Movimentos sociais no Brasil: institucionalização e contestação

July 3, 2017 | Autor: M. Kunrath Silva | Categoria: Movimentos sociais
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Movimentos sociais no Brasil: institucionalização e contestação

Marcelo Kunrath Silva Departamento de Sociologia/UFRGS - Brasil [email protected]

Trabalho apresentado no III Congreso Latinoamericano y Caribeño de Ciencias Sociales, realizado FLACSO-Ecuador, Quito, nos dias 26 a 28 de agosto de 2015.

Movimentos sociais no Brasil: institucionalização e contestação Marcelo Kunrath Silva Departamento de Sociologia/UFRGS - Brasil [email protected]

Resumo: Este trabalho analisa as relações entre institucionalização e contestação na atuação das organizações de movimentos sociais brasileiras, tendo como referência o novo contexto político-institucional gerado pela conquista do Governo Federal, em 2003, por uma coalizão de partidos políticos liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Desafiando modelos de análise simplistas, que identificam institucionalização com cooptação, o presente trabalho aborda os complexos desafios colocados para um conjunto importante de organizações de movimentos sociais que historicamente possuíam uma relação de intersecção com o PT. Ao mesmo tempo, aborda-se a emergência de novos processos e atores contestatórios, expressos no ciclo de protestos de 2013, que rompem com alguns padrões que caracterizaram os movimentos sociais surgidos no processo de redemocratização brasileiro (década de 1980) e produzem alterações significativas na dinâmica política do país. Introdução A análise das relações entre contestação e institucionalização constitui um dos grandes desafios teóricos do campo de estudos de movimentos sociais. Marcado por uma tendência a contrapor a ação política contestatória e a ação política institucional, este campo de estudos tem mostrado dificuldades para analisar processos que apresentam relações complexas e mutáveis entre as organizações de movimentos sociais (OMSs) e os espaços e agentes estatais, se afastando dos pressupostos da externalidade (movimentos sociais, necessariamente, se constituem e atuam externamente aos espaços estatais) e da confrontação (movimentos sociais, necessariamente, se relacionam com os espaços e agentes estatais através de repertórios de confronto) que dominam o campo. Tal dificuldade tem se mostrado particularmente problemática na análise das relações entre OMSs e espaços e agentes estatais nos países latino-americanos que, em anos recentes, tiveram a eleição de forças políticas populistas, progressistas e/ou de esquerda aos governos nacionais (Brasil, Venezuela, Equador, Bolívia, Paraguai, Argentina). Marcado por uma histórica associação entre institucionalização e cooptação, o campo de estudos

sobre movimentos sociais na América Latina encontra-se teoricamente fragilizado para identificar e analisar complexas relações que não cabem em esquemas dicotômicos e, por vezes, maniqueístas que tradicionalmente predominaram neste campo1. Tendo por referência uma análise da trajetória de relação entre movimentos sociais e a política institucional no Brasil desde a redemocratização (iniciada no final da década de 1970) até o ciclo de protestos de 2013, o presente trabalho busca contribuir para superar as limitações no tratamento das relações entre contestação e institucionalização identificadas acima, através da proposição de um esboço de modelo analítico adequado à dinamicidade e complexidade daquelas relações. Repensando as relações entre contestação e institucionalização: esboço de um modelo de análise O esboço de modelo analítico proposto neste artigo parte do argumento de Jack Goldstone sobre o caráter relativamente contingente da relação entre contestação e institucionalização. De acordo com o autor: “não há nenhuma razão para esperar que protesto e ação política convencional devam ser substitutas, com grupos abandonando o primeiro na medida em que eles se tornam capazes de usar a última. Enquanto alguns grupos podem, em diferentes momentos, ser mais “in”, no sentido de serem mais alinhados e integrados com as autoridades institucionais, enquanto outros grupos são mais “out”, não há nem uma simples divisão qualitativa nem um cruzamento “de uma vez por todas” de alguma linha separando claramente contestadores e membros. É mais correto pensar em um continuum de alinhamento e influência, com alguns grupos tendo muito pouco acesso e influência através da política convencional, outros tendo um pouco mais e outros ainda tendo muito; mas grupos podem mover-se para cima e para baixo neste continuum muito rapidamente, dependendo das mudanças no Estado e nos alinhamentos partidários. Protestar pode, algumas vezes, ser um meio de mover-se para cima neste continuum, ou uma resposta a um movimento de descida, ou mesmo uma opção que se torna mais fácil e mais disponível quando o acesso institucional aumenta (…). As dinâmicas do protesto, então, têm uma relação contingente e complexa com a integração dos grupos na política institucionalizada. A noção de que existem grupos “in” e grupos “out”, e que os últimos se engajam em protesto enquanto os primeiros se engajam em política, é uma caricatura com pouca relação com a realidade" (Goldstone, 2003, p. 9)

1

Na verdade, como transparece nos argumentos de Goldstone (2003), expressos na citação abaixo, a associação entre institucionalização e cooptação marca também o campo de estudos sobre movimentos sociais na Europa e nos EUA.

Este argumento apresenta-se, assim, como um instrumento de ruptura com a perspectiva teórica tradicional da relação entre contestação e institucionalização, que tendia a contrapor os agentes da política contestatória (entre as quais destacavam-se as OMSs) e os agentes da política institucional (entre os quais destacavam-se os partidos políticos e as burocracias estatais). No entanto, apesar de ser um importante instrumento de ruptura com a perspectiva dicotômica e simplista tradicional, a afirmação da relativa contingência da relação entre contestação e institucionalização é limitada. É necessário avançar teoricamente na formulação de um modelo de análise que contribua para a explicação de por que/como, em processos

sociais

particulares,

as

OMSs

combinam

(ou

não)

contestação

e

institucionalização na sua atuação. Neste sentido, baseado em discussões contemporâneas do campo de estudos de movimentos sociais, são abordadas neste texto duas dimensões centrais para análise das relações entre contestação e institucionalização: de um lado, a dimensão políticoinstitucional; de outro, a dimensão organizativa2. A dimensão político-institucional refere-se às condições e aos mecanismos políticos e institucionais que definem possibilidades e restrições à constituição e atuação das OMSs. Em particular, tais condições e mecanismos definem possibilidades e restrições aos repertórios de ação conjunturalmente disponíveis às OMSs. Assim, em um extremo, em contextos nos quais o acesso institucional está bloqueado a determinadas OMSs por mecanismos legais ou repressivos, a única alternativa disponível é a contestação extrainstitucional3. Em outro extremo, em contextos nos quais as OMSs se constituem como membros efetivos dos processos decisórios governamentais através de mecanismos formais ou informais de participação institucional, colocam-se diversas possibilidades de combinação entre contestação e institucionalização (e, no limite, o próprio abandono de repertórios de confrontação extra-institucional). Entre estas duas situações extremas, coloca-se um complexo continuum de possibilidades de exclusão/inclusão institucional das 2

Uma terceira dimensão fundamental, mas que não será abordada neste trabalho, se refere às condições e aos mecanismos relacionados à inserção das OMSs em campos multiorganizacionais (Klandermans, 1992) ou relacionais (Goldstone, 2004) constituídos por outras organizações (aliadas ou adversárias), público em geral, mídia, instituições governamentais, entre outros. 3 E, como nos casos abordados por James Scott (1990, 2002) nos seus estudos sobre resistência cotidiana, esta alternativa também pode estar bloqueada pela repressão/dominação.

OMSs em função de diferentes configurações das condições e dos mecanismos políticoinstitucionais, com forte incidência na definição dos seus repertórios de ação. A dimensão organizativa, por sua vez, refere-se às condições e aos mecanismos internos às OMSs, a partir dos quais o contexto é avaliado e ações são definidas. Tais condições e mecanismos envolvem recursos, capacidades, orientações ideológicas, enquadramentos interpretativos, identidades, repertórios de ação disponíveis e estratégias das OMSs, os quais definem suas possibilidades e intencionalidades de atuação. No que se refere à combinação entre possibilidades e intencionalidades no desenvolvimento de diferentes repertórios de ação institucional, as OMSs confrontam diversas situações, como mostra o quadro abaixo: Quadro 1. Tipos de combinação entre possibilidades e intencionalidades na definição dos repertórios de ação institucional das OMSs - Intencionalidade Externalidade Recusa

- Possibilidades + Possibilidades

+ Intencionalidade Exclusão Integração

Propõe-se aqui o argumento de que o caráter relativamente contingente das relações entre contestação e institucionalização deriva, em parte, da diversidade de relações entre condições e mecanismos político-institucionais e organizacionais na conformação dos repertórios de ação das OMSs. Assim, frente a determinadas condições políticoinstitucionais

contextualmente

estabelecidas,

OMSs

podem

apresentar

diferentes

possibilidades e/ou intencionalidades de atuação, fazendo com que interpretem e se posicionem de forma distinta diante de tais condições político-institucionais. Neste sentido, por exemplo, enquanto algumas OMSs ou ativistas interpretam certas possibilidades de participação institucional como uma oportunidade para o fortalecimento da organização e/ou da sua luta, outros interpretam as mesmas possibilidades como uma ameaça, levando a formas distintas de atuação destas OMSs ou ativistas. Mudanças nas oportunidades de acesso institucional Uma das características marcantes da redemocratização brasileira, em parte resultante das reivindicações e da atuação das próprias OMSs, foi a constituição de diversos

processos/canais de acesso a espaços estatais de formulação e implementação de políticas públicas. A face mais visível deste processo é a implementação de uma enorme arquitetura de canais de participação institucional, através dos quais representantes da sociedade civil passaram a atuar em praticamente todos os setores de políticas públicas do Estado brasileiro. Conselhos de políticas sociais, comitês gestores de programas governamentais, Orçamentos Participativos, Conferências Públicas, Audiências Públicas, entre outras instituições participativas, se disseminaram pelo país, especialmente a partir da década de 1990, criando oportunidades mais ou menos efetivas de atuação institucional para as OMSs. Juntamente com as instituições participativas, as oportunidades de participação das OMSs na implementação de políticas públicas se ampliaram significativamente ao longo das últimas décadas. De um lado, a atuação como implementadoras de políticas públicas possibilitou às OMSs acessarem recursos importantes para a sua sustentação e, particularmente, assumirem uma posição de mediadoras no acesso aos bens e/ou serviços oferecidos pelas políticas, fortalecendo sua posição frente às populações destinatárias daqueles bens e/ou serviços. De outro lado, no entanto, esta atuação exigiu uma adequação das OMSs às normas legais que regulamentam as políticas e os processos de implementação das mesmas, submetendo-as ao controle e, em casos de irregularidade, à punição dos órgãos estatais de fiscalização. Por fim, deve-se destacar ainda um terceiro processo de acesso das OMSs brasileiras ao Estado: a ocupação de cargos governamentais. A existência de um grande número de cargos no governo preenchidos por indicação política (os denominados "cargos de confiança")4, juntamente com a significativa intersecção entre OMSs e partidos políticos no Brasil, faz com que a eleição de determinadas forças políticas abra um significativo espaço de acesso institucional aos ativistas e OMSs brasileiros. A denominada estratégia de "infiltração do Estado" (Falleti, 2010), possibilitada em grande medida pela ocupação de cargos governamentais, se constituiu em um mecanismo largamente utilizado pelas OMSs, obviamente com variações significativas não apenas em função das forças políticas no governo, mas também em função das especificidades de cada setor de políticas públicas e 4

Segundo dados da Secretaria de Gestão Pública do Ministério do Planejamento, em janeiro de 2015 o Executivo Federal possuía 22.926 ocupantes de Cargos e Funções de Confiança e Gratificações. Destes, 16.991 eram servidores de carreira e 5.935 não tinham vínculo. Estados e municípios também possuem cotas de cargos de confiança a serem preenchidos por indicação dos governantes.

das diferenças de capacidades e recursos das OMSs. Através deste processo, constituiu-se a importância marcante do chamado "ativismo institucional" (Pettinicchio, 2012; Santoro; McGuire, 1997) na atuação das OMSs brasileiras. Trajetória da contestação social no Brasil (1970-2010) A análise tradicional da trajetória recente dos processos de contestação social no Brasil em virtude da atuação dos movimentos sociais pode ser resumida na seguinte narrativa: a partir da segunda metade dos anos 1970 se inicia um processo de organização social popular que, no começo dos anos 1980, constitui uma importante força política em função da emergência de fortes movimentos sociais articulados, em grande medida, em torno do Partido dos Trabalhadores (PT); ao longo dos anos 1980, os movimentos sociais e o PT mantém uma atuação que articula, com fortes tensões e conflitos, contestação extrainstitucional e ação institucional; ao final da década de 1980, a democracia se consolida e há um progressivo deslocamento das OMSs e do PT para o espaço institucional (tanto para instituições da democracia representativa tradicional, com importantes vitórias eleitorais do PT, quanto para as crescentes possibilidade de acesso institucional abordadas na seção anterior), conformando aquilo que foi denominado por muitos de "a crise dos movimentos sociais"; esta institucionalização teria fragilizado as OMSs e, especialmente a partir da ascensão do PT ao governo federal em 2003 (quando as possibilidades de acesso institucional se ampliam), levado a uma crescente desmobilização e cooptação das mesmas. No entanto, tal narrativa, que se constitui em uma espécie de senso comum no país, se mostra pouco sustentável quando confrontada com dados empíricos sobre a dinâmica da contestação social brasileira nos últimos 40 anos expressos na figura abaixo:

Figura 1 – Variação Absoluta e Relativa do Uso Registrado de Repertórios “Institucionais” e “Extra-Institucionais” de Manifestação Pública de Demandas Coletivas no Estado do Rio Grande do Sul - 1970-20105

Fonte: Pesquisa Regimes e Repertórios Associativos (dados parciais - jan-ago de 1970 a 2010, a cada cinco anos).

Os dados obtidos para o estado do Rio Grande do Sul mostram uma trajetória bastante distinta daquela relatada acima. Primeiramente, pode-se observar que efetivamente a década de 1980 observou uma forte ascensão das manifestações públicas de demandas coletivas através de repertórios extra-institucionais. Partindo de uma situação de quase inexistência deste tipo de ação durante o período mais repressivo da ditadura militar brasileira, o ciclo de protestos da redemocratização do país chega ao seu ápice em meados da década de 1980. No entanto, ao contrário do argumento da "crise dos movimentos sociais", os dados mostram a manutenção de uma forte capacidade de mobilização no início da década de 1990, principalmente através de ações contestatórias realizadas por sindicatos de trabalhadores. É somente a partir desta capacidade de confrontação que se compreende os limites na implantação dos programas de ajuste neoliberal no país e a forte mobilização social que sustentou o processo de impeachment do presidente Fernando Collor de Melo em 1992. Ainda confrontando o argumento da desmobilização e cooptação das OMSs em função das oportunidades de acesso institucional abordadas na seção anterior, os dados 5

Foram classificados como institucionais os repertórios: “Reuniões e Pedidos Formais a Autoridades Públicas e Privadas”, “Manifestação via Meio de Comunicação em Massa”, “Manifestação em Plenário” e “Instrumentos Jurídicos e Legais”. Foram classificados como extra-institucionais os repertórios: “Atos, Passeatas e Carreatas em Locais Públicos (Repertórios de Rua)”, “Realização de Assembléias e Eventos”, “Fechamento de Vias Públicas”, “Ocupação de Prédios e Terrenos”, “Depredação, Rebelião e Confronto Direto com as Forças de Segurança”, “Paralisações, Greves e Boicotes ao Processo de Trabalho”, “Manifestação Performática” e “Mensagem em Espaço Público”.

mostram uma retomada na utilização de repertórios de manifestação extra-institucionais nos anos 2000, especialmente em 2005, que constitui o terceiro ano da primeira gestão de Lula/PT na presidência da república. Estes dados sustentam, assim, o argumento de Goldstone sobre a existência de uma relação mais complexa entre as dinâmicas da contestação social e as oportunidades de acesso institucional, que é ocultada pelo argumento simplista que estabelece uma relação direta e geral entre institucionalização e desmobilização (ou, pior, cooptação) das OMSs. As OMSs brasileiras frente às oportunidades de institucionalização Para explicar como/por que a expressiva abertura de oportunidades de acesso institucional às OMSs, a partir da década de 1980, gerou uma institucionalização, mas não a desmobilização (ou cooptação) generalizada das mesmas, é preciso analisar como estas OMSs interpretaram aquelas oportunidades e com elas se relacionaram. O ponto de partida para esta análise é o reconhecimento de que a mesma identificação entre institucionalização e cooptação, dominante na literatura sobre movimentos sociais, marcava também uma parcela importante das molduras interpretativas das OMSs no Brasil no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. O próprio surgimento do PT como um "partido-movimento" expressava esta desconfiança da política institucional e uma expectativa de que as mudanças sociais efetivas só seriam realizadas a partir da atuação conflitiva extra-institucional (a "luta") dos movimentos sociais. Como afirmava um dos slogans deste período, a perspectiva dominante era de que: "Só a luta muda a vida". No entanto, desde este momento inicial sempre houve uma tensão entre a afirmação de que as mudanças vinham das "ruas" e a utilização das diferentes (e, naquele conjuntura, poucas) oportunidades institucionais disponíveis. O debate e o confronto entre as alternativas institucionais e não-institucionais, inclusive com a formulação de diversas propostas de novas instituições participativas reunidas sob a bandeira da "participação popular", marcou as redes de movimentos sociais no Brasil (e, como um ator importante dentro de grande parte destas redes, o PT) ao longo de toda a década de 1980. Se, de um lado, um segmento da sociedade civil brasileira, especialmente a partir do início dos anos 1990, vai apostar nas possibilidades de participação institucional oferecidas

pelos diversos canais que estavam se constituindo naquele momento (gerando uma integração das mesmas, segundo a terminologia do Quadro 1), de outro lado, uma parcela significativa das OMSs vai desenvolver repertórios de ação compósitos, combinando formas de atuação institucionais com a manutenção de formas de ação confrontacionais extra-institucionais (ou seja, combinando integração com recusa, segundo a terminologia do Quadro 1). Neste sentido, observam-se OMSs que lançam candidatos às eleições, participam da implementação de políticas públicas, atuam em instituições participativas, possuem ativistas ocupando cargos governamentais e, ao mesmo tempo, desenvolvem repertórios conflitivos. Por vezes, são exatamente os recursos (financeiros, informações, relações etc.) obtidos através de diferentes formas de atuação institucional que garantem as condições para a realização de ações extra-institucionais. Tais ações, por sua vez, se constituem também em recursos importantes para as disputas que são travadas pelos ativistas destas OMSs no interior das estruturas institucionais. Obviamente, em uma sociedade altamente desigual como a brasileira, as condições para desenvolver repertórios de ação institucional ou para desenvolver repertórios compósitos não estão universalmente distribuídas. Neste sentido, uma série de organizações sociais, particularmente entre setores mais subalternizados da sociedade, tendem, apesar de suas intencionalidades, a enfrentar diversos obstáculos tanto para o acesso às possibilidades de inserção institucional quanto para o desenvolvimento de confrontos extra-institucionais e, especialmente, para a combinação de tais repertórios (conformando, segundo a terminologia do Quadro 1, situações de exclusão e de externalidade). As rupturas do Ciclo de Protesto de 2013 O ciclo de protestos de 2013 causou um profundo impacto não apenas em termos políticos e sociais, mas também em termos analíticos, uma vez que chocou-se diretamente contra o diagnóstico de que o intenso processo de institucionalização, especialmente a partir de 2003, teria gerado uma sociedade desmobilizada e cooptada pelo governo federal. Mas para entender efetivamente o ciclo de protestos de 2013 é preciso recuar um pouco no tempo e identificar um conjunto de processos que, na sua convergência, produziram as manifestações de 2013:

1) O primeiro processo a ser destacado é que uma parcela importante das OMSs possuía uma avaliação crítica sobre a possibilidade de produzir mudanças estruturais na sociedade brasileira a partir das oportunidades institucionais socialmente disponíveis. Mesmo entre OMSs que utilizaram fortemente tais oportunidades (como, por exemplo, as organizações articuladas na Via Campesina), encontram-se avaliações enfatizando que os limites políticos e legais da institucionalidade, mesmo sob um governo do PT, bloqueavam qualquer transformação social mais radical. Tal avaliação negativa intensificou-se durante o segundo mandato de Lula (2007-2010) e no primeiro mandato de Dilma (2011-2014) em função do crescente envolvimento do PT na dinâmica tradicional da política partidária brasileira (na qual imperam alianças pragmáticas, corrupção, compra de apoio político etc.). 2) O segundo processo a ser destacado é que, ao contrário do diagnóstico sobre desmobilização, os anos 2000 apresentam um crescimento do uso de repertórios mais confrontacionais por parte das OMSs. Segundo dados da Pesquisa Regimes e Repertórios Associativos, ocupações urbanas e rurais, bloqueio de estradas, uso de violência por parte dos manifestantes, aumentam sua ocorrência nos anos 2000, mostrando uma relativa radicalização de certos setores dos movimentos sociais no mesmo momento em que o PT era eleito para a presidência (2003). Tal processo, no que se refere às ocupações de terra, se expressa claramente no gráfico abaixo: Gráfico 1. Evolução do número de ocupação de terras - Brasil - 1988-2010

3) Um terceiro processo a ser abordado é a emergência de uma nova geração de ativistas que não foi socializada politicamente nem na luta pela redemocratização nem nas redes movimentalistas que se articulavam em torno do PT. Para tal geração, o PT não significava mudança, mas sim a ordem. Esta geração, organizada em torno de partidos

políticos que emergiram de rupturas com o PT (PSol e PSTU) ou em redes e coletivos diversos (muitos orientados por ideologias libertárias e pela defesa da ação direta), retomaram o discurso crítico da institucionalização e passaram a defender e, por vezes, desenvolver ações confrontacionais extra-institucionais (inclusive com o uso de violência) como repertórios privilegiados de ação. 4) O quarto processo que merece ser observado é a emergência e difusão de uma base tecnológica - TICs - que possibilita novas formas de comunicação, interação, produção de conteúdos e difusão, com impactos não apenas sobre a sociabilidade cotidiana, mas também sobre os processos de organização e mobilização social que se fundam naquela. Tal mudança possibilitou um relativo descentramento das OMSs que tradicionalmente atuaram como agentes e mediadores centrais na produção das grande mobilizações sociais no país, oportunizando mobilizações muito mais heterogêneas, amplas e velozes do que no passado. 5) Por fim, um último processo a ser destacado é a organização e mobilização de setores conservadores e de direita da sociedade brasileira, que resistiam às mudanças (limitadas, mas significativas) que estavam sendo promovidas pelos governos do PT. Desde a primeira candidatura de Lula à presidência, em 1989, o PT enfrentou uma intensa e, por vezes, violenta resistência dos setores conservadores e de direita. Tal resistência se expressou desde o início da gestão de Lula, em 2003, mas foi fortemente alimentada pelas acusações de corrupção que emergem em 2005, com o chamado "mensalão". Naquele momento, setores conservadores e de direita buscaram produzir um processo de mobilização contra o governo de Lula/PT (expresso em campanhas como "Cansei" e a "Grande Vaia"), que tem um certo alcance em algumas cidades brasileiras (especialmente São Paulo), mas não conseguem desestabilizar um governo sustentado por condições econômicas relativamente positivas, alto apoio popular, forte suporte de grande parte da sociedade civil (e, dentro dela, das OMSs) e um grande carisma do presidente. Em 2013, no entanto, estes setores identificam uma oportunidade de aproveitar processos de mobilização que estavam em curso em várias cidades do país, tendo como objeto de crítica o aumento das passagens de ônibus, e introduzir demandas e mensagens contra o governo federal. Neste processo, o forte apoio dos grandes grupos de mídia nacional, um uso altamente profissionalizado das TICs, o trabalho de organizações na construção de molduras

interpretativas críticas ao PT, o financiamento empresarial e a articulação com partidos de oposição e setores conservadores religiosos foram centrais para a constituição de organizações e ativistas que tiveram centralidade na produção de mobilizações massivas em 2013 (e, posteriormente, em 2015). O Ciclo de Protestos de 2013 constitui-se, assim, não em um processo único de mobilização, mas sim numa convergência de mobilizações simultâneas de vários segmentos sociais, com demandas e interesses muito diversos (e, por vezes, conflitivos). Tais segmentos, em vários casos, disputavam os mesmos eventos de protesto, o que gerou enfrentamentos entre ativistas com posições divergentes. Além disto, uma das novidades deste Ciclo é a presença massiva de indivíduos sem nenhum tipo de inserção ou experiência organizativa prévia, mobilizados a partir de um processo de difusão mediado pelas TICs. Tal característica ajuda a entender tanto a dimensão assumida pelas manifestações quanto o caráter relativamente efêmero destas. A emergência e difusão das manifestações em 2013, em particular a sua vertente conservadora, teve como um de seus resultados a produção de uma alteração na atuação de uma parcela das OMSs que, sem abrir mão de continuar atuando no âmbito dos canais institucionais disponíveis, passou a intensificar um posicionamento mais crítico e a realizar ações extra-institucionais. Já em junho de 2013, a partir de uma avaliação de que as mobilizações tinham adquirido um forte componente conservador, OMSs como aquelas articuladas em torno do MST passaram a se mobilizar para participar dos protestos e disputar os seus rumos. Desde então, paralelamente às mobilizações conservadoras, passaram a ocorrer fortes mobilizações promovidas por estes setores, em particular contra ataques a direitos e conquistas que tem sido realizados pelas políticas de ajuste econômico do governo federal e, especialmente, pelas propostas das forças políticas de direita do Congresso Nacional, cujo composição resultante da eleição de 2014 apresenta um perfil fortemente conservador. Considerações finais O objetivo deste trabalho foi defender a necessidade de modelos analíticos mais adequados para analisar as relações entre as OMSs e os atores e espaços da política

institucional, de forma a romper com perspectivas incapazes de apreender e analisar processos complexos como aqueles que ocorrem presentemente na América Latina. A partir da trajetória das OMSs brasileiras nas últimas quatro décadas, observa-se que institucionalização, efetivamente ocorrida, não leva necessariamente ao abandono de repertórios de ação confrontacionais extra-institucionais e muito menos à cooptação generalizada. Se a institucionalização estabelece condições e mecanismos que têm efeitos diretos e concretos sobre a forma como as OMSs se organizam e atuam, tal organização e atuação não pode ser visto como mero resultado automático da inserção institucional. A forma como tais condições e mecanismos institucionais incidem sobre as OMSs é, em parte, determinado por condições e mecanismos organizativos que definem as diferentes possibilidades e intencionalidades de atuação daquelas organizações. OMSs com diferentes possibilidades e intencionalidades de atuação constroem interpretações e agem de forma distinta frente às oportunidades e aos constrangimentos institucionalmente estabelecidos. Esta perspectiva possibilita explicar porque uma parcela importante das OMSs brasileiras constituídas no processo de redemocratização, apesar de críticas e receios, investiu esforços significativos na abertura de oportunidades de acesso institucional, ao mesmo tempo que mantiveram, em maior ou menor grau, o uso de repertórios de contestação extra-institucionais. Avaliando que o acesso às políticas públicas possuía um valor estratégico, mas também que era algo limitado para a realização de seus objetivos mais amplos de transformação social, tais OMSs constituíram repertórios compósitos que buscavam responder aos riscos constituídos pelas acusações, de um lado, de cooptação e, de outro, de sectarismo. O ciclo de protestos de 2013-2015 complexificou ainda mais o contexto de ação destas OMSs, que agora ainda precisam avaliar as implicações de distintos repertórios de ação frente aos riscos trazidos pelo intenso ativismo conservador e de direita no país. O grande desafio analítico colocado por este processo é a elaboração de modelos de análise adequados à sua complexidade e dinamicidade. Espera-se que argumentos esboçados no presente texto contribuam neste sentido. Referências Bibliográficas

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