partir das CEBs contribuíram com o nascimento do MST, porque as comunidades tornaram-se lugares de discussão e conscientização para a construção de um espaço político de confronto na luta pela terra”. Durante a ditadura e logo após, as CEBS propiciaram um espaço comunicativo no qual as pessoas podiam expressar-se e comunicar-se sem receio, porque eram todos percebidos como iguais e o sentido de igualdade e a valorização das pessoas motivavam a participação. Aos poucos, a timidez e a insegurança eram superadas pelo fato de estarem entre iguais (FERNANDES, 2012, p. 20-21). Nas CEBs, o povo está na base da estrutura que intermedeia a sua relação com Deus e esse modelo "parlamentar" flexível serviu como referência para a estruturação do MST e de outros movimentos que adotaram uma estrutura menos hierárquica e rígida que a dos sindicatos (IBID). Os intelectuais, pesquisadores e acadêmicos também influenciaram o pensamento do movimento social rural. No entanto, diferentemente da Igreja que tomou a frente do processo, o padrão de relação estabelecido tendeu a ser mais horizontal, desde essas experiências, ainda nos 1970.

4.2. Movimentos Camponeses e Intelectuais

A relação entre os movimentos sociais rurais e os intelectuais profissionais tornou-se uma questão a partir das experiências conduzidas pelo “Movimento dos Trabalhadores Sem terra” (MST). Não obstante, conforme a pesquisadora Leonilde Sérvolo de Medeiros (informação verbal)53, essa parceria é mais antiga e teve início ainda durante a ditadura militar, quando jovens pesquisadores do Museu nacional, que já eram referência em estudos

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MEDEIROS, Leonilde. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun, 2014

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rurais, envolveram-se em uma investigação sobre trabalhadores assalariados rurais da Zona da Mata em Pernambuco. O viés combativo desses trabalhadores reivindicando os seus direitos junto aos sindicatos rurais e à Justiça do Trabalho em plena ditadura militar conquistou Moacir Palmeira, Ligia Sigauld e Afrânio Garcia, que faziam parte do grupo de pesquisadores do Museu Nacional e acabaram tornando-se assessores da Contag. Palmeira, inclusive, tornou-se orgânico do movimento, afastando-se formalmente do Museu Nacional em 1978 e mudandose para Brasília em 1980 para atuar junto à organização sindical. Além destes, Regina Novaes, Eliana Catrina, Alfredo Wagner, Leonilde Medeiros, entre outros, também estabeleceram relações com diferentes organizações rurais, compartilhando o seu conhecimento acadêmico na intenção de melhor capacitá-las para a discussão dos temas que dominavam. Salvo raras exceções, como Palmeira, o que movia esses intelectuais era a curiosidade política e não a militância. Estavam todos na Universidade e reconheciam-se como acadêmicos, não desenvolviam pesquisas encomendadas e nem participavam das instâncias deliberativas das organizações, porque o seu interesse era entender melhor aquele universo e compartilhar conhecimento (informação verbal) 54. Leonilde, que continua a contribuir com os movimentos sociais, esclarece que nunca foi uma “intelectual orgânica”, mas a sua relação com os movimentos sempre foi pautada pela ética e pelo respeito mútuo. Eu nunca tive relação orgânica com nenhum movimento, no sentido que nunca fui assessora de qualquer organização, no sentido de estar discutindo diretrizes com dirigentes. Sou considerada, por todos eles, como uma pessoa que estuda os movimentos, que entende a história dos movimentos e que trabalha algumas questões. E então me chamam para curso e eu vou. Me chamam para debate, eu vou. E nunca deixei de ir e eu gosto desta relação, porque eu sinto que o meu pé é na Universidade, mas acho que o conhecimento tem de circular. Então eu realmente produzo conhecimento para circular e eu gosto de eu mesma ser objeto desta circulação. Não é circular através do artigo que eu escrevi. E a minha motivação de estar neste espaço é porque eu acho que os camponeses têm de ter voz. É importante que eles tenham subsídios acadêmicos sólidos e eu posso contribuir com argumentos (informação verbal) 55. O relato da pesquisadora revela que a relação entre os movimentos sociais e os “intelectuais profissionais” não tem um padrão pré-estabelecido, nem de um lado e nem de outro. Alguns intelectuais desejam participar ou influir no direcionamento político das 54 55

MEDEIROS, Leonilde. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun, 2014 MEDEIROS, Leonilde. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun, 2014

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organizações e algumas organizações aceitam e promovem essa relação. Já outros entendem que a contribuição da Academia aos movimentos sociais deve ser movida pelo interesse na produção de conhecimento em prol da emancipação social e esses também podem ser considerados “intelectuais militantes56” no sentido adotado nessa tese, porque o seu trabalho é pautado pelo interesse em produzir conhecimento orientado à ação transformadora. A presente pesquisa observou que esse é o padrão de relação que o MPA busca construir com os intelectuais profissionais. Segundo relato do dirigente do MPA (PR), conhecido como “Chicão”, o movimento tem ideias próprias e busca o apoio da Academia para legitimá-las perante o governo e a sociedade, assim como para ampliar a sua compreensão sobre essas questões. Essa declaração é complementada pelo coordenador nacional do programa de formação do MPA, Humberto Palmeira (informação verbal) 57, de acordo com quem, os intelectuais que colaboram com o MPA não são orgânicos do movimento, pois nenhum deles participa dos seus espaços deliberativos ou interfere nas suas decisões políticas, e, conforme Folgado (informação verbal) 58, são convidados a contribuir pela sua expertise e não por questões políticas. A abertura para a ingerência de intelectuais de fora é apontada, por Palmeira, como uma das principais diferenças entre os sindicatos rurais e os movimentos articulados à “Via Campesina Brasil”. Em sua análise, enquanto as centrais sindicais buscam a assessoria política de intelectuais de fora e deixam a formação política da sua base sob a responsabilidade de terceiros, como o “Núcleo Piratininga de Comunicação” (NPC), os movimentos ligados à Via entendem que os “intelectuais de fora” devem contribuir com a sua expertise teórica e técnica e com a sua experiência de luta, mas não intervir nos rumos da organização e nem responsabilizar-se pela formação política da militância, a qual deve ser concebida internamente pelo movimento (informação verbal)59.

4.3. Os Processos de Formação Política do MPA

Até o MPA ter os seus próprios processos de formação, a sua militância participou de cursos de formação política e ideológica promovidos pelo MST e por instituições parceiras, 56

Pesquisa militante entendida como “um espaço amplo de produção de conhecimento orientado para a ação transformadora, que articula ativamente pesquisadores, comunidades organizadas, movimentos sociais e organizações políticas” (BRINGEL e VARELLA, 2014). 57 PALMEIRA, Humberto. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun. 2014 58 FOLGADO, Cleber. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov. 2011 59 PALMEIRA, Humberto. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun. 2014

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como o Centro de Educação Popular do “Instituto Sedes Sapientiæ”60 (CEPIS). Em 2003, o movimento já dispunha de certo número de “intelectuais orgânicos” formados a partir da sua base e esses criaram a “Escola Nacional de Militantes do MPA”, com o objetivo de internalizar a construção dos cursos de formação política para a sua militância. Segundo Humberto Palmeira (ibid), a proposta do curso é ter periodicidade anual e ser itnerante, não por falta de espaço físico, mas com o objetivo estratégico de contemplar os diferentes estados onde o MPA está organizado. No período entre 2003 e 2005, foram realizadas nove edições, tendo o curso sido interrompido entre 2006 e 2009, retornando as atividades naquele mesmo ano, até o presente (2014). Cada edição da “Escola Nacional de Militantes” dura de dez a quinze dias, com aulas pela manhã e tarde e atividades culturais à noite, além da limpeza e organização do espaço que é de responsabilidade dos militantes. O objetivo do plano nacional é promover a unidade ideológica e organizativa do movimento, mas sem suprimir as diferenças regionais e culturais entre as suas organizações membro pelo Brasil. O movimento conduz a sua formação política de forma descentralizada, distribuindo essa responsabilidade entre as suas diferentes instâncias, aproveitando, assim, a capilaridade da sua estrutura em rede para formar politicamente a sua militância. Cada estado, região e microrregião são responsáveis pelo desenvolvimento de cursos de formação política para a sua militância e, como o Brasil tem dimensão continental, o coordenador de formação — nos níveis: estadual, regional e municipal — tem autonomia para adaptar o plano nacional em conteúdos que contemplem a realidade da sua base. O programa dos cursos é definido pelo movimento e as aulas são ministradas por intelectuais do movimento e por intelectuais de fora. Os professores convidados são selecionados pelo seu conhecimento e experiência sobre a questão em pauta e, embora todos estejam no campo político ideológico à esquerda, têm perspectivas diferentes e nem sempre mantém diálogo entre si, “mas o MPA consegue atingir e manter o diálogo com essa diversidade de pessoas” (informação verbal) 61. Foi observado que existem dois eixos principais que auxiliam no entendimento de como esses acadêmicos dialogam com o MPA: i) a constatação da existência de uma relação de troca e colaboração sistemática e ii) o reflexo do pensamento do pesquisador na produção intelectual do movimento. Esses eixos podem estar juntos ou separados.

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O CEPIS afirma ter como missão, prestar “assessoria junto a legítimos processos de luta e organização da classe oprimida e dos setores sociais que sofrem distintas formas de dominação ou opressão e se dispõem a alterar, pela raiz, as estruturas da sociedade de exploração” (CEPIS, 2014). 61 PALMEIRA, H. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, jun. 2014

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Alguns dos principais pesquisadores que atualmente dialogam com o MPA são provenientes de áreas diversas como: os geógrafos Bernardo Mançano Fernandes (UNESP), Ariovaldo Umbelino de Oliveira (USP) e Horácio Martins de Carvalho (ABRA). A historiadora Anita Leocádia Prestes (UFRJ). Os economistas Roberta Traspadini (UFVJM), Guilherme Delgado (CPDA/UFRRJ) e Francisco de Assis Costa (NAEA/UFPA). O engenheiro agrônomo Gerson Teixeira (ABRA). Os especialistas em Agroecologia Eduardo Sevilla Guzmán e Manuel González Molina (ISEC/UIA). O agrônomo especialista em genética vegetal Rubens Nodari (UFSC). Os cientistas sociais Mauro Iasi (ESS/UFRJ), Leonilde Medeiros (CPDA/UFRRJ), Delma Pessanha (UFF), Paulo Zarth (Unijuí), J. D. Van der Ploeg (Universidade de Wageningen), entre outros. Foi um desafio para a presente pesquisa ordenar este grupo de pesquisadores por especialização, porque a maioria tem formação em mais de uma área e mesmo os de perfil técnico trabalham com conceitos das ciências sociais. O esforço de categorizá-los por área é justificado por reforçar as declarações de Folgado e Palmeira citadas acima, ao revelar que os intelectuais próximos ao MPA, além de serem de esquerda e terem base marxista, devem adotar uma perspectiva ampla sobre a conjuntura e as questões que afetam os camponeses no século XXI. E a diversidade de perfis e de especializações justifica-se porque o MPA entende campesinato como: identidade política, teoria e prática produtiva e esse é o tema da próxima seção.

4.4. Plano Camponês: Campesinato, Identidade Política, Teoria e Prática Produtiva Pela nossa perspectiva, o Plano Camponês é a contribuição do MPA à construção da Soberania Alimentar, um processo mais amplo que teve início, ainda nos 1990, capitaneado pela Via Campesina, em colaboração com inúmeros outros atores. Nesta seção, estabelecmos este recorte, tendo em vista tanto recuperar aspectos importantes do processo de consolidação do MPA, como revelar a relação de influência mútua entre as dimensões local, nacional e global do ativismo social no processo de construção de novos conhecimentos. O Plano Camponês representa o eixo do trabalho do MPA ou, em seus próprios termos, a sua meta síntese e começou a ser gestado desde quando o MPA ainda concentrava esforços na conquista de benefícios de curto e médio prazo para a sua base (DA SILVA, V., 2010), tendo, como horizonte, a manutenção do homem e da mulher no campo com uma "vida de qualidade". No processo, ficou patente que a disputa era entre duas visões de mundo e dois modelos de relação social e o Plano Camponês foi se configurando como um projeto contrahegemônico, cuja realização e alcance dependiam da sua qualificação teórica e técnica e do 165

apoio de outras organizações. O que motivou o MPA a investir na construção de alianças táticas e estratégicas com outras organizações membro da “Via Campesina”, com pesquisadores, acadêmicos e especialistas em Agroecologia. Todas essas são dinâmicas coletivas, interativas e movidas pelo diálogo e pela tensão entre diferentes, portanto, geradoras de novas "formas de conhecimentos prático" (CASAS-CORTÉS; OSTERWEIL e POWELL, 2008). O campesinato foi adotado como identidade coletiva pelo MPA, desde o lançamento do Plano Camponês, mas este processo não se deu sem tensões, porque a sua base tinha uma concepção negativa do termo, que estava tanto associado à ideia de atraso como atrelado ao MST, do qual, à época, queriam diferenciar-se e não igualar-se. No texto do referido plano e em outros documentos de trabalho, o MPA enfatiza a importância do campesinato como: teoria, identidade política e prática produtiva e a partir dessa premissa tem investido no resgate teórico e político do campesinato, na positivação e resignificação da identidade de camponês e no desenvolvimento do modo de produção camponês, em diálogo com a Agroecologia. O que nos leva a afirmar que a consolidação da identidade coletiva do MPA também é devedora do processo de interação social apontado acima, uma análise que corrobora com a tese de Eyerman e Jamison (1991), segundo quem, a dinâmica de construção da identidade coletiva é a principal forma, através da qual, um movimento social cria novos conhecimentos. O slogan do III Encontro Nacional do MPA: “Plano camponês, por Soberania Alimentar e Poder Popular!” revela, em uma frase, a relação intrínseca entre o Plano Camponês e a Soberania Alimentar. Mas se a conceituação é um dos seus esteios, não é a sua inspiração original, e, assim como ocorreu com outros movimentos sociais rurais pelo mundo, o conceito de Soberania Alimentar foi incorporado pelo MPA porque sintetiza ideias e práticas que o movimento já vinha trabalhando antes mesmo de conhecer a Via Campesina. Através dos processos de interação social transnacional, na arena Via Campesina (BORRAS, 2004), os movimetos sociais influenciam-se mutuamente e contribuem com a construção de uma cultura camponesa cosmopolita, mobilizada pela tensão constante entre o particular e o universal e o global e o local, como ilustra o exemplo do próprio MPA. A Soberania Alimentar pode ser entendida como a síntese deste projeto cosmopolita, e a perspectiva de "produção como forma de resistência" (VAN DER PLOEG, 2014) é a principal colaboração do MPA ao desenvolvimento do processo, do qual, ninguém sai incólume. Da mesma forma que o MPA contribuiu com o conjunto da “Via Campesina”, também sofreu a sua influência, e o reconhecimento do papel das mulheres na construção da Soberania Alimentar é um dos saldos mais importantes dessa relação de troca. 166

As mulheres são tidas como as responsáveis históricas pelo desenvolvimento e preservação da Soberania Alimentar em comunidades camponesas de todo o mundo. São elas que preservam as sementes crioulas desde inúmeras gerações e que dominam os conhecimentos sobre o potencial curativo das plantas e das ervas. Destarte, a despeito de serem mencionadas nos discursos, as mulheres estavam marginalizadas do processo de construção do Plano Camponês, a sua incorporação era pró-forma e só muito recentemente a questão de gênero foi integrada ao projeto, com o lançamento do “Plano Nacional de ações para a Soberania Alimentar desde uma perspectiva de gênero”, em 2013. Esta publicação é a etapa final de um projeto de formação de lideranças camponesas promovido pelo MPA em colaboração com: camponeses, técnicos em agroecologia e os sindicatos bascos de origem agrária: Ehne-Bizkaia e Bizilur e Diputación Foral de Bizkaia. O resultado desse diálogo está refletido na inclusão dos temas de gênero e geração no Plano Camponês, como pode ser conferido abaixo: Os sistemas camponeses de produção e a agroecologia poderão produzir a base material necessária para o trabalho de todos e todas, com geração de renda suficiente para a manutenção de toda a família, mas só isso não basta, é necessário um processo de formação e de discussão sobre as relações de gênero e geração, que envolva toda a família e que possibilite a mudança nas relações patriarcais, superando, assim, a subordinação das mulheres e dos jovens62 (MPA, 2013. P. 62) Nesses casos [Nas formas de vida camponesa], a mulher tem uma jornada de trabalho extensa, pois além de suas tarefas de “trabalho produtivo” tem o “trabalho invisível” a ser feito, que é o cuidado da casa, preparo dos alimentos, limpeza das roupas, cuidado das crianças, cuidado da saúde de todos os membros da família63 [...]Já nas propriedades que aplicam a lógica de produção da cadeia produtiva, o trabalho é único, sendo parte dele realizado por máquinas e com alto uso de pesticidas. [...] a mulher tende a se dedicar exclusivamente ao trabalho doméstico e assim, tanto a mulher quanto o homem, consideram que a renda gerada da lavoura pertence ao homem, e, portanto, ele decide o que fazer com o dinheiro. [...] As mulheres buscam, então, uma forma de gerar uma renda para si através de trabalhos artesanais ou de um emprego nas cidades próximas, trabalhar como diaristas ou outras tarefas para gerar uma renda. Quando alcançado o objetivo [...] novamente tem-se uma jornada dupla, pois além do emprego tem que fazer todas as atividades “invisíveis” da família. (MPA, 2013. P. 61). 62

Grifo nosso Nesta citação, os grifos visam destacar que, mesmo que o conceito de “Economia de Cuidado” (RODRÍGUEZ ENRÍQUEZ, 2006, p. 60-61) não seja mobilizado, o valor do trabalho doméstico é questionado a partir dessa perspectiva 63

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O reconhecimento da importância das mulheres pelo MPA não pode ser resumido a esse projeto, é um processo gradual conduzido pelas mulheres do MPA e pode ser marcado por alguns eventos importantes: o "I Encontro nacional das mulheres do MPA" realizado em 2008, a "Ia Plenária das Mulheres do MPA" organizada durante o seu III Encontro Nacional em 2010, e a inauguração da sua "I Escola Feminista" em Luziânia Goiás (MPA, 2013a). A relação entre o MPA e as organizações mencionadas também não se restringe à construção do “Plano Nacional de ações para a Soberania Alimentar desde uma perspectiva de gênero”, é resultado de uma relação mais longa que contemplou viagens de intercâmbio, com o objetivo de troca de conhecimentos e de experiências entre as organizações, e a estadia de uma ativista feminista do Ehne, por seis meses, no Brasil, em 2010, quando ministrou cursos de capacitação em comunicação e em construção ecológica para militantes de movimentos sociais rurais ligados a Via Campesina.64 Campesinato como identidade política O resgate do conceito de campesinato é um processo que vem sendo conduzido pelos próprios sujeitos as quais a categoria se refere, desde o fim dos 1980, em diferentes partes do mundo (EDELMAN, 1998). O conceito político e identitário de ‘camponês’ une o agricultor de subsistência do Sul ao agricultor modernizado do Norte Global, assim como a artesãos, pastores, pescadores e indígenas que também fazem parte da Via Campesina. Isso porque o conceito resignificado de camponês passou a representar um sujeito de resistência: aquele que defende o direito à manutenção de um padrão de "vida boa 65" baseado em valores não capitalistas, questionando a primazia do lucro, da tecnologia e da individualidade, em relação ao bem estar social, ao “amalgama de saberes” e à comunidade. Conforme Nettie Wiebe, dirigente da national Farmers Union, membro canadense da Via campesina, “a linguagem em torno dessa questão interessa porque faz-nos entender que as ‘pessoas da terra’ representam o campesinato de qualquer lugar, os milhares de pequenos agricultores de subsistência com os quais pensamos ter tão pouco em comum – identifica a eles e a nós” (WIEBE apud EDELMAN, 2003, p.187). No Brasil, esse processo teve início por volta dos anos 2000, capitaneado pela Via Campesina, e o novo conceito político e identitário de Camponês desenvolveu-se em oposição às noções de "agricultor familiar" e de "pequeno produtor", que surgiram como categorias 64

Essa informação foi recolhida durante o III Encontro nacional do MPA, quando tive oportunidade de conhecer a ativista. 65 Um conceito diferente de "boa vida" e que se aproxima mais à noção de buen vivir, tal como formulada por boa parte dos movimentos indígenas da região andina.

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operacionais e analíticas e ganharam substância como categorias identitárias, vindo a representar o pequeno produtor alinhado ao Agronegócio. Uma passagem do livro "O Campesinato no século XXI" expõe as razões da Via campesina para esse investimento: As expressões agricultura familiar, pequeno produtor rural e pequenos agricultores adquiriram desde o início da década de 90 conotações ideológicas, não porque imprecisas ou insuficientes para dar conta da diversidade de formas sociais de reprodução das unidades de produção/extração centradas na reprodução da vida familiar presentes e em desenvolvimento no país, mas, sobretudo, porque foram disseminadas no interior de um discurso teórico e político que afirmava a diferenciação e fim do campesinato em duas categorias: aquela que seria transformada em empresas capitalistas pelo desenvolvimento das forças produtivas e aquelas que se proletarizariam ou permaneceriam dependentes de apoios sociais das políticas públicas A revivificação dos conceitos de camponês e campesinato propõe resgatar e afirmar a perspectiva teórica da reprodução social do campesinato na sociedade capitalista a partir das teses da centralidade da reprodução da família camponesa e da sua especificidade no contexto da formação econômica e social capitalista. Objetiva, deveras, abranger nesses conceitos a totalidade das formas de reprodução das unidades de produção familiar na realidade rural brasileira. (VIA CAMPESINA, 2004) No MPA, o tema do Campesinato é levantado por volta de 2002, na fase inicial de construção do seu Plano de Construção Nacional e logo é reconhecido como o elo entre os diferentes debates conduzidos pelo movimento, porque campesinato refere-se tanto à identidade como ao caráter da luta e a sua problematização contribui para “definir os inimigos e os possíveis aliados, tanto táticos quanto estratégicos” (exposição verbal) 66. O MPA consolida a sua identidade política, quando valora a sua cultura e passa a interpretar o camponês como o sujeito da vanguarda e não do atraso e estabelece uma relação de alteridade e de oposição com a categoria de Agricultor Familiar, conforme ilustra a passagem a seguir: O camponês é todo aquele ou aquela que vive na terra e do que ela produz, plantando e colhendo o alimento que vai na mesa de sua família, na mesa dos trabalhadores urbanos e até mesmo na mesa dos exploradores, a classe dominante" (MPA, 2009, p. 9). [enquanto] A Agricultura Familiar traz uma visão capitalista da agricultura, porque acredita que o pequeno produtor deve se integrar aos grandes e propõe 66 FOLGADO, Cleber. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, São Miguel do Oeste, nov, 2011.

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uma mudança no jeito de ser das famílias, tornando-as 'modernas' na lógica do mercado e do consumismo do capital" (MPA, 2009, p. 9). A noção de campesinato desenvolvida pelo MPA está sustentada teoricamente na interpretação que José Horacio Martins de Carvalho (2011) faz de Chayanov. Martins, que atua como consultor técnico e assessor de movimentos sociais e organizações populares do campo, foi uma influência forte nos primeiros estudos do MPA sobre o campesinato. O pesquisador adota um referencial marxista e Leninista em seus trabalhos e é um grande entusiasta do potencial revolucionário do camponês e do seu papel como sujeito político na resistência anticapitalista. Nos seus termos, a realização deste projeto depende da atuação dos intelectuais orgânicos da classe camponesa na promoção de uma visão de mundo que unifique os produtores rurais, e, na atual conjuntura, “essa concepção é a de camponês autônomo (perante o capital e os capitalistas) e a de campesinato como classe social” (CARVALHO, 2009). Outra forte influência na noção de campesinato adotada pelo movimento foram Guzmán e Molina. Os pesquisadores espanhois, que também são especialistas em Agroecologia, escolhem enfocar a questão a partir da perspectiva ambiental, estabelecendo uma relação histórica do ser humano com os recursos naturais. Em sua leitura não existe uma única teoria que possa dar conta das “mudanças ocorridas nos traços definitórios do campesinato e de suas causas”, porque estas especificidades estão relacionadas à fase de evolução do capitalismo, não em termos gerais, mas considerando a particularidade de cada local, o que responde porque, no século XXI, o camponês europeu tenha traços diferenciados do camponês do altiplano boliviano e ambos possam ser considerados camponeses (GUZMÁN e MOLINA, 2004), A partir dessas influências, o MPA tem investido na tese do fim do fim do campesinato e no desenvolvimento da noção de campesinato como classe social. Os seus intelectuais realizam uma leitura crítica da interpretação marxista hegemônica, na intenção de provar, teoricamente, que o campesinato não é um "saco de batatas", mas protagonista da história e um sujeito político capaz de atuar lado a lado com a "classe trabalhadora" urbana na "construção do socialismo". No entanto, assim como ocorreu com outros movimentos sociais membros da Via Campesina em outras partes do mundo (EDELMAN, 1998), a principal motivação para investir na positivação do conceito identitário de campesinato foi fomentar a auto estima da base do movimento. A partir da revelação do seu papel indispensável no processo de construção de uma via alternativa ao capitalismo, o campesinato tem condições de fazer a passagem de classe em si para classe para si (MPA, 2010; DA SILVA, V., 2010). E essa ideia 170

vem sendo trabalhada pelas lideranças do MPA junto às suas diferentes instâncias e em palestras e seminários, como pude conferir em diferentes eventos em que estive presente. Em seus estudos sobre o campesinato, o movimento enfatiza que o potencial “da classe camponesa” como sujeito revolucionário reside na forma peculiar como está inserida nas relações de produção, pois é, simultaneamente, dono dos meios de produção e o sujeito que realiza o trabalho, com uma cultura, um modo de vida e um projeto próprio. O qual, no Movimento dos Pequenos Agricultores está sintetizado no Plano Camponês e, no conjunto da Via Campesina, na Soberania Alimentar. (2010 n/p) A leitura dos estudos mais recentes do MPA sobre o Campesinato revela que a necessidade imperiosa de provar o seu potencial revolucionário cedeu lugar à afirmação do seu lugar na sociedade e na luta pela construção de uma via alternativa ao capitalismo. Por um lado, isso denota a consolidação da identidade coletiva do movimento e, por outro, reflete a ampliação da sua perspectiva sobre a questão. O que, em nosso entendimento, deve muito ao processo de construção da “Coleção História Social do Campesinato Brasileiro”, do qual, o MPA foi um dos principais mobilizadores. A coleção História Social do Campesinato no Brasil A parceria construída entre o MPA e os intelectuais profissionais vai além da demanda pela sua contribuição em cursos de formação política e técnica elaborados pelo movimento, contempla, ainda, a promoção de pesquisas acadêmicas que atendam aos interesses da classe camponesa e a coleção História Social do Campesinato é um exemplo emblemático. A partir de conversas informais com inúmeras lideranças e militantes, percebi que o MPA faz da prática teórica uma estratégia política. A organização sempre soube do valor do campesinato no Brasil, mas entendeu que para convencer a sociedade e o governo da sua importância era necessário prová-lo. Com este objetivo, propôs a um grupo de pesquisadores profissionais, o desafio de pesquisar o legado histórico do campesinato no país, posteriormente, este projeto foi chancelado pela Via Campesina Brasil e o MPA assumiu a tarefa de sua construção, em nome da rede. A ideia da coleção surgiu em 2003 durante os estudos para a elaboração de estratégias para o desenvolvimento do campesinato no Brasil (OLIVEIRA, FERNANDES, WELCH, ET AL, 2009; MPA, 2013b, p. 63) e pode ser dividido em duas fases: a primeira culminou na publicação do livro “O Campesinato no século XXI: possibilidades e condicionantes para o desenvolvimento do campesinato no Brasil” (2005), coordenado por Horário Martins de Carvalho, e a segunda na coletânea História Social do Campesinato (DA SILVA, V., 2013, n/p). 171

Conforme o prefácio da coleção, o projeto teve início em 2004, quando Delma Pessanha Neves, Márcia Maria Menendes Motta e Carlos Walter Porto-Gonçalves reuniramse com o pesquisador Horácio Martins de Carvalho e a Via Campesina Brasil na Universidade Federal Fluminense: UFF e decidiram enfrentar o hercúleo desafio de resgatar a história social do campesinato brasileiro 67. De acordo com Leonilde Sérvolo de Medeiros (informação verbal)68, que é uma das organizadoras do tomo sobre “Lutas camponesas contemporâneas” e participou do projeto desde as primeiras reuniões, Horácio Martins de Carvalho foi quem fez a ponte entre a Via Campesina e a Academia e responsabilizou-se por convidar os principais pesquisadores a participarem da coleção. A partir do seu depoimento, inferi que o projeto foi construído mediante um processo dialógico e colaborativo, pois “todos tiveram liberdade para se posicionarem e influenciarem no seu resultado final”. Houve três reuniões em São Paulo, em diferentes momentos, quando o núcleo duro — formado pelos pesquisadores profissionais e dois militantes do MPA69 — definiu o perfil e as linhas básicas da coleção, que, à época, não tinha a pretensão de chegar a dez 67

O primeiro tomo da coleção, denominado como “Concepções de justiça e resistência nos Brasis”, foi organizado por Marcia Motta e Paulo Zarth e está composto por dois volumes: “Formas de resistência camponesa: visibilidade e diversidade de conflitos ao longo da história” e “Concepções de justiça e resistência nas repúblicas do passado (1930-1960)”. O primeiro reúne quinze artigos sobre a história social do campesinato produzidos por pesquisadores de diferentes universidades do país. E o segundo é composto por onze artigos de autoria de uma nova geração de pesquisadores brasileiros, que compartilham a preocupação em “contribuir para o conhecimento sobre o passado da luta pela terra, de concepções de injustiça dos pobres do campo; objetos de pesquisa até recentemente negligenciados na academia” (MOTTA e ZARTH, 2009. p. 23). O tomo “Camponeses brasileiros” foi organizado por Clifford Andrew Welch, Edgard Malagodi, Josefa Salete Barbosa Cavalcanti e Maria de Nazareth b. Wanderley, e o seu primeiro volume: “Leituras e interpretações clássicas” está dividido em quatro seções, sendo a primeira parte dedicada ao “Debate nos anos 1960”, a segunda aos “Olhares teóricos”, a terceira aos “Modos de vida e reprodução” e a última às “Lutas camponesas”. O segundo volume do tomo “Lutas camponesas contemporâneas: condições, dilemas e conquistas”, organizado por Bernardo Mançano Fernandes, Leonilde Medeiros e Maria Ignez Paulilo, é o título "O campesinato como sujeito político nas décadas de 1950 a 1980” que reúne artigos sobre as manifestações políticas do campesinato brasileiro, de 1945 até meados dos 1980, apresentando o trabalhador do campo, como um “sujeito importante nos debates sobre os destinos do país”. “Processos de constituição e reprodução do campesinato no Brasil” foi organizado por Delma Pessanha Neves e Maria Aparecida de Moraes Silva e o primeiro volume, denominado como “Formas tuteladas de condição camponesa”, trata da importância e da diversidade de condições de integração das forças de trabalho, entre elas, a constituição do campesinato. Enquanto “Formas dirigidas de constituição do campesinato” analisa “processos de criação de condições para a ocupação populacional do território brasileiro, para a expansão de fronteiras produtivas e para objetivações da presença institucional do Estado”. “Diversidade do campesinato: expressões e categorias” é o tomo organizado por Emilia Pietrafesa de Godoi; Marilda Aparecida de Menezes e Rosa Acevedo Marin. O volume um, denominado como “Construções identitárias e sociabilidades”, reúne textos que versam sobre as diferentes maneiras pelas quais o campesinato se expressa nas diversas regiões brasileiras, tendo como referencial, as transformações dos sistemas econômicos regionais até a relação com o Estado e as políticas públicas. “Descobre-se um camponês cuja marca maior é a diversidade historicamente construída a partir de múltiplas formas de apropriação e usos da terra e demais recursos naturais”.O volume II, “Diversidade do campesinato:expressões e categorias Estratégias de reprodução social”,está dividido em três partes, a saber: “Formas de acesso à terra e os sistemas de uso comum”, “Recursos naturais, sociedade e construções identitárias” e “Reconversões identitárias, mobilidade e campesinato”. 68 MEDEIROS, Leonilde. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. Rio de Janeiro, jul. 2014 69 Leonilde não recorda os nomes desses militantes, mas afirma que fazem parte do grupo dissidente que organizou, posteriormente, o Movimento Camponês Popular: MCP.

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volumes. Tomando em conta esta declaração e outros depoimentos de pesquisadores envolvidos e de militantes, depreendi que a empolgação dos intelectuais profissionais com o projeto foi o que respondeu pela conquista do seu peso e abrangência. Sobre a participação dos militantes durante estas reuniões, Leonilde Medeiros recorda que a sua postura era mais passiva do que ativa e que ouviam mais do que falavam. No entanto, quando a pesquisadora teve oportunidade de contribuir em um processo formativo do MPA, em 2013, reparou uma mudança de posicionamento e aqueles que antes permaneciam calados dividiram as mesas com os pesquisadores e participaram ativamente dos debates, de igual para igual. Cotejando esta declaração com depoimentos de dirigentes e militantes do MPA coletados ao longo da pesquisa de campo, pude depreender que a construção da coleção, em si, equivaleu a um processo de construção social de conhecimento mobilizada pela relação de troca entre o conhecimento profissional e o prático. Nessa dinâmica, não só os camponeses ampliaram a sua perspectiva sobre o campesinato, como os intelectuais e acadêmicos desenvolveram outra noção sobre o seu objeto, que foi o sujeito provocador do projeto. O conceito de campesinato apresentado no prefácio da coleção assemelha-se à noção defendida pela Via Campesina em nível transnacional e pelas suas organizações constituintes no Brasil. Nessa conceituação, a primazia do econômico cede lugar a uma perspectiva holística, em que a cultura e a diversidade do campesinato são destacadas e os modos de vida tradicionais valorizados em suas diferenças, e não considerados como marcas do atraso e da ineficiência, como no conceito que vigorou nos estudos camponeses entre os 1950 e os 1970. Na definição de campesinato referencial da coleção, o acesso garantido a territórios — essencial para a sobrevivência dos coletores e pastores — e o acesso à terra e outros recursos produtivos são justificados pelo modo de ser e de viver dos diferentes sujeitos camponeses, assim como as lutas sociais pela conquista e manutenção desses direitos são legitimadas (DE GODOI, DE MENEZES e MARIN, 2009, p. 9-17). A história da construção da coleção História Social do Campesinato revela, ainda, que o processo de resgate da categoria de ‘Campesinato no Brasil’ guarda semelhanças com aquele através do qual foram forjadas as categorias de ‘Pequeno Agricultor’ e de ‘Agricultor Familiar’, porque todos três envolveram participação de movimentos sociais e de Intelectuais profissionais. Contudo, há distinções significativas, como pode ser conferido a seguir. As noções de Agricultor Familiar e de Pequeno Produtor foram desenvolvidas como categorias analíticas e operacionais e, somente após consolidadas, foram instrumentalizadas

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pelos movimentos sociais e transformadas em conceito político e identitário 70. E já a resignificação do conceito de Camponês foi protagonizado pela Via Campesina Brasil e pelos seus movimentos, os quais mobilizaram a Academia e convenceram-na da validade do seu projeto. Diferentemente dos outros dois casos, aqui, a categoria teórica veio dar consistência a uma conceituação política e identitária já plena de significação. A categoria "Agricultor Familiar" foi forjada por meio de um processo que envolveu a Academia, os técnicos da FAO e do INCRA, as organizações sindicais rurais e a articulação social Gritos da Terra Brasil. Mas a mudança paradigmática derivada desse processo foi promovida pelo "fórum científico", pelo relatório “Brazil, the management of agriculture, rural development and natural resources” elaborado pelo Banco Mundial e pelos trabalhos do Projeto UTF/BRA/036/BRA, estes resultantes de um convênio de cooperação técnica entre a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) (PICOLOTTO, 2011. p. 26; WERSHEIMER, 2009. p. 92-93; GRISA, 2010). Em consequência, as categorias de Pequena Produção e de Agricultura Familiar consolidaram-se politicamente atreladas ao modelo hegemônico: o agronegócio, enquanto a categoria de Camponês está sendo recuperada e resignificada pela Academia, a partir da ação dos movimentos sociais, tendo em vista, a legitimação do seu projeto alternativo junto às instituições e à sociedade. Ainda não se pode falar em uma mudança paradigmática, para o que contribui, negativamente, as disparidades de poder econômico e político entre os atores com interesses distintos. No entanto, o número de pequenos agricultores decepcionados com o "Agronegocinho" tem se ampliado e, em consequência, o Campesinato tem se fortalecido como categoria e como conceito político e identitário.

4.5. Produção: teoria, prática e estratégia de resistência social

O investimento do MPA no desenvolvimento teórico do campesinato também está relacionado à necessidade de consolidação da sua identidade coletiva, neste processo, a Produção foi reconhecida como o elemento que confere unidade a toda a organização e tornou-se a questão central do Plano Camponês:

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Essa questão foi vista em detalhes no capítulo três desta tese na seção sobre a Identidade do MPA.

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Durante vários anos o MPA foi reconhecido como um movimento de luta por crédito. Os estudos e debates sobre o campesinato nos apresentaram uma necessidade de ampliar o debate sobre nossa mensagem política, ou seja, definir melhor a que veio este movimento. Os debates foram nos demonstrando que em um país com o tamanho do Brasil, com as diferenças regionais existentes, uma coisa nos unia: a produção. Então fomos aprofundando o debate sobre que produção, em que condições, em que relação com a natureza, com que objetivos, etc. Assim chegamos à consolidação da nossa mensagem: “Produção de alimentos saudáveis, com respeito a natureza, para alimentar o povo brasileiro e fortalecer o campesinato!” (ANAC, 2012) O Plano Camponês está apoiado no conceito de “Modo de Produção Camponês” de Chayanov, mas vai além, porque não se limita ao viés economicista do problema e adota uma percepção holística do problema. Para Chayanov, a unidade elementar do “Modo de Produção Camponês” é a Família Camponesa interpretada como uma totalidade indivisível, posto que é simultaneamente proprietária dos meios de produção, realizadora do trabalho e gestora do empreendimento produtivo. Definida como uma unidade de força de trabalho e de consumo, a Família Camponesa está centrada em um casal e seus filhos e pode agregar outros membros, desde que o esforço esteja dirigido ao balanço entre a capacidade de trabalho e a necessidade de consumo (Wercheimer, 2009). Diferentemente do modelo capitalista de produção, o qual, sustentado pela exploração da mais valia, objetiva o lucro, a unidade camponesa de produção tem como meta satisfazer as necessidades da família com a menor autoexploração da sua capacidade de trabalho. O projeto abarca um conjunto amplo de questões. São elas: moradia, beneficiamento, comercialização, crédito, tecnologias, energia, diálogo técnico, terra, formação, sementes e água (MPA, 2009. p. 11). Mas não se limita a questões de ordem econômico-produtiva, porque objetiva a manutenção da Família Camponesa no campo “com uma vida de qualidade”, um propósito que demanda a consideração dos aspectos sociais e culturais envolvidos nas relações de produção. Um pequeno livro de autoria de Valter Israel da Silva, "Caminhos da Afirmação Camponesa: elementos para um Plano Camponês!" (DA SILVA, V., 2009), sintetiza os debates que a organização vem realizando no Plano Camponês e ilustra a forma como essas questões vêm sendo trabalhadas junto à base. Ao mesmo tempo em que valoriza e contribui para a construção de uma cultura camponesa comum ao conjunto de pequenos agricultores brasileiros, a despeito da diversidade deste universo, o MPA explica as estratégias do capital e apresenta a sua proposta alternativa: o Plano Camponês. 175

Os textos e as poesias que conformam a obra têm tom nostálgico e remetem aos valores, aos saberes e à tradição do modo de vida camponês. “Como camponês gosta de história”71, o autor apela à memória de sua infância e escreve relatos expressivos sobre “aquele tempo” em que a sua família e os vizinhos pertencentes à mesma comunidade praticavam um tipo de agricultura que, mais do que um modelo produtivo, era um modo de relação social. As relações de solidariedade, a vida em comunidade, a diversificação da produção, a parcimônia, a autonomia e o ideal de atingir o “grau ótimo de autoexploração do trabalho”, característicos da cultura camponesa, são valorizados e contrastados com a monocultura, a dependência do mercado, o individualismo, o consumo conspícuo e a obrigação de trabalhar até atingir uma meta imposta por outro, característicos do Agronegócio. O Plano Camponês foi concebido e vem sendo atualizado através das reflexões coletivas do movimento e de seus intelectuais orgânicos e reflete um conjunto de influências teóricas e ideológicas amplo, resultantes das leituras, dos cursos de formação e das relações de troca estabelecidas entre o MPA e os intelectuais profissionais. A evolução do projeto também é fruto das relações de troca e de diálogo com outras organizações membros da Via Campesina, principalmente no que tange à Soberania Alimentar, e com a Agroecologia, o foco da próxima seção. A partir deste conjunto de influências, o MPA definiu o que entende como sendo a sua missão como sujeito coletivo: a "Produção de alimentos saudáveis, com respeito à natureza, para alimentar o povo brasileiro e fortalecer o campesinato!” (MPA2005). Nas palavras da organização: Faz parte da lógica camponesa a produção diversificada de alimentos para atender as necessidades de sua família e para a comunidade. [...] Também é da lógica da atividade camponesa uma relação de respeito ao meio ambiente, de preservação da biodiversidade, do equilíbrio ambiental, etc. [...] O objetivo central da agricultura camponesa é a produção de alimentos para atender as necessidades de suas famílias e para a classe trabalhadora. Seu foco não está no lucro, portanto não está na exportação e sim na mesa do povo trabalhador. [...] Para além das demais questões, nossa proposta é de fortalecimento do campesinato, tanto do ponto de vista da identidade e da cultura quanto da geração de renda (Ibid).

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Esta frase me foi dita por outro dirigente do MPA, Gilberto Schineider, durante o meu trabalho de campo, quando conversávamos sobre a música sertaneja. Apesar de singela, a sentença me revelou muito sobre a cultura camponesa, até então desconhecida para mim.

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Os quatro eixos revelam que, para o MPA, a agricultura deve ser culturalmente adequada, estar integrada à natureza e cumprir a sua função social. Esta visão é oposta à ideia de alimento como commodity adotada pelo Agronegócio e semelhante às interpretações de agricultura e alimentação defendidas na conceituação de Soberania Alimentar e pela Agroecologia. O que não é por acaso, como veremos a seguir. O diálogo com a Agroecologia Percebida em seu viés como estratégia de resistência social através da produção de alimentos, a Soberania Alimentar vem se desenvolvendo mobilizada pelas dinâmicas do diálogo e da tradução entre o saber camponês e a Agroecologia. Esta é uma relação dialética, por meio da qual o conhecimento profissional e o popular contribuem para a construção de um novo paradigma científico que associa saberes tradicionais e novos conhecimentos no desenvolvimento de uma agricultura cultural e ambientalmente contextualizada (GÚZMAN, 2006; GONÇALVEZ e ENGELMANN, 2009; CAPORAL e COSTABEBER, 2004; TORRES e ROSSET, 2013; AKRAM-LHODI, 2013). Desde uma perspectiva agroecológica: O campesinato é mais que uma categoria histórica ou sujeito social, é uma forma de manejar os recursos naturais vinculada aos agroecossistemas locais ou específicos de cada zona, que utiliza um conhecimento sobre tal entorno, condicionado pelo nível tecnológico de cada momento histórico e pelo grau de apropriação de tal tecnologia, gerando assim distintos graus de “camponeidade72” [...] Campesinato é o grupo social em torno do qual se organizavam e se organizam, ainda hoje, as atividades agrárias, no que tem sido denominado como sociedades de base energética solar ou sociedades orgânicas (GUZMÁN e MOLINA, 2004. P. 78) Não obstante, se “os saberes e as formas de saber” tradicionais acrescentam à Agroecologia, os camponeses também se beneficiam com o domínio das técnicas desenvolvidas nos centros de pesquisa, “posto que a conquista da Soberania Alimentar prescinde de técnicos e cientistas provenientes da base” (informação verbal)73, e o interesse

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O agricultor com alto grau de “camponeidade” é o sujeito que, historicamente, desenvolveu uma relação de uso dos recursos naturais com respeito à natureza e o campesinato é a forma de manejo dos recursos naturais que evoluiu de forma integrada à natureza. Toledo define o conceito de “camponeidade” em relação à capacidade de grupos sociais de produtores manterem as bases da reprodução biótica dos recursos naturais, e a partir dos seguintes indicadores: energia utilizada, escala ou tamanho do âmbito espacial e produtivo do seu manejo, autossuficiência, natureza da força de trabalho, diversidade, produtividade ecológico-energética e do trabalho, natureza do conhecimento e cosmovisão (GUZMÁN e MOLINA, 2004, p. 82). 73 RODRIGUES, Francisca. Entrevista publicada na revista Biodiversidad en America Latina, em 11 nov. 2003.

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compartilhado estimula o investimento conjunto na formação de “técnicos-militantes” em agroecologia. Dois exemplos emblemáticos desta comunhão de interesses são as relações estabelecidas entre a Via Campesina e o "Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses" (ISEC) da Universidade de Córdoba e a Universidade Internacional de Andaluzia (UNIA), ambos na Espanha. De acordo com Jalfim (2008, p.8-9), o Instituto de Sociologia e Estudos Camponeses (ISEC) da Universidade de Córdoba é um centro de pesquisa, formação e extensão agrária que desenvolve um programa de Doutorado em “Agroecologia, Sociologia e Desenvolvimento Rural Sustentável”, desde o biênio 1991-1993. Em 1996, o ISEC e a Universidade Internacional de Andaluzia se unem na organização de um “Mestrado por Investigação” sobre Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável na Andaluzia e na América Latina. Este Mestrado é coordenado em conjunto com o citado Programa de Doutorado, o qual surgiu da colaboração do Consórcio Latino-Americano de Agroecologia e Desenvolvimento (CLADES) e da Associação Latino-Americana de Educação Agrícola Superior (ALEAS) com o ISEC. Ainda segundo Janin, o principal critério para a admissão no curso consiste na apresentação de um projeto de investigação que comprove a experiência do candidato com o trabalho junto a comunidades de base que desenvolvam experiências agroecológicas com um potencial endógeno transformador, ainda que não necessariamente camponesas e/ou indígenas. Além dos programas de mestrado e doutorado, o ISEC empreende atividades de pesquisa e extensão agrárias a partir do enfoque da Pesquisa-Ação Participativa. No ISEC já se formaram inúmeros militantes de organizações membros da Via Campesina Brasil, inclusive cinco do MPA. E dois dos principais pesquisadores vinculados ao curso de pós-graduação em Agroecologia (UNIA), Guzmán e Molina, mantém forte vínculo de intercâmbio e de colaboração com a rede, tendo incçusive participado de um seminário, por ela organizado em Brasília em 2004, cujo conteúdo foi posteriormente publicado no livro “Sobre a Evolução do conceito de campesinato”, editado pela editora Expressão Popular ligada ao MST. Guzmán e Molina investem nessa aliança por acreditarem no potencial produtivo, conceitual e ideológico do campesinato, na luta contra a agricultura neoliberal. Nas palavras dos pesquisadores: [a] nossa contribuição à Via Campesina pretende trazer importantes ferramentas teóricas com as quais se poderá neutralizar a ofensiva neoliberal que, da academia e da prática política, está se 178

desenvolvendo na América Latina, ao pretender apresentar uma inevitável evolução da agricultura familiar para o agronegócio, no contexto da agricultura industrializada em sua atual versão transgênica (GÚZMAN, MOLINA, 2005, p. 10). Conforme já visto neste mesmo capítulo, outros pesquisadores e acadêmicos investem na relação direta com a Via Campesina, seja participando de cursos, seminários e pesquisas, seja prestando consultoria política. As formas e motivações diferem, mas todos podem ser considerados pesquisadores-militantes, nos termos adotados aqui, porque investem o seu tempo e energia na produção de conhecimento orientado para a ação transformadora. Espaços camponeses de formação em Agroecologia Indo além da parceria com as instituições formais de ensino, a Via Campesina também investe na criação de espaços próprios de formação, nos quais conjuga o conhecimento camponês à Agroecologia e a formação técnica à formação política. Alguns desses espaços possuem relação institucional com governos e conferem títulos formais e outros não têm qualquer relação com os sistemas protocolares de ensino. A maioria recebe estudantes de diferentes países da América Latina e muitos foram viabilizados com a participação de ajuda externa, por conseguinte, podem ser interpretados como espaços internacionais e multiescalares. São eles: os Espaços de Formação em Agroecologia Camponesa, diversas modalidades de Escolas de Capacitação Camponesa, e os Institutos Agroecológicos da América Latina. Os Espaços de Formação em Agroecologia Camponesa são voltados à capacitação dos jovens da organização e têm, como objetivo, formá-los como promotores ou facilitadores dos processos agroecológicos. São mais de quarenta escolas de diferentes tipos e algumas conferem títulos formais, como por exemplo as dezessete Escolas Técnicas em Agroecologia coordenadas pela Via Campesina Brasil. Alguns desses cursos têm nível superior e a sua duração varia de três a cinco anos. As escolas de capacitação camponesa não têm qualquer relação com os sistemas formais de governos e não conferem títulos, o seu objetivo é capacitar os camponeses nos processos agroecológicos, não se destinam necessariamente aos jovens e oferecem cursos de curta duração, de uma semana a um mês (IBID). Os Institutos Agroecológicos da América Latina consistem em um projeto multiescalar, idealizado pela Via Campesina do Sul e criado no âmbito da ALBA, que objetiva constituir uma rede de Universidades Internacionais Camponesas especializadas em 179

agroecologia em toda a América Latina. A Via Campesina e a Coordenadora Latino Americana de Organizações do Campo (CLOC) capitaneiam o processo de construção desses espaços, em conjunto com organizações membro do país onde estão situados, e a sua viabilização depende do apoio – ou pelo menos da tolerância – do governo desses países. Para a sua realização, a Via Campesina conta com recursos próprios e, dependendo do caso, com o apoio financeiro do governo do país contemplado, de governos de esquerda de outros países da América Latina, além da parceria com universidades e instituições de ensino. A Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA), fundada em 2005 no Paraná, pode ser considerada o embrião de todo esse processo, além desta, há outros seis institutos na América Latina. O Instituto Universitário Latino-americano de Agroecologia (IALA) Paulo Freire, inaugurado na Venezuela em 2008, é o primeiro de uma série. Além deste, há o IALA Guarani, inaugurado em 2008 em San Pedro (Paraguai). O IALA Amazônico, inaugurado em 2009 no Pará (Brasil). A Universidade Camponesa do Sistema de Universidades Rurais Camponesas, inaugurada na Argentina em agosto de 2013. E, por fim, o IALA da região de Auquinco no Chile, ainda em processo de construção. Apesar de terem certo grau de autonomia e diferirem entre si, os institutos fazem parte de um mesmo projeto de edificação de Universidades Internacionais Camponesas e compartilham os mesmos objetivos, missão e proposta pedagógica. A partir de Castellano (s/d.), Stronzaque (2009) e da leitura de materiais disponíveis nos websites dos diferentes IALAs, identificamos os principais elementos compartilhados por essas diferentes experiências. O projeto parte de um questionamento do modelo de extensão e educação universitária e propõe a aproximação entre a universidade e as comunidades. O seu público alvo é majoritariamente, mas não exclusivamente, composto por camponeses articulados à CLOC – Via Campesina, recebem educandos provenientes de diferentes países e a sua proposta é a realização de processos de formação/educação que conjuguem a dimensão política à dimensão técnica, tendo em vista a consolidação de “práticas de resistência de caráter internacional que se contraponham às relações de subordinação impostas pela hegemonia do Capital” (IALA AMAZÔNIA, 2014). A Agroecologia é entendida como uma forma de conhecimento inter e transdisciplinar e uma forma de resistência social “capaz de articular formação, investigação e saberes, a fim de permitir o uso apropriado da biodiversidade e cumprir o objetivo de alcançar a Soberania Alimentar” (CASTELLANO, 2008), o que demanda uma educação holística. Por essa razão, os institutos contemplam espaços voltados à formação: ética, científico-técnica, produtiva, sociocultural, socioambiental e sociopolítica, distribuída entre projetos de formação, unidades 180

de formação integral, oficinas, seminários, jornadas, práticas de campo, laboratórios, cátedras abertas, etc. (CASTELLANO, 2008). A metodologia adotada é a pedagogia da alternância e a duração dos cursos varia de três a cinco anos e como a proposta é conferir diplomas de nível superior, no mais das vezes, há o estabelecimento de parcerias com universidades dos países onde os istitutos estão situados. O interesse na criação de Universidades Camponesas, cujos diplomas tenham o mesmo valor daqueles conferidos pelas instituições formais de ensino, induz a Via Campesina a estabelecer alianças com as universidades dos países onde os institutos são construídos e a própria existência dos institutos depende do apoio dos governos locais e nacionais. Essas relações não são isentas de tensões e revelam as dificuldades de construção de um projeto cosmopolita e igualitário, como a Soberania Alimentar, em um mundo ordenado pela Soberania estatal e dominado pelos interesses do grande capital. Sendo assim, os diferentes destinos das experiências, acima mencionadas, não podem ser entendidos sem a consideração das tensões entre as classes sociais e entre os níveis nacional e global da ação política. A Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA) é uma iniciativa da Via campesina construída com o apoio do governo do Paraná, da Universidade Federal do Paraná (IFPR) e do governo da Venezuela. Fundada em 27 de agosto de 2005, a Escola está localizada no Assentamento Contestado, município da Lapa, região sul do Paraná. O curso em Tecnologia em Agroecologia tem nível superior e três anos de duração, com o “tempo escola” dividido em etapas que duram, em média, de 60 a 70 dias cada. A Escola é administrada por autogestão e o seu propósito é oferecer capacitação técnica, somada à formação política, tendo em vista que os educandos sejam capazes de desenvolver uma visão crítica da realidade. Assim como os outros Institutos Agroecológicos da América Latina, a Escola adota a pedagogia da alternância e recebe educandos de toda a América Latina, a maioria formada por militantes da CLOC – Via Campesina (ELAA, 2014). O projeto foi viabilizado com recursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) e dos próprios movimentos sociais, e teve o apoio do Instituto Federal do Paraná (IFPR), parceiro da Via Campesina na construção da iniciativa. O fato do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Instituto Federal do Paraná (IFPR) terem apoiado a iniciativa foram fundamentais para o sucesso da empreitada, porque os projetos educativos, desenhados pelas organizações de movimentos sociais em conjunto com universidades e instituições governamentais no Brasil e em outros países da América Latina, dependem do apoio da burocracia estatal para serem criados e continuarem existindo e estão à mercê da conjuntura política. Esta fragilidade resulta da disparidade de 181

poder entre as classes sociais, e a sua mitigação não depende apenas da vontade política do poder executivo, mas do apoio da burocracia estatal e da balança de poder no seio das organizações que apoiam as iniciativas, como revela o caso do IALA Paulo Freire. O IALA Paulo Freire levou dois anos para ser concluído, de 2006 a 2008, quando foi inaugurado na Venezuela durante o governo Cháves. O instituto contou com o apoio do presidente, mas não da totalidade do governo, incluindo o ministério da Educação que boicotou o projeto. Por esta razão enfrentou muitas dificuldades e contradições, desde falta de infraestrutura até a interferência de agentes externos à Via Campesina, o que levou muitos educandos a desistirem e voltarem aos seus locais de origem 74. Nas palavras de Irma Brunetto, dirigente do MST que acompanhou a gênese desse processo: Entre Chávez e o seu governo [havia] diferença, e o seu ministério da Educação sempre foi contra, e a gente sempre brigou, porque a gente luta com os burocratas. É diferente, eles nunca engoliram a Via campesina lá. Toda a empolgação era bonita, mas a burocracia estatal é um entrave (informação verbal) 75. Apesar dos problemas, a primeira turma de engenheiros em Agroecologia graduou-se, em 2012, formada por sessenta e seis educandos provenientes do Brasil, do Paraguai, do Equador, da Nicarágua, da Colômbia, do México e da Venezuela. O IALA Guarani é outro instituto que viveu uma crise recentemente, devido à perseguição dos movimentos camponeses no Paraguai e à divergência de interesses entre forças distintas. O instituto funcionava na localidade onde ocorreu o Massacre de Curuguati76, o que fez com que fosse acusado de apoiar a guerrilha e obrigou-o a fechar as portas. De acordo com Emelson (informação verbal)77, um técnico militante do MPA que acompanhou a crise de perto, a aliança com a universidade e o apoio dos professores foi o que fez com que a sociedade se envolvesse no caso e viesse a pressionar o governo para que o IALA Guarani voltasse a funcionar em novo local e ainda conquistasse o reconhecimento institucional, podendo vir a emitir diploma universitário. O breve resumo dessas três experiências: a Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA), o IALA Paulo Freire e o IALA Guarani contribui para o entendimento da fragilidade dos institutos e universidades camponesas, porque revela a sua dependência de um contexto 74

Essas informações foram obtidas em conversas informais com educandos do IALA Paulo Freire e com dirigentes do MPA e do MST. 75 BRUNETTO Irma. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov. 2011 76 Para mais informações, acessar o documentário “Detrás de Curuguaty, documental revelador”, disponível em < https://youtu.be/9ldGEFiS6jY?list=PL7faEqbyu05WX1mX6WEZ0Rsip6kklDPxx> 77 MACIEL, Emelson. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, por Skype, out. 2014

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político e favorável, para funcionarem efetivamente. Não obstante, o investimanto da CLOC Via Campesina e de suas organizações constituintes, na construção da ponte entre a Agroecologia e a Soberania Alimentar, vai além de propostas institucionais. É parte de um processo político mais amplo de luta, resistência e construção de alternativas, que contempla, ainda, os chamados processos territoriais. Conforme explicado por Peter Rosset: Além das escolas, temos o que chamamos de processos territoriais, que estão fora da sala de aula e ocorrem no campo. Como quando uma família está deixando de usar pesticidas, a partir da recuperação de práticas ancestrais ou da adoção de práticas agroecológicas. Os processos sociais podem ser gerados com metodologias sociais criadas pelas próprias organizações. E a metodologia mais em voga, na Via Campesina, chama-se “de camponês a camponês”, neste caso, já não são técnicos que dizem às famílias como plantar, mas camponeses que produzem agroecologicamente e convidam outros agricultores a visitarem a sua terra e verem como eles fazem; ou seja, é um processo horizontal e não vertical (ROSSET In. REBELIÓN, 2014). Ao destacar o padrão horizontal de relações, Rosset induz-nos a pensar nos níveis local e interpessoal da ação política, pois é nos territórios, nas relações face-a-face e mediante as dinâmicas do diálogo e da tradução entre camponeses, técnicos, teóricos e militantes que a Soberania Alimentar é construída. Esta assertiva remete-nos ao próximo capítulo, no qual, abordaremos a dimensão local e interpessoal da construção da Soberania Alimentar, com ênfase na atuação do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e dos seus dirigentes, militantes e técnicos neste processo. Sendo assim, terminamos a nossa abordagem sobre a Produção de Conhecimento no MPA, com um breve quadro dos seus intelectuais orgânicos, os quais foram forjados nos distintos espaços de formação política, teórica e prática vistos nesse capítulo. Um breve quadro dos intelectuais orgânicos do MPA A formação política e intelectual da militância é fundamental para a consolidação do projeto do MPA de tornar-se o “intelectual orgânico da classe camponesa”, porque nesse processo serão forjados as lideranças de base e os dirigentes que vão conduzir o trabalho do movimento em todos os seus níveis de atuação e os e os porta-vozes que vão representa-lo perante a sociedade. Para tratar do universo de intelectuais do MPA, mobilizamos o conceito de "intelectual do movimento" criado por Eyerman e Jamison (1991) a partir do conceito de intelectual orgânico de Gramsci. Mesmo reconhecendo que o conceito Gramsciano é inclusivo, em nosso 183

entender, o uso do conceito derivado contribui tanto para pontuar a diferença entre o intelectual enquanto indivíduo e o "intelectual coletivo de classe" (LEHER e DA MOTTA, 2012), como para diferenciar o intelectual profissional daquele forjado na práxis cosmológica, tecnológica e organizacional de um movimento social. Pela sua função político-social em um movimento social, o “Intelectual do movimento”, o “intelectual orgânico” e o dirigente costumam estar encarnados em uma só pessoa, mas nem sempre. Os intelectuais do movimento, que também são dirigentes, dedicamse tanto à sistematização das ideias do movimento como à sua divulgação interna, têm facilidade de comunicação oral e a capacidade de apresentar as ideias e os projetos do movimento de forma simples, por essa razão sensibilizam as massas. Mas há outros “intelectuais do movimento” que não têm carisma e investem o seu tempo no estudo de novas questões, antecipando problemas futuros e atuando como representantes do movimento junto a instituições e articulações, onde deter um conhecimento especializado é fundamental. No entanto, apesar do papel fundamental que exercem na disputa e na construção de uma nova hegemonia, permanecem como ilustres desconhecidos para o conjunto da organização. Frei Sergio Görgen é o primeiro “intelectual orgânico” do MPA a merecer menção. O Frei, como é carinhosamente chamado pelos militantes do MPA, participa do movimento desde o antológico Acampamento da Seca, quando então atuava junto aos sindicatos rurais e fazia parte do quadro do MST. É autor do único livro publicado sobre a história do movimento e mantém-se como a liderança e o intelectual mais respeitado internamente, sendo o principal formulador de sua meta síntese, o Plano Camponês, e criador do conceito de “Alimergia”, uma noção que sintetiza uma proposta de produção de alimentos e de energia, de forma conjugada e complementar. Isabel Ramalho, Sergio Conti e Raimundo Vieira de Rondônia também são representantes da primeira geração de intelectuais e lideranças do MPA; mas, diferentemente de Frei Sergio, não sistematizam conceitos e não publicam textos autorais, influenciam o movimento por meio do seu discurso e da sua prática política e os seus nomes são mais conhecidos dentro, do que fora do movimento. O mesmo acontece com alguns dirigentes participantes do grupo de sistematização, como Humberto Palmeira e Maria Isabel. Apesar das suas reflexões e formulações serem incorporados às análises e textos produzidos pelo MPA, a sua contribuição individual dilui-se na produção coletiva. Assim como os nomes citados acima, Valter Israel da Silva, Raul Krauser e Marcelo Leal também somam o papel de liderança ao de “intelectual do movimento” e fazem parte do grupo responsável pela sistematização das ideias do MPA. Mas à diferença dos anteriormente 184

citados, publicam textos autorais e atuam como instrutores e oradores em cursos de formação e em palestras, tanto dentro como fora do movimento. Tendo consciência que ciência é política, o MPA também investe na formação de um grupo de intelectuais, cujo trabalho é voltado ao desenvolvimento de pesquisas científicas e à análise de questões políticas ou tecnológicas de natureza muito específica. Pela natureza desses estudos, os seus resultados não são amplamente divulgados na organização, assim como os seus sistematizadores são desconhecidos pela maioria dos militantes. Marciano Silva, Anderson Munarini e Daniele Nerling são exemplos de "intelectuais do movimento" com este perfil. Outra forma como um indivíduo pode contribuir reflexivamente para o movimento é atuando como seu representante e porta-voz em campanhas e articulações construídas em parceria com outros atores coletivos. Ao exercer este papel político, o intelectual militante também atua como tradutor e sistematizador das ideias do movimento para a sociedade e vive versa. Um exemplo é Cleber Folgado, em seu papel como coordenador nacional da “Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e pela Vida”. E outro é Marciano Silva, que atua como representante do MPA na campanha "Por um Brasil Livre de Transgênicos e de Agrotóxicos" e da Via Campesina Brasil na Comissão da Biodiversidade (CDB) da ONU. Além do discurso, consideramos a práxis produtiva também como uma forma de produção de conhecimento e trazemos o exemplo dos militantes que atuam nos projetos de cooperação internacional, de natureza técnica e política, e nas brigadas internacionais da Via Campesina, e dos militantes que atuam como técnicos prestando consultoria à base. Diferentemente dos projetos de assistência técnica homogeneizantes concebidos pelo Banco Mundial e da assistência técnica prestada pelas multinacionais, os projetos de cooperação internacional conduzidos pelo MPA são construídos conjuntamente com a outra parte e movidos pelas dinâmicas do diálogo e da tradução, com o objetivo de promover a autonomia do receptor da ajuda e não a sua dependência. Para a sua condução são deslocados militantes que detenham conhecimento técnico e estejam comprometidos com o projeto político e ideológico do movimento, como: Tairí Alves que atua na Venezuela desde 2011, Gilberto Afonso Schneider que está à frente da brigada do MPA em Moçambique desde 2012 e Emelson Maciel que atua no Paraguai. Os militantes, que também atuam como técnicos, são jovens contratados para atuarem em projetos de produção coordenados pelo MPA junto aos agricultores que formam a base atual e potencial do movimento. Nem todos os técnicos tornam-se militantes, alguns trabalham para a organização apenas pelo salário e os que permanecem é porque 185

identificaram-se com a proposta política do movimento e passaram a entender a Produção como uma forma de resistência política e social78. No meu trabalho de campo em São Miguel do Oeste, tive oportunidade de acompanhar inúmeros técnicos a campo e constatei o seu papel indispensável na disputa hegemônica travada entre os movimentos sociais do campo e o Agronegócio. Assim como as grandes empresas produtoras de veneno e de insumos agrícolas promovem os seus produtos e oferecem cursos de formação e ajuda técnica aos seus clientes, o MPA desenvolve projetos produtivos que envolvem e trazem retorno financeiro para a sua base, afirmando, na teoria e na prática, o potencial produtivo e econômico do Plano Camponês de Produção. No modelo hegemônico de agricultura como negócio, os próprios técnicos são objeto de disputa, e o Capital leva vantagens porque tem condições de pagar melhores salários e oferece possibilidades de ascensão social e financeira. O que faz da formação política e ideológica dessas pessoas uma estratégia fundamental para mantê-las vinculadas ao movimento e explica porque os técnicos-militantes, que estão no movimento há mais tempo, são aqueles que participaram de cursos de formação política ou pertenciam a famílias de pequenos agricultores engajadas politicamente e comprometidas com o modelo de agricultura camponesa. Dentre esses, Valdigeri Triaca, Emelson Maciel, Kelin Cristina Bedin, entre outros. A atuação dos “intelectuais do movimento” será tratada no próximo capítulo, no qual, também completamos a nossa proposta de análise da Soberania Alimentar como uma “forma de conhecimento prático multiescalar”. Iniciamos, deslocando-nos para o extremo oeste de Santa Catarina, onde acompanhamos a experiências de resgate e massificação de sementes crioulas, aí conduzidas pelo MPA. Partindo deste lugar, abordamos o processo de transnacionalização da organização de movimentos sociais, mediante a investigação do trabalho realizado pelos “intelectuais do movimento” que se deslocaram do extremo oeste de Santa Catarina para atuarem nas brigadas internacionalistas do MPA, e da análise do processo de exportação de sementes processadas pela Oestebio/MPA em São Miguel do Oeste.

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A ideia de Produção como forma de resistência foi trazida de Van der Ploeg (MPA, 2014) e será melhor desenvolvida mais à frente nesta mesma tese.

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5. A CONSTRUCAO DE SOBERANIA ALIMENTAR PELO MPA

Após analisarmos a produção de conhecimento pelo MPA, de maneira mais geral, neste capítulo enfocamos a dimensão prática do processo de construção da soberania alimentar. Isso exige que estabeleçamos um recorte, que nos permita debruçar sobre a dimensão territorializada dos processos sociais fomentados pelo movimento, em um determinado lugar. Ao longo desta tese, vimos que a soberania alimentar adquire sentidos diversos, de acordo com os movimentos, contextos e lugares. Neste ponto do trabalho, o nosso interesse é analisar como este conceito guarda-chuva, global e cosmopolita, adquire concretude local através das práticas sociais do MPA. Com este objetivo, centramos a nossa análise no extremo oeste de Santa Catarina, onde examinaremos o trabalho de resgate de sementes tradicionais e crioulas realizado pelo movimento social na região. Tendo em conta que a Soberania Alimentar é uma “forma de conhecimento prático multiescalar”, pretendemos mostrar que, assim como o global afeta o local, os processos locais também incidem em escalas mais amplas. Sendo assim, no final do capítulo, transcendemos as fronteiras políticos-territoriais do Brasil em companhia do MPA de Santa Catarina, para conhecer o trabalho de cooperação política e técnica desenvolvido pelo movimento social junto ao governo da Venezuela, ao movimento social “União Nacional de Camponeses” (UNAC) de Moçambique e à "Coordinadora Nacional de Organizaciones de Mujeres Trabajadoras Rurales e Indígenas" (CONAMURI) no Paraguai. A partir das análises do intercâmbio e da atuação do MPA junto a organizações afins em outros países, pretendemos revelar a influência exercida por um local em outro local, no tocante à construção da soberania alimentar. Este capítulo tem viés mais descritivo, do que analítico, porque tencionamos visibilizar elementos da realidade social do movimento, no que tange as questões discutidas até aqui de maneira mais abrangente. Com a adoção de uma abordagem multidimensional e multiescalar, pretendemos mostrar que os processos constitutivos da Soberania Alimentar são interativos, dialéticos e mobilizados por dinâmicas em que: as diferentes escalas, o macro e o micro, e o profissional e o popular afetam-se mutuamente. Aqui completamos o nosso percurso, na esperança de ter conseguido operacionalizar a nossa hipótese, de acordo com a qual, através da sua práxis, os movimentos sociais estão travando uma luta que além de política e cultural, é também cognitiva e epistêmica.

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5.1. Do Global ao Local: a Importância do Lugar e a Localização da Construção da Soberania Alimentar

Levantar a questão territorial é evidenciar a saliência e a imanência do movimento pela soberania alimentar – uma imanência (MCMICHAEL, 2013). Com Nicholson retornamos à discussão aberta no capítulo teórico sobre os territórios e as espacialidades e adotamos uma perspectiva multiescalar para a interpretação da Soberania Alimentar, a partir da consideração que o fenômeno é construído a nível local pelos movimentos sociais que o constituem (NICHOLSON apud MCMICHAEL, 2013, p. 5), e que a sua força reside em ser contextual e ter inúmeras respostas nos diferentes níveis: local, nacional, regional e transnacional, o que é igualmente reconhecido por Bové e Dufour (2010). Com este movimento, mudamos o foco da análise do nível internacional e dos discursos e campanhas criadas no marco da Soberania Alimentar, para as experiências práticas e contextuais desenvolvidas por pequenos agricultores e movimentos sociais rurais em seus contextos e lugares, reterritorializando assim a luta de classes. Como forma de trazer as particularidades locais, inicio este capítulo com um relato impressionista sobre a região do extremo oeste de Santa Catarina, onde, entre os anos de 2011 e 2012, realizei uma pesquisa de campo para acompanhar o projeto de resgate e massificação das sementes crioulas conduzido pelo MPA (SC) na região. Durante um mês e meio, no final de 2011, eu fiquei hospedada na casa de apoio do movimento em São Miguel do Oeste e tive a oportunidade de conhecer dirigentes, militantes e técnicos ligados ao MPA, além de pesquisadores, acadêmicos, camponeses, políticos e religiosos, entre outros atores ligados direta ou indiretamente a este processo. O campo me revelou aspectos que uma mulher urbana, carioca e criada na zona mais rica do Rio de janeiro, como eu, não poderia imaginar à distância. Uma destas surpresas foi perceber que o camponês e o fazendeiro no Sul do Brasil compartilham, até hoje, uma cultura comum. A diversão, a alimentação, a música, o esporte e o lazer são semelhantes e a hospitalidade é um traço marcante, independentemente do poder aquisitivo. Além de apreciarem as mesmas músicas, as mesmas iguarias e as mesmas opções de lazer, todos frequentam as mesmas escolas e recorrem aos mesmos hospitais, em sua maioria, públicos. A convivência com inúmeras pessoas nas comunidades e pequenos municípios que eu visitei me revelou que, nessa sociedade, o valor central não é o individualismo, pois a família é o 188

núcleo central. Diferentemente dos grandes centros urbanos, os jovens casam-se cedo e as crianças não parecem representar um estorvo, pois estão integradas ao lazer e ao trabalho dos pais e à sociedade como um todo. A dinâmica da família varia em função do tipo de produção e do poder aquisitivo, mas há alguns aspectos em comum entre o pequeno e o grande produtor rural. Em ambos os extratos sociais, a mulher é o esteio da família e cabe a ela cuidar da casa, da alimentação e do bem estar dos filhos e do marido, o que inclui a responsabilidade com a horta e tudo aquilo que se planta “para o gasto”. Enquanto ao homem cabe a decisão sobre os investimentos da família e outras questões de ordem econômico-financeira, incluindo o que se produz “para o ganho”, ou seja, para o mercado. A ausência de uma economia escravocrata na região está refletida tanto no papel que a mulher ocupa na família como na arquitetura de interiores. As residências não costumam possuir dependência de empregados, e, na maioria das casas que eu visitei, a cozinha e a sala de jantar estão integradas e este é um espaço importante de integração familiar. Em algumas residências, inclusive de produtores mais abastados, a sala de estar também está integrada ao mesmo espaço. Praticamente não há negros na localidade, e a população de São Miguel do Oeste e adjacências é composta majoritariamente por imigrantes vindos do Rio Grade do Sul para a região na década de 1950, a maioria descendente de alemães ou de italianos. Os primeiros são corpulentos de tez clara e bochechas rosadas e os de origem italiana são mais morenos e por isso muitos recebem o apelido de "nego" ou de "nega". O tipo físico das pessoas me remeteu aos “Comedores de batatas” de Van Gogh, e as cadeiras de madeira e palha, presentes na maioria das casas, me lembraram o “Quarto em Arles” do mesmo pintor. Nas comunidades rurais, a organização das festas conta com a participação de todos: homens, mulheres e crianças, cada qual em seu papel. A limpeza e a arrumação do espaço são compartilhadas, mas cabe aos homens cuidar das bebidas, servir e preparar o churrasco, enquanto as mulheres cuidam dos pães, das cucas e das saladas, e as crianças, meninos e meninas, ajudam os pais nesta lida. O esporte mais popular é o futebol, inclusive feminino, e o Inter e o Grêmio são os dois times que disputam os corações do sulista, já o paulista Corinthians e o carioca Flamengo unem todos na torcida contra. O Bolão, a Bocha e o Quarenta e Oito são jogos tradicionais e, muito embora quase todo salão comunitário disponha de uma pista destinada à prática, diferentemente do futebol, estas são atividades masculinas e as namoradas ou esposas não costumam acompanhar os seus companheiros nestes programas. O carteado também é bastante popular, tanto entre homens como entre mulheres, mas habitualmente não é 189

disputado entre grupos heterossexuais. Quando o ambiente é doméstico, o jogo é a dinheiro e, aos domingos, quando os homens encontram-se nas bodegas para jogar Truco, Canastra, Pife, Quatrilho, Caixeta, Escova, Isca, pontinho, etc., a aposta é uma rodada de bebida. A minha experiência no extremo oeste de Santa Catarina, revelou-me um povo hospitaleiro, generoso e festeiro. O churrasco de gado e a cerveja são iguarias indispensáveis de uma boa comemoração, seja aniversário, evento político, festa comunitária ou religiosa, seja organizada pelo camponês ou pelo fazendeiro. A segunda opção de “comida de festa” fica por conta da Galinhada de tacho preparada sempre com galinha caipira e banha de porco. “Camponês gosta de história” e a preferência musical reflete esta tendência. O dia-adia da lida no campo, a moral e a ética camponesa e o mal de amor são os principais temas da música sertaneja tradicional, cuja poesia é simples, tocante e verdadeira. A juventude, em sua maioria, prefere as bandinhas, que é um ritmo mais rápido do que os ritmos gauchescos: a Banda, a Valsa ou o Valerão. Nas festas comunitárias, quando há música ao vivo, o instrumento que não pode faltar é a gaita ou acordeom, sempre acompanhado do violão e da viola, e, mais recentemente, da bateria eletrônica que chegou para arrasar qualquer boa música. O baixo e a guitarra conquistaram o seu espaço no Sertanejo Universitário, que, diferentemente do Sertanejo Clássico, sofre influência de outros estilos, como o rock e o forró. Em várias comunidades da região há grupos de dança tradicional ou Centros de Tradição gaúcha (CTG), os quais se apresentam em eventos culturais da comunidade ou, simplesmente, encontram-se em bailes para dançar os ritmos tradicionais, muitas vezes, vestidos a caráter. A casa de apoio do MPA na região fica em São Miguel do Oeste, o maior município do extremo oeste de santa Catarina, com 36.306 habitantes (IBGE). A cidade é o polo comercial e de serviços da região que tem uma economia de base rural. A maioria das famílias camponesas está integrada ao leite, ao fumo ou à produção de frango e já os grandes produtores estão envolvidos com a produção de grãos — soja e milho — e de leite em grande escala. São Miguel é uma cidade universitária e tem um complexo de boates e barzinhos frequentados por jovens estudantes com maior poder aquisitivo, além de restaurantes, sorveterias e “lancherias”, onde os jovens e as famílias convivem, e os tradicionais clubes de carteado e de bocha que são espaços restritos aos homens. A Igreja é outro espaço de socialização importante, assim como o parque contíguo a ela frequentado aos domingos pelas jovens famílias e suas crianças. Assim como em outros centros urbanos, em São Miguel do Oeste, muitas mulheres trabalham fora e os bebês vão para a creche e as crianças menores para a escola maternal. No entanto, as famílias costumam almoçar juntas, inclusive nos dias 190

úteis, tanto na roça como na cidade, o que está refletido no fato do comércio local fechar diariamente de 12h às 14h. Nas comunidades próximas, a diversão fica por conta da pelada de fim de semana e dos bailes diurnos ou noturnos em comemoração ao dia do padroeiro e outras datas festivas e religiosas, como a véspera de natal. Como a região é muito quente, os parques aquáticos são muito populares e, apesar de serem pagos, equivalem à praia carioca como espaço social, porque são frequentados por todos: ricos e pobres. E a diferença de poder aquisitivo se expõe no padrão de consumo de bebidas e comida, no modelo do carro e na potência do som automotivo. Nesse contexto de similitude cultural e de valores, não se pode falar em diferenças de classe, mas de poder econômico. E um dado que a pesquisa de campo me revelou é que a lugar da agricultura transgênica no imaginário desses sujeitos é semelhante ao da TV de plasma e da caminhonete Mitsubishi, que são objetos de desejo e elementos simbólicos de distinção social, nos termos de Bourdieu (2006 [1979]). De acordo com o discurso hegemônico, o agricultor bem sucedido é um “empresário” plenamente integrado ao mercado capitalista e na opinião de um grande produtor de milho de Anchieta com quem conversei, a agricultura transgênica “é para quem pode [pagar o custo] e não para quem quer”. No entanto, esse mesmo produtor considera que o milho transgênico não é saboroso e tem dúvidas se é saudável para o consumo humano, por isso a produção transgênica é toda destinada ao comércio e à ração animal e para o consumo da família, só o milho crioulo plantado no quintal pela sua esposa. Não obstante, embora desconfie da qualidade do transgênico, o agricultor foi convencido da sua adequação à produção em larga escala, por um discurso construído e sustentado por um aparato ideológico que inclui: as empresas e os seus serviços de assistência técnica, a mídia impressa, televisiva e internética, as feiras agropecuárias, os astros da música sertaneja e o estado e os seus agentes, que contribuem com o processo ao desenharem políticas públicas que induzem o agricultor a aplicar os empréstimos e financiamentos na aquisição de insumos e defensivos agrícolas, o que atende aos interesses do agronegócio e contraria os ideais de autossustentação e autonomia característicos do modelo camponês de produção. Essa é uma disputa pela construção da hegemonia, no sentido dado por Gramsci, de acordo com quem, “o conceito apreende a dinâmica das lutas de classes sob a dominação burguesa” e explica “a produção da conformidade social por meio da organização e atuação da sociedade civil, voltada para o convencimento, ao lado da persistência das formas coercitivas do Estado burguês” (PRONKO e FONTES, 2012, 391).

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Essas estratégias de persuasão são direcionadas ao grande e ao pequeno produtor, a quem tentam convencer que a opção pelo transgênico equivale a ganhos em produtividade, economia e eficiência, porque o milho transgênico produziria mais por hectare. O que só é fato em condições ideais e, ainda assim, não é financeiramente compensatório para o pequeno produtor, porque o transgênico prescinde de insumos e defensivos químicos de alto custo, enquanto o milho tradicional satisfaz-se com insumos e defensivos naturais que podem ser produzidos localmente. No entanto, mesmo quando o resultado contradiz o discurso, o agricultor nem sempre responsabiliza o modelo e pode culpar-se pelo seu próprio fracasso ou adotar uma postura fatalista, se convencendo que uma vez adotado o transgênico, não é mais possível voltar atrás, como no caso de um pequeno produtor de leite que eu conheci em um churrasco comemorativo, em uma comunidade no município de Anchieta. Segundo o seu relato, ele começou a plantar transgênico influenciado pelos cursos de capacitação técnica ofertados pelas empresas sementeiras, somou-se a isso a facilidade de aquisição das sementes, por meio do programa “troca-troca” do governo, enquanto, em paralelo, as agropecuárias não dispunham de sementes tradicionais para a venda. A sua produção de milho é toda destinada à ração dos seus animais e, quando o conheci, uma forte estiagem levou à perda de toda a sua produção, enquanto o milho crioulo ainda resistia no pé. Contudo, embora tenha tido grande prejuízo com a perda da safra e colhido dívidas no lugar de milho, tinha uma atitude resignada e não se mostrava inclinado a voltar a plantar milho tradicional, alegando que dava mais trabalho e ele era sozinho, mostrando-se convencido que o problema fora devido à seca e não à tecnologia em si. Distante de configurar exceção, os dois casos são ilustrativos de um padrão que se reproduz pelo país e são exemplos que contribuem para revelar a relação de forças desigual que existe entre os que lutam pela Soberania Alimentar no Brasil e os seus opositores. Este contexto, o MPA enfrenta com discursos e ações políticas e também por meio de medidas pragmáticas que incentivam a mudança de modelo, porque a produção é entendida como uma forma de resistência social.

5.2. Saberes e Sabores

Durante a minha estadia em Santa Catarina, eu tive a oportunidade de acompanhar o trabalho da regional do MPA em quase todos os municípios em que atua no extremo oeste do estado, dentre estes, Anchieta: o lugar onde teve início o processo de resgate de sementes 192

crioulas na região. Apesar do milho e da soja transgênica dominarem a paisagem, o município possui uma das maiores concentrações de variedades de milho do Brasil, razão pela qual conquistou o título de “capital estadual do milho crioulo” em 2009, através do projeto de Lei nº 466/99. O processo foi iniciado nos 1990, pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anchieta (SINTRAF), em colaboração com outros agentes: a Igreja, os movimentos sociais, técnicos da Epagri, pesquisadores da Universidade de Santa Catarina, atores políticos e os agricultores e agricultoras locais. Desde a origem, essa é uma missão local que envolve a todos, incluindo os que vieram a adotar a agricultura transgênica, porque, para os Anchietenses, o milho crioulo não se resume a um ativo econômico, é o seu principal elemento de identidade cultural. Esse foi o incentivo para a criação da Festa Nacional do Milho Crioulo (FENAMIC), hoje denominada como Festa nacional das Sementes Crioulas e um dos principais eventos da campanha pela Soberania Alimentar no Brasil. Pelas razões expostas, inicio esta seção com um relato sobre Anchieta e o trabalho de recuperação e preservação de sementes, aí realizado, desde antes do MPA. Esta narrativa está apoiada nas minhas observações, em entrevistas realizadas durante a minha pesquisa de campo e em três livros e um artigo escrito por pesquisadores e membros da sociedade local79. Os autores das obras não possuem vínculo formal com o MPA ou a Via Campesina e trazer as suas narrativas e análises para essa tese justifica-se, porque dá consistência factual à ideia defendida pela Via Campesina e por alguns pesquisadores, dentre os quais, McMichael (2013), Bové e Dufour (2010), que a Soberania Alimentar consegue “ressonância generalizada” (SNOW e BENFORD, 2000), porque está embasada nas práticas tradicionais que camponeses de diferentes países e lugares vêm praticando há inúmeras gerações. Além desse aspecto, a história de Anchieta é semelhante a de outros municípios da região e ter esse conhecimento contribui para entendermos os padrões de relação social e a cultura local, para além dos limites do município. Anchieta foi colonizada por imigrantes vindos de Santa Maria (RS), nos idos de 1950. Inicialmente uma vila, foi transformada em distrito de Guaraciaba em 1953 e elevada à categoria de município em 1963. Na época de sua fundação, a principal atividade econômica 79

“Milho crioulo: sementes de vida – pesquisa melhoramento e propriedade intelectual”, resultado da dissertação de mestrado de Antônio Valmor Campos, pesquisador e professor da Universidade Regional Int egrada Campus Frederico Westphalen que fica na região. Em artigos publicados no livro “Anchieta. História, memória e experiência” (2004) organizado por Ivan José Canci, natural de Anchieta e técnico da Epagri, e Ivanildo Brassiani, advogado e político local associado ao Partido dos Trabalhadores (PT) e em um artigo de Gilcimar Adriano Vogt, Ivan José Canci e Adriano Canci (2007), técnicos da Epagri que atuavam na localidade nos 19902000.

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era a extração de madeira nobre para a construção civil. A criação de porcos e a produção de milho para ração animal prevaleceram nos 1970 e 1980, quando o mercado foi dominado pelas grandes empresas do ramo e, desde então, a produção de milho para ração animal e de leite (em regime de integração) são as atividades econômicas mais importantes da região. Assim como o milho foi alvo do grande capital nos 2000, os porcos o foram nos 1970 e 1980. De acordo com inúmeros relatos, a região possuía uma grande diversidade de porcos crioulos e um comércio pujante de suínos, até quando grandes empresas interessadas na dominação desse mercado espalharam a notícia falaciosa que a região havia sido acometida por uma peste e que todos os porcos crioulos deveriam ser sacrificados. A mentira foi desvendada e denunciada publicamente pelo bispo de Chapecó, D. José Gomes, o que lhe rendeu uma ameaça de morte e gerou uma forte comoção popular. Em reação, foi organizada uma caravana e um protesto que reuniu 30.000 pessoas em Chapecó, em defesa de D. José e do fortalecimento da agricultura familiar. Analisando os discursos, constatei que este evento é um marco em Anchieta e trago para esta tese porque revela que a estratégia de destruição do mercado produtor local a qualquer custo, adotada pelas agroindústrias capitalistas na região, não é nova. Nos 1990, o foco era o mercado produtor e consumidor de suínos, nos 2010, o de frango e milho. Em ambos os casos, o objetivo é a eliminação da concorrência e a disponibilização de mão de obra barata para atuar para as grandes empresas em regime de integração. O caso também evidencia o perfil da Igreja e a sua relação com os pequenos agricultores da região, um tema que evoluiremos mais a frente ainda neste mesmo capítulo. Segundo os relatos, a origem do milho em Anchieta remonta aos índios e caboclos, seus primeiros habitantes. Esses camponeses praticavam uma agricultura de subsistência e a troca de sementes e de mudas fazia parte da sua cultura, assim como o processo de melhoramento dos espécimes animais era uma tecnologia dominada por todos. Na década de 1950, chegaram os migrantes vindos do Rio Grande do Sul, em sua maioria, agricultores que trouxeram consigo a sua cultura e as sementes cultivadas por seus ancestrais nos seus locais de origem para serem plantadas no novo território. A base da economia manteve-se de subsistência e os alimentos eram produzidos sem necessidade de qualquer insumo proveniente de fora da propriedade. Para dar consistência ao meu relato, reproduzo a descrição feita por um autor local, Jacob Gilmar Junges, sobre a lida dos agricultores de Anchieta com as suas sementes à época: As sementes eram guardadas com cuidado para serem plantadas no ano seguinte, a compra de sementes não existia, somente efetuavam as 194

trocas entre os próprios agricultores. Essas trocas aconteciam durante as visitas entre famílias, nos finais de semana. Os pequenos agricultores de Anchieta conservavam mais de cinquenta variedades de milho crioulo e tinham diferentes maneiras de armazenar e selecionar a sua semente utilizada para o plantio, na próxima safra. O milho colhido era usado na alimentação da família, também na alimentação dos animais da propriedade e vendido (JUNGES, 2004, p. 181). Recuperação de sementes: uma missão local80 Pessoas simples fazendo coisas simples em lugares simples vão transformar a humanidade (SANDINI, 2011) Coincidentemente, o processo de recuperação de sementes em Anchieta teve início no mesmo ano em que o conceito político de Soberania Alimentar foi mobilizado, pela Via Campesina, em contraposição ao conceito de Segurança Alimentar na FAO. No entanto, em 1996, os agricultores de Anchieta não conheciam a Via Campesina e muito menos essa conceituação, e a principal motivação para a realização de uma campanha pela recuperação de sementes na localidade foi a crise agrícola dos 1990 e o consequente receio de não ter sementes para plantar e ficar sem ter o que comer e dar de comer aos animais. Os relatos indicam que a principal motivação para a deflagração do processo foi de ordem econômica e a partir daí é que se desenvolveu uma consciência crítica ao modelo de agricultura vigente. Embora o processo vivido em Anchieta estivesse diretamente relacionado ao Neoliberalismo e à liberalização da agricultura inaugurada no Brasil com o MERCOSUL81, os pequenos agricultores não tinham essa consciência, assim como não tinham conhecimento dos transgênicos e dos seus malefícios, porque essa tecnologia ainda não estava em uso no Brasil. Também não havia uma predisposição contra a agricultura química, porque os danos causados pelos agrotóxicos ao meio ambiente e à saúde humana não eram de conhecimento geral. E, na análise de Gilcimar Vogt, Adriano Canci e Ivan Canci (2007): Foram as dificuldades de acesso aos pacotes tecnológicos, a dependência em relação às agroindústrias, os baixos rendimentos econômicos e as constantes crises no setor de carnes [que] fizeram com que alguns agricultores assumissem uma postura crítica frente a 80

O relato sobre o processo de recuperação de sementes em Anchieta está baseado em narrativas de personagens dessa história obtidas por meio de entrevistas abertas e semiabertas e reveladas em conversas informais travadas em rodas de chimarrão, e apoiada na pesquisa de Campos (2007) e nos artigos publicados em Canci e Brassiani (2004). 81 Para mais detalhes sobre as consequências desse processo para os pequenos agricultores brasileiros, consultar Wersheimer (2009) e Picolotto (2011)

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esse modelo. A partir de então, passaram a ajustar seus sistemas de produção, buscando construir crescentes níveis de autonomia técnica e econômica. Foi nesse contexto que o trabalho de revalorização das variedades crioulas ganhou relevância (VOGT, G.; CANCI, I.J.; CANCI, A, 2007). As memórias e os artigos escritos sobre o resgate de sementes crioulas em Anchieta indicam que esse processo foi deflagrado em 1996, pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais de Anchieta (SINTRAF) em parceria com a Epagri e que a Igreja e os movimentos sociais também foram atores decisivos para o seu desenvolvimento. A minha pesquisa revelou, ainda, que esse processo vem sendo dinamizado por meio do diálogo intercultural entre o conhecimento profissional e o popular e da tradução de práticas e saberes82, desde a origem, como pretendo revelar ao longo dessa narrativa. De acordo com os relatos de personagens dessa história, sabe -se que o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Anchieta (SINTRAF) foi criado em 1970, em plena ditadura militar, e que a CPT foi uma influência decisiva no processo, por ter despertado a consciência dos pequenos agricultores e fornecido as bases necessárias à sua organização. Nos 1980, durante a Nova República, assim como outros sindicatos rurais, o SINTRAF aproximou-se da CUT e do PT, nos 1990, a crise da agricultura criou um novo contexto e a entidade reconheceu a necessidade de renovar-se mais uma vez. “Sabia-se que tinha de ter autonomia, ocupar espaços, iniciar novas alternativas para contrapor o modelo explorador que afligia o povo com a política do Imperialismo” (CARPEGGIANI, 2004, p. 346). Em consequência, em 1996-1997 inaugura-se uma nova fase, na qual o sindicato reaproxima -se da base, privilegiando “a prática com o trabalho de organização em grupos, retomando luta s permanentes [e] colocando a proposta de produzir sementes e alimentos orgânicos” (IBID). Embora, entre os anos de 1996 e 1998, o MPA estivesse em processo de formação e o seu investimento maior tenha sido na luta por políticas públicas que atendessem a necessidade imediata da sua base, o movimento social não deixou de participar da gênese desse processo, porque alguns dos seus futuros dirigentes faziam parte da direção do SINTRAF 83 à época e a sua base herdou esse legado.

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Para mais detalhes sobre as dinâmicas do diálogo e da tradução, consultar o item 1.4. Diálogo, tradução e ação racional estratégica: dinâmicas mobilizadoras de novos conhecimentos, no capítulo 1 desta mesma tese 83 Dentre estes, Eloe Swhaizer, que foi presidente do SINTRAF no início da década de 1990 (CANCI, 2004), e Julio Draszewski, tesoureiro da cooperativa Oestebio e sogro de Eloe.

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De acordo com os técnicos da Epagri: Gilcimar Vogt, Adriano Canci e Ivan Canci (2007): Os trabalhos iniciaram-se em 1996 com a realização de cursos teóricos e práticos, seminários, excursões, encontros e reuniões. Aos poucos, a proposta de resgate das sementes crioulas foi sendo encampada pelos movimentos sociais do campo e por outras organizações de agricultores 84. Em 1997, com o processo que levou à elaboração do Planejamento Estratégico Participativo do Meio Rural de Anchieta, foi lançado oficialmente o Programa Municipal de Produção Própria de Sementes (CARPEGGIANI, 2004; VOGT, G.; CANCI, I.J.; CANCI, A, 2007). Ainda de acordo com os técnicos, o programa teve início com a implantação de áreas de produção de sementes, inicialmente, por meio do cruzamento entre cultivares comerciais. Em paralelo, os técnicos e os agricultores investiram na identificação e no resgate de variedades locais de milho e, em um segundo momento, o cruzamento entre híbridos foi abandonado em favor do manejo de variedades crioulas 85. O trabalho incluiu ainda “ações orientadas ao resgate dos conhecimentos tradicionais e o levantando de informações sobre os aspectos culturais relacionados ao uso e manejo dessas variedades”. E a experiência, inicialmente conduzida “por 18 grupos comunitários organizados em 14 comunidades do município e envolvendo 118 famílias”, inspirou outras comunidades a aderirem ao programa nos anos seguintes, “executando atividades em grupo para o plantio de campos de produção de sementes; o resgate de variedades crioulas; o desenvolvimento de variedades compostas e novas variedades; a implantação de ensaios e unidades de observação; e a redistribuição de sementes entre os agricultores”. (CARPEGGIANI, 2004; VOGT, G.; CANCI, I.J.; CANCI, A, 2007, p. 36-37). Quando em Anchieta, eu tive oportunidade de acompanhar um dia de trabalho de Fabiane, uma pesquisadora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) que estava realizando um levantamento da diversidade das sementes na região, para armazenamento em um banco de sementes que seria para uso das comunidades, mas controlado pela universidade. O projeto contava com o apoio da Igreja, que a hospedava na casa paroquial, e do MPA que disponibilizava um técnico e um carro para a realização das suas visitas. Investigando a origem do processo, descobri que a pesquisa da Universidade Federal de Santa Catarina 84

Grifo nosso Entre 1997 e 1998 foram identificadas e resgatadas sete variedades locais de milho: amarelão, cunha, palha roxa, asteca, mato grosso palha branca, branco e cateto. Com essas variedades, além das quatro adquiridas junto ao Centro Vianei de Educação Popular (variedades pixurum 01, 04, 05 e 06), foram abandonadas as práticas de cruzamentos entre híbridos. 85

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(UFSC) em Anchieta teve início em 2002, por iniciativa do MPA, do SINTRAF/Anchieta e da “Associação dos Pequenos Agricultores Produtores de Milho Crioulo Orgânico e Derivados” (ASSO)86. Conforme Gilcimar Vogt, Adriano Canci e Ivan Canci (2007), as três entidades desenvolveram um projeto conjunto, “com o intuito de diagnosticar as potencialidades e limitações para o uso, o manejo e a conservação da agrobiodiversidade” na localidade e buscaram o apoio e a parceria da UFSC para a “realização do trabalho de identificação e de estudo da diversidade de espécies e variedades locais presentes no município”. E o resultado do primeiro diagnóstico, realizado em 2003, apontou que, “desde quando foram iniciadas as atividades de fomento ao uso e resgate da agrobiodiversidade local em 1996”, houve um aumento significativo do número de agricultores que cultivavam variedades locais de milho (VOGT, G.; CANCI, I.J.; CANCI, A, 2007, p. 38). Pode-se constatar a partir do trabalho de Gilcimar Vogt, Adriano Canci e Ivan Canci (2007), que o “Diálogo de Saberes” (ROSSET e MARTÍNEZ-TORRES, 2013) entre o conhecimento científico e o popular move o processo de resgate de sementes crioulas em Anchieta, desde a sua gênese na década de 1990. O resgate dessa experiência contribui, ainda, para mostrar que, através da aliança tática estabelecida entre os técnicos da Epagri, o MPA, o SINTRAF, de um lado, e a universidade, de outro, o conhecimento profissional foi instrumentalizado em favor de um projeto emancipatório e a produção de conhecimento científico transformada em uma estratégia de resistência social, no sentido dado por Van Der Ploeg (2014). A despeito desse bom resultado, faz-se necessário relembrar que a relação de troca entre o conhecimento científico e o popular não é simples, pois existem diferenças de classe e de poder político, econômico e social que separam os sujeitos coletivos que se encontram de um lado e de outro. O que, no contexto do Sul global, fica ainda mais evidente, pois os povos originários, assim como os "trabalhadores" da cidade e do campo são aqueles com menos acesso à educação formal especializada, menor poder socioeconômico e, consequentemente, menor capacidade de influência política. Embora movida pelo ideal de uma ecologia de saberes, a troca colaborativa entre o conhecimento científico e o saber popular não é isenta de tensões, pois o ethos científico entra em choque com certos valores e visões de mundo que legitimam o conhecimento tradicional,

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A Associação dos Pequenos Agricultores Produtores de Milho Crioulo Orgânico e Derivados foi criada, em 2002, “com o objetivo de resgatar e multiplicar as sementes crioulas, produzir alimentos orgânicos e organizar a industrialização e a comercialização do milho” (VOGT, G.; CANCI, I.J.; CANCI, A, 2007, p. 38).

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como o misticismo e a religiosidade. Consequentemente, não é fácil para os cientistas considerarem práticas e saberes expressos em rituais e legitimados por critérios não científicos, como equivalentes aos seus, e o seu reconhecimento exige humildade e disposição para empreender um “diálogo de saberes” verdadeiramente horizontal, conforme salientado por Leff (2004), e capacidade de traduzir o sentido dessas práticas e saberes para a sua cultura e vice versa, como faz o bom tradutor literário, conforme evidenciado por Carou e Bringel (2010). No caso em exame, conversando com pessoas envolvidas no processo, diagnostiquei que não há plena convergência entre os interesses da universidade e dos agricultores, principalmente em relação ao banco de sementes. A preocupação maior da universidade, segundo Fabiane, é a preservação da espécie, enquanto o interesse dos agricultores vai além e inclui a garantia do controle social sobre as sementes. Não obstante, constatei que essa discordância não inviabilizou o diálogo e a colaboração entre os distintos atores. Em minha estadia no extremo oeste de Santa Catarina, eu pude constatar que, passados dez anos do início do processo, o diálogo e as tensões entre o conhecimento profissional e o popular, entre a política e a ciência e entre o local e o global criaram uma nova concepção de sementes crioulas, cujos sentidos e significados são derivados desse amalgama de saberes, que teve ainda a contribuição da Igreja, do MMC, do MST e da Via Campesina.

5.3. Atores parceiros do MPA no resgate de sementes em Anchieta: Igreja, MMC e MST

Na avaliação de Fabiano Baldo (informação verbal) 87, dirigente do MPA (SC), a Igreja Católica foi uma influência decisiva para o seu envolvimento e de outros companheiros com o movimento político, e a recuperação da trajetória da instituição, em Anchieta e proximidades, revela que a formação dos sindicatos combativos e dos movimentos sociais deveu muito à ação da Igreja progressista, que começou a atuar na região nos 1970, por meio da organização de cursos de formação e preparação de ministros de Eucaristia e da Palavra, da organização de grupos de reflexão e de um Curso de Teologia para Leigos com três anos de duração (De MOURA e SANDINI, 2004). A pesquisa de campo também revelou que praticamente todos os dirigentes do MPA, que eu conheci na região, vêm da base sindical e participaram de algum desses processos.

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BALDO, F. Relato oral obtido por meio de uma conversa informal em São Miguel do oeste (SC), nov. 2011.

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Conforme o Pe. Luiz Roberto Sandini e o agente pastoral Ivanor de Moura: No período de 1975, a metodologia para a renovação foi através dos grupos de reflexão, começou-se desta forma a trabalhar fortemente a opção preferencial pelos pobres, as pastorais sociais (com destaque para a pastoral da terra e a pastoral indigenista). Nesta perspectiva, ocorreu a formação de pequenas comunidades, a preparação dos leigos e leigas para os ministérios dentro da Igreja e para formar lideranças na transformação da sociedade. Todo este processo culminou no surgimento dos movimentos populares e de sindicatos autênticos, a participação em partidos populares, que vieram ao encontro do povo mais pobre (SANDINI E MOURA, 2004, p. 286)88. Na percepção de quem viveu o processo, em Anchieta, a Igreja esteve comprometida com um projeto de emancipação social durante todo o mandato do arcebispo de Chapecó D. José Gomes (01/06/98 até 30/06/00) e hoje estaria mais devotada aos interesses da instituição e menos aos da sociedade. A CPT foi uma influência decisiva na formação das lideranças de base e na organização dos movimentos sociais na região e, no que tange ao MPA, foi responsável pela formação da consciência política da "piazada” que consolidou o movimento nos 2000 e hoje faz parte do grupo de dirigentes locais, regionais e nacionais. A Igreja também esteve envolvida com o projeto de resgate de sementes no local, desde a sua gênese, seja apoiando o SINTRAF e os movimentos sociais, seja atuando diretamente na base. O depoimento do Pe. Luiz Roberto Sandini, que esteve à frente da paróquia de 1998 a 2002, revela aspectos desse processo e dessas relações. Tudo começa com experiências de um grupo que começa a mentalizar, a trabalhar. Começou com a questão das sementes, o carro chefe principal é o milho. [...] E aí esse grupo foi mentalizando esse trabalho, então o milho é o carro chefe mas foram desenvolvendo o trabalho com as sementes. Por exemplo, a minha mãe, até pouco tempo, tinha radichia, cebola, alface crioula, alho, produzia pipoca, trança no porão. [...] E eu lembro que, na época, até quando eu ia para um encontro dos padres no meu carro, eu levava uma farinha produzida no moinho colonial, levava uma semente para tal pessoa no interior, eu levava as sementes. E aí o pessoal dizia, aí vai o padre do milho crioulo. Era considerado atrasado, e aí foi se trabalhando essa questão (informação verbal)89. Na percepção do Pe. Luiz, contribuir com esse processo foi uma das suas melhores experiências “como padre com esse povo”, porque:

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Grifo nosso SANDINI. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, Nov. 2001,

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Se a gente observar a espiritualidade do milho, ele vem da palavra mil. Então se a gente plantar uma sementinha em um terreno bom e a sementinha assim ajudar, vai produzir um pé de milho com 2 espigas muito bonitas. Eu gosto então da simbologia. E tive o capricho de contar os grãos na espiga, que dá em torno de 400 e poucas sementes, então, é o milagre da multiplicação (IBID). Durante o trabalho de campo, eu constatei que a influência exercida pela Igreja junto aos movimentos sociais em Anchieta teve mão dupla. Da mesma forma que a instituição impressionou-os com a sua visão de mundo, também foi impactada pela sua ideologia. Um exemplo é o próprio Pe.Luiz que frequentou o curso “Teorias Sociais e Produção do Conhecimento”, entre os anos de 2008 e 2010, quando ainda era pároco no município. O referido curso foi um projeto idealizado pelo MST e realizado através de um convênio entre a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF/MST), a Escola de Serviço Social (ESS/UFRJ) e o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH/UFRJ). Realizado no Rio de Janeiro, capital, a metodologia adotada foi a pedagogia da alternância, o que significa que os alunos tiveram uma convivência intensiva durante dois anos, em todas as etapas de tempo escola. A Igreja de Anchieta também foi decisiva para a organização do Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA) — hoje Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) — na região. Onde não havia sindicatos combativos, os Padres atuavam junto à base, sob a orientação da Diocese, conscientizando as mulheres agricultoras do seu lugar na sociedade e na família e despertando a sua consciência para a necessidade de se organizarem em prol da conquista dos seus direitos a: aposentadoria aos 55 anos de idade, salário maternidade, pensão para as viúvas, seguro para acidente de trabalho e reconhecimento da profissão. Conforme explicado por Polli, nessa região: Foram os setores da Igreja, principalmente as CEBs, CPT e os grupos de reflexão que iniciaram o questionamento da submissão da mulher e levantaram a necessidade de transformação da relação homem/mulher, no sentido de torná-la mais igualitária (POLLI, 1999, p. 127 apud SEGALLIN, 2004, p. 323). As mulheres envolvidas com a gênese do MMA em Anchieta participaram da comissão pastoral da terra e da catequese, e o processo de formação da Igreja lhes mostrou que organizadas em grupo teriam mais chances de conquistar os seus direitos. Além de despertar a consciência das mulheres, a instituição apoiou diretamente a construção do movimento, mediante a cessão do salão paroquial para a organização das suas reuniões. Em 201

uma dessas, em 1983, foi eleita a primeira coordenação municipal do Movimento das Mulheres Agricultoras de Anchieta. A coordenação nomeada ficou responsável pela promoção do movimento junto à base e esse trabalho foi realizado com o auxílio da Igreja e dos sindicatos, que davam voz ao MMC durante as suas mobilizações. Segundo o relato de Miriam Dalla Véchia, uma das fundadoras do MMA na localidade, as reuniões com as bases eram realizadas mensalmente em espaços cedidos pelos “presidentes” das comunidades e mesmo embaixo das árvores, quando não havia esse suporte (DALLA VÉCHIA apud SEGALLIN, 2004, P. 324).

O papel do MMC na preservação das sementes Os relatos de Miriam dão a entender que as agricultoras sempre tiveram consciência do valor sociocultural das sementes, mesmo que isso não fosse racionalizado e não estivesse sistematizado em discursos, porque as sementes são heranças de família, fazem parte do enxoval de casamento e são a fonte de saberes e de sabores que passam de mulher para mulher ao longo de gerações. O que contribuiu para entender o porquê de uma das primeiras ações do MMA em Anchieta ter sido a organização de um curso de sementes e Hortaliças que “visava resgatar os valores naturais já esquecidos” (SEGALLIN, 2004, p. 327). Durante a minha estadia na região, eu tive oportunidade de conviver com algumas mulheres que estão no movimento desde a sua fundação no local, e as vivências de Eledi, Mirian, 90 Zenaide e Moêmia revelaram-me o papel proeminente – embora muitas vezes invisível – das mulheres de Anchieta e adjacências na construção da Soberania Alimentar, antes mesmo do conceito ser forjado como tal. O exemplo do MMC contribui para fortalecer a ideia que a Soberania Alimentar não é uma, são muitas. E, conforme colocado por Bringel (2010), se foi adotada massivamente pelos movimentos do campo é porque a Soberania Alimentar é um conceito guarda chuva e uma demanda aglutinadora que legitima práticas particulares que já vinham sendo desenvolvidas por camponeses de todo o mundo. Todas as mulheres membros do MMC que eu conheci possuem uma horta onde preservam ervas aromáticas e plantas medicinais e um quintal e pomar onde mantém espécies crioulas das quais têm muito orgulho. E, pelo que pude obervar, a troca de saberes e de sabores é uma prática tradicional realizada no ambiente doméstico. Em festas familiares e entre vizinhos, o compartilhamento de receitas e de ensinamentos sobre o uso e o cuidado com plantas e frutos é um dos temas que mais mobiliza as mulheres. 90

Os relatos dessas mulheres contribuíram com a construção da narrativa sobre o Movimento das Mulheres camponesas constante do capítulo três desta mesma tese.

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Pelo depoimento de Mirian a Segallin (2004, p. 324), sabemos que o MMC investe na promoção da autoestima da mulher camponesa, desde quando ainda era denominado como Movimento das Mulheres Agricultoras (MMA). Nessa época, o trabalho era realizado com o apoio do livro “A mulher na Bíblia” — de Adelina Zaccardi, membro da Organização Autônoma das Mulheres —, na intenção de despir a mulher do sentimento de culpa pelo pecado original e conscientiza-la dos seus direitos na família e na sociedade. Em entrevista a mim concedida, Zenaide Millan da Silva revela que a autoestima das mulheres camponesas ainda é uma questão trabalhada pelo MMC. Em 2011, o movimento desenvolveu um projeto em parceria com o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS), que organiza grupos de mulheres para problematizar as relações de gênero e de geração na família, enquanto paralelamente estimula o diálogo entre a esposa e o marido e os filhos e “assim vai mudando a sua vida na família e na comunidade”. Zenaide considera que o modelo de agricultura capitalista impactou negativamente na vida dos agricultores, “porque as pessoas têm cada vez menos tempo para dedicar a si e à sua família e a preocupação com as dívidas [contraídas para viabilizar a produção] está acabando com saúde das pessoas e levando muitos agricultores à depressão”. Segundo a ativista, esse é o principal estímulo para o movimento promover a agricultura orgânica, que, “além de mais saudável, não gera dívidas”. De acordo com as informações de Zenaide, em 2011, o MMC atuou na região por meio da organização de reuniões periódicas nos municípios, bairros e comunidades e nesse processo: A gente trabalhou a autoestima e foi muito bom até para quem trabalhou, porque em cada comunidade você tinha uma experiência nova. O povo trabalha de uma forma parecida, mas cada comunidade, a experiência que você escuta das pessoas é uma experiência nova. E daí, assim, isso ajuda que o movimento perceba que tem muito a se fazer (informação verbal)91. Ainda segundo Zenaide, o MMC também desenvolveu projetos de jardinagem, em que se procurou agregar plantas medicinais a flores, porque “há flores que são plantas medicinais e se faz sempre a troca dessas sementes, quem tem uma não tem da outra e vai se trocando e então se trabalha as duas coisas juntas”. Mas em cidades maiores, como Chapecó, diz ela, é mais difícil promover as sementes crioulas, porque as mulheres:

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DA SILVA, Zenaide Millan. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. São Miguel do Oeste, Dezembro de 2011

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Sentem-se de mãos amarradas, porque a industria e o comércio são muito presentes dentro das famílias, elas dominam as famílias de uma forma! [...] E elas não têm iniciativa, porque tem sempre alguém tentando destruir. Aqui não. E no ano passado, teve uma comunidade que só uma família tinha mais de 60 espécies de chás e flores e sementes que essa família produz. E a gente percebeu que é uma região que se tu trabalhar um pouco, tem muito o que resgatar, porque às vezes tem aquela coisa que está só em uma família e não está sendo levado para outra família. Zenaide explica que as oficinas são espaços de troca de sementes, mas não de venda, que é realizada apenas nos espaços das feiras. E acrescenta que o intercâmbio e a doação de sementes é tanto uma forma de preservar a espécie como um meio de fortalecê-la (geneticamente), porque cada vez mais pessoas vão produzir aquela variedade e em novos locais, o que faz com que a espécie se renove e se fortaleça. Em resposta àqueles que preferem a praticidade das mudas e sementes “prontas”, Zenaide contra-argumenta dizendo que: A riqueza de você semear e de ver aquilo germinar e crescer, você só tem se plantar. Só tem essa riqueza e esse conhecimento quem faz. Se você pega a muda pronta, você não tem essa riqueza e esse conhecimento (IBID). O trabalho de base do MMC não se resume a reuniões políticas e cursos, é também realizado no cotidiano com os vizinhos, a família e as crianças, em casa e no ambiente escolar. A atuação da professora aposentada, Noêmia Escopel, é um exemplo. Noêmia me foi apontada como membro do grupo que organizou o MMC em Anchieta e por isso fui entrevistá-la. Ao procurá-la, mostrou-se surpresa, porque, em sua percepção, ela não era uma referência do processo. Todavia, em nossa conversa, fui descobrindo que, quando atuava como professora, Noêmia trabalhava com os alunos a conscientização sobre o valor das sementes e do conhecimento aí materializado. Esse ensinamento deitou raízes e frutificou, como pude comprovar ao conversar com alguns dos seus ex-alunos, um deles, o técnico do MPA que me levou até a sua casa. Nas palavras de Noêmia: Trabalhei a maior parte do tempo no Ensino Fundamental, que eu adorava. Na minha sala, eu sempre procurava conscientizar as crianças para resgatar aquilo que era do nosso passado, desde chá, ervas medicinais que as crianças têm de cultivar desde as sementes. Na linha Aparecida, onde eu trabalhei, fiz uma apresentação de sementes, foram resgatados todos os tipos de sementes. E daí, com as

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famílias, procurando resgatar, e eles também, as mães sempre levavam para lá, se trocavam as sementes (informação verbal)92. O trabalho realizado por Noêmia e outras militantes do MMC, em Anchieta e pelo Brasil, reflete o viés feminino da luta pela Soberania Alimentar e são exemplos que reforçam a defesa da ideia que as mulheres são as guardiães da Soberania Alimentar e que, antes de ser conceituação política e quadro de ação coletiva, essa conceituação refere-se a culturas e conhecimentos milenares e por isso pode ser interpretada como uma forma de “conhecimentoprático” mobilizada pelo diálogo e tradução de práticas e de saberes há inúmeras gerações. Nas palavras de Francisca Rodrigues, dirigente da Asociación Nacional de Mujeres Rurales e Indigenas (ANAMURI) e coordenadora da campanha Sementes: Nós dizemos que as sementes são mágicas, nos convocam a descobrir o que temos a compartilhar e por isso dizemos que fazemos intercâmbio de saberes. Porque, quando tu me pedes uma semente, é porque sabes algo sobre ela, e eu vou aprender este algo de você, nem que seja uma receita, um remédio, um enfeite ornamental. Porque eu vou te perguntar: para que queres esta semente? Então, quando tu me pedes, me entrega um saber, e quando eu te entrego, entrego outro saber. E por isso o que fazemos são trocas de saberes (informação verbal)93. Conforme a Coordenadora Latino Americana de Organizações do Campo (CLOC), as mulheres exercem papel chave na produção de alimentos, na segurança alimentar da família e na cultura alimentar e o reconhecimento de sua importância na conceituação da Soberania Alimentar têm contribuído para outorgá-las "um lugar muito importante e estratégico na transformação da sociedade e, em particular, na Via Campesina" (CLOC, 2013, p.46). Las mujeres campesinas e indígenas nos definimos como mujeres con historia, cultura y raíces con la tierra. Nuestro objetivo principal es restaurar el vínculo originario que todas las personas tenemos con la madre tierra, que es un vínculo de amor y respeto, eligiendo como camino la conservación y el rescate tanto de las semillas como de todos los bienes naturales, además de la producción agroecológica de alimentos para lograr la soberanía alimentaría y una vida digna (CLOC, 2013. p. 47) A presença do MST Muito embora os relatos apontem que a origem da recuperação de sementes em Anchieta foi deflagrada pelo SINTRAF/Anchieta em 1996, há indícios que o MST teve uma participação importante neste processo, ainda nos 1980. O movimento está organizado no 92 93

ESCOPEL, Noêmia. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. São Miguel do Oeste, Dezembro de 2011 RODRIGUES, Francisca. Entrevista em vídeo realizada em 2011 e publicada no youtube

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extremo oeste de Santa Catarina e em São Miguel do Oeste, desde a sua fundação no estado, em 1985, quando conquistou o “Assentamento 26 de outubro”, aí localizado. Em Anchieta, teve o apoio do SINTRAF para se estabelecer, porque alguns membros do sindicato também estavam envolvidos com o movimento social, e os primeiros assentamentos conquistados na localidade datam de 1986: um em Sanga Azul e o outro na Linha Aparecida (SEGALIN, 2004, p. 332-335). De acordo com Leonel, um técnico da Epagri que chegou à região na década de 1980, para atuar com prestação de assistência técnica a um assentamento do MST, pelo projeto Lumiar94, quem primeiro introduziu o debate sobre agroecologia e lançou o questionamento do “modelão” em São Miguel e adjacências foram os agricultores assentados do MST. Nas palavras de Leonel: A partir do nosso trabalho com o agricultor é que surgiu esse resgate. Do ponto de vista político, a questão técnica a gente sempre preservou muito [...] mas a gente queria e continua querendo, a partir de algumas ações das pessoas e organizações, criar uma consciência, um movimento para mudar o modelo (informação verbal). 95 Durante a entrevista, Leonel disse ter entrado para o projeto Lumiar, porque considerava a Academia limitada, se identificava com a proposta do MST e interpretou esta como uma oportunidade para a realização de um trabalho independente. De acordo com o técnico, todos os envolvidos no projeto foram contratados devido ao seu conhecimento especializado, mas receberam formação política e técnica do MST e identificavam-se politicamente com o movimento (Ibid). Especificamente sobre o resgate das sementes, Leonel explica que, inicialmente, os agricultores não sentiam orgulho das suas sementes crioulas e por isso não compartilhavam o seu legado. No entanto, à medida que iam tomando consciência do valor da cultura camponesa, por meio do trabalho realizado pelos técnicos, pela Igreja, pelo sindicato e pelo MPA e o MMC, foram revelando os seus tesouros. Em suas palavras: Cada um foi identificando o que tinha, foi conversando aos pouquinhos. De início, o agricultor não conta porque não valoriza, e aos poucos, conversando, você vai descobrindo, mas o agricultor não tem orgulho, então não fala de cara. O vizinho desestimula, se você 94

“O projeto Lumiar tinha como propósito promover a terceirização e descentralização dos serviços de assessoria técnica nos assentamentos rurais, de tal modo que as organizações dos agricultores assentados pudessem contratá-los junto às organizações públicas e privadas, credenciadas e reconhecidas oficialmente pelo INCRA” (DAROS e PICCIN, 2012) 95 LEONEL. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, Guaraciaba, Nov. 2011

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contar vai ter de cultivar, trabalhar mais, o outro é mais fácil, trabalha menos. [...] Devagar o pessoal começou a se expor, a minha avó tinha uma semente de feijão, de hortaliça. Acho que é um pouco isso, foi gerando confiança e aos poucos eles foram desenvolvendo a percepção da importância desse legado. O trabalho era mostrar que se o agricultor tem a semente do milho, ele não vai precisar comprar. No início foi o bolso. Aos poucos, eles foram entendendo a importância, em um primeiro momento o impulso era mais econômico (informação verbal)96. Sobre a atuação dos técnicos no resgate das sementes, Leonel afirma que: O trabalho técnico, de seleção etc é um ensinamento que o pessoal já tinha, cada um que a gente conversava e tinha aquela variedade sabia mais do que eu. Quem tinha aquela semente em casa, já sabia como fazer a seleção. Na verdade, não foi o pesquisador quem criou isso, foi a humanidade. Não foi o pesquisador e nem o cientista moderno (Ibid). O técnico revela que a sua experiência junto ao MST mudou a sua ideia sobre o sentido e objetivos da “extensão rural”. Ao comparar o trabalho conduzido pela Epagri — onde trabalhava na época da entrevista — com aquele realizado junto ao MST nos 1980, considera a proposta do movimento social superior, porque era mobilizada pelo diálogo e pela troca de experiências e de saberes e comprometida com um ideal de emancipação social. Naquela época, Leonel teve oportunidade de atuar em diversos assentamentos, dentre os quais, o “Conquista da Fronteira” em Dionísio Cerqueira97. Referindo-se a este e a outros assentamentos, Leonel afirma que “os assentados eram o próprio movimento”, representavam a liderança do MST naquele espaço e conduziam o trabalho dos técnicos, e não o inverso, pois os técnicos entendiam que o seu compromisso era com a melhoria da vida dos assentados e por isso lhes davam vez e voz. Questionado se havia uma relação de troca, ele responde: “relação de troca, não sei até que ponto, eu acho que eles trouxeram mais do que eu, no início”. Esse breve resgate da atuação do MMC e do MST na região revela que, embora não sejam mencionados como parceiros do SINTRAF na deflagração do processo de recuperação de sementes em Anchieta, o MST foi uma influência importante e o MMC teve participação ativa no seu desenvolvimento. As narrativas também evidenciam o papel indispensável da Igreja na construção do projeto e a ocorrência de um diálogo construtivo entre o conhecimento profissional e popular, desde a sua gênese. 96

LEONEL. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Rio de Janeiro, Guaraciaba, Nov. 2011 O assentamento Conquista da Fronteira é onde o dirigente histórico do MST, Egidio Brunetto, estava assentado, e um dos poucos que ainda mantém a posse coletiva da terra. 97

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5.4. Produção de Sementes, Produção de Conhecimento: a Festa Nacional da Semente Crioula (FENAMIC)

A Festa Nacional da Semente Crioula (FENAMIC) é um dos principais eventos da campanha “Sementes, Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade” realizado no Brasil pela Via Campesina. A festa é organizada de quatro em quatro anos98, quando o pequeno município de Anchieta se vê abarrotado de militantes, jornalistas, pesquisadores e agricultores de diferentes estados do Brasil, além de outros países da América Latina e da Europa. No entanto, este evento transnacional surgiu como uma festa local: a Festa Nacional do Milho Crioulo (daí deriva a sigla FENAMIC), ainda antes do MPA atuar na região, e a sua transformação em evento político e estratégico internacional não se deu sem traumas. Iniciamos esta seção com um relato descritivo sobre as diversas edições desta Festa, porque, no processo da pesquisa, entendi que a recuperação dessa trajetória contribuiria para evidenciar as tensões mutuamente constitutivas entre as dimensões local e global no processo de construção da Soberania Alimentar na região. Em 1997, como parte do projeto de recuperação de sementes crioulas, o SINTRAF e a Epagri criaram o bem-sucedido Programa Municipal de Produção Própria de Sementes em Anchieta, o qual rende ao município o título de Capital Estadual do Milho Crioulo em 1999. A Festa Nacional de Sementes Crioulas (FENAMIC) surge neste contexto, com o objetivo de dar mais visibilidade ao projeto e promover o intercâmbio de sementes e de conhecimentos entre os agricultores da região. Em sua primeira edição, o evento era organizado por atores locais e tinha pretensões de ser uma festa de abrangência regional e estadual. A 1a Festa Estadual do Milho Crioulo (FEMIC), como então era denominada, data de 20 de maio de 2000 e foi organizada pelo SINTRAF/Anchieta em parceria com: o MMC, a Paróquia Santa Lúcia e pessoas e entidades ligadas aos pequenos agricultores locais. Embora de âmbito estadual, esta primeira edição já teve repercussão nacional e dela participaram em torno de cinco mil pessoas: moradores da região e gente vinda de cinco estados brasileiros. O evento foi dividido em uma etapa formativa, quando se organizou um seminário sobre sementes camponesas e desenvolvimento sustentável, seguido de uma feira de produtos camponeses e exposição de sementes e animais crioulos pertencentes a cinco famílias de Anchieta que, à época, trabalhavam com dezessete

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A proposta da Via Campesina-Brasil e do MPA é que o evento aconteça de quatro em quatro anos, mas manter esta periodicidade nem sempre é possível.

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variedades de sementes e sete espécies de animais crioulos (VOGT, G.; CANCI, I.J.; CANCI, A, 2007; MPA, 2007; SEGALLIN, 2004). A 2ª Festa Nacional do Milho Crioulo (FENAMIC) foi realizada entre 6 e 7 abril de 2002 em Anchieta, já como evento nacional, por proposta do MPA que, juntamente com o SINTRAF/Anchieta e a Paróquia Santa Lúcia, responsabilizou-se pela sua organização. Nesta segunda edição, estiveram presentes cerca de 15 mil pessoas vindas de 20 estados brasileiros, foram montadas 63 bancas e expostas 943 variedades de diversas espécies, sendo 228 delas apenas de milho (MPA, 2012; VOGT, G.; CANCI, I.J.; CANCI, A, 2007). Os produtos expostos vieram de diferentes cantos do país e o número de famílias camponesas anchietenses envolvidas no processo ampliou de cinco para vinte e cinco, o que, na interpretação do MPA, deveu-se ao avanço do “nível de consciência das famílias camponesas” (MPA, 2007). Na terceira edição, os atores locais deixaram de estar à frente da organização do evento, que é assumido pela Via Campesina como parte da campanha “Sementes, Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade”. Desde então, a festa passou a ser organizada em uma data próxima a 17 de abril: o dia internacional da luta camponesa 99. Desta feita, a festa que nasce municipal torna-se um evento internacional, e, embora a sigla permaneça inalterada, o nome é mudado de Festa Nacional do Milho Crioulo para Festa Nacional das Sementes Crioulas, para abarcar a pluralidade de experiências camponesas provenientes de diferentes países e lugares. De acordo com os registros, a organização da 3ª Festa Nacional das Sementes Crioulas (FENAMIC) foi compartilhada entre a Via Campesina, o MPA nacional, o Centro de Apoio dos Pequenos Agricultores (CAPA) e a ASPTA, não há menção ao SINTRAF/Anchieta e nem a prefeitura e a paróquia de Santa Luzia. Todavia, se sabe que esses atores apoiaram o evento, que aconteceu entre os dias 21 e 25 de abril de 2004 dividido em duas etapas. Entre 21 e 23 de abril ocorreu o 1o Encontro Nacional de Formação Camponesa, do qual participaram duas mil pessoas de vários estados do Brasil e países da América Latina. E a festa, propriamente dita, aconteceu nos dias 24 e 25, com a presença de trinta mil pessoas e a exposição de produtos, trocas e partilhas entre camponeses de todos os lugares presentes (MPA, 2007; MPA, 2012). De acordo com o publicado, a 4ª Festa Nacional das Sementes Crioulas (FENAMIC) teve lugar em Anchieta, entre os dias 18 a 22 de abril de 2007, tendo sido organizada pelo MPA/Via Campesina, em parceria com o CAPA, a Paróquia Santa Lucia, e o SINTRAF/Anchieta. Entre os dias 18 e 19 de abril, realizou-se o 2º Seminário Nacional de 99

O dia 17 de abril foi eleito dia internacional da luta camponesa em homenagem aos 19 sem-terra, militantes do MST, assassinados em Eldorado dos Carajás, neste mesmo dia em 1996.

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Formação Camponesa, quando duas mil pessoas de todos os estados do Brasil e mais treze outros países reuniram-se para participarem dos seguintes seminários: uma “Análise histórica do mercado agrário e agrícola adotado no Brasil”, desenvolvida por Adalberto Martins, “Consciência cívica e moral da história de Contestado”, proferida por Vicente Telles, Deonir Valentin e Pinduca e “Transgênicos e biodiversidade” com o Prof. Rubens Onofre Nodari da UFSC (MPA 2007a, 2007b, 2007c). A 5ª Festa Nacional das Sementes Crioulas realizou-se entre os dias 18 e 22 de abril de 2012, também dividida entre uma etapa formativa e outra comemorativa. O “3º Seminário Nacional de Formação Camponesa” aconteceu entre 18 e 20 de abril e dele participaram delegações vindas de diferentes lugares do Brasil, além da Argentina, Colômbia, Cuba, Guatemala, Peru, Honduras, Uruguai, Equador, Venezuela, Moçambique, País Basco e França. Além do MPA, os outros três principais movimentos sociais articulados à Via campesina no Brasil: o MST, o MAB e o MMC tiveram presença expressiva, principalmente com militantes vindos da região. A promoção do evento ficou a cargo da Via campesina/MPA, do SINTRAF/Anchieta e da Paróquia Santa Lucia, e a realização é assinada pela Associação dos Pequenos Agricultores Catarinenses (AEPAC) (MPA, 2012). É interessante notar que o Movimento das Mulheres Camponesas (MMC) só é mencionado como organizador do evento na primeira edição da Festa e desaparece em todas as outras quatro edições. No entanto, relatos de diferentes militantes do movimento, recolhidos ao longo do trabalho de campo, apontam que as mulheres do MMC participaram ativamente para a viabilização de todas as suas edições com: o trabalho de conscientização da base, a exposição de seus produtos na feira, o preparo de alimentos vendidos na Praça de alimentação e a ornamentação da cidade, que é toda enfeitada com artesanatos a base de espigas e palha de milho para o evento. Esse dado confirma a invisibilidade do trabalho das mulheres camponesas, membros do MMC, inclusive para os outros movimentos sociais. 5a FENAMIC: um espaço de diálogo e de tensões entre o global e o local, o profissional e o popular Diferentemente dos eventos anteriores, eu participei da 5a FENAMIC desde a etapa de lançamento da festa em 2011, quando realizei a primeira etapa do meu trabalho de campo em Santa Catarina. Essa experiência permitiu-me ir além da mera descrição e registro do evento, porque desvelou aspectos que só um trabalho de viés etnográfico pode revelar. Além das notas de campo, produzi documentos fotográficos e imagens em movimento, norteada por princípios metodológicos da Antropologia Visual (PEIXOTO, 1995) e, passados dois anos da 210

pesquisa, este material mostrou-se imprescindível para que eu pudesse recuperar dimensões subjetivas da experiência, que as anotações não registraram em toda a sua sutileza. A proposta de realização de uma pesquisa militante, onde a “participação-observante” (CASAS-CORTÉS, 2009) complementa a “observação-participante”, também foi decisiva para o entendimento da dimensão da FENAMIC para o MPA, porque o meu envolvimento com o processo, ao invés de cegar-me para as suas contradições, permitiu-me compartilhar as emoções do processo e do trabalho realizado. Embora a minha identidade como pesquisadora estivesse o tempo todo clara, a minha postura solícita, somada à necessidade do movimento, fez com que eu me envolvesse na produção da festa de lançamento do evento — que ocorreu em dezembro de 2011 durante a primeira etapa do meu trabalho de campo em São Miguel — , contribuindo com os meus conhecimentos de comunicação visual e da língua inglesa, atuando na produção gráfica e na tradução do convite de divulgação da festa. Em 2012, durante a 5ª FENAMIC, eu dei continuidade à minha pesquisa de campo e me ofereci para contribuir, quando possível e necessário, e um dos momentos mais marcantes foi quando participei da formulação da primeira denúncia pública contra a liberação do feijão transgênico resistente ao veneno 2,4D — um dos principais componentes do agente laranja — pela CTNBio, que foi veiculada pela rádio uruguaia Mundo Real, ainda durante o evento (RADIO MUNDO REAL, 2012). Assim como as edições anteriores, a 5ª edição da FENAMIC foi dividida em duas etapas distintas: o 3o Seminário Camponês, realizado nos três primeiros dias de evento, e a feira de produtos e sementes nos dias 21 e 22 de abril de 2012. De acordo com o MPA, cinquenta e seis diferentes organizações oriundas do Brasil, América Latina, Europa e África participaram do seminário, que foi um evento restrito a convidados. O público era majoritariamente composto por militantes do MPA, do MMC e do MST, vindos de diferentes partes do Brasil, e por organizações latino-americanas articuladas à Via Campesina. Também estavam presentes representantes de entidades e movimentos sociais da Europa e da África, com os quais o MPA está construindo relações mais próximas, como a EHNE do País basco e a UNAC de Moçambique, jornalistas de mídias alternativas, estudantes e indígenas, mas poucos eram os camponeses de Anchieta ou da região. Em seminários dessa natureza, a ciência e a política não estão dissociadas e as análises de conjuntura têm tanto peso quanto a exposição de teorias, conceitos e princípios técnicos produtivos. Os quais são tratados, conjuntamente, como recursos e instrumentos a serem mobilizados na resistência ao capitalismo no campo e em prol da construção de outro modelo de sociedade conduzido pelo poder popular. 211

As mesas coordenadas por lideranças do MPA Nacional trataram da conjuntura política nacional e internacional e apresentaram o Plano camponês, detalhando as principais metas e desafios para a sua realização no país. E o que mais me chamou atenção nas palestras conduzidas pelos dirigentes do MPA foi a contraposição das dimensões internacional e macro do desafio, com as dimensões local e micro do seu enfrentamento (informação verbal) 100. De acordo com as exposições dos dirigentes do MPA, o Plano Camponês deve ser implementado pelas famílias camponesas em seus distintos territórios e lugares, a partir da valorização dos produtos locais e das suas experiências particulares. Tendo em vista, primeiramente, atender as suas necessidades e as da sua comunidade e, em segundo lugar, a conquista dos mercados locais e regionais (informação verbal) 101. A contribuição do conhecimento formal científico ficou por conta dos pesquisadores Sebastião Pinheiro, que tratou sobre a importância da saúde do solo e de Paulo Kageyama (USP), que realizou uma palestra sobre o valor e a viabilidade da agricultura orgânica. Ambos os pesquisadores valorizaram o papel do campesinato na preservação da biodiversidade e se abriram ao diálogo com o público, que reagiu participando ativamente dos debates, por meio dos cochichos (pequenos grupos que se unem para problematizar as questões propostas), cujo resultado era levado a público, pelos porta-vozes, no momento determinado pela mesa. E o viés tendencialmente disciplinado e participativo dos presentes remeteu-me ao legado das CEBs e do método Paulo Freire na formação dos movimentos sociais rurais. Durante todo o seminário, a identidade latino-americana foi sobrevalorizada em relação à identidade nacional. E falas, como a de Fred Congo do Equador, levaram-me a inferir que os “Institutos Latino-americanos de Agroecologia” (IALAS) e as “Escolas Latinoamericanas de Agroecologia” (ELAA), além de importantes centros de formação, exercem função relevante no processo de construção dessa identidade latino-americana, por serem espaços cosmopolitas, onde o elemento identitário comum não é a nacionalidade, mas o campesinato. Campesinato esse, definido pela relação de classe e/ou pelo entendimento da prática produtiva como uma forma de resistência social ao capitalismo. “Cuba, Brasil, América Central, a luta socialista é internacional” foi o principal grito de guerra do evento que homenageou Cuba. Uma escolha que, em nossa percepção, deveu-se não apenas ao fato do país ser símbolo da resistência ao imperialismo norte-americano, mas

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Relatos verbais de Marcelo Leal, Maria da Costa e Raul Krauser durante o 3 o Seminário Camponês realizado em Anchieta, em abril de 2012 101 Relatos verbais de Valter da Silva e Alves, durante o 3o Seminário Camponês realizado em Anchieta, em abril de 2012.

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também devido à capacidade dos seus camponeses enfrentarem a crise alimentar que atingiu a ilha no fim dos 1980, através do desenvolvimento da Agroecologia. Durante uma conversa informal com Rose Krauser sobre esse tema, a dirigente do MPA (ES) me relatou que o MPA realizou diversos intercâmbios a Cuba, na intenção de conhecer a experiência da ANAP de perto. A conclusão do movimento foi que a metodologia "campesino a campesino", criada originalmente na América Central, é uma forma de sistematização da prática, tradicional e milenar, de compartilhamento de conhecimentos práticos, teóricos e simbólicos, realizada por camponeses de todo o mundo há gerações. E que semelhante estratégia já era adotada, pelo MPA e outros movimentos sociais brasileiros, mesmo que não explicitada dessa forma. O reconhecimento amplo do valor dessa metodologia participativa estimulou o MPA a investir no desenvolvimento daquela com a qual já vinha trabalhando com a sua base e a adotá-la em seus projetos de intercâmbio internacional, como fez em Moçambique, conforme será visto mais adiante nesse mesmo capítulo. Após os três dias de seminário, teve lugar a FENAMIC propriamente dita. Enquanto a parte formativa aconteceu em um Centro de Tradição Gaúcha (CTG), longe do centro, a feira foi montada bem próxima à entrada do município de Anchieta, porque a etapa festiva do evento pretende atrair o máximo de pessoas possível. A feira cumpre o papel duplo de espaço de diálogo e de troca de saberes entre pequenos agricultores e de lugar de comercialização do artesanato, produtos e sementes por eles produzidos. Os estandes foram organizados em fileiras e terminaam, de um lado, em um pequeno palco onde aconteceram shows de artistas locais por todo o dia e, no lado oposto, em outro palco destinado a discursos de atores locais e convidados. Em meus passeios pelos estandes, eu pude presenciar trocas de receitas entre nortistas e sulistas e diálogos em “portunhol” e à base de mímica, mas constatei que a maioria das barracas de produtos pertencia a entidades convidadas e a movimentos sociais articulados à Via Campesina e percebi que os expositores, que não eram militantes, tinham uma postura mais tímida do que os ligados aos movimentos e alguns estavam mais constrangidos do que seduzidos pela situação. Esse quadro me fez refletir sobre a relação entre o local e o global e sobre o viés dialógico e conflituoso dessa relação, que é movida pela tensão entre o novo e o antigo, o tradicional e a vanguarda e entre um local e outro local, contribuindo para que eu amadurecesse a ideia que o global e o local constituem-se mutuamente, por meio de uma relação dialética, embora não sincrônica. Diferentemente de um protesto transnacional contra a OMC ou do Fórum Social Mundial, que são eventos sociais globais desde a sua gênese, no caso da FENAMIC, uma

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entidade internacional apropriou-se de uma comemoração local, transformando-a em um evento cosmopolita e multicultural e isso não se deu sem crises e reações. Durante a primeira etapa do meu trabalho de campo na região, tive conhecimento da realização de outra festa, de mesmo nome, meses antes da minha chegada. Conversando com pessoas da cidade, eu entendi que a empolgação inicial com a ampliação da escala da festa deu lugar à sensação que os locais haviam sido expulsos do processo, quando este passou a ser coordenado por uma entidade internacional, a Via Campesina. Essa tensão levou à organização de uma 5a FENAMIC alternativa em 2011, a qual, diferentemente da oficial, teve abrangência local e regional. Eu também tive acesso a um slide-show produzido em 2011 pelos promotores dessa festa e esse material revelou-me o empenho dos seus organizadores em ancorá-la no território, valorizando a ação dos agricultores e do povo local, do MMC e da Paróquia de Santa Lúcia no resgate das sementes e na construção da festa em Anchieta. Em nossa percepção, essa reação reflete a tensão entre territorialidade e multiterritorialidade abordada na parte teórica dessa mesma tese. Ou seja, a tensão entre a territorialidade típica da modernidade, quando se pretendia controlar “espaços zona”, e a “territorialidade rede”, característica da multiterritorialidade, onde os espaços continuam sendo referentes culturais e materiais importantes , mas são atravessados por “territórios rede moldados no e pelo movimento” , tornando-se difíceis de serem controlados (HAESBAERTH, 2005). Quando o MPA assumiu a coordenação da FENAMIC, em nome da Via Campesina Brasil, o evento deixou de ter natureza local e mesmo nacional e tornou-se um dos principais eventos latinoamericanos da campanha transnacional “Sementes, Patrimônio dos Povos a Serviço da Humanidade” movida pela CLOC -Via Campesina. A reação da sociedade anchietense foi buscar a “relocalização” da FENAMIC, através da realização de uma V FENAMIC de âmbito local e regional, para a qual o MPA não foi convidado a participar, com o principal objetivo de promoção dos atores locais e dos agricultores da região. Refletindo sobre essa crise, entendi que a transformação da “Festa Nacional das Sementes Crioulas” em evento internacional possibilitou o encontro e o diálogo intercultural, mas também o desacordo entre diferentes, porque a criação de um espaço cosmopolita não elimina as particularidades dos entes em relação e, no processo, a identidade local pode ser reforçada, em reação ao eventual domínio do território por aquele que vem de fora e é percebido como um invasor. No entanto, o exemplo também contribui para reforçar a ideia

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que a tensão entre o global e o local pode ser criativa e geradora de novas formas de conhecimento e percepções sobre o mundo, como a Soberania Alimentar, objeto desta tese. Durante o trabalho de campo, eu pude observar que o conceito de Soberania Alimentar está incorporado ao discurso dos Anchietenses sobre o seu trabalho com as sementes e legitima as suas práticas, inclusive, para eles mesmos. Isso é resultado tanto da influência do MMC e do MPA, que são organizações filiadas à Via Campesina internacional, como do intercâmbio direto com outros povos durante as FENAMICs. Pois, como constatei em 2012, a curiosidade e o interesse dos Anchietenses pela troca com outras culturas venceram a cisma e o povo esforçou-se por receber bem os visitantes, que ficaram acampados no ginásio da cidade e hospedados em casas alugadas e na residência de moradores, alguns ilustres. Transformada em evento transnacional, a FENAMIC tornou-se um espaço que abriga múltiplos “pontos de contato” (NICHOLLS, 2009) que propiciam e impelem processos de interação social; os quais, movidos pelo diálogo e pela tradução, vão dissolvendo as barreiras cognitivas e construindo novos laços de confiança. A análise dessa e de outras festas de sementes, promovidas por organizações filiadas à Via Campesina, revela aspectos comuns na forma e no propósito desses eventos, levando-nos a inferir que a relação de troca estabelecida foi criando um padrão que é compartilhado por camponeses de diferentes partes do mundo. Por meio desses processos, não só o global influencia o local, como um local influencia outro local e uma cultura cosmopolita vai se construindo: do local para o global e do micro para o macro e vice versa. Por meio de feiras e festas camponesas, camponeses de todo o mundo compartilham saberes e garantem a preservação do legado cultural materializado nas sementes crioulas há inúmeras gerações. Transformado em prática política, esse evento tradicional ganhou nova feição e escala, como espaço cosmopolita de diálogo e de troca de conhecimentos entre camponeses do Norte e do Sul global, passando a cumprir um papel fundamental na luta pela construção da Soberania Alimentar em nível mundial. Nesses episódios, os camponeses compartilham saberes e sabores e intercambiam litrões102 de sementes, como forma de garantir a preservação e fortalecimento desses espécimes; no entanto, o alcance dessa estratégia tem limites inerentes à sua escala e, cientes dessa limitação, os movimentos camponeses foram além e criaram cooperativas voltadas à produção de sementes crioulas e varietais em escala.

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Litrão é a forma como os camponeses denominam as garrafas PET usadas para o armazenamento e transporte das sementes levadas para os eventos.

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5.5. As cooperativas camponesas Em contraste com as feiras de trocas de sementes, nas quais são intercambiadas garrafas PET de 1,5l de sementes, as cooperativas camponesas de processamento de sementes em larga escala têm capacidade para processarem toneladas de sementes, ampliando, assim, a capacidade de enfrentamento da agricultura transgênica pelos camponeses. Diferentemente das suas concorrentes, as sementeiras controladas pelos movimentos sociais promovem a conservação da agrobiodiversidade e contribuem com a preservação do conhecimento tradicional camponês livre de royalts. Primeiro, porque beneficiam sementes crioulas e varietais que podem ser reproduzidas pelos agricultores em suas propriedades. Em segundo lugar, porque investem na preservação de espécimes sem valor comercial, sem, contudo, apropriarem-se deste conhecimento para si. Com base nos dados, nas entrevistas e nas observações coletadas ao longo dessa pesquisa, abraço a ideia que as cooperativas camponesas de produção de sementes são parte de uma estratégia ampla conduzida pelos movimentos sociais, em que a produção é encarada como uma estratégia de resistência social, nos termos de Van Der Ploeg (2014). Apesar de gerarem lucro, diferem de uma empresa capitalista nos objetivos e na forma de controle e gestão, porque são instrumentos políticos, controlados por um movimento político e a serviço de um projeto político: a Soberania Alimentar103. Comprovando, na prática, que é possível conjugar bons resultados econômico-financeiros a emancipação social. O modelo de cooperativa proposto pelos movimentos membros da Via Campesina no Brasil reflete a influência do pensamento Leninista nessas organizações e pode ser entendido a partir da citação a seguir: Devemos ter consciência e pôr em prática a verdade de que o regime social que no presente devemos apoiar acima do habitual é o regime cooperativo. Mas é preciso apoiá-lo no verdadeiro sentido da palavra, isto é, por tal apoio não basta entender o apoio a qualquer comércio cooperativo; por este apoio deve entender-se o apoio prestado ao comércio cooperativo, no qual verdadeiramente participem massas da população. Dar um prêmio ao camponês que participa do comércio cooperativo é uma forma absolutamente justa, mas ao mesmo tempo verificar essa participação, verificar a sua consciência e sua qualidade – eis o fulcro da questão (LENIN apud. NOVAES, 2011, p.272) De acordo com a dirigente histórica do MST, Irma Brunetto104 (informação verbal)105, a criação 103

A relação entre o instrumento político e o movimento político foi tratada no capítulo três desta mesma tese. Irma Brunetto é irmã de Egidio Brunetto, reconhecido, nacional e internacionalmente, como uma das principais lideranças do MST e da Via Campesina. 104

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de cooperativas – locais e regionais – é a melhor forma do movimento social “avançar na produção” e trabalhar os valores de coletivismo e solidariedade característicos da cultura camponesa. Em sua avaliação, a cooperativa é um meio termo entre o coletivo e o individual, porque “não é uma camisa de força e é uma forma de você estar vinculado a uma produção coletiva”, com a vantagem de “ser uma forma de cooperação mais massificada, [que atinge] mais assentamentos”, do que o modelo de coletivização adotado no Conquista da Fronteira, onde reside desde quando o assentamento foi conquistado pelo MST, ainda nos 1980. O “Conquista da Fronteira” é o único assentamento, no estado de Santa Catarina, onde a terra e os meios de produção são de posse coletiva e a própria residência do agricultor não lhe pertence, sendo de usufruto de quem nela reside. O que, de acordo com Irma: Corresponde a um ideal, mas a distância entre o ideal e a realidade é grande [...] O preço do coletivo é alto e há desistência todo ano, porque as pessoas se cansam, tem de estar muito desarmado das individualidades e isso é difícil, porque aqui é tudo coletivo, [...] nada é de posse individual, nem a casa e isso é muito difícil. E as pessoas têm necessidade de ter algo que é delas, porque essa é a cultura (informação verbal)106. A primeira cooperativa de processamento de sementes camponesas do Brasil foi criada em 1997, no município de Hulha Negra (RS), por iniciativa de um grupo de doze agricultores assentados do MST. Surgida pequena e em nível local, a Rede de Sementes Agroecológicas Bionatur expandiu-se e, hoje, integra em torno de 160 famílias de agricultores vinculados ao MST e à Via Campesina, com uma produção da ordem de 20 toneladas de sementes, sendo 88 variedades de diferentes espécies (DA SILVA, P. et al., p.34, 2014). A Bionatur é “uma organização de agricultores assentados autogerida através da Rede e da Cooperativa”, que “maneja as sementes exclusivamente em sistemas de produção agroecológicos” e “não trabalha com híbridos e transgênicos” (IBID). Para fazer parte da cooperativa, o agricultor precisa estar vinculado a um grupo de produtores, “as discussões feitas nos grupos são encaminhadas para a coordenação, que é composta pelos representantes de todos os grupos, em conjunto com a administração da cooperativa”, de forma que todos se envolvem no debate e participam das decisões. O que, se por um lado, é extremamente democrático, por outro “exige paciência”, porque as “decisões requerem um tempo de processamento, uma vez que as informações devem ser socializadas constantemente, retroalimentando o processo” (Ibid, p. 35). 105 106

BRUNETTO, Irma. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Dionísio Cerqueira, em Nov 2011. BRUNETTO, Irma. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Dionísio Cerqueira, em Nov 2011.

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De 1996 a 2013, o cenário agrícola mudou radicalmente no Brasil e no mundo, o mercado de sementes está cada vez mais concentrado e o plantio de transgênicos não só foi liberado no país como passou a ser promovido inclusive pelo governo. Esses e outros desafios impactaram a Bionatur, que se mantém como referência na produção de sementes orgânicas, mas enfrenta uma crise que a obrigou a rever as suas estratégias. A restrição no acesso às sementes junto aos mantenedores, o risco de extinção das cultivares de domínio público que, por falta de interesse das empresas, ficam sem mantenedor, o volume de documentação exigido e o custo inerente ao processo figuram na lista de obstáculos enfrentados no cotidiano da atividade de produção de sementes (DA SILVA, P. et al, p.36, 2014). Ainda de acordo com os mesmos autores (Ibid), sabe-se que o diálogo com outros movimentos camponeses e o debate sobre a Soberania Alimentar estimularam a cooperativa a enfrentar esses desafios, por meio do investimento no inventário, no resgate e na multiplicação das sementes crioulas, que são as principais estratégias adotadas pela Oestebio: a outra cooperativa de produção de sementes controlada por um movimento social no Brasil. Localizada em São Miguel do Oeste, a “Cooperativa Mista de Produção, Industrialização, Comercialização de Biocombustiveis e Produtos Agropecuários do Sul do Brasil – Oestebio” foi criada em 2007, pelo MPA, com o objetivo principal de promover a ampliação da escala de produção, processamento e distribuição de sementes crioulas para camponeses de todo o país. De acordo com o presidente da cooperativa, Charles Reginatto (informação verbal)107, a Oestebio possui capacidade para beneficiar cinco mil toneladas de sementes de milho, feijão e de pastagem e emprega em torno de 60 funcionários distribuídos entre equipe técnica, administrativa e armazém. A maior parte da sua produção é comercializada com o governo federal, que as distribui gratuitamente a pequenos agricultores, assentados da reforma agrária, quilombolas e indígenas de diferentes regiões do Brasil, através de políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o programa Brasil Sem Miséria. No ano de 2011, a Oestebio passou também a atuar internacionalmente e o seu primeiro projeto foi uma parceria firmada com o governo da Venezuela, no período Chávez, para a exportação de sementes de feijão e prestação de assistência técnica e política no referido país, com o objetivo de torná-lo autossuficiente na produção da leguminosa, base da alimentação dos venezuelanos. 107

REGINATTO, Charles. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste. nov. 2011.

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Uma breve retrospectiva da sua trajetória revela que a cooperativa consolidou-se e é lucrativa. Em 2011, a Oestebio comercializou R$ 1.742.370,00 em sementes com a CONAB, através do programa de “Compra da Agricultura Familiar com Doação Simultânea” – CPRDoação (CONAB, 2011) e, neste mesmo ano, exportou 208 toneladas de sementes de feijão preto para a Venezuela (REGINATTO, 2011). Em 2012, os produtos da Oestebio eram destinados aos estados do Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Goiás, Espírito Santo e Acre (REGINATTO, 2012). Em 2013, já eram dezessete os estados brasileiros contemplados. E, em 2014, a cooperativa foi agraciada com o prêmio ODM Brasil108, pela "prática de Inclusão Produtiva, Combate à Fome e à Miséria" (PNUD, 2014). Indo além dos dados, não se pode entender o processo de construção da Oestebio, sem se levar em conta o legado do MST e a troca de experiências e de conhecimentos entre este movimento social e o MPA, na região. Somente no extremo oeste de Santa Catarina, o MST controla diversas cooperativas regionais, cada qual especializada em um determinado tipo de produção. A COOPEAL que organiza a produção de peixe em Abelardo Luz; a COOPERMOC que lida com a produção de frutas, hortaliças e conservas de pepino e cenoura na região de Água Doce; a COOPERTEL voltada à produção de derivados da abóbora moranga e a “Cooperativa Regional de Comercialização do Extremo Oeste, Indústria de leite Longa Vida e derivados (COOPEROESTE) – Terra Viva” estabelecida em São Miguel do Oeste e especializada no beneficiamento do leite. Conforme publicado no website da Cooperoeste-Terra Viva: A Cooperoeste, conhecida como a mais bem sucedida empresa criada e administrada por membros do MST e MPA, é a segunda maior empresa do município de São Miguel do Oeste e a maior no ramo de leite da região, no ano de 2007 foram gerados 7, 9 milhões em impostos, o que lhe vem conferindo o Troféu O Guarani desde 2001, instituído pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico da Prefeitura Municipal (TERRA VIVA, 2014). O meu trabalho de campo revelou que a relação entre os dirigentes e militantes dos principais movimentos sociais articulados à Via Campesina, na região, vai além da 108

O Prêmio ODM Brasil é uma iniciativa pioneira no mundo e foi criado com a finalidade de incentivar ações, programas e projetos que contribuem efetivamente para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) e também possibilita a criação de um banco de práticas bem-sucedidas que sirvam como referência de políticas públicas que podem ser implantadas em várias localidades. O Prêmio é coordenado pela Secretaria-Geral da Presidência da República (SG), em parceria com o PNUD e com o Movimento Nacional pela Cidadania e Solidariedade (MNCS) e a coordenação técnica é de responsabilidade do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Escola Nacional de Administração Pública (Enap) (PNUD, 2014).

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cooperação estratégica e inclui laços de amizade, vizinhança e parentesco. Duas das principais lideranças do MPA e do MAB são irmãos de sangue, muitas famílias de agricultores têm o marido filiado ao MPA e a esposa ao MMC e uma das gerentes de produção da CooperoesteTerra Viva é esposa do presidente da Oestebio-MPA Refletindo sobre essas questões à luz da teoria, entendi que os “laços fortes” (GRANOVETTER, 1977) foram decisivos para estabelecer a relação de confiança que favoreceu o MST compartilhar as lições aprendidas no processo de construção da Cooperoeste com o MPA. E, embora não haja relatos que explicitem uma relação de influência direta, não se pode negar o fato da Oestebio ter sido construída a dois quilômetros da Cooperoeste, de haver gestores de ambos os movimentos sociais a frente do empreendimento do MST e de haver relação de parentesco entre pessoas-chave nas duas cooperativas. Além desses aspectos, eu identifiquei traços comuns no modelo de gestão e nos objetivos de ambos os empreendimentos, e o mais relevante para esta tese é o uso da estrutura da cooperativa para promover a conscientização política da base, a partir do questionamento do modelo de produção e da oferta de uma alternativa. Todo o quadro de dirigentes da Cooperoeste está ligado organicamente ao MST, o que explica que, além do acompanhamento técnico, a cooperativa fomente o debate político e econômico com o seu quadro social, que “tem vez e voz” garantidas por uma estrutura de participação distribuída entre: os núcleos de base organizados nos assentamentos, préassembleias e assembleias onde os associados podem expressar as suas opiniões e dirimir as suas dúvidas. A cooperativa também realiza o debate produtivo e político com as famílias não cooperadas, mas não tão frequentemente quanto nos assentamentos; no entanto, todos recebem o jornal e acessam o programa radiofônico reproduzido por quatro rádios regionais aos sábados pela manhã (informação verbal) 109. Assim como o quadro de dirigentes da Cooperoeste está ligado ao MST, o da Oestebio também vem da base e está organicamente ligado ao MPA. À época dessa pesquisa, o diretor da cooperativa era Julio Draszewski, pequeno agricultor de origem e natural de Anchieta, onde ainda morava com a esposa. Apesar do cargo, Julio só havia cursado até a quarta série; por outro lado, estava envolvido com o processo de resgate de sementes em Anchieta desde antes de o MPA ter chegado à região, quando então atuava no SINTRAF e como Ministro da Eucaristia na comunidade (informação verbal) 110. A base do MPA é diferente do MST, razão pela qual o quadro social da Oestebio não é 109 110

PERSH, Celestino. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, Nov 2011 DRASZEWSKI, Julio. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, Nov 2011

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exclusivamente formado por militantes do movimento social. Esse fator torna o trabalho político com os agricultores mais complexo do que no caso do MST, porque a base do MPA é dispersa e os camponeses são desconfiados por natureza e por experiência. De forma que, antes da Oestebio iniciar o trabalho com um grupo de agricultores desconhecido, necessita da intermediação de membros pertencentes às suas redes de relações próximas: sejam atores influentes na comunidade, como a Igreja e o sindicato, ou vizinhos e parentes. O que nos remete ao trabalho de Nicholls (2009), que se apropria de Granovetter (1973) para mostrar os distintos papeis exercidos pelas redes locais e globais na consolidação de um movimento social. As redes locais respondem pelo grau de confiança e capital social que garantem a coesão das redes locais, enquanto as redes globais contribuem para o estabelecimento de relações à distância e para ampliar o alcance da mensagem e ideologia do movimento social. Ao estabelecer uma comparação entre a Oestebio e a Bionatur, eu reconheço identidades e dessemelhanças. Ambos os empreendimentos têm o objetivo político-estratégico de ampliar a escala de produção de sementes camponesas, mas enquanto o empreendimento do MST funciona em autogestão, a cooperativa do MPA tem uma estrutura de decisões mais hierarquizada e, nesse ponto, assemelhada à da Cooperoeste. Todas as sementes processadas pela Bionatur são produzidas agroecologicamente, já a produção beneficiada pela Oestebio tem viés agroecológico, mas essa não é uma condição determinante. Por fim, o investimento que a Bionatur planeja fazer no resgate e na preservação do conhecimento tradicional camponês e no desenvolvimento da Agroecologia são os pilares do projeto do MPA.

5.6. Trabalho de base, produção de sementes e geração de novos conhecimentos De acordo com os envolvidos na gênese da Oestebio, a projeção nacional e internacional do trabalho de resgate de sementes em Anchieta foi o que impulsionou a criação da cooperativa, porque revelou ao MPA a necessidade de ampliar a escala dessa estratégia, do “litrão” para o container. Nessa época, o MPA coordenava um projeto com sementes crioulas voltado à promoção do intercâmbio de sementes entre os agricultores da região, através da Associação Estadual dos Pequenos Agricultores (AEPAC-SC). Com a criação da Oestebio em 2007, o escopo do projeto ampliou e passou a contemplar, também, a produção e a massificação de sementes camponesas e a fomentar a produção de novos conhecimentos mobilizados pela “tradução de práticas e saberes” (SOUSA SANTOS, 2005) e pelo diálogo intercultural entre os técnicos da Oestebio e os agricultores incluídos no projeto. 221

O campo me revelou que o trabalho político de base do MPA, a promoção da Oestebio junto ao agricultor e a produção de novos conhecimentos confundem-se na prática dos técnicos em campo e, por essa razão, o seu trabalho é fundamental tanto para o bom andamento do projeto como para o fortalecimento do MPA na região. No entanto, a soma desses processos não se dá sem tensões e contradições. Quando realizei essa pesquisa, a maioria dos técnicos não provinha da base do MPA, alguns tinham nível superior, outros, nível técnico e todos mostravam interesse na promoção da Agroecologia. Mas há dois projetos em disputa nesse campo: um serve à promoção de um mercado elitista de orgânicos, desenvolvido no marco do Capitalismo Verde e voltado aos consumidores ricos, e a verdadeira Agroecologia, que questiona as relações sociais e defende e atua em prol de que todos tenham acesso a alimentos saudáveis. Este último é o projeto do MPA. Não obstante, apesar da Oestebio ser uma cooperativa controlada por um movimento social, é uma agroindústria de médio porte inserida em um mercado capitalista e compete pelos mesmos recursos com outras empresas do setor, incluindo mão de obra qualificada. No início do trabalho com as sementes crioulas, ainda através da AEPAC, a escala do processo permitia a escolha de técnicos oriundos da base e a promoção de cursos de formação política para os que vinham do mercado. Mas o ganho de escala conseguido com o projeto de massificação de sementes tornou essa estratégia inviável, e a prioridade tem sido dada aos seminários de produção, nos quais, a conscientização política está subordinada à formação técnica. Nesse quadro, o trabalho de base vem sendo prioritariamente conduzido pelos “técnicos-militantes”. Os “técnicos-militantes” do MPA Nos quarenta dias que passei baseada em São Miguel do Oeste, na casa de apoio do MPA, eu acompanhei vários técnicos da Oestebio a campo. Com três deles eu estabeleci uma relação mais próxima, porque compartilhávamos o mesmo quintal, e a relação de vizinhança contribuiu para a construção de “laços [mais] fortes” entre nós (GRANOVETTER, 1977). Daniel, Valdigeri e Emelson alugavam uma casa edificada no mesmo terreno da casa de apoio do MPA e a proximidade espacial facilitou que o nosso contato não se restringisse ao trabalho e compartilhássemos momentos descontraídos, ouvindo música, passeando nos finais de semana pela cidade e trocando ideias sobre a vida. Além dos três rapazes, eu também criei um vínculo estreito com Kelin, também técnica da Oestebio. Valdigeri e Kellin pertencem a famílias engajadas politicamente e comprometidas com a preservação da biodiversidade, desde sempre. Emelson também vem de uma família de 222

pequenos agricultores e todos três já eram militantes do MPA, antes de trabalharem na Oestebio, e devem boa parte de sua formação técnica à sua vinculação ao movimento. Já Daniel é formado em Gestão ambiental e se engajou no projeto, porque estava em busca de um emprego 111. Apesar das diferenças, todos os quatro haviam recebido formação política do MPA e estavam comprometidos com o movimento e não apenas com a Oestebio, por isso aproveitavam a assistência técnica para realizar o trabalho político junto à base. Analisando a posteriori, reconheci que o vínculo de confiança consolidado nesses momentos foi fundamental para que as conversas travadas entre eu e esses técnicos, durante os longos trajetos percorridos nas visitas aos agricultores no interior, fossem francas, abertas e, por conseguinte, tão reveladoras. Embora todos os quatro promovessem o MPA, eles não se esquivaram de tecer críticas à organização. A partir dessas conversas, entendi que a necessidade de manutenção de um time de agricultores multiplicadores de sementes, que garantam a escala de produção de sementes necessária ao funcionamento da Oestebio, estava comprometendo o projeto de promoção da Agroecologia junto à base. Seja porque a Oestebio era obrigada a contratar técnicos não comprometidos com esta proposta, seja porque aqueles que o estavam viam-se obrigados a referendar práticas condenáveis, como o uso de agrotóxicos, em prol do ganho de escala. Essa contradição foi justificada pela necessidade de competição em um mercado altamente concentrado e desigual: o das sementes; e não é negada pelo MPA, quando assume que o seu horizonte é a Agroecologia, mas o seu compromisso maior é com a criação de condições que viabilizem a agricultura famíliar camponesa e a manutenção do agricultor e da agricultora no campo com uma vida de qualidade. Vista por este viés, a estratégia de ampliação de escala de produção de sementes tradicionais à custa de uma produção 100% agroecológica justifica-se. Primeiro, porque amplia as condições de disputa dos movimentos sociais com as empresas de sementes transgênicas, pelo mercado governamental. Em segundo lugar, porque permite que mais agricultores sejam incluídos e beneficiados pelo projeto. Além dos técnicos que trabalham diretamente com os agricultores, a Oestebio conta com a colaboração de dois cientistas em processo de formação: Danielle e Anderson. Ambos começaram como técnicos do projeto coordenado pela AEPAC, ainda recém-formados, e, devido ao seu envolvimento com o MPA, tiveram a oportunidade de continuarem os seus estudos. Anderson pertence a uma família de agricultores de Chapecó, que trabalhou por

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No final de 2014, quando terminei a redação dessa tese, somente Valdigeri e Emelson continuavam trabalhando com o movimento, Kelin havia tornado-se professora municipal e Daniel membro da polícia militar de Santa Catarina.

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muitos anos integrados à agroindústria de frango e terminou abandonando, “por ser um trabalho muito penoso que exigia dedicação exclusiva e integral” (informação verbal), 112 e Danielle pertence a uma família integrada no mercado de leite e de suínos, nada crítica ao sistema. Anderson entrou para o MPA, assim que terminou a graduação em 2005, por indicação de sua mãe, militante do MMC, que soube através da articulação com a Via campesina que aquele movimento estava desenvolvendo um projeto com sementes crioulas em São Miguel do Oeste. Nessa época, Danielle nunca havia ouvido falar em sementes crioulas, "nem na faculdade", mas veio pouco depois para o mesmo projeto, trazida por Anderson, com quem estudou na graduação (informação verbal)113. De início, nenhum dos dois era militante do MPA, mas quando realizei as entrevistas, diziam-se fortemente comprometidos com o movimento, para o que contribuiu a formação política que receberam nos seus primeiros anos de atuação no movimento. Na avaliação de todos os técnicos com quem eu conversei a respeito, a formação política faz muita falta, porque o técnico nem sempre entende que a Oestebio faz parte de um projeto mais amplo, em que estão em jogo dois modelos de sociedade. Conforme colocado por Danielle, “o trabalho de formação política é muito importante para o técnico saber o porquê de estar fazendo o que faz, porque os cursos despertam a consciência crítica para o sistema de classes” (Ibid). Apesar da relevância da formação política ser reconhecida pelos dirigentes do MPA, a prioridade aos "seminários de produção" se explica porque o novo projeto passou a exigir técnicos mais qualificados para o trabalho com sementes e a trajetória formativa de Anderson e Danielle reflete esse processo. No início de sua relação com o movimento, ambos frequentaram cursos de formação política promovidos pelo MPA. Além desses, entre 2006 e 2008, Anderson cursou uma pós-graduação em Economia Política, em regime de alternância, promovida pela Via Campesina em parceria com a Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Logo após, ele e Danielle fizeram um mestrado em Agroecologia, parcialmente à distância, na universidade de Andaluzia na Espanha e coordenado por Sevilla Guzmán, para onde o MPA os enviou com “o objetivo principal de fortalecer as suas relações com outras organizações da Via Campesina”. E quando realizei essas entrevistas, ambos estavam cursando um mestrado em Recursos genéticos Vegetais na Universidade federal de Santa Catarina (UFSC).

112 113

MUNARINI, Anderson. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov, 2011 NERLING, Danielle. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov, 2011

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Anderson relatou-me, durante a entrevista, que quando ele e Danielle retornaram da Espanha, a Unidade de Beneficiamento de Sementes (UBS) estava quase pronta e já “havia um plano de produção construído” e um convênio firmado com a CONAB. A AEPAC ficaria à frente de um projeto de pesca e aquicultura e a Oestebio responsável pelo projeto de produção, beneficiamento e massificação de sementes crioulas. Com a criação da UBS, além de promover a extensão e da troca de experiência com os agricultores, o projeto com as sementes crioulas tornou-se um instrumento de geração de renda para o pequeno agricultor. Então foi aí que passou de ser uma assistência técnica com base na extensão e na troca de experiência com os agricultores para ser também um projeto de produção [...] comprometido com gerar renda para o agricultor. [Por essa razão] os projetos que a gente faz sempre tem o viés de formação para a própria equipe técnica, tem parte do projeto que o técnico vai realizar a assistência técnica e tem a parte do projeto que a gente contrata pessoas de fora para dar formação para nós, então a gente consegue parceria com a universidade, e o Vitor Nodari tem sido um parceiro, [além de] técnicos da Epagri, da Embrapa e do Ministério da Agricultura (MAPA). A gente faz uma semana de formação com a equipe técnica e em um desses seminários surgiu a questão da engenharia genética e a oportunidade da gente estar se inscrevendo nesse curso lá na UFSC (informação verbal) 114. Os seminários de produção têm a duração de uma semana, com turnos pela manhã e à tarde, e são destinados a todos os funcionários da Oestebio, aos técnicos e aos agricultores. Os pesquisadores contratados para darem os cursos identificam-se à esquerda e defendem ideias afins ao MPA, mas são selecionados pela sua expertise técnica e não pela sua posição política. Os seminários contêm apenas módulos sobre produção; no entanto, em todo final de curso há uma avaliação do trabalho que está sendo realizado na prática, à luz dos ensinamentos teóricos apreendidos. A pesquisa de mestrado de Anderson e Danielle contemplava uma parte teórica desenvolvida na universidade e uma etapa prática desenvolvida em parceria com os agricultores mantenedores de sementes. Os agricultores cuidavam dos experimentos, enquanto Anderson era responsável pela parte agronômica e Danielle pela parte taxonômica. Conforme Anderson: São quatro tipos diferentes de experimentos: um é o de cruzamento entre variedades e outro é a avaliação, a partir dos experimentos sai uma semente que vai para avaliação, e essa avaliação está em quatro lugares: na casa dos agricultores e na Epagri também (ibid). 114

MUNARINI, Anderson. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov, 2011.

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Ainda de acordo com Anderson, o MPA/Oestebio também investe na formação de técnicos pesquisadores através da prática e por isso cada técnico deve acompanhar, no mínimo, um mantenedor de sementes. Em suas palavras: Tem outros experimentos que foi um debate que nós, enquanto movimento, achamos que teria de ter para divulgar as sementes crioulas e para os técnicos se envolverem mais com o detalhe experimental, porque ali no colhimento de dados de uma variedade, de altura, para ele conseguir, ele vai ser um pesquisador. Para conseguir, ele vai ter que estudar sobre aquilo. E todo agricultor quer ter um experimento em casa. Se tu disser: olha, nós estamos trabalhando com milho, nós queremos testar duas variedades aqui na sua propriedade, ele aceita. Se ele gosta, ele vai testar. É difícil ter um agricultor que rejeite, só se for uma coisa que ele não goste. Então todo agricultor tem esse perfil pesquisador e isso facilita muito para nós (IBID). Nesse processo, o técnico vai compreendendo que todo saber é ignorante de outro saber e que o diálogo entre “ausências” é o que permite o afloramento das “emergências”, conforme defendido por Sousa Santos (2002). Questionado sobre o porquê dele e Danielle estarem cursando o mestrado em Recursos Genéticos Vegetais da UFSC, Anderson responde que foi uma iniciativa que partiu dos pesquisadores e não do MPA. Alguns pesquisadores da UFSC, que colaboraram nos seminários do movimento, ficaram interessados no desenvolvimento da técnica de melhoramento vegetal Massal praticada há milênios pelos agricultores e propuseram, ao MPA, que essa pesquisa fosse realizada por técnicos-militantes com formação acadêmica e interesse no tema. O reconhecimento do valor de uma técnica milenar de melhoramento vegetal, por parte dos acadêmicos, é um exemplo de como as ações no marco da Soberania Alimentar têm contribuído para o empreendimento de um “diálogo de saberes” relativamente horizontal entre a ciência e a sabedoria popular — no sentido dado por Leff (2004) e por Rosset e Martíneztorres (2013) — e promovido a construção de uma “ecologia de saberes” (Sousa Santos, 2007). Indo além, o caso relatado por Anderson levou-me a concluir que os seminários de produção organizados pela Oestebio têm contribuído para promover um trânsito de mão dupla entre a universidade e os movimentos sociais: dois espaços sociais distintos e por tanto tempo paralelos. Questionado sobre como se apropria do conhecimento aprendido na pós-graduação, Anderson responde que:

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Quando eu chego lá tem a formação acadêmica, já está tudo préestabelecido, então tem uma aula de melhoramento que é interessante eu saber também, mas aquilo que vai interessar a gente, ao projeto que eu estou construindo, eu consigo captar mais, porque o trabalho prático ajuda a gente a selecionar mais e a focar mais no que a gente vai precisar. Isso, daqui para lá (informação verbal) 115. Inquirido sobre a relação entre a universidade e os movimentos sociais, o “cientistamilitante” amplia a questão para a relação entre a universidade e a sociedade e identifica a existência de uma barreira social e cultural, que deve ser quebrada pela ocupação desse espaço social pelos setores populares e pela maior interação entre as instituições acadêmicas e as comunidades. Nos seus termos: De lá para cá, é a informação que eu trago. E acho que tem muita relação que a universidade poderia estar fazendo com a parte externa à universidade [e não faz], para a gente ir para a universidade, tem de pular o muro da universidade, [a universidade devia] ir para a comunidade para trabalhar com a comunidade. E a gente estando lá, a gente faz o contrário, na minha percepção é o contrário. E é bom. É a comunidade entrando na universidade e, ao mesmo tempo, a gente consegue trazer mais acadêmicos de lá para cá (informação verbal) 116. Em nossa avaliação, a ocupação do espaço formal da universidade por pequenos agricultores é muito significativa, porque eles representam uma parcela da sociedade historicamente excluída do processo de produção da ciência institucional. E contribui, ainda, para a construção de uma “ecologia de saberes” (SOUSA SANTOS, 2005), porque essas pessoas, ao dominarem o conhecimento tradicional e o científico, adquirem capacidade potencial para realizar a “tradução” de práticas e de saberes (Ibid) e de sentidos e significados (CAROU e BRINGEL, 2010) entre ambos os universos sociais. O trabalho dos técnicos com os agricultores Durante o trabalho de campo, eu constatei que no trabalho político em nível local e junto à base, os laços fortes das relações próximas contam mais do que a extensão das redes sociais (NICHOLLS, 2009). Por essa razão, o primeiro contato do técnico com um agricultor desconhecido é sempre por indicação de um vizinho ou parente que já conhece o trabalho do MPA ou da cooperativa. Quando o município ainda não está integrado ao processo, o primeiro contato é intermediado pela Igreja ou sindicato local e conduzido pelos “agentes liberados”: 115 116

MUNARINI, Anderson. Entrevista concedidaa Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov, 2011. MUNARINI, Anderson. Entrevista concedidaa Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov, 2011.

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dirigentes do MPA que tomam a frente na construção de relações com os municípios, onde o trabalho do MPA e da Oestebio ainda não é conhecido e somente quando o laço de confiança está atado os técnicos assumem o processo. Os “agentes-liberados” mantém o trabalho político com a base por meio de encontros e seminários promovidos nos municípios e comunidades, de tempos em tempos. Durante o trabalho de campo, eu pude acompanhar um “Encontro de produção” no município de Santa Terezinha do Progresso, conduzido por duas lideranças do MPA: Gilberto Schneider e Adair, e acompanhado pelos dois técnicos que atuavam no município: Valdigeri, o mais antigo e Eduardo, o recém-chegado. As lideranças usavam camisetas e bonés do MPA e as suas falas apoiaram-se mais nas suas vivências e experiências pessoais e menos em conceitos abstratos. Em sua palestra, Gilberto apresentou o MPA e o Plano Camponês, enfatizando a rede de comunicação que articula o MPA nacional à sua base e permite que os temas e debates circulem de baixo para cima e de cima para baixo, e o trabalho de pesquisa e produção que vem sendo realizado em prol do desenvolvimento da agricultura camponesa. Além de membros da base do MPA, estiveram presentes ao evento: duas lideranças do MMC, um técnico da Epagri, um funcionário da secretaria de agricultura, pequenos agricultores e um padre da paróquia local. Ao final da palestra, todos foram convidados a se engajarem no projeto e os militantes do MPA a assumirem maiores responsabilidades junto às suas comunidades, o convite ao maior engajamento gerou uma resistência inicial, quebrada por Valdigeri que sugeriu alguns nomes; a partir de então, o processo fluiu. A oportunidade de acompanhar esse trabalho foi válida tanto para entender como atuam os “agentes liberados” como para confirmar o quanto os laços de confiança são importantes nas relações com os agricultores em nível local. Na comunidade em questão, o MPA já atuava e Valdigeri era a principal referência, porque são os técnicos que lidam com os agricultores no seu dia-a-dia. Nesse caso, a organização de um seminário de produção com a presença de lideranças do MPA justificou-se não pela necessidade de estabelecer um primeiro contato, mas pelo interesse do movimento social ampliar a sua base naquele município. Boa parte dos quarenta dias que fiquei hospedada em São Miguel do Oeste, eu passei acompanhando os técnicos a campo e essa rotina foi fundamental para que eu entendesse a dinâmica desse trabalho. Embora eu tenha consciência que a minha presença possa ter influenciado tanto a postura dos técnicos como a dos agricultores, eu realizei inúmeras visitas em companhia de diferentes técnicos e a diferentes agricultores e frequentei inúmeros eventos festivos e de lazer. Em todas essas ocasiões, eu pude presenciar essas relações em construção. 228

No trabalho de campo como um todo e, principalmente, no acompanhamento dos técnicos a campo, busquei enxergar os aspectos que fazem de um movimento social um “espaço de conhecimento prático”, no sentido dado por Casas-Cortés, Osterweil e Powell (2008). Seguindo a orientação dos autores, busquei “acompanhar os atores que constituem o movimento social, escutando, rastreando e mapeando o seu trabalho e vivenciando com eles o processo de trazer um movimento à existência” (Ibid, p.27). O trabalho dos técnicos começa cedo no escritório da cooperativa, quando definem a rota do dia e pegam o carro do projeto. As visitas realizavam-se pela manhã até o começo da tarde, porque o carro não tinha permissão para trafegar nas estradas após as 18 horas. A rotina de visitas aos agricultores iniciava sempre com uma conversa, não raro acompanhada de uma rodada de chimarrão, e seguia com uma visita à plantação. Na maioria dessas visitas, o que eu presenciei, de ambos os lados, foi uma relação de camaradagem e respeito mútuo, somado a um interesse genuíno pela troca de conhecimentos e de experiências, inclusive da parte dos técnicos. Pois, conforme eles mesmos me confessaram, no início do seu trabalho, aprenderam mais do que ensinaram aos agricultores. Em uma entrevista recente, realizada por skype (2014), Emelson me esclareceu detalhes sobre o trabalho dos técnicos. De acordo com as suas informações, os agricultores que comercializam as sementes com a Oestebio estão distribuídos geograficamente entre o extremo oeste de Santa Catarina, o norte do estado e a região de Curitibanos e cerca de vinte técnicos, divididos por regiões e municípios, prestam assistência técnica e acompanhamento a esses multiplicadores e mantenedores de sementes. O grupo de multiplicadores contempla um número grande de agricultores (na safra de 2012-2013 eram em torno de 1.300 famílias) e é o responsável pela produção das sementes de feijão, milho, aveia e trigo que serão beneficiadas e comercializadas pela Oestebio. Essas famílias recebem um valor por saca de sementes — os cooperados ganham um valor maior do que os não-cooperados — e todos recebem gratuitamente as sementes para a safra seguinte e não tem custo com o frete. Os agricultores mantenedores formam um grupo menor, em torno de 15 a 20 famílias, e são os responsáveis pela manutenção das sementes crioulas sem valor comercial. A totalidade das sementes produzidas é comprada, pela Oestebio, por um valor em torno de 30% maior do que o pago por saca às sementes comerciais. Metade dessa produção fica com o agricultor para a próxima safra, enquanto o restante é repartido entre uma parte armazenada na Oestebio, como forma de garantir a preservação da espécie, e outra que é distribuída a agricultores interessados em multiplicar a espécie em sua propriedade. 229

A maioria dos agricultores multiplicadores que eu visitei estava em processo de transição para a Agroecologia, mas havia alguns que não acreditavam nessa possibilidade e, com esses, o técnico buscava o convencimento através do diálogo, sem pressioná-lo, seja com a sua expertise ou com a ameaça econômica, como fazem as agroindústrias do agronegócio. A proposta de ação comunicativa de Habermas (1999) e a teoria de valores de Lacey (2008) contribuem para entender a diferença de postura entre os técnicos da Oestebio/MPA e os técnicos contratados pelas empresas do agronegócio. Enquanto aqueles que trabalham para o Agronegócio objetivam impor ao agricultor uma tecnologia e um produto a ela associado, os que trabalham para a Oestebio/MPA têm a Agroecologia como horizonte e o diálogo intercultural como princípio norteador da relação. Neste último caso, ambos, técnico e agricultor, remetem-se ao mesmo mundo objetivo e tecem considerações falíveis e passíveis de crítica um pelo outro. Vence quem tiver o melhor argumento e quem provar empriricamente que tem a melhor solução, levando-se em conta o contexto em questão. Se o técnico convencer o agricultor no plano racional cognitivo, esse se predispõe a testar a técnica proposta no plano produtivo. Se, por outro lado, o agricultor apresentar uma solução alternativa, comprovando o seu valor na prática, o técnico não só reconhece o valor da técnica tradicional como incorpora-a ao seu repertório de conhecimentos. A oportunidade de conhecer o espaço doméstico e a intimidade dos agricultores foi uma experiência bastante impactante para mim, que nasci e me criei na cidade do Rio de Janeiro, uma cidade onde vigora a necessidade de consumo dos supérfluos e a pobreza maltrapilha passa fome. As famílias que eu conheci moravam em casas sem muito luxo, mas com o máximo de conforto que o seu poder aquisitivo permitia. Como nos recebiam em horário de trabalho, usavam roupas de ir para a roça: gastas e às vezes esfarrapadas, mas quando nos acolhiam para o almoço, a mesa era sempre farta e com diferentes pratos, incluindo: legume, verdura e carne de frango, porco ou boi. Quando não almoçávamos, todos faziam questão de me oferecer alguma iguaria que havia sido produzida com gêneros vindos da sua propriedade; no início, eu me constrangia e resistia a aceitar, mas conforme eles mesmos me explicaram, quando o agricultor tem uma produção diversificada, quase não precisa de dinheiro, pois tudo o que necessita ele tem na sua propriedade. Durante o trabalho de campo, eu também tive a chance de conhecer mantenedores de sementes e as suas propriedades, dentre os quais Emílio Orlandini, que está no processo de recuperação de sementes em Anchieta desde a sua gênese. Sobre esse processo originário, Emílio me conta, em entrevista, que o processo foi realizado coletivamente.

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Porque tinha gente que tinha [semente], mas não sabia como fazer, daí no conjunto, a gente fazia um experimento na casa de um, fazia o melhoramento de uma variedade, depois de outra variedade”. Posteriormente, cada qual desenvolveu o seu trabalho individualmente, “mas no começo fazia tudo em conjunto (informação verbal) 117. Enquanto visito as suas terras, o Sr. Orlandini vai me mostrando as espécies raras que mantém e fornecendo detalhes sobre o seu trabalho e as técnicas que utiliza para evitar pragas e fortalecer as plantas. É uma pessoa bastante consciente do valor da preservação da biodiversidade agrícola que realiza em sua propriedade, agraciada com uma fonte de água e um rio e protegida da contaminação pelos transgênicos, porque está situada em um vale sem vizinhos próximos. O agricultor tem noção que essa particularidade geográfica é um diferencial que permite a ele ser um agricultor mantenedor, enquanto outros com o mesmo interesse não podem, porque as suas propriedades estão cercadas de milho transgênico por todos os lados. Emelson, o técnico da Oestebio que o acompanha, admite que com o Sr. Orlandini aprende mais do que ensina. Refletindo sobre essa relação e a que outros técnicos da Oestebio mantém com os agricultores mantenedores, eu entendi que, mediante o diálogo entre o conhecimento profissional — adquirido nos cursos e nos livros — e a prática e o saber popular dominado pelos agricultores, os técnicos também vão se formando pesquisadores. Pode-se dizer que a família Orlandini tem vocação para a pesquisa, desde algumas gerações. O pai de Emílio nunca usou veneno e sempre manteve diversas espécies crioulas na sua propriedade, desde antes do projeto conduzido pelo sindicato de Anchieta. A sua mãe domina conhecimentos sobre o poder curativo das ervas e das plantas e afirma possuir uma receita que é usada com sucesso na cura da hepatite. E o filho caçula criou uma nova espécie de milho a partir do cruzamento de outras variedades com apenas nove anos de idade. Embora todo agricultor tenha um pouco de pesquisador, desde a Revolução Verde os pequenos agricultores vêm sendo doutrinados a adotar a tecnologia das grandes empresas e a desprezar os seus conhecimentos tradicionais e os Orlandini e os Triaca — a outra família de agricultores mantenedores com quem eu tive oportunidade de conviver — passaram a ser exceção. Normélio e Maria Triaca são os pais de Valdigeri e, assim como Emílio, também são agricultores mantenedores de sementes para a Oestebio. Normélio é filiado ao MPA, Maria ao MMC e o casal é sindicalizado e atuante. Assim como os Orlandini, o casal também tem 117

ORLANDINI, Emilio. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, Anchieta, nov 2011

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muito orgulho das espécies crioulas que preservam e plena consciência do valor de nunca terem usado veneno em sua propriedade. Além de plantas, o casal mantém animais crioulos, como o porco de brinco, uma espécie praticamente extinta. A casa da família, conquistada através de um programa de habitação rural e com o auxílio do MPA, é simples e confortável; a alimentação da família é diversificada, farta, saudável e saborosa e, à exceção do sal e do açúcar, todos os gêneros consumidos, inclusive pelos animais, são produzidos na propriedade, assim como os insumos, adubos, sementes e defensivos agrícolas. Ter tido a oportunidade de conviver uns dias com essa família foi uma experiência fundamental para a minha pesquisa, porque me proporcionou vivenciar e entender a cultura camponesa fora dos limites do movimento social. Durante dois dias, eu acompanhei Normélio e Maria em sua programação de fim de semana, que incluiu o campeonato de futebol disputado pela netinha, a festa de aniversário de uma de suas filhas e um culto católico conduzido por eles que também são agentes pastorais. Uma segunda visita à propriedade da família foi motivada pelo acompanhamento de uma das etapas da pesquisa de mestrado de Anderson, com o feijão crioulo mantido sob os cuidados de Normélio. De acordo com Anderson (informação verbal)118, quando Normélio foi convidado a cuidar do experimento, ele não só aceitou prontamente, como sugeriu que às quinze variedades selecionadas para o teste, fossem somadas mais cinco que ele mesmo já vinha testando. O que Anderson aceitou prontamente, revelando que ter ido para a universidade não o fez perder a noção que “todo saber é ignorante de outro saber” e que o diálogo intercultural entre o conhecimento profissional e o popular contribui para potencializar a Soberania Alimentar, em seu viés como uma forma de produção que corresponde a uma estratégia de resistência social, conforme valorizado por Van der Ploeg (2014). De acordo com Anderson, a dinâmica do trabalho dos técnicos com os agricultores mantenedores de sementes e responsáveis pelos experimentos é a seguinte: A gente procura trabalhar com a tecnologia do agricultor no experimento, então o agricultor entra com os insumos que ele costuma trabalhar: sementes, caldas para controle de pragas, etc. O técnico entra com os princípios da experimentação, que são: aleatoriedade, repetição, avaliação e estatística dos dados. A maioria dos agricultores está envolvida com o acompanhamento dos mantenimentos e com experimentos, e o propósito dos experimentos é [também] o envolvimento dos técnicos com as variedades, [por isso] sempre inclui

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MUNARINI, Anderson. Entrevista concedidaa Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov, 2011.

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mais de um técnico, [porque o objetivo é a formação do técnico na prática] (informação verbal)119. Analisando a sua fala, reconhecemos que o processo dialógico através do qual a Oestebio conduz o seu trabalho de assistência técnica mobiliza a produção de novos conhecimentos e de pesquisadores críticos, formados a partir da base. Mostrando ter consciência que a ciência não é neutra e nem destituída de valores, ao invés de imporem as suas técnicas e soluções, os técnicos da Oestebio dialogam com os agricultores com quem trabalham, confrontando o conhecimento formal adquirido nos cursos com o conhecimento tradicional camponês e realizando o trabalho de tradução entre esses dois universos sociais. Esse amalgama de saberes é avaliado, pelos técnicos, à luz da ideologia propagada pelo MPA e em relação aos valores sociais defendidos pela Agroecologia. No entanto, a sua realização na prática está sujeita às necessidades objetivas da Oestebio; o que implica, muitas vezes, em contradição entre teoria e prática. O que se constata é que o projeto de manutenção, produção e massificação de sementes crioulas que o MPA vem realizando através da Oestebio projetou-o no campo dos movimentos sociais e em relação a atores governamentais e organizações sociais. No entanto, da mesma forma que a internacionalização da FENAMIC teve consequências, o ganho de escala e o alcance atingido com esse projeto também encerra contradições. Para garantirem a escala de produção de sementes necessária ao bom funcionamento da unidade de beneficiamento de sementes, os técnicos são muitas vezes levados a agirem em desacordo com os valores defendidos pela Agrocologia. Os valores sociais do campesinato também entram em choque com a realidade enfrentada pelos agricultores multiplicadores de sementes; os quais, muitas vezes, se dizem obrigados ao uso de agrotóxicos, devido à carência de mão de obra ou mesmo pela resistência em acreditar que produzir de forma sustentável é possível. Outra contradição derivada do sucesso do empreendimento é o perigo de burocratização do movimento político, em função do fortalecimento do instrumento político, conforme apontado por Eyerman e Jamison (1991), em sua análise sobre o movimento ambientalista europeu. Por outro lado, a Oestebio foi criada com apoio na ideia que o campesinato é uma forma de resistência política e social (VAN DER PLOEG, 2014) e que o desenvolvimento de projetos concretos de geração de renda para os pequenos agricultores é parte importante da proposta política do MPA. Visto por este prisma, esse e outros projetos de produção e 119

MUNARINI, Anderson. Entrevista concedidaa Carolina Burle de Niemeyer, São Miguel do Oeste, nov, 2011.

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comercialização, desenvolvidos pelo movimento social em diferentes regiões do Brasil, justificam-se apesar de suas contradições, porque criam condições para a agricultura familiar livrar-se da dependência da integração ao agronegócio para a sua sobrevivência; o que, em ultima análise, contribui para o fortalecimento do campesinato. Indo além, o investimento do MPA no desenvolvimento de alternativas na área da produção também é o diferencial que tem induzido organizações de movimentos sociais e governos de outros países a buscarem construir alianças com o movimento social, conforme pretendo mostrar a seguir, na última seção deste capítulo.

5.7. Do Local para o Global: diálogo e tradução com experiências no Paraguai, Venezuela e Moçambique

Conforme apontado por Nicholls (2009), se as redes de relações próximas são as vias através das quais o movimento social sustenta o seu trabalho em nível local, a extensão das redes sociais globais é o que viabiliza o seu contato com organizações e movimentos sociais de outros países e permite a articulação de redes de solidariedade globais, as quais, conforme apontado no capítulo um dessa tese, variam entre alianças táticas ou estratégicas. Visto por esse viés, o ativismo global e local revelam-se importantes e complementares para o processo de consolidação de um movimento social, o que nos leva a rejeitar perspectivas dicotômicas sobre a relação entre as distintas escalas e a empreender uma análise que busque revelar como essas instâncias influenciam-se mutuamente, mediante uma relação dinâmica e dialética, embora não necessariamente sincrônica. Essas reflexões apoiamse no debate sobre redes e escalas desenvolvido no capítulo teórico dessa tese, na minha pesquisa de campo e na leitura de documentos que registram aspectos do processo de internacionalização do MPA. Buscamos revelar, inclusive, como um local pode afetar outro local, para além dos limites do movimento social e dos efeitos políticos da aliança transnacional estabelecida, seja ela tática ou estratégica. Referimo-nos, aqui, à vida cotidiana e às comunidades locais. Remetemos a Bringel e a Falero (2008), quando afirmam que, mediante o seu processo de transnacionalização e do estabelecimento de relações horizontais com outros movimentos, as redes de movimentos sociais geram “novas sociabilidades, através da instituição de outras formas de relações sociais, de vínculos comunitários e afetivos, solidários e de reconhecimento mútuo”. E, embora o contexto dos autores não seja o mundo da vida, a 234

citação nos serve no ponto em que incorpora os vínculos pessoais e o afeto como saldos importantes dessas relações e alianças transnacionais. Para a evolução desta questão, centrar-nos-emos em três experiências transnacionais desenvolvidas pelo MPA nos marcos da Soberania Alimentar. Um projeto firmado com o governo da Venezuela em 2011, que contempla a exportação de sementes de feijão e a prestação de serviço de assistência técnica no referido país. A brigada internacionalista criada em 2012, em Moçambique, para o desenvolvimento de um projeto em parceria com a União Nacional dos Camponeses (UNAC), voltado à recuperação de sementes crioulas e a produção de novos conhecimentos através da promoção do diálogo entre o saber tradicional e a Agroecologia. E um projeto de inventário, recuperação e preservação de sementes crioulas conduzido no Paraguai, desde 2013, junto a “Coordinadora Nacional de Organizaciones de Mujeres Trabajadoras Rurales e Indígenas – CONAMURI”. Diferentemente das seções anteriores, nesta eu estabeleci uma organização por caso, para depois estabelecer uma comparação entre eles, e como não foi possível conhecer essas experiências de perto, essas análises têm como base documentos publicados e entrevistas abertas realizadas com pessoas relacionadas a esses processos. Eu reconheço a falta de uma pesquisa etnográfica e de um material empírico mais denso, mas acredito que essa fragilidade seja parcialmente compensada, por eu vir acompanhando esses processos desde 2010 e com acesso a alguns dos seus principais agentes.

O processo de internacionalização do MPA Inicio esta seção com uma breve introdução sobre o processo de internacionalização do MPA. Embora a atuação além das fronteiras nacionais seja, hoje, uma das suas metas, a minha pesquisa de campo revelou que esse processo foi deflagrado por movimentos sociais, organizações e governos de outros países, que buscaram estabelecer parcerias com o movimento social brasileiro, tendo em vista o desenvolvimento da produção em seus respectivos países e lugares. Conversando com dirigentes e membros dessas entidades estrangeiras, descobri que os investimentos do MPA na recuperação do conhecimento tradicional camponês, na preservação e multiplicação das sementes crioulas e tradicionais e no desenvolvimento de projetos produtivos a partir do dialogo entre o conhecimento tradicional, a ciência e a Agroecologia ganharam reconhecimento internacional e foram os principais estímulos para a construção dessas alianças transnacionais. 235

O estabelecimento dessas relações transnacionais foi facilitado, direta ou indiretamente, pela articulação dessas organizações e países na rede transnacional de movimentos sociais Via Campesina. Posteriormente, esses laços foram consolidados em encontros, seminários e cursos de formação política e técnica promovidos em escala global pela Via Campesina Internacional, em escala regional pela CLOC-Via Campesina e em escala (trans)nacional pelo MPA e os outros atores envolvidos. Em uma entrevista aberta realizada em novembro de 2013, por Skype, Valter Israel da Silva esclarece que a principal forma através da qual o MPA atua, no âmbito das relações internacionais, é através das brigadas internacionalistas (informação verbal). Esses foram os casos da UNAC/UCAM de Moçambique e do MOCASE no Paraguai, já com a Venezuela, a relação teve início como uma transação comercial de venda de sementes e evoluiu para uma "brigada de solidariedade e produção", um projeto mais amplo que engloba também formação política e assistência técnica. Os três casos analisados contemplaram iniciativas voltadas à valorização do conhecimento tradicional local e o desenvolvimento de novas técnicas de produção, a partir de um diálogo com a Agroecologia, tendo em vista a autonomia do receptor da ajuda e não a sua dependência em relação à ajuda externa, tendo sido negociados diretamente entre o MPA e as partes, sem a intermediação do estado brasileiro. Em Moçambique e no Paraguai, a parceria foi construída diretamente com organizações camponesas membros da Via Campesina, e na Venezuela diretamente com o governo desse país. Além destes, há negociações em curso com movimentos sociais da Argentina e do Uruguai e investimentos na aproximação com organizações camponesas da Ásia. Segundo Borras (2004), a Via campesina tem dupla natureza: como ator e como arena de ação. Com base no autor, pode-se dizer que o processo de internacionalização do MPA foi facilitado pela Via campesina, considerando os seus dois vieses. Como arena, a Via Campesina foi o espaço de contato e interação entre o MPA e as outras organizações camponesas, e, como ator, atuou na promoção do MPA junto ao governo da Venezuela. Essas relações consolidaram-se através de intercâmbios, visitas a experiências de produção e da participação em cursos, seminários e encontros políticos promovidos pelas partes, nos seus respectivos países, lugares e territórios. A título de exemplo, cito o III Encontro Internacional do MPA e a V FENAMIC, dos quais participaram, além das organizações mencionadas, outras provenientes de diferentes países da América latina e da Europa. E um curso internacional de sementes — de natureza técnica, política e prática — promovido pelo MPA Nacional para as suas regionais em 2013,

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para o qual foram convidados: o MOCASE e a OLT do Paraguai, a UNAC de Moçambique e a MNCI da Argentina (informação verbal) 120.

Do litrão ao container: o intercâmbio com a Venezuela O convênio com a Venezuela é o primeiro investimento transnacional conduzido pelo MPA, fora do contexto das brigadas da Via Campesina e, diferentemente dos outros dois casos em estudo, foi um convênio firmado entre o movimento social brasileiro e o governo nacional de outro país. De acordo com o relato de Humberto Palmeira (informação verbal), que acompanhou esse processo de perto, a iniciativa partiu de Chávez e fez parte da estratégia do seu governo, de aplicação da renda petroleira em favor do desenvolvimento da soberania nacional em diferentes áreas, dentre as quais, a produção de alimentos. No âmbito desse projeto, o governo venezuelano criou um plano de produção de leguminosas e estabeleceu uma meta de 90.000 há. No processo, os responsáveis pelo projeto deram-se conta que o país não possuía sementes genéticas de feijão preto, porque importava noventa por cento de todo aquele que consumia. Sendo esta a base da alimentação nacional, a reversão desse quadro de dependência alimentar tornou-se urgente e a Venezuela se viu confrontada com duas opções divergentes. A aquisição de sementes transgênicas ou híbridas das grandes empresas transnacionais, o que contrariava a proposta assumida por Chávez, de tornar a Venezuela o primeiro país livre de transgênicos, e ainda feria o princípio da Soberania Alimentar incorporado ao texto da nova constituição nacional. A alternativa seria a importação de sementes crioulas e varietais, produzidas em escala por organizações de movimentos sociais de outros países. Apesar das dificuldades e dos custos mais elevados, essa foi a estratégia adotada, porque garantiria ao país, a médio e longo prazo, a soberania sobre as suas sementes genéticas. Antes de estabelecer essa parceria "comercial e solidária" com o MPA, o governo da Venezuela já tinha projetos de cooperação internacional com a Via Campesina e com o MST. No âmbito da educação e formação, Chávez apoiou a Escola Latino Americana de Agroecologia (ELAA), coordenada pela Via Campesina no Paraná (Brasil), que foi o berço do primeiro Instituto Universitário Latino-americano de Agroecologia (IALA), o IALA Paulo Freire, inaugurado em 2008 na Venezuela com o apoio do seu governo. De acordo com Irma Brunetto (informação verbal) 121, as relações de intercâmbio entre o MST e o governo Chávez tiveram início em 2005, quando João Pedro Stedille foi à 120

DA SILVA, Valter Israel.. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, por skype, em 2013

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Venezuela selar o compromisso de formar uma brigada do MST-Via Campesina, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento do campesinato no país, que não tem tradição nesse sentido. As missões da brigada tiveram natureza técnica e política e contemplaram diferentes medidas. Módulos de formação política, a formação de cooperativas, a cargo de Irma Brunetto, assistência técnica à produção de sementes, sob a responsabilidade de um membro da Bionatur e a produção de alimentos não necessariamente orgânicos, sob a batuta de técnicos do MST. Contudo, nem o IALA Paulo Freire e nem a brigada do MST foram bem sucedidos, para o que contribuíram diversos fatores. A crise do IALA foi vista no capítulo três dessa mesma tese. No caso da brigada do MST, a principal dificuldade foi devida à inexistência de um movimento social camponês constituído na Venezuela e o fato das poucas organizações existentes não fazerem parte da Via campesina e sentirem-se invadidas pela sua presença no país (informação verbal)122. As relações entre o MPA e a Venezuela foram inauguradas em meio a esse contexto, intermediadas pela Via Campesina, que promoveu uma visita de membros do governo venezuelano ao Sul do Brasil, para que conhecessem as experiências com sementes de feijão que o MPA estava desenvolvendo através da Oestebio. Em decorrência desses contatos, em 2011, a Oestebio e o governo da Venezuela firmaram um contrato de exportação de sementes de feijão preto para o referido país. No primeiro ano foram exportadas 208 toneladas de feijão preto, em 2012 foram 575 toneladas e a partir de 2013, a Venezuela começou a produzir parte das sementes de que precisava (informação verbal) 123. Em termos comerciais, a Oestebio teria mais vantagens se a Venezuela se mantivesse dependente da importação de suas sementes genéticas de feijão. Mas, como a cooperativa é um “instrumento político” a serviço do MPA e a operação comercial é também uma estratégia de promoção da Soberania Alimentar em nível mundial, a meta sempre foi a autonomização e a autossuficiência dos Venezuelanos. Por essa razão, desde o início, a "Operação Caraota 124" contemplou a prestação de assistência técnica e a transferência de tecnologia. Para a implementação desse projeto, o MPA deslocou Tairi Felipe, um técnicomilitante de Santa Catarina que, além de prestar assistência técnica, também ficou encarregado da formação política. Isso porque o modelo camponês de produção está embasado em valores não capitalistas, consequentemente, os seus critérios, parâmetros e 121

BRUNETTO. Irma. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. Dionísio Cerqueira, SC, Nov 2011 BRUNETTO. Irma. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. Dionísio Cerqueira, nov 2011 123 DA SILVA, Valter Israel. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, por skype, em 2013 124 Caraota é o nome pelo qual o feijão preto é conhecido na Venezuela. 122

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objetivos são diferentes do modelo hegemônico e todos os envolvidos devem ter essa compreensão para que o processo chegue a bom termo. Conforme explicado por Humberto Palmeira: A exportação das sementes é uma forma de enfrentamento das multinacionais e vai além de uma relação comercial, porque o objetivo é a médio prazo deixar de comercializar as sementes com a Venezuela, porque eles terão condições de produzir as suas sementes genéticas de feijão preto (Humberto Palmeira, informação verbal) 125. O depoimento de Valter Israel da Silva (informação verbal)126 revela que, na dinâmica da relação transnacional estabelecida, não só os brasileiros levaram a sua experiência, expertise e ideias para a Venezuela, como foram influenciados por aquela cultura. Em suas palavras: O Tairi tem tentado trazer o lado cívico que a Venezuela conseguiu construir, a recuperação da trajetória histórica, que é um sentimento que nós não temos, o povo não sabe da história do nosso povo e isso nos mostrou muito forte que a Venezuela tem muito a nos ensinar sobre a nossa história: “dondequeuvim, oncoto e prondequeuvo” (de onde vim, onde estou e para onde vou). Após a morte de Chávez, a conjuntura política na Venezuela tornou-se cada vez mais desfavorável à aliança com os movimentos sociais, o que levou o MPA a uma mudança de planos. Ao invés de dar sequencia a criação de uma brigada internacionalista nesse país, os técnicos militantes do movimento social devem retornar ao Brasil em 2015. A análise dessa conjuntura induz-nos a realizar uma digressão e recuperar o debate sobre a possibilidade de realização de um projeto contra-hegemônico — como a Soberania Alimentar — nos limites de um “Estado Burguês Democrático”, onde a burocracia de estado está a serviço dos interesses do grande capital e não há tradição de ativismo social organizado a partir de baixo, como é o caso da Venezuela. O que, a título de comparação, nos remete à Cuba e ao projeto de desenvolvimento da Agroecologia conduzido pela "Asociación Nacional de Agricultores Pequeños" (ANAP). Durante toda a Guerra Fria, Cuba adotou uma agricultura capitalista de estado. Com a derrocada da União Soviética, deixou de ter acesso aos insumos e químicos necessários à sustentação desse modelo e viu-se obrigada a construir uma alternativa que salvasse o país da fome. A solução encontrada foi a recuperação do conhecimento tradicional camponês em 125 126

PALMEIRA, Humberto. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. Rio de Janeiro, jun 2014 DA SILVA, Valter Israel. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, por skype, em 2013

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conjunto com o desenvolvimento da Agroecologia, por meio da metodologia "campesino a campesino" adotada com sucesso pela ANAP. Por conta dessa experiência, o país tornou-se referência mundial e é sempre apontado como a prova concreta que uma agricultura saudável e sem veneno pode alimentar o mundo (ANAP, 2013). Concordamos com a análise do MPA sobre essa experiência. De acordo com os intelectuais do movimento, o principal legado da iniciativa cubana foi ter mostrado ao mundo que o saber tradicional camponês é tão ou mais importante que o conhecimento técnico e científico e que a construção de uma "ecologia de saberes" a partir do diálogo intercultural é o melhor caminho a ser seguido. Já o diferencial que responde pelo sucesso da empreitada foi a sua promoção à política de estado e o apoio irrestrito do aparelho burocrático estatal.

A Cooperação Brasil-Moçambique: campesino a campesino127 Assim como no caso da Venezuela, o investimento no resgate das sementes crioulas e no desenvolvimento da agricultura camponesa em diálogo com a Agroecologia foi o que levou o movimento social moçambicano, União Nacional dos Camponeses (UNAC), a procurar o MPA. Em entrevista a mim concedida, durante o III Encontro Nacional do MPA em 2010, Diamantino Nhampossa, dirigente da UNAC, relatou-me como se deu essa aproximação e as principais motivações que influenciaram a organização africana a buscar esse movimento social e não o MST, apesar deste último ser mundialmente conhecido e exercer considerável influência na Via Campesina. Em suas palavras: Nós [o MPA e a UNAC] nos conhecemos através da Via campesina, nesses encontros. E aí começamos a ter contatos, e nos interessamos muito por aprender processos mais produtivos. [...] Esta é a luta que nós queremos ter em Moçambique, porque todo o processo produtivo tradicional foi eliminado, primeiro pelo Colonialismo, depois pelo sistema socialista também, pois nós não concordamos muito com aquela visão, e depois com a luta. E isso matou todo o processo produtivo tradicional lá originado, e aí começamos com outro ciclo de produção: a agricultura [...] europeia. Então agora estamos a procurar recuperarmos aquilo que é nosso, mas é um processo muito difícil, então procuramos outras organizações que trabalham nessa área e encontramos o MPA. A UNAC foi à procura de outras organizações, porque quase não conhecíamos nenhuma, queríamos encontrar um movimento aqui no Brasil e na América Latina, porque estávamos em busca de encontrar qual seria o melhor para nós, depois encontramos o MMC e o MMC levou-nos à Via Campesina e depois encontramos o

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Este é o título do relatório publicado pelo MPA, sobre o primeiro ano dessa experiência.

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MPA. É difícil encontrar esse tipo de organização (informação verbal)128. A entrevista com Diamantino foi realizada em abril de 2010 e, em 2012, Gilberto Schneider, técnico e membro da direção do MPA (SC) e do MPA Nacional, embarcou para Moçambique para dar início ao projeto de recuperação, reprodução e manutenção de sementes nativas realizado através do intercâmbio firmado entre o MPA e a UNAC, no marco da campanha “Sementes são Patrimônio dos povos a serviço da humanidade” e com o apoio da organização não governamental internacional OXFAN. [Essa] experiência esta localizada na UCAM – União das Cooperativas Agrícolas de Marracuene, membro da UNAC, no distrito de Marracuene, província de Maputo, região sul de Moçambique. A UCAM é formada por 38 cooperativas ou associações comunitárias, num total aproximado de 4500 membros. Dos membros, aproximadamente, 20% são homens e 80% mulheres. A zona agrícola de Marracuene é formada basicamente por minifúndios com áreas de 0,1 a 3 há. (DA SILVA, V. e SCHNEIDER, 2013, p. 5). Pode-se interpretar essa experiência como um projeto de cooperação sul-sul conduzido por movimentos sociais; no entanto, diferentemente dos projetos descontextualizados e desenhados de cima para baixo pelo Banco Mundial para a África, o projeto conduzido pelo MPA foi construído em parceria com a UCAM/UNAC a partir da análise da realidade local e da necessidade dos camponeses envolvidos no projeto. De acordo com o relatório sobre o primeiro ano desse intercâmbio, o projeto desenvolveu-se apoiado nos seguintes eixos principais: uma metodologia participativa, formação política e técnica, participação de todos os envolvidos no desenvolvimento de experimentos práticos de produção de sementes e de preservação das sementes genéticas, criação de casas de sementes controladas pelas próprias comunidades camponesas e análise dos resultados (DA SILVA, V. e SCHNEIDER, 2013). Conforme o documento (Ibid), o MPA não levou respostas prontas, mas princípios de trabalho. O primeiro passo foi o planejamento do projeto em parceria com: a direção da UCAM, a equipe de desenvolvimento rural e a equipe de formação, quando analisaram conjuntamente a realidade local e as condições disponíveis. O projeto estabeleceu como meta o desenvolvimento de dez campos de sementes de: milho, feijão nhemba, amendoim e mandioca, com a participação de quatro cooperativas e/ou 128

NHAMPOSSA, Diamantino. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer. Vitória da Conquista, abril de 2010.

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associações selecionadas de acordo com a sua capacidade para a implantação de um campo de sementes e para a organização de reuniões de formação política e técnica para as suas lideranças, considerada como uma etapa crucial no processo, como se pode conferir na citação a seguir: A realização das formações foi fundamental para o sucesso do trabalho. Durante as formações políticas e técnicas se resgatou um breve histórico sobre as sementes, o papel e a importância do campesinato neste período histórico e os desafios para os dias atuais. Também debatemos as técnicas de resgate, reprodução, melhoramento e conservação de sementes. Após o debate mais teórico, partimos pra organização prática do campo de sementes, definir a espécie e a variedade, como resgatar as sementes, a área, o tamanho do campo, o preparo do solo e a previsão de semeadura (DA SILVA, V. e SCHNEIDER, 2013, p. 12). De acordo com o MPA, esse relatório tenciona subsidiar "o debate e a construção de planos de desenvolvimento de sistemas camponeses de produção", em conjunto com os próprios camponeses, seus beneficiários. E um aspecto que chama a atenção no texto é a prioridade dada aos conceitos políticos, que são apresentados na primeira seção, antes das informações técnicas e produtivas. São eles: camponês e campesinato, sistemas camponeses de produção, território camponês, Alimergia, Agroecologia, sementes crioulas/nativas e Soberania Alimentar. Na sequencia é apresentado o “resumo da experiência”, contemplando: a metodologia adotada, as etapas do projeto prático em campo e informações técnicas necessárias ao plantio dos campos de sementes e à conservação das sementes genéticas, seguida da análise dos resultados, de fotos e de um planejamento para a etapa seguinte. Abaixo, um resumo da experiência sistematizada pelos seus desenvolvedores: O êxito desta experiência em Moçambique está nos resultados obtidos neste primeiro ano de trabalho. Receberam formação política e técnica mais de 100 camponeses; criou-se um grupo de estudo sobre os sistemas camponeses de produção com foco na questão das sementes, que envolve lideres da UCAM, técnicos da área de desenvolvimento rural da UCAM e camponeses de 11 associações ou cooperativas comunitárias. Todos os campos implantados foram em áreas coletivas o que possibilitou uma maior aprendizagem por parte dos camponeses. [...] Outro resultado importante é a organização da casa de sementes, que a partir das colheitas dos campos, parte da produção foi destinada para alimentar a casa (DA SILVA, V. e SCHNEIDER, 2013, p. 19). A leitura desse documento revela similitudes entre os projetos de produção conduzidos pelo MPA em nível nacional e o projeto de resgate de sementes em Moçambique. Em ambos, 242

o conhecimento tradicional é tão valorizado quanto o científico e a estratégia tem sido a complementação de técnicas tradicionais por novas tecnologias de conservação e armazenamento. Ou seja, independentemente da escala de ação, a proposta é a construção de uma ecologia de saberes, a partir do diálogo entre a sabedoria tradicional camponesa, a Agroecologia e o conhecimento técnico-científico. Mas os frutos da relação transnacional estabelecida não se limitam a esse aspecto. Embora essa seja a face mais visível do intercâmbio entre o MPA e a UCAM/UNAC, se o foco de atenção é deslocado do nível meso para o nível micro da análise, pode-se desvendar outras dimensões da relação entre o global e o local que não podem ser acessados por meio da análise de discursos públicos, porque demandam uma aproximação das “pessoas que fazem o movimento social acontecer” e o acompanhamento do cotidiano de suas vidas, conforme recomendado por Casas-cortés, Osterweil e Powell (2008). Escapando da reflexão teórica para a realidade concreta, no curso dessa pesquisa, percebemos que a análise da trajetória de vida de militantes migrantes pode revelar outros ângulos da relação entre redes sociais globais e redes sociais locais que escapam à mera análise de discurso. Tomando como exemplo o caso em análise, essa mudança de perspectiva permitiu descobrir que o resultado do intercâmbio transnacional entre o MPA e a UCAM/UNAC foi além de uma articulação política e estratégica em prol da Soberania Alimentar, com consequências para o distrito de Marracuene onde foi realizada a experiência, porque Gilberto Schneider retornou ao extremo oeste de santa Catarina casado com uma moçambicana. Ter deslocado o foco de análise da organização para o militante e valorizado as dimensões do afeto e da confiança permitiu enxergar que a cooperação transnacional firmada entre o MPA e a UNAC teve consequências que extrapolaram os limites de ambas as organizações. Por essa perspectiva, o casamento de Gilberto é resultante desse processo e digno de nota, porque além de afetar a vida do casal e de seus respectivos familiares, propiciou que duas culturas distintas entrassem em contato e afetassem-se mutuamente. Quando realizei o meu trabalho de campo no extremo oeste de Santa Catarina, constatei que quase não havia negros na região e talvez não houvesse qualquer africano. Isso me leva a inferir que o retorno de Gilberto – acompanhado de uma esposa negra, com outra cultura e hábitos – tenha gerado reflexos na comunidade de Dionísio Cerqueira, onde ele nasceu, e no município de Palmitos, onde o casal vive atualmente. Se o exemplo não é regra, também não é exceção, como revela o intercâmbio firmado entre o MPA e a CONAMURI do Paraguai.

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O intercâmbio entre o MPA e a CONAMURI do Paraguai A parceria entre o MPA e a Coordinadora Nacional de Organizaciones de Mujeres Trabajadoras Rurales e Indígenas (CONAMURI) é o mais recente projeto de intercâmbio transnacional posto em prática pelo MPA e ainda não há qualquer relato sistematizado sobre essa experiência, razão pela qual esta análise tem como base dados coletados a partir de uma entrevista aberta com Emelson Maciel, o técnico-militante do MPA responsável pelo desenvolvimento desse projeto no Paraguai, tendo sido selecionado para atuar na brigada do MPA, no Paraguai, pelas suas habilidades técnicas e comprometimento político. Tecnólogo em Agroecologia formado pela "Escola Latino-americana de Agroecologia" (ELAA) do Paraná, Emelson faz parte do grupo de técnicos da Oestebio que morava na casa contígua à casa de apoio do MPA em São Miguel do Oeste e por isso criamos uma relação próxima. Apesar de não nos vermos desde a V FENAMIC, somos "amigos" no Facebook e a manutenção do laço à distância, através dessa rede sociotécnica, garantiu a permanência da nossa relação e o meu consequente acesso aos dados mencionados. Embora seja nascido e criado em uma comunidade de Anchieta, durante a nossa convivência em São Miguel do Oeste, eu tive oportunidade de reconhecer no militante um espírito cosmopolita, que se externava nas suas escolhas musicais ecléticas e na forma como se referia aos "internacionais" que conheceu em cursos de formação política promovidos pelo MPA, pela Via campesina e por outros parceiros. Assim como no caso da relação entre a UNAC e o MPA, os primeiros contatos entre a CONAMURI e o MPA se deram em consequência da sua articulação na rede Via Campesina e a relação de intercâmbio foi deflagrada pela organização estrangeira, que buscou estabelecer parceria com o MPA, devido à expertise do movimento social brasileiro no desenvolvimento de projetos de resgate do conhecimento tradicional camponês e de produção de sementes crioulas a partir de técnicas agroecológicas. Da mesma forma que a parceria estabelecida entre o MPA e o movimento social africano, a aliança construída entre o MPA e a CONAMURI pode ser classificada como estratégica e não como tática, porque ambas as organizações têm os memos objetivos de largo prazo e compartilham a mesma identidade de camponês. No entanto, apesar das comunalidades, o estabelecimento desse padrão de relação não é automático, porque demanda a consolidação de laços de confiança. No caso em tela, o processo contemplou relações de intercâmbio de mão dupla. Antes da criação da brigada do MPA no Paraguai, militantes da CONAMURI vieram ao Brasil conhecer as experiências com 244

sementes desenvolvidas pelo MPA no sul do país e participaram de eventos e cursos de formação promovidos por esse movimento social, como, a V FENAMIC e um curso internacional de sementes realizado em 2013. Neste mesmo ano, Emelson Maciel foi deslocado do Brasil para o Paraguai, para atuar na unidade de produção do Instituto Agroecológico Latino-americano- IALA Guarani, em San Pedro, Paraguai e em comunidades camponesas da região (informação verbal)129. O projeto teve início em uma conjuntura política tensa e bastante desfavorável para os camponeses no Paraguai, em decorrência da adesão do Movimiento Campesino Paraguayo (MCP) à luta armada e ao conflito de interesses na região de Curuguati, onde o IALA Guarani funcionou até a deflagração da crise que redundou no "Massacre de Curuguati", como ficou conhecida a invasão do assentamento “Marina Kue”, localizado no município de Curuguati, por 300 policiais apoiados pelo Grupo Especial de Operações (GEO) em 15 de junho de 2012. A controvertida “ação de reintegração de posse” resultou na morte de 11 camponeses e seis policiais e na prisão de 14 trabalhadores rurais, dentre os quais, homens, mulheres e dois menores de idade, alguns deles ainda presos, mesmo sem provas concretas. Não por acaso, seis dias depois, em 21 de junho de 2012, o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, foi derrubado por um “golpe constitucional” e o vice, Federico Franco, assumiu a presidência. De acordo com a versão oficial e a grande mídia local, apesar da ação policial ter sido desmesuradamente violenta, os camponeses resistentes à invasão são responsabilizados pela deflagração do conflito que redundou no Massacre. A versão, apesar de oficial, é controversa e refutada não só pelos acusados, como por organizações de Direitos Humanos internacionais130. Apesar do contexto de criminalização dos movimentos sociais rurais, em 2013 tem início o trabalho do MPA junto à Conamuri. Emelson está baseado no departamento de San Pedro, mas o trabalho prático é desenvolvido no assentamento Primavera Real. De acordo com o seu relato, o projeto em curso objetiva "levar um pouco do nosso trabalho [do MPA] e da nossa experiência", porque eles [camponeses paraguaios] têm uma variedade muito maior de sementes do que nós aqui, "mas não tem um trabalho", e por isso buscaram a parceria com o MPA. A parte técnica compreendeu o levantamento das sementes crioulas existentes e a sua catalogação, a realização de cursos de capacitação onde os camponeses vão aprender novas

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DA SILVA, Valter Israel. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, por skype, em 2013. Esta narrativa está apoiada na entrevista com Emelson e em matérias publicadas pela Carta Capital (2012) e pela Empresa Brasileira de Comunicação (2012, 2013). 130

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técnicas de cruzamento e melhoramento das variedades crioulas, "na lógica de contribuir com a soberania deles", e a organização de casas de sementes comunitárias geridas pelas próprias comunidades onde estão situadas. Segundo o relato de Emelson, a CONAMURI esperava que o MPA chegasse ao Paraguai com uma receita pronta; no entanto, de acordo com a metodologia adotada pelo movimento social brasileiro, os beneficiários do projeto devem participar de sua concepção. O que está de acordo com a concepção de Soberania Alimentar como um direito humano universal, cuja promoção exige soluções contextuais e desenvolvidas localmente. Destarte, o projeto teve início com um trabalho de conscientização política e de sensibilização da base em relação às sementes. Emelson era introduzido às comunidades de camponeses, por uma militante da CONAMURI e, na sequência, apresentava a eles o MPA e o seu respectivo projeto de recuperação e preservação de sementes, com a intenção de envolver a comunidade local no projeto em andamento na região de San Pedro. Aqui mais uma vez pode-se confirmar a complementaridade entre as redes locais e as redes globais na consolidação dos movimentos sociais, entendido, aqui, não como organização, mas nos termos de Casas-Cortés, Osterweil e Powell (2008), como espaço de conhecimento prático. Pode-se concluir que o projeto tenha sido bem sucedido, pois após a conclusão de algumas etapas, surgiu a demanda pela comercialização de parte da produção estocada nas casas de sementes. Para a realização desse plano, a CONAMURI buscou o auxílio da OXFAM e de uma cooperativa sueca. Ambas as organizações visitaram as experiências e a OXFAM comprometeu-se a financiar a estruturação de outra casa de sementes e a adquirir parte das sementes produzidas pelas famílias contempladas. Emelson também ficou responsável pela elaboração e acompanhamento técnico desse novo projeto, mas esclareceu que os recursos serão todos destinados a CONAMURI e nada ficará com o MPA. Segundo o técnico-militante, a língua foi uma barreira inicial, porque a maioria das comunidades fala Guarani e a alimentação à base de mandioca aumentava as saudades do Sul, mas, apesar dos "sessenta quilos molhado", ele pretende dar continuidade ao projeto, que, apesar das dificuldades, considera bem sucedido. Em suas palavras: Só de você chegar lá e montar um trabalho que dá certo, outras comunidades passam a querer também, tinha pessoal ligado a CONAMURI e pessoal que não estava ligado a CONAMURI (informação verbal)131.

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MACIEL, Emelson. Entrevista concedida a Carolina Burle de Niemeyer, por Skype, set. 2014

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Quando realizei essa entrevista, Emelson estava em Chapecó, participando de um curso de Agroecologia patrocinado pela ATER, mas ia para o Paraguai em breve, não só para dar sequencia ao projeto, ministrando um curso de capacitação técnica para os agricultores, como para rever a namorada que conheceu durante a realização desse trabalho e com quem pretende se casar e levar para morar com ele em Santa Catarina. Assim como no caso de Moçambique, o deslocamento do olhar do nível meso para o nível micro revela novos aspectos sobre o local e o global e fortalece a ideia que essas instâncias, embora diferentes, são complementares e afetam-se mutuamente, por meio de uma dinâmica dialética, embora não necessariamente sincrônica. O que corrobora com a nossa proposta de analise das relações entre as diferentes escalas e instâncias de ação, a partir dessas premissas.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta tese buscou contribuir para ampliar a compreensão do papel dos movimentos sociais na produção de conhecimento, a partir da investigação do desenvolvimento da Soberania Alimentar na práxis política, cognitiva, epistêmica e expressiva do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA). Em termos mais amplos, enfocamos o movimento camponês global, entendido aqui como um fenômeno amplo e não como uma organização (MELUCCI, 1996; 2001). O nosso principal objetivo foi contribuir para o entendimento de como esses sujeitos tem agido – e não apenas reagido – em relação ao contexto em que estão inseridos, de forma a mobilizar processos de mudança social a seu favor. De acordo com a nossa hipótese, através de sua atuação prática e discursiva, os movimentos sociais estão travando uma luta que, além de política e cultural (conforme evidenciado por inúmeras perspectivas para a análise de movimentos sociais), é também cognitiva e epistêmica. E a Soberania Alimentar é interpretada por nós como uma dessas respostas. Para operacionalizar essa hipótese, adotamos um enfoque transdisciplinar, na intenção de desenvolver uma proposta de análise multidimensional e multiescalar da Soberania Alimentar, tendo em vista mostrar que essa “forma de conhecimento-prático” vem sendo desenvolvida pelo movimento camponês contemporâneo — representado pela Via Campesina e as suas organizações constituintes — em diálogo, relações e tensões com seus parceiros e opositores, em todos os níveis e escalas de ação. No curso dessa pesquisa, elaboramos uma proposta analítica discriminada em três dimensões distintas, mas não necessariamente excludentes: o diálogo, a tradução e a ação estratégica. Para o seu desenvolvimento, mobilizamos perspectivas trazidas da Teoria Social, da Filosofia da Ciência e da Sociologia dos Movimentos Sociais, na intenção de capturar diferentes dimensões da dinâmica constitutiva da produção de conhecimento por movimentos sociais e evidenciar os aspectos relacional, dialógico e conflituoso desse processo. Outro interesse nesse trabalho foi mostrar que a produção de conhecimento pelos movimentos sociais contemporâneos é multiescalar e multidimensional e que essas instâncias são inter-relacionadas e mutuamente constitutivas. A despeito de posições globalófilas ainda imperantes, o local ainda importa. Mas o espaço social e relacional ampliou-se em razão de transformações nos campos da: economia, produção, comunicação, tecnologia, governança, cultura, etc. Os quais afetaram os padrões das relações, no sentido que o que antes era tido como estável, agora é mais bem entendido como fluxo. Na Sociedade Complexa (MELUCCI, 248

1996) e no contexto de multiterritorialidade (HAESBAERTH, 2005) em que vivemos, não se pode falar em estrutura, da mesma forma que antes, mas em um complexo sistêmico interrelacionado, no qual os movimentos sociais atuam no intuito de induzir a estabilidade ou a mudança social. Tendo isso em vista, nessa pesquisa, propusemo-nos a mostrar que esse processo é interativo, relacional e transescalar e que dele emergem novas formas de conhecimento, como a Soberania Alimentar. A Soberania Alimentar é uma conceituação transnacional ancorada em práticas camponesas locais e desenvolvida em diálogo com a ciência e a agroecologia. Essa multidimensionalidade explica a sua adoção por camponeses pertencentes a distintas culturas, do norte e do sul global, inclusive aqueles não articulados à Via Campesina. Nessa tensão relacional, a Soberania Alimentar vai sendo enriquecida com novos sentidos e práticas e se constituindo como uma forma de produção social de conhecimento, onde a práxis teórica é mobilizada politicamente e a práxis produtiva transformada em estratégia de resistência social. Pela sua abrangência, a Soberania Alimentar transcendeu, ainda, os limites do rural e tornou-se um dos principais conceitos aglutinadores do movimento altermundialista nos 19902000, consolidando-se como símbolo de resistência social e conquistando lugar nos discursos de sujeitos os mais diversos, dentre os quais, consumidores, ambientalistas, feministas, movimentos autonomistas, hackers, entre outros que mobilizam o conceito em busca de legitimar suas demandas, ancorados na sua atribuição como direito humano inalienável. O que se constata é que, passados quase vinte anos da sua divulgação pública pela Via Campesina em 1996, a conceituação foi incorporada ao léxico dos movimentos sociais rurais e urbanos, contribuindo para fortalecer o elo entre o campo e a cidade. Isto faz com que tenha dupla dimensão: por um lado, trata-se de um conceito global, universalmente válido e, por outro, legitima diversas formas de "conhecimento-prático", contextuais e localmente definidas. Vista por esse viés, a Soberania Alimentar não é uma, são muitas. E pode ser interpretada como um “programa de conhecimento” mobilizado pelo diálogo, pela tradução e pela ação estratégica da Via Campesina e de suas organizações constituintes, nas suas relações entre si e com os seus parceiros e opositores, em distintos contextos e escalas de ação. Nessa tese, estabelecemos um recorte e optamos por enfocar a dinâmica desse processo na práxis política, cognitiva, epistêmica e expressiva do MPA, considerado em seus vieses como organização autônoma e como membro constituinte da rede Via Campesina.

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Os capítulos foram estruturados de forma a evidenciar as inter-relações entre essas distintas dimensões da práxis dos movimentos sociais, e as tensões mutuamente constitutivas entre as suas distintas escalas de atuação. O nosso percurso começou na escala global, com ênfase nos níveis macro e meso de análise, passou pelo nacional, onde o foco recaiu sobre as organizações, até chegar no local, onde nos propusemos a acompanhar os atores que constroem o movimento no extremo oeste de Santa Catarina, para então partir com eles em direção a outros países e acompanhar o processo de transnacionalização do MPA e a criação de novas espacialidades e formas de conhecimento. O nosso interesse em desenvolver uma análise multiescalar do objeto Soberania Alimentar e dos sujeitos que a constroem respondem pela amplitude de debates travados nesse trabalho. Em nosso entendimento, não seria possível entender o processo estudado sem a recuperação de aspectos gerais sobre o sistema agroalimentar neoliberal e uma análise mais aprofundada sobre as mudanças no regime de propriedade intelectual sobre as sementes, considerada aqui como símbolo e materialidade da Soberania Alimentar na Via Campesina e, em especial, o MPA. Da mesma forma que conhecer o contexto de liberalização da agricultura nos 1990 no Brasil e ter ciência da crise de representatividade dos sindicatos rurais à mesma época contribuíram para o entendimento das motivações à criação do MPA naquele momento histórico. Assim como a recuperação da gênese do processo de resgate de sementes em Anchieta colaborou para explicar as ações e estratégias adotadas por esse movimento, nesse local específico. A compreensão da construção de novos conhecimentos como sendo um processo coletivo e social motivou-nos a adotar uma perspectiva interativa e relacional para o seu estudo e a identificar e incluir nessa pesquisa os principais atores e instituições que influenciaram a formação ideológica, teórica e prática do MPA e aqueles com os quais o movimento interage no processo de construção da Soberania Alimentar. Somado a isso, o interesse na apreensão das dinâmicas mobilizadoras desse processo foi o que motivou a reflexão e a sistematização da proposta analítica apresentada no capítulo teórico dessa mesma tese. A adoção de uma metodologia plural também foi definida em função da abordagem que nos propusemos a desenvolver. Os documentos textuais e imagéticos, somados às entrevistas, foram as principais fontes de dados usadas na realização dos três primeiros capítulos empíricos, porque equivalem à sistematização da práxis cognitiva do movimento social e permitem uma análise diacrônica do processo, como aí pretendido. Por fim, nosso interesse em acompanhar a dinâmica do processo constitutivo da Soberania Alimentar, no nível micro e na escala local, induziu-nos à realização de uma 250

pesquisa empírica de viés etnográfico que permitisse acompanhar o cotidiano dos sujeitos individuais, membros do MPA, em suas ações em um lugar específico. Por conseguinte, e de comum acordo com o movimento, ficou decidido que iríamos acompanhar o projeto de resgate e massificação de sementes, por ele realizado, no extremo oeste de Santa Catarina. Ao mesmo tempo, o interesse por revelar as tensões e relações entre o global e o local (e vice versa) motivou-nos a seguir esses sujeitos individuais em suas viagens de intercâmbio técnico e político para a Venezuela, Moçambique e Paraguai. Uma etapa da pesquisa, para a qual a tecnologia de informação e as redes sociais foram imprescindíveis, porque permitiram a manutenção dos laços de confiança e amizade construídos e o acompanhamento do dia-a-dia desses sujeitos, mesmo que à distância. No curso dessa investigação, tivemos oportunidade de conferir as vantagens de ir a campo movidos por um conjunto de questões, porém abertos ao que de novo pudesse vir a ser revelado. A realização de entrevistas abertas e semiabertas, em que as perguntas serviram como eixo norteador, mas não limitaram o escopo do debate, foi o que permitiu a revelação de processos que jamais teríamos descoberto, caso restringíssemo-nos a um roteiro pré-definido. Na redação da tese, optamos por trazer em detalhes as falas e os contextos, tendo em vista promover o objeto a sujeito, conferindo legitimidade teórica e analítica à sua produção cognitiva, e buscar correlações entre o seu discurso e a sua práxis social, na intenção de descortinar aspectos da produção de conhecimento pelos movimentos sociais a partir desse confronto. A nossa pesquisa foi movida pelo interesse principal de confrontar a nossa hipótese com uma realidade empírica: a Soberania Alimentar na prática do MPA. No curso desse estudo, tomamos em conta os atores envolvidos, os parceiros e adversários, bem como as dinâmicas constitutivas deste processo, na intenção de revelar que, através de sua atuação prática e discursiva, os movimentos sociais estão travando uma luta que, além de política e cultural, é também cognitiva e epistêmica. Observando a pesquisa como um todo, consideramos que atingimos o nosso objetivo inicial e confirmamos a importância da adoção de um viés cognitivo epistêmico para a análise de movimentos sociais. A perspectiva proposta permitiu, em primeiro lugar, ir além da delimitação estrita do movimento como uma organização ou como um objeto. Em segundo lugar, contribuiu para examinar o processo de construção da Soberania Alimentar — entendida em seu viés como forma de conhecimento social — permitindo-nos ir além da análise dos resultados cristalizados em campanhas ou outros produtos. Em terceiro lugar,

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reforçou a importância da construção indutiva de uma abordagem teórica-metodológica que conecte mais fortemente teoria e empiria. Embora os créditos da realização de uma tese sejam individuais, sua construção também é um processo coletivo, para o qual contribuem, além do orientador, teóricos e pensadores (tanto os eruditos como os formados a partir da base), com os quais dialogamos no processo de construção da nossa reflexão original, cujas teorias, saberes e práticas incorporamos para dar consistência e substância ao nosso trabalho. A partir dessa experiência, viemos a reconhecer a observação da realidade concreta, com base em um conjunto de valores e em diálogo com a teoria, como uma importante estratégia para o desenvolvimento teórico e analítico do estudo dos movimentos sociais. Uma lição que aprendemos no campo, observando, interagindo e dialogando com os intelectuais, dirigentes e militantes dos movimentos sociais.

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