Movimentos sociais e Produção de Conhecimento: uma proposta teórica e metodológica para a análise da Soberania Alimentar como teoria e prática
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Carolina Niemeyer1 Resumo Este artigo deriva da minha tese de doutorado denominada Movimentos Sociais como produtores de conhecimento: a Soberania Alimentar no Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) . Nesse trabalho, interpretamos a Soberania Alimentar como uma forma de conhecimentoprático que vem sendo desenvolvida pela Via Campesina e as suas organizações constituintes, em interação com os seus parceiros e opositores, em relação a diferentes contextos de ação, nas escalas global, regional, nacional e local . A partir de diferentes aportes, buscamos desenvolver uma proposta teóricometodológica transdisciplinar que auxiliasse nesse estudo e este é o foco deste artigo. Introdução A Soberania Alimentar é uma das inúmeras respostas criativas e originais criadas por movimentos sociais de base para o enfrentamento do capitalismo em escala mundial. Pela sua multidimensionalidade, a conceituação tem diferentes facetas e pode ser analisada a partir de diferentes enfoques. Para autores como Mc Michael (2013), a Soberania Alimentar representa a melhor alternativa ao atual regime agroalimentar neoliberal que vigora desde o final do século XX. Outros enfatizam o seu viés como quadro de ação coletiva (Clayes, 2013) e outros o seu aspecto como Direito Humano Inalienável (Patel, 2007). Sem descordar de nenhuma das abordagens mencionadas, a nossa interpretação converge na direção de Wittman (2011, p. 88), que adota uma perspectiva epistêmica para a análise do fenômeno, percebendoo como uma “ciência emergente” construída por meio das práticas produtivas e das propostas políticas de um conjunto heterogêneo de movimentos de base. E na direção de Torres e Rosset (2013, p. 1), para quem, “o paradigma da Soberania Alimentar foi construído mediante o encontro e o diálogo de saberes entre diferentes culturas rurais e do confronto político com o neoliberalismo e o agronegócio”. Neste trabalho entendemos a Soberania Alimentar como um "programa de conhecimento" com aspectos teóricos e práticos e viés assumidamente político. Este programa é resultante de um processo de produção social de conhecimento movido pela ação e pela troca de experiências e de saberes entre diferentes sujeitos, individuais e coletivos, articulados em redes de solidariedade transescalares e transdisciplinares. Doutora e m Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos IespUERJ; Tecnologista e m Saúde Pública associada a o programa Radis / Ensp / Fiocruz; pesquisadora a ssociada a o Núcleo de Teoria Social e América Latina Netsal 1
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Para os sujeitos engajados neste processo, ciência é política e o seu principal objetivo deve ser a emancipação humana e a preservação da vida. Percebemos a Soberania Alimentar, como uma forma de conhecimentoprático que vem sendo desenvolvida pela Via Campesina e as suas organizações constituintes, em interação com os seus parceiros e opositores, em relação a diferentes contextos de ação, nas escalas global, regional, nacional e local . Esta dinâmica está inserida em um processo contrahegemônico, onde a Soberania Alimentar aparece com enorme centralidade no campo de disputa política por modelos de desenvolvimento, tendo em vista que coloca em cheque os fundamentos que sustentam a produção e reprodução do capitalismo. Esta é uma disputa material e simbólica, onde os movimentos sociais, além de intervirem no campo político de forma contenciosa ou institucional, atuam também através do desenvolvimento de novos conhecimentos práticos e teóricos. A partir deste pressuposto, defendemos a ideia que através de sua atuação prática e discursiva, os movimentos sociais rurais contemporâneos estão travando uma luta que, além de política e cultural, é também cognitiva e epistêmica e buscamos desenvolver uma proposta teóricometodológica que auxiliasse nesta análise. Esta empreitada demanda a mobilização de conceitos, teorias e quadros interpretativos diversos, o que exige a superação de velhas dicotomias e o empreendimento de um diálogo entre a Sociologia dos Movimentos Sociais e outras áreas de conhecimento. O estabelecimento desse diálogo interdisciplinar, decerto parcial, não é simples, mas nos parece fundamental para avançar na discussão teórica sobre os movimentos sociais contemporâneos, para além de sua concepção como organizações muito delimitadas (social e territorialmente) ou como atores cristalizados em um positivo científico que impede captar suas subjetividades, elaborações e vivências. Para organizar a nossa reflexão, estruturamos este artigo em eixos temáticos definidos pelos principais temas e questões com os quais estamos trabalhando. Iniciamos com uma problematização da noção de conhecimento e o questionamento do lugar e do papel atribuídos à ciência em nossa sociedade; damos sequência com uma leitura teórica sobre Movimentos Sociais e Produção de Conhecimento, para então introduzir o debate sobre Territórios, Redes e Escalas em sua relação com as ações e práticas dos movimentos sociais contemporâneos. Conhecimento para além da racionalidade científica Partese do pressuposto que a ciência racional, embora naturalizada para parecer a única opção possível, é uma construção moderna onde o cientificismo substitui a religião na legitimação do conhecimento, instituindo novas relações de poder que eliminam outras formas de racionalidade e saberes do universo de possibilidades, em favor da imposição de um modelo de sociedade: o capitalismo.
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A opressão cultural e epistêmica não é novidade e foi uma das principais estratégias, moderna e colonialista, para garantir o poder sobre os povos colonizados e os subalternos. Conforme reconhecido por De Sousa Santos (2002), o colonialismo enquanto projeto político findou com a independência das colônias, mas o Colonialismo enquanto projeto social continua operante nas periferias, tanto das excolônias como dos países centrais, por meio de estratégias de opressão epistêmicocultural (algo que os diversos autores vinculados ao pensamento pósdescolonial latinoamericano definiram como c olonialidade ). A cientificidade tornouse dogma e substituiu a religiosidade como parâmetro de legitimidade dos sentidos e significados atribuídos a questões chaves para a sociedade, como a Agricultura e tudo o que a envolve. Por conseguinte, a disputa é de ordem cultural, mesmo quando envolve o acesso e o direito aos meios de produção, como no caso dos movimentos camponeses, porque estão em cheque saberes, modos de vida e formas de reprodução social. No domínio do rural, o advento da agricultura transgênica marca uma revolução na forma de produção e reprodução de alimentos e altera drasticamente a realidade de agricultores e camponeses do mundo inteiro, porque a semente, até então um bem natural, tornase um código informacional e privado, cujo uso e reprodução estão sujeitos à cobrança de royalty . Além de colocar em perigo a segurança alimentar do planeta, este padrão de agricultura ameaça a cultura dos povos e a biodiversidade agrícola global, pois as sementes crioulas e tradicionais, que são o principal repositório do saber histórico e tradicional camponês, ficam ameaçadas de extinção. Nesse contexto, as universidades, os institutos de pesquisa, as comissões técnicas, as publicações científicas, as organizações, os editoriais de economia e a grande mídia são espaços privilegiados de legitimação da ideologia dominante, e os movimentos sociais encarnam um poder contrahegemônico fundamental nessa batalha por corações e mentes. O seu lugar subalterno na sociedade obrigaos a desenvolverem “conhecimentoprático” (CasasCortés, Osterweil e Powell, 2008) geralmente à margem das instituições, por outro lado, a sua não institucionalização (Melucci, 1996), ou institucionalização frouxa (Borras, 2004) permite que ajam reflexiva e criativamente em relação aos constrangimentos sistêmicos, por meio da reinterpretação de velhos problemas e da problematização de questões até então naturalizadas. Esta mesma característica propicia que, através da sua práxis cognitiva , desenvolvam ideias e visões de mundo alternativas; as quais, apenas em um segundo momento, serão sistematizadas e resignificadas nos espaços 2
institucionais de produção de conhecimento, conforme reconhecido por Eyerman e Jamison ( 1991) . No contexto da ciência hegemônica, os saberes tradicionais, indígenas, camponeses, orientais e todos os que se desenvolveram apoiados por valores não modernos são considerados não científicos,
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Cabe, no entanto, notar, como fizeram Bringel e Echart (2010), que, dependendo da sua capacidade de organização, formulação, autonomia e (des)vinculação aos atores hegemônicos (como os partidos, a mídia e as grandes organizações), os movimentos sociais podem tanto gerar agendas e conhecimentos próprios, como reproduzir a agenda e formas de produção conhecimento hegemônica.
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independentemente do seu valor cognitivo. Isso porque a ciência moderna confundiu o valor social do controle com o valor cognitivo, ao transformar o primeiro no principal critério de validação do conhecimento, com enorme prejuízo para a pluralidade científica, porque nega direito de existência a qualquer forma de conhecimento que não atenda a esse parâmetro, independentemente de sua eficácia contextual (Lacey, 2008; De Sousa Santos, 2002, 2008). Em resposta a este dilema, o filósofo da Ciência Hugh Lacey (1999) propõe que o critério de objetividade substitua o critério materialista do controle no processo de comprovação científica, porque essa seria a condição básica para que uma “ciência engajada” — regida por valores sociais e morais e comprovada na prática, como a agroecologia e a agricultura camponesa — tenha direito a existência e possa ser testada e validada pelas instituições que legitimam a ciência. De Sousa Santos (2002; 2005) vai além, ao afirmar que sem uma crítica ao modelo de racionalidade ocidental, dominante há pelo menos duzentos anos (a racionalidade indolente, em seus termos), "todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito. (Sousa Santos, 2002. p. 238). Com base no reconhecimento que "todo saber é ignorante de outro saber" e que a validação do conhecimento é relativa e dependente do contexto, o sociólogo português propõe a edificação de uma “epistemologia do Sul” mobilizada pelo “diálogo de práticas e saberes” entre o conhecimento científico e o tradicional e entre distintas culturas. A partir de uma perspectiva feminista, Haraway (1998) também prega o pluralismo científico e considera o ideal de universalidade uma falácia que mascara uma relação de poder, em que os valores ocidentais, machistas e capitalistas foram naturalizados para equivalerem à verdade. A teórica reconhece o valor do conhecimento coletivo, teórico e prático, gerado no cotidiano do mundo da vida e propõe a adoção de uma perspectiva parcial, com base em uma "política de localização e de implicação", em que se assuma o território concreto do qual se fala, se atua e se investiga e cujo sujeito do conhecimento, ao invés de abstrato, tem um corpo e está inserido em uma estrutura social concreta. O conhecimento subalterno denuncia a falácia da neutralidade da ciência na prática, demonstrando que a pluralidade científica só pode ser atingida, quando a sua referência ideal é outro padrão de objetividade: encarnado e contextualizado. Em substituição à objetividade embasada pela racionalidade instrumental, que sustenta as relações de dominação, a epistemologia feminista sugere uma “objetividade como racionalidade posicionada” (Haraway, 1988. p. 590). Um valor que serve para as relações entre humanos e não humanos, e entre humanos e eles mesmos, pois Haraway (1988, p. 592) afirma que um conhecimento situado deve tratar o seu objeto como ator e agente, levando em consideração não apenas as pessoas, mas também a natureza. Esta assertiva remetenos a Latour (1997) e à sua proposta de atorrede, de acordo com a qual, a sociedade é composta por entes humanos e não humanos. Em diálogo com muitos aportes da sociologia da 4
ciência, Latour dá voz às coisas inanimadas e mostra como, sem elas, o sistema moderno simplesmente não funciona, levandonos a refletir que, em verdade, foi a Modernidade quem negou à natureza o seu status de sujeito, ao supervalorizar a cultura, mediante uma racionalidade instrumental que limita o mundo natural (e social) a uma fonte de recursos a serem controlados e explorados ao limite. Em seu viés como “conhecimentoprático”, a Soberania Alimentar vem se desenvolvendo a partir do diálogo entre o conhecimento tradicional e a Agroecologia e conformando um “programa social de conhecimento”, no qual as sementes além de ícone têm lugar de sujeito, ao terem as suas especificidades e conhecimento acumulados na sua existência material tomados em conta, quando na elaboração e desenvolvimento do projeto. O modelo de agricultura camponesa, assim como a Agroecologia, é regido por valores opostos aos capitalistas, porque adota um ideal de relação social que renega a maisvalia , assim como o ideal moderno de controle, ao “projetar a natureza e a cultura sobre um mesmo plano” (Habermas, 1999. p. 76) ou, pelo menos, em um plano de igualdade de direitos à existência. Movimentos Sociais e Produção de Conhecimento Em diálogo com as contribuições de Alberto Melucci (1996, 2001), entendemos movimentos sociais mais como um recurso heurístico e uma categoria analítica, do que como um fenômeno empírico delimitado. Esta perspectiva ajudanos a entendêlos não como entes substancializados em grupos ou instituições, mas como processos de ação social . Para o sociólogo italiano, movimento social é uma categoria analítica que designa uma forma de ação coletiva específica que envolve necessariamente três processos: a mobilização de um ator coletivo (i) definido por solidariedades específicas, (ii) engajado em um conflito com um adversário pela apropriação e pelo controle de recursos válidos para ambos e (iii) cuja ação envolve a quebra dos limites de compatibilidade do sistema no qual a ação tem lugar (Melucci, 1996. p. 2930; 6883). Movimentos sociais são sistemas de ação , porque nas sociedades complexas não se pode pensar em totalidade sistêmica. O que antes era tido como o sistema social está decupado em quatro diferentes sistemas na sociedade: o sistema de produção social , o sistema político , o sistema organizacional e o sistema reprodutivo ou mundo da vida , entre os quais existe uma relação com certo grau de hierarquia, autonomia e dependência, pois os limites e as possibilidades de um sistema são definidos em relação ao outro. A ação social é definida em relação ao sistema ao qual se dirige, envolvendo sempre uma disputa por recursos a ele pertencentes. Sendo assim, devese iniciar o estudo pela investigação do campo do conflito, para somente então explicar como certos grupos sociais atuam sobre ele (Melucci, 2001. p. 107). Na atual conjuntura, tanto nas sociedades centrais como na periferia do planeta, as novas formas de desigualdade englobam formas de privação cultural, como “a destruição de culturas tradicionais substituídas pela marginalização ou pelo consumo dependente e pela imposição de modelos de vida que não mais provêem os indivíduos com a base cultural para a sua autoidentificação” (Melucci, 1996, p.93), mesmo 5
quando envolvem a luta pelo direito aos meios de produção, como é o caso da luta pela Soberania Alimentar. No seu processo constitutivo, os atores envolvidos na sua construção têm confrontado a sociedade com novas questões e novas formas de interpretar a agricultura, criado novas agendas políticas, pressionado por mudanças nos diferentes subsistemas sociais envolvidos e desenvolvido novas alternativas no campo da produção. Esta dinâmica é mobilizada pela troca de saberes e de informações entre diferentes sujeitos individuais e coletivos e o resultado desta relação gera um arsenal de novos conhecimentos materiais e imateriais registrados em distintos suportes, os quais servem como material de análise para o empreendimento de uma leitura cognitiva a posteriori do processo. No domínio da sociologia dos movimentos sociais, Eyerman e Jamison (1991) inauguraram o diálogo com a sociologia do conhecimento e mantémse como referência para os que se propõem à realização de uma leitura cognitiva de Movimentos Sociais. Influenciados pela noção de movimento social Tourainiana e pelo conceito de “Conhecimento e Interesse” de Habermas, os teóricos desenvolvem uma abordagem comparativa e historicamente informada, que conecta o movimento social a uma teoria contextual de mudança social. A sua proposição está apoiada em uma noção de conhecimento que considera modos formais e informais de produção de conhecimento como válidas e não estabelece uma dicotomia entre o trabalho intelectual e o prático. "Por esta perspectiva, o conhecimento não é apenas, ou primeiramente, o conhecimento formal científico e acadêmico produzido por profissionais sancionados, é antes a prática cognitiva ampla que informa toda atividade social", engloba o conhecimento "formal e informal, objetivo e subjetivo, moral e imoral e, mais importante, profissional e popular" (Eyerman e Jamison, 1991, p. 49). Os teóricos enfatizam a ocorrência de uma relação de mão dupla, onde o movimento tanto é influenciado pela sociedade como a influencia por meio da sua práxis cognitiva , a qual está registrada em: textos, livros, declarações, músicas, slogans, modelos institucionais, tecnologias e outros recursos cognitivos; os quais, pela sua perenidade, transcendem os limites temáticos, geográficos e temporais do movimento social. Com o apoio dessa proposta teórica, podese problematizar o processo de criação de conceitos e o papel mediador dos movimentos na “construção social do conhecimento”, porque a práxis cognitiva dos movimentos sociais, registrada nesses suportes, é vista como uma das principais fontes a partir de onde o senso comum e a ciência desenvolvem as novas perspectivas e as novas ideologias. O interesse dos teóricos é em descobrir o berço dos novos intelectuais e os movimentos sociais são vistos como os mediadores no processo de construção social do conhecimento, porque a dinâmica processual da sua práxis cognitiva favorece o surgimento dos “Intelectuais do Movimento ”, entendidos como sendo os responsáveis pela produção cognitiva dos movimentos sociais. Este conceito está inspirado no “Intelectual Orgânico” de Gramsci e visa discriminar entre o intelectual forjado no seio do movimento social e aquele que o influencia a partir de cima. No entanto, a noção de “intelectual coletivo da classe”, 6
associada ao papel exercido pelo movimento social – ou partido político – na construção da consciência coletiva da classe, passa despercebida para Eyerman e Jamison. Na interpretação de Leher e da Motta (2012, p. 426428), “a abordagem Gramsciana do intelectual não é subjetiva, mas sim, coletiva: são os intelectuais como massa – e não como indivíduos – cuja função é produzir e difundir ideologias que o interessam”. A partir da noção de “intelectuais coletivos da classe”, a fonte gerativa de novos conhecimentos não é mais o indivíduo – o intelectual do movimento – mas a práxis cognitiva de um movimento social e o processo de interação comunicativa dele com ele mesmo e com os seus aliados e opositores. Esta é uma dinâmica relacional que envolve: tradução, negociação, conflito e disputa. Pode ter viés colaborativo, quando movida pelo desejo de cooperação e/ou construção de consenso. Ou ser contenciosa a ponto de objetivar a destruição do oponente, quando está em jogo a legitimação de visões de mundo opostas e 3
concorrentes sobre questões de interesse comum . Este processo relacional é gerador de novos conhecimentos, mas devemos ir além dessa mera constatação, se quisermos capturar as dinâmicas através dos quais o conhecimento é gestado, modificado e mobilizado pelos movimentos sociais, interpretandoos como espaços de “Conhecimentoprático”. A formulação de movimentos sociais como espaços de “Conhecimentoprático” foi desenvolvida por CasasCortés, Osterweil e Powel (2008) a partir de Sousa Santos (2005), e sintetiza a ideia de movimentos sociais como espaços importantes de: criação, reformulação e difusão de conhecimento. Esses saberes assumem a forma de histórias, ideias, narrativa e ideologias, mas também teorias, conhecimentos, bem como análises políticas e entendimentos críticos de contextos particulares. O seu processo constitutivo, bem como as diversas encenações desses saberes, é o que os autores denominam como "conhecimento prático" (CasasCortés, Osterweil e Powel, 2008. P. 21) Aqui o interesse não é encaixar os estudos de caso em estruturas conceituais ou ordens conceituais preconcebidas, mas revelar a dinâmica processual através da qual um movimento social se constroi. Este objetivo obriga a realização de pesquisas de viés etnográfico, que permitam acompanhar os atores que constituem o movimento social, "escutando, rastreando e mapeando o seu trabalho e vivenciando com eles o processo de trazer um movimento à existência" (IBID. 27 p.). O que, no mais das vezes, exige, ainda que haja uma relação de confiança consolidada entre o pesquisador e o sujeito/objeto da pesquisa. O foco no processo constitutivo de novas formas de conhecimento por movimentos e coletivos sociais – e não no seu resultado – revela um novo viés da sua ação política: a produção de conhecimento alternativo como uma forma de resistência social, na disputa por poder que caracteriza a relação entre o instituinte e o instituído. Mas a proposta de interpretação de movimentos sociais como “espaços de conhecimentoprático” dos últimos autores enfatiza o modo como os movimentos sociais engajamse na tarefa epistemológica de análise, concepção e elaboração de novas formas de se conceber e de se estar no 3
As dinâmicas de tradução, negociação, conflito e disputa foram mais bem trabalhadas na referida tese (Niemeyer, 2014)
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mundo, mas não abarca o domínio da produção e outras experiências que não sejam essencialmente intelectuais ou claramente políticas. Com a intenção de dar conta desse aspecto, mobilizamos a noção de “produção como uma forma de resistência social” de Van der Ploeg (2014) e incluímos processos cotidianos e não discursivos de natureza prática e expressiva — dentre os quais, técnicas produtivas, formas de gestão, mitos e ritos — como parte das dinâmicas através das quais os movimentos sociais geram novos conhecimentos ou novas “formas de conhecimentoprático”. Van der Ploeg (IBID, p. 1819) remete a James Scott (2008 [1985]) para afirmar que a luta social não é necessariamente contenciosa e pode se dar, também, por dentro e pelas beiradas, no cotidiano da resistência oculta e camuflada dos dominados em relação aos seus dominadores. O autor elenca três formas de resistência interconectadas por uma miríade de interrelações ligadas no tempo e no espaço: a luta velada e a sabotagem , que equivale à “arma dos fracos” revelada no trabalho de Scott (2000); a luta aberta , dentre as quais inclui diferentes formas de ação contenciosa e de ação direta, excluindo a ação institucional. E a intervenção direta nos processos produtivos e no trabalho e a sua alteração , que contempla expressões urbanas, rurais e rururbanas, como: a recuperação de fábricas, a autogestão, a organização em cooperativa, a agroecologia e a agricultura camponesa urbana e periurbana. Em tais formas de resistência, diz o autor, as estruturas técnicoinstitucionais de trabalho e dos processos produtivos são ativamente alteradas, tendo em vista melhorar o trabalho e os processos produtivos e alinhálos aos interesses expectativas e experiências dos trabalhadores envolvidos (IBID, p.19). O estudo de Van der Ploeg (2014) está centrado na agricultura camponesa, interpretada como um conjunto de conhecimentos e de valores que sustentam um modo de produção não capitalista, cuja realização prática corresponde a uma estratégia de resistência social, porque implica em uma forma alternativa de estar e de se relacionar com o mundo social e natural. Seja em seu viés como teoria ou prática produtiva, a Soberania Alimentar pode ser entendida nestes termos, porque está apoiada em um princípio de economia moral (Edelman, 2009) e pelos valores camponeses de solidariedade, autonomia, autosuficiência e independência em relação ao mercado. Até este ponto, o nosso foco esteve concentrado no processo de produção de conhecimento por movimentos sociais, sem contudo situar a sua ação no tempo e no espaço e nem explorar as suas interrelações. Na próxima seção, buscamos realizar este objetivo a partir de uma discussão sobre Territórios, Redes e Escalas, tendo como meta uma concepção integradora entre essas diferentes dimensões. Territórios, Redes e Escalas Nos estudos sobre os movimentos sociais contemporâneos, é relativamente consensual a ideia de que as formas e expressividades da ação coletiva são hoje múltiplas e variáveis e que uma de suas particularidades é a articulação em rede. Também há um consenso amplo, principalmente entre os estudiosos 8
latinoamericanos, na consideração dos territórios como uma dimensão central para a localização dos conflitos e das disputas de projetos de sociedade. Outrossim, as escalas também emergem como uma variável fundamental para captar a multiterritorialidade da ação coletiva e a forma como os atores sociais constroem, de forma concomitante, ações políticas em diversas escalas (entendidas aqui como o local, o nacional, o regional e o global). Apoiados em Fernandes (2008), entendemos Território “como um espaço de vida” ou “como um espaço vital compreendido pela sua multidimensionalidade”. O teórico discrimina entre territórios materiais e imateriais (porque as disputas territoriais são travadas em diferentes dimensões: econômica, social política, cultural, teórica e metodológica) e distingue três tipos de territórios materiais interrelacionados, na intenção de revelar a dimensão do conflito e de disputa de poder entre classes que os define. O primeiro território material é formado pelo país, seus estados e municípios, ou seja, são espaços de governança. O segundo território é o da propriedade privada capitalista e não capitalista. E o terceiro, por diferentes espaços relacionais, ou seja, são territórios controlados por relações de poder que atuam por sobre o estado ou com o seu apoio, como: o narcotráfico e as vastas áreas destinadas à soja no Brasil. Os territórios materiais são objeto de disputa entre classes sociais e quem controla o território do estado – as suas estruturas de poder – controla os outros territórios, porque influencia em suas definições. No que tange ao universo rural, no modelo de sociedade capitalista vigente, a balança pende a favor das transnacionais e do agronegócio, enquanto "o agronegócio organiza seu território para produção de mercadorias, o grupo de camponeses organiza seu território, primeiro, para sua existência, precisando desenvolver todas as dimensões da vida" (Fernandes, 2008, p. 1011). Os territórios materiais são frutos de uma relação de poder sustentada pelo território imaterial através da produção de conhecimento e da ideologia. O território imaterial pertence tanto ao campo da ciência como da política, porque as explicações, os paradigmas e os conceitos são produzidos com uma intencionalidade, como, por exemplo, a definição do sistema agroalimentar. O controle do território material e imaterial é definido pela luta de classes e o desenvolvimento da nossa perspectiva teóricoanalítica, em diálogo com a empiria, levounos a entender que os movimentos sociais levam essa prerrogativa em conta, quando buscam se fortalecer mediante a construção de redes de alianças; as quais, independentemente da escala, podem variar entre redes de alianças táticas e redes de alianças estratégicas. Território é também uma noção histórica e a sua variação no tempo correspondeu aos diferentes modelos de sociedade. Haesbaert (2005) explica que as sociedades tradicionais conjugavam a construção material – ou funcional – do território à sua dimensão simbólica, como abrigo e referente fundamental à preservação de sua cultura. Nas sociedades modernas, os territórios funcional e simbólico foram dissociados até certo ponto e, mais recentemente, o território passa gradativamente de um território mais “zonal”, onde se pretende o controle de áreas, para um “territóriorede” caracterizado pela fluidez e a mobilidade, onde se 9
objetiva o controle de redes e de fluxos, sendo uma marca fundamental deste tempo histórico, a vivência cada vez mais intensa da multiterritorialidade. "O território, como espaço dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido multiescalar e multidimensional que só pode ser devidamente apreendido dentro de uma concepção de multiplicidade, de uma multiterritorialidade". (IBID, p. 67786790). No ativismo contemporâneo as redes têm transcendido os territórios nacionais, criando dinâmicas transnacionais crescentemente complexas. O crescimento do ativismo social global é, em grande medida, um reflexo da globalização neoliberal, mas esta mera atribuição, apesar de ter sido a principal explicação para o fenômeno durante o fim dos 1990 e a década de 2000, tem pouco recurso explicativo (Bringel, 2011). A despeito das suas diferenças, as perspectivas mais influentes compartilham a ideia que os impactos da globalização neoliberal induziram o ativismo social a mudar o foco do plano doméstico para o internacional, passando a direcionar as suas demandas e ações contra as instituições internacionais e as grandes multinacionais (Tarrow e McAdam, 2005; Bennet, 2005; Klein, 2002, Della Porta, 2005). Em comum a esses estudos há a adoção do nacionalismo metodológico como ponto de partida, o conceito de movimento social transnacional tem o estadonação como referência e o principal critério para que um movimento social seja considerado transnacional é o fato de estar organizado em mais de um país, o que induz a uma interpretação reducionista do fenômeno. Isso porque tendem a adotar a ideia que a sua construção se dá sempre do local para o global, o que Bringel (2014) conceituou como uma “visão teleológica e linear” das escalas de ação política. Nós defendemos que a teorização de movimentos sociais em um contexto global deve propiciar um entendimento mais complexo, holístico e crítico de fenômeno. Assim como Eschlle e Stammers (2004), entendemos que o pesquisador deve buscar entender a relação mutuamente constitutiva entre as diferentes escalas: global, transnacional, nacional e local, sem diluir as suas diferenças e especificidades, direcionando a sua atenção: ao grau de densidade das relações sociais através do globo, à reconfiguração do tempo e do espaço e ao papel da consciência, da reflexividade e da agência no processo. Bringel (2014) avança no entendimento teórico e empírico das relações entre territórios, redes e escalas tratadas de forma conjugada, na sua conceituação de espacialidades das ações coletivas. Inspirado em algumas perspectivas críticas da geografia política e da sociologia, o teórico sugere que, longe de constituirse em uma disjuntiva excludente, ambas as dimensões são complementares e o foco da análise deve ser na tensão entre elas, porque esta é uma das principais forças mobilizadoras do processo de espacialização da (contestação) política. Quando lutas sociais territorializadas se unem e/ou criam uma ou mais redes flexíveis, passam a estar conectadas a lugares diferentes e a uma variedade de escalas geográficas – do global ao local – assim como a serem partes constitutivas e nós entre diferentes longitudes na rede. Nicholls (2009) também faz um esforço teórico para integrar as diferentes dimensões e oferece um quadro conceitual para a interpretação da complexa geografia das redes dos movimentos sociais 10
contemporâneos, a partir da premissa que redes e espacialidades são dimensões diferentes, mas não excludentes, e a questão principal é entender como os distintos lugares de ativismo contribuem na conformação de m ovimentos sociais espaciais . Partindo do pressuposto que os movimentos sociais estão estruturados em redes sociais, o geógrafo incorpora Granovetter (1983 [1973]) para discriminar entre redes sociais globais e locais e os seus distintos papeis na consolidação dos movimentos sociais. Enquanto os "laços fortes" respondem pelo alto grau de confiança e de capital social, que garantem a coesão das redes locais, os "laços fracos" das redes globais contribuem para o estabelecimento de relações à distância e para a difusão da mensagem e da ideologia do movimento social. Sob esse aspecto, as redes sociais locais e globais são complementares. Na concepção de Nicholls, o conceito de lugar transcende a visão territorial, porque se refere também a "uma área que abriga diversos "pontos de contato" que estimulam novas interações entre outros" (IBID, p.84). Os “pontos de contato” surgem em oportunidades de encontro e interação entre ativistas e organizações em eventos de naturezas e objetivos diversos: protestos, coalizões, encontros nacionais, internacionais e transnacionais, seminários, fóruns sociais; cursos de formação, brigadas, etc. O fluxo dessas interações é mantido presencialmente nesses episódios, e à distância, por meio das tecnologias de comunicação. À medida que as interações se intensificam, as barreiras cognitivas são diminuídas e os valores comuns vêm à tona; em consequência, as pessoas (e organizações) tornamse mais propensas à colaboração mútua, porque as partes em relação adquirem a confiança necessária para exporem os seus saberes e ideias nas “zonas de contato” – conforme teorizado por Sousa Santos – influenciando mutuamente os seus repertórios de ação e contribuindo para a edificação de um corpo de saberes sobre as questões que lhes são caras. Na ausência de hierarquias formais, o que mantém estas redes unidas é um princípio de Solidariedade Transnacional e Desigual. Transnacional porque ultrapassa fronteiras nacionais (Featherstone, 2003; Nicholls, 2009) e desigual porque o baixo nível de capital social compartilhado limita a capacidade de controle e de coordenação dessas redes (Nicholls, 2009). Nesse processo, os ativistas migrantes têm papel estratégico “na construção de quadros interpretativos comuns e na conexão entre ativistas locais e pessoas distantes” (IBID, p. 87) e as brigadas internacionalistas ganham destaque como os espaços que oportunizam a consolidação dos laços entre as organizações, porque tem maior duração no tempo e implicam na construção de projetos comuns. Complementando Nicholls, podese dizer que os ativistas enviados para as brigadas são os agentes que fazem a ponte entre um local e outro local, porque atuam como tradutores — nos termos de Carou e Bringel (2010) — que decodificam uma cultura para a outra e tendem a estabelecer laços afetivos e de confiança nos novos lugares onde estão baseados, levando esse legado consigo quando retornam aos seus locais de origem.
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Por conseguinte, a análise da construção da Soberania Alimentar e de outras formas de ação dos movimentos sociais rurais contemporâneos demanda a adoção de uma perspectiva que conjugue essa noção ampliada de espacialidade às suas consequências em termos de criação de formas de ação e geração de novos conhecimentos. Um exemplo é o próprio conceito político de Soberania, o qual, no processo de intercâmbio transnacional que forjou a conceituação de Soberania Alimentar, foi sociologizado e deixou de representar o direito de um Estado exercer domínio sobre as suas fronteiras territoriais, passando a legitimar o direito dos povos sobre os seus territórios materiais e imateriais. É importante ressaltar, como adverte Bringel (2015), que os padrões de interação transnacional e de internacionalização dos movimentos variam enormemente no tempo, no espaço e de acordo com os diferentes tipos de sujeito coletivo. No caso da Via Campesina, costuma haver uma diferenciação feita, pelos próprios movimentos seus constituintes, entre redes de alianças táticas e redes de alianças estratégicas (Bringle e Falero, 2008; Bringel, 2014). Conforme tive chance de verificar em conversas com dirigentes e intelectuais do MPA, essa categorização foi trazida de Lênin e serve para diferenciar entre os tipos de alianças estabelecidas entre os movimentos sociais e outros atores. Os critérios definidores dessas redes de alianças não são a escala de ação e nem a sua composição, mas o interesse que une os atores na rede ser de longo prazo ou pontual, o que coincide com a existência ou não de uma identidade coletiva forte. As alianças táticas são pontuais e mais fáceis de serem construídas, porque articulam organizações, pessoas, ONGs e instituições que não compartilham, necessariamente, as mesmas crenças e ideais e nem sempre defendem os mesmos interesses, e as inúmeras redes formadas em torno da Soberania Alimentar servem de exemplo. Dentre estas, podemos citar as campanhas “Sementes”, “Combat Monsanto”, “OMC fora da Agricultura” e “Ban terminator”, a coalizão transnacional “O nosso mundo não está à venda” (Our world is not for sale), o boletim “Nyeleni" e a plataforma global “International Planning Committe for Food Sovereignity” (IPC). Já as alianças estratégicas são mais duradouras e difíceis de serem construídas, porque implicam na existência de alto grau de capital social compartilhado — normas, confiança, emoção e quadros interpretativos — e no desenvolvimento ou préexistência de uma identidade coletiva comum. Embora a identidade coletiva não seja essencial e esteja sempre em construção, para que haja um movimento social é necessário que se conforme uma subjetividade coletiva sustentada não apenas pelo reconhecimento de um inimigo comum, mas também pela existência de uma necessidade comum compartilhada pelo conjunto de atores envolvidos. Esta necessidade tem natureza material (e simbólica) e está associada à posição dos atores nas suas respectivas sociedades, mas não pode ser resumida a uma noção simplista de classe social, porque as fronteiras de ação do capitalismo ampliaramse, gerando novas possibilidades de espoliação da natureza e novas formas de opressão social que estimularam a formação de alianças originais e inesperadas tanto entre opressores como entre oprimidos. No marco da Soberania Alimentar e em nível transnacional, a única rede 12
de alianças estratégicas que reconhecemos é a Via Campesina, que acolhe uma diversidade de culturas, origens sociais e procedências sob a identidade coletiva comum de Camponês.
Considerações finais Este trabalho deriva da minha tese de doutorado, na qual busquei realizar uma análise multidimensional e multiescalar da Soberania Alimentar, entendida como uma forma de conhecimento prático, tendo como foco o Movimento dos pequenos Agricultores (MPA) e a sua contribuição para este processo. Neste artigo, optei por priorizar o debate teórico, em detrimento da análise empírica, porque reconheço uma carência de esforços neste sentido, no estudo de movimentos sociais no Brasil, e reconheci este encontro como uma oportunidade para o dialogo e o consequente avanço da compreensão sobre a relação entre movimentos sociais e produção de conhecimento. A proposta de uma abordagem cognitiva e epistêmica sobre movimentos sociais implica em colocar o foco de atenção nos processos e não nos resultados. É na dinâmica de sua práxis que os movimentos sociais constroem a sua ideologia própria, constituemse como sujeito coletivo, produzem conhecimento social e exercem o seu papel como “intelectuais coletivos da classe”, na disputa pela construção da hegemonia. Esses processos não se resumem a discursos ou atos de fala, englobam ainda conhecimento técnico, manifestações artísticas e sistemas organizacionais. Tampouco são exclusivamente cognitivos, pois aspectos emotivos, normativos e expressivos também os influenciam. O produto derivado dessas dinâmicas está registrado em discursos textuais e imagéticos, vídeos, livros, performances, poesias, técnicas e tecnologias, etc., o que permite a realização de uma análise retrospectiva da trajetória do movimento social, como sugerem Eyerman e Jamison (1991). No entanto, nestes produtos não é possível inferir toda a significação da construção coletiva do processo, o que demanda ir além e entender o processo em processo , mediante uma pesquisa de viés etnográfico, como proposto por CasasCortés, Osterweil e Powell (2008). Também é importante reconhecer a natureza reticular, multiescalar e transnacional dos movimentos sociais contemporâneos e a consequente necessidade de realização de uma análise que integre essas diferentes dimensões, como sugere Bringel (2014). O percurso teórico aqui apresentado foi o caminho traçado, quando da realização da minha tese de doutorado, onde mobilizei esse conjunto de teorias e ferramentas em uma análise sobre movimentos sociais e produção de conhecimento, a partir de um estudo sobre a contribuição do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) para o desenvolvimento teórico e prático da Soberania Alimentar. Um dos objetivos da referida pesquisa foi investigar as principais influências teóricas e ideológicas na formação do MPA, bem como identificar as dinâmicas dos seus processos de formação política e a evolução de suas ideias, ideologia e identidade enquanto sujeito coletivo. Influenciada por Eyerman e Jamison (1991), busquei recuperar aspectos da trajetória da praxis cognitiva do MPA, dedicandome a 13
identificar, ler e analisar as principais obras que influenciaram a formação do pensamento crítico do movimento social, além de acessar e analisar os principais manuais, livros, campanhas, entre outros materiais textuais e imagéticos produzidos coletivamente pela organização ou individualmente por seus intelectuais e membros. Na sequencia, reconheci a necessidade de localizar a minha pesquisa no tempo e no espaço, de forma a poder analisar o MPA como um espaço de conhecimentoprático. Este interesse levoume ao extremo oeste de Santa Catarina, onde passei quarenta dias acompanhando o cotidiano do projeto de recuperação, massificação e preservação de sementes crioulas protagonizado pelo MPA em São Miguel do Oeste e Anchieta. Nesta ocasião, também tive oportunidade de confirmar que o global e o local, além de não serem instâncias excludentes, influenciamse mutuamente. Os investimentos do MPA no desenvolvimento do modo de produção camponês, a nível local e nacional, ganharam notoriedade na Via Campesina Internacional e motivaram que organizações camponesas de outros países buscassem o estabelecimento de parcerias com o movimento social brasileiro. Durante a realização da minha pesquisa, o MPA não só fazia parte de brigadas internacionalistas da Via Campesina, como tinha relações de colaboração direta com movimentos sociais em Moçambique e no Paraguai. Não por coincidência, os técnicos e dirigentes do MPA deslocados para estes países partiram de São Miguel do Oeste e eu pude acompanhar o seu trabalho à distância, mantendo contato através das mídias sociais. O objetivo destes intercâmbios foi o desenvolvimento da Soberania Alimentar nestes outros países, através do resgate das sementes crioulas e do conhecimento tradicional local e do desenvolvimento de novas tecnologias produtivas, em diálogo com a Agroecologia. De acordo com os registros, o MPA contribuiu com os seus conhecimentos e experiências pregressas, mas as soluções foram definidas de comum acordo, através do diálogo e da tradução de práticas e de saberes, e as experiências validadas na prática. Nesses processos relacionais, a Soberania Alimentar vai sendo enriquecida com novos sentidos e práticas e se constituindo como uma forma de produção social de conhecimento, onde a práxis teórica é mobilizada politicamente e a práxis produtiva transformada em estratégia de resistência social.
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