Mr. Shock Value: uma análise dos valores de John Waters através da sua produção cinematográfica

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Descrição do Produto

UNIVERSIDADE FEEVALE

VITÓRIA DOS SANTOS LEAL

ORIENTADORA PROFª ME ANA HOFFMANN

MR. SHOCK VALUE UMA ANÁLISE DOS VALORES DE JOHN WATERS ATRAVÉS DA SUA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA

NOVO HAMBURGO 2016

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VITÓRIA DOS SANTOS LEAL

MR. SHOCK VALUE UMA ANÁLISE DOS VALORES DE JOHN WATERS ATRAVÉS DA SUA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Moda pela Universidade Feevale.

Orientador: Profª Me. Ana Hoffmann

Novo Hamburgo 2016

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VITÓRIA DOS SANTOS LEAL

MR. SHOCK VALUE UMA ANÁLISE DOS VALORES DE JOHN WATERS ATRAVÉS DA SUA PRODUÇÃO CINEMATOGRÁFICA

Trabalho de Conclusão do Curso de Moda submetido ao corpo docente da Universidade Feevale, como requisito parcial para a obtenção do Grau de Bacharel em Moda.

Aprovado em: ______ de ________________ de __________.

_________________________________ Profª. Me. Ana Hoffmann Orientadora

_________________________________ Prof. Me. André Conti Silva Banca Examinadora 1

_________________________________ Profª. Me. Juliana Zanettini Banca Examinadora 2

Novo Hamburgo 2016

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Dedico esta monografia a todas as mentes inquietas que aqui buscam conforto ou novos saberes.

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AGRADECIMENTOS

À Profª Mestra Ana Hoffmann, pela orientação, pelo apoio à minha pesquisa e pelas conversas que me forçaram a ordenar meus pensamentos;

À Monique Braghirolli, pelas confabulações, pela insanidade e pela colaboração. À Gabriela Maltz, à Giulia Palermo e ao Mateus Romanowski, pelo apoio moral;

Aos nodels e amigos Vinícius Guadalupe, Jaqueline Damazio e Candy Diazy. À incrível fotógrafa Sarah Regis;

À minha mãe, Andréa Guimarães dos Santos, e à minha avó, Gessi Guimarães dos Santos, pela compreensão, incentivo, disposição e colaboração ilimitada. Ao Dilnei Ferreira, pelo mais absoluto suporte.

Ao meu avô, Saulo Brum Leal, pela assistência incondicional;

À Mischa, pela companhia durante as noites em claro;

E, ainda, a todos aqueles que contribuíram direta ou indiretamente para esta monografia.

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“You have to know good taste to appreciate the irony of celebrating bad taste. If you have bad taste, you don’t get it” (John Waters)

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RESUMO

O John Waters é um artista relevante para maior compreensão de moda e entretenimento. O cineasta encoraja a utilização do estranho, através do mau gosto e do shock value, para a criação de uma estética exagerada e divertida. O estranho é celebrado por Waters em seus livros, filmes e exposições. Por meio destes, o público underground cria interesse e recebe subsídios para desenvolver teorias individualizadas sobre quaisquer temas abordados. A presente pesquisa tem como objetivo analisar a presença do shock value nos longasmetragens do cineasta para desenvolver uma coleção de moda a partir dos elementos que possam se repetir nesta trajetória. A fim de atingir este objetivo, é necessária a apresentação do cineasta, a observação do shock value na primeira fase cinematográfica de John Waters, a relação da primeira fase com o célebre longa-metragem Hairspray e a análise dos elementos visuais elencados através desta relação; a fim de utilizar a marca própria Flamboyant para o desenvolvimento de uma coleção de moda. O desenvolvimento da coleção se dá através das etapas de planejamento, construção e comunicação. Estes objetivos são realizados por meio de materiais publicados; tais como filmes, documentários, livros, entrevistas, artigos, notícias, roteiros originais e fotogramas.

Palavras-chave: Moda. John Waters. Shock value.

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ABSTRACT

John Waters is na relevant artist to compreehend fashion and entertainment. The filmmaker encourages the utilization of the uncanny, through bad taste and shock value, to create an exaggerated and fun aesthetic. The uncanny is celebrated by Waters in his books, films and exhibitions. As a consequence, the underground community acquire interest and receive aid to develop personal theories about any given subject. This research intents to analyze the shock value’s presence in the director’s films to develop a fashion collection using the elements that might repeat itself in this journey. In order to fulfill this goal, it’s required the introduction of the filmmaker, the observation of the shock value in the first cinematic phase of John Waters, the relationship between the first phase and the renowned film Hairspray and the analysis of the listed visual elements via this relation; embracing the personal label Flamboyant to develop a fashion collection. The development of the collection occurs through the steps of planning, construction and communication. These goals are realized throughout published materials; such as films, documentaries, books, interviews, articles, news, original screenplays and film frames.

Keywords: Fashion. John Waters. Shock value.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 11 2. JOHN WATERS: O PAPA DO TRASH ......................................................................... 14 2.1 JOHN WATERS ............................................................................................................... 14 2.2 1ª FASE ............................................................................................................................. 22 2.2.1 Mise en scène ................................................................................................................. 23 2.2.2 Mondo Trasho (1969) ................................................................................................... 24 2.2.3 Multiple Maniacs (1970) .............................................................................................. 29 2.2.4 Pink Flamingos (1972) ..............................………………………............................... 36 2.2.5 Female Trouble (1974) ................................................................................................. 40 2.2.6 Desperate Living (1977) ................................................................................................ 45 3. HAIRSPRAY ...................................................................................................................... 51 3.1 A HISTÓRIA .................................................................................................................... 51 3.2 SHOCK VALUE, BOM GOSTO E MAU GOSTO .......................................................... 63 4. CONSTRUÇÃO DE MARCA DE MODA ..................................................................... 81 4.1 APRESENTAÇÃO DAS MARCAS INSPIRACIONAIS ............................................... 81 4.1.1 Shrimps ......................................................................................................................... 82 4.1.2 Ashley Williams ............................................................................................................ 84 4.2 MARCA PRÓPRIA: FLAMBOYANT ............................................................................ 87 4.2.1 Mix de Marketing ......................................................................................................... 90 4.2.2 Público-alvo .................................................................................................................. 90 4.3 RELAÇÃO ENTRE O ESTUDO E A COLEÇÃO .......................................................... 91 5. DESENVOLVIMENTO DA COLEÇÃO DE MODA ................................................... 93 5.1 PLANEJAMENTO DA COLEÇÃO ................................................................................ 93 5.1.1 Análise de coleções das marcas inspiracionais .......................................................... 94 5.1.2 Tema, pesquisa de referências e elementos de estilo ................................................. 99 5.1.3 Cartelas de cores, materiais e superfícies ................................................................ 103 5.2 CONSTRUÇÃO DA COLEÇÃO ................................................................................... 109 5.2.1 Croquis e plano de coleção ........................................................................................ 110

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5.2.2 Ficha técnica e modelagem ........................................................................................ 125 5.2.3 Montagem das peças .................................................................................................. 129 5.3 COMUNICAÇÃO DA COLEÇÃO ................................................................................ 132 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 142 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 146 APÊNDICE A - FICHAS ................................................................................................... 153 APÊNDICE B - PLANO DE COLEÇÃO ......................................................................... 171 APÊNDICE C - BACKSTAGE PROJETA-ME .............................................................. 172

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1. INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como tema o modo que John Waters retrata seus valores na sua produção cinematográfica. Portanto, o objetivo geral deste trabalho acadêmico é analisar a presença do shock value nos longas-metragens do cineasta John Waters para desenvolver uma coleção de moda a partir dos elementos que possam se repetir nesta trajetória. O John Waters é um artista de extrema importância para entender moda e entretenimento, pois ele encoraja a utilização do que pode nos parecer estranho 1 , transformando isso em um estilo exagerado e divertido. Essa experimentação pode surpreender, causar intriga e inquietude. Segundo o artista, é importante problematizar questões sem criar uma tipologia específica para a aparência. Ser repulsivo ou chocar sem problematizações pode tornar filmes, desfiles e outros trabalhos artísticos desinteressantes e vazios. Além do estranho, existem outros fatores ligados à moda, como o “bom gosto e mau gosto”; assuntos frequentemente tratados por Waters em seus livros, filmes e exposições. O próprio autor explica que é necessário aprender as regras do bom gosto para se divertir com o mau gosto e, para isso, precisamos saber exatamente quais regras quebrar (BIG THINK, 2011), tudo isso em prol do shock value problematizado. Filmes que possuem shock value “focalizam tabus sociais e no que é considerado totalmente inaceitável de ser mostrado em filme como, por exemplo, violência gráfica extremamente realista, demonstrações gráficas de estupro, zoofilia simulada, incesto, mortes reais de animais etc.” (SCARPA, 2007, p. 52). A celebração do estranho, em sua obra, faz o público underground 2 pensar e criar suas próprias teorias – sobre o tema abordado no momento –, se interessando. Assim sendo, fica a questão: como a presença do shock value, nos longas-metragens do cineasta John Waters, pode fornecer elementos visuais para a criação e desenvolvimento de uma coleção de moda? Para elucidar esta questão, buscando respondê-la, é necessário ter como objetivos específicos a apresentação do cineasta, a observação do shock value na primeira fase 1

“Relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror”. (FREUD, 1976, p. 275-276) 2 O termo “underground” é a expressão (que se referem) que se refere a coisas subculturais. Mais do que “na moda” ou “moderno”, sons e estilos underground são “autênticos”, e são situados em oposição a produção e ao consumo em massa. Undergrounds denotam mundos exclusivos cujo ponto principal não é o elitismo, mas aqueles parâmetros geralmente relacionados a grupos particulares [...] Undergrounds são construções nebulosas; seus públicos afastam-se de uma categorização social definitiva [...] Undergrounds se definem mais claramente pelo que eles não são – isto é, “mainstream”. (FEITOSA, 2007, p. 6)

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cinematográfica de John Waters, a relação da primeira fase com o célebre longa-metragem Hairspray e a análise dos elementos visuais elencados através desta relação; a fim de utilizar uma marca própria para o desenvolvimento de uma coleção de moda. Um artista que glorifica a leitura e convida o seu público a pensar – sem deixar a estética de lado – pode ser um ganho incomensurável para o mundo da moda; o qual vem se tornando cada vez mais massificado, como percebido na fala de Moura e Meirelles (2013, p. 11): “A moda só é possível pelo fenômeno da imitação”. A pesquisa utilizará do livro de metodologia de trabalho científico desenvolvido por Cleber Cristiano Prodanov e Ernani Cesar de Freitas. Através dos métodos estudados, a natureza do presente trabalho é aplicada porque “procura produzir conhecimentos para aplicação prática dirigidos à solução de problemas específicos” (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 126). A classificação quanto ao método científico é indutiva, pois “o argumento passa do particular para o geral, uma vez que as generalizações derivam de observações de casos da realidade concreta” (Ibid.). O objetivo do estudo se dá de forma explicativa pelo fato de que identifica as razões de ser de quaisquer acontecimentos (PRODANOV; FREITAS, 2013). Quanto ao procedimento técnico, a categoria identificada é a de pesquisa bibliográfica porque a pesquisa é elaborada utilizando materiais publicados; como filmes, documentários, livros, entrevistas, artigos e notícias. Além destes, os roteiros originais de alguns longasmetragens serão desfrutados. Em alguns momentos, haverá tradução da autora, devido ao envolvimento de materiais em outros idiomas. Ademais, serão utilizados fotogramas dos filmes apresentados, assim como será realizada análise fílmica. O critério de abordagem é qualitativo, uma vez que desfruta do âmbito comum para interpretar acontecimentos, atribuir sentido e recolher de dados (PRODANOV; FREITAS, 2013). Sendo assim, o seguinte capítulo – John Waters: O Papa do Trash – tem como fim relembrar aspectos da vida pessoal de John Waters, bem como eventos os quais deixaram grande impacto em sua carreira profissional. Posteriormente, identificar e expor sua primeira fase cinematográfica, a qual é composta por cinco longas-metragens realizados entre as décadas de 60 e 70. No terceiro capítulo, Hairspray, o filme de mesmo nome é analisado com o intuito de exprimir os conceitos de shock value, bom gosto e mau gosto, relacionando-os com a primeira fase cinematográfica de Waters. Estes conceitos irão servir de inspiração em uma coleção de vestuário que será desfilada na 23ª edição do evento Projeta-me, da Universidade Feevale.

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O quarto capítulo engloba a criação da marca que servirá de apoio para a futura coleção de vestuário. Neste, será realizada a exposição de uma marca autoral de moda, a Flamboyant, contendo identidade visual, proposição de composto de marketing, público-alvo, princípios norteadores e objetivos estratégicos. Também haverá breve análise das marcas inspiracionais – Shrimps e Ashley Williams –, abordando seus históricos, compostos de marketing e públicos. Ademais, será exposta a relação entre o estudo realizado e a coleção de moda. O quinto capítulo aborda o desenvolvimento da coleção de moda. O desenvolvimento se dá através do planejamento, construção e comunicação da coleção. As etapas do planejamento desta coleção incluem análise de coleções da Shrimps e da Ashley Williams, tema, pesquisa de referências, elementos de estilo, cartela de cores, cartela de materiais e cartela de surperfícies. A construção da coleção tem fases de elaboração de croqui, plano de coleção, ficha técnica, modelagem e montagem de peças. Este capítulo é o final e tem o intuito de documentar o processo criativo de uma coleção de moda.

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2. JOHN WATERS: O PAPA DO TRASH

Neste capítulo, será realizada breve apresentação da vida de John Waters, com foco em acontecimentos fundamentais da vida pessoal do artista e ápices da sua carreira profissional. Posteriormente, será identificada a primeira fase cinematográfica de Waters, através de uma exposição concisa dos filmes que a compõe.

2.1 JOHN WATERS John Samuel Waters Jr (figura 1) – também famigerado papa do trash3, “sultão” do imoral4, barão do mau gosto5, pervertido do povo e ancião obsceno – é um cineasta, escritor, artista visual e ator, nascido em abril de 1946 em Baltimore, Maryland. “All my careers are the same to me, all equally important. It's the way I tell stories – it's just a different way to tell them”6 (BROOKS, 2015).

Figura 1: John Waters

Fonte: Queerty (2013)

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“Produtos de baixa qualidade artística, o que é fundamental aqui é consciência da má qualidade”. (CASTELLANO, 2014, p. 2) 4 “Relação suspeita e ambígua entre o doentio e o condenável”. (FOUCAULT, 2001, p. 159) 5 O conceito será trabalhado no capítulo 3. 6 “Todas as minhas carreiras são iguais para mim, todas igualmente importantes. É a maneira como conto histórias – é só um jeito diferente de contá-las”. (Tradução nossa)

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John Waters sempre foi reconhecido como diretor de filmes trash pelos seus admiradores e críticos. Porém, foi ninguém menos do que William S. Burroughs7 a consagrar o diretor como “O Papa do Trash”, afirmando que seu gosto brega8 é inigualável (WATERS, 2003). Um filme é considerado trash quando se utiliza do processo de reciclagem cultural, possui baixo orçamento e recursos que não atendem, negam ou negligenciam as normas do cinema canônico, especialmente de grandes produções e narrativas hollywoodianas (CASTELLANO, 2014). Ao participar do programa hitRECord (2013), John Waters afirma que o trash traz senso de humor para compreender o que, em algum momento, pode ter sentido vergonhoso; assim deixando todos iguais, no mesmo nível, e fazendo com que todos os gostos possam ser apreciados sem algum ser humano se sentir melhor do que outro. Waters cresceu numa família católica de classe média alta e foi ali mesmo que começou a destacar-se. Com apenas 8 anos de idade, passou a se interessar por filmes porque as freiras - pertencentes à igreja que ele frequentava todo domingo com a família –, uma vez por ano, citavam na missa uma lista de filmes proibidos. Mal sabiam elas que, ao citar diversos filmes que uma criança jamais havia ouvido falar, despertariam tanto interesse no jovem John Waters (JOYCE, 1993). John Waters se auto-intitula baby boomer: “After all, I’m a baby-boomer”

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(WATERS, 2003, p. 73). Nascido em 1946 nos Estados Unidos, ele faz parte da geração que foi fruto do aumento da taxa de natalidade no pós-guerra. Esta geração é identificada como liberal e associada a movimentos de contracultura. As variadas e inconstantes linhas de pensamento contribuíram para tais considerações. Concomitante ao crescimento dos baby boomers, a sociedade apresentava frequentes mudanças em sua dinâmica, o que fazia com que os boomers tendessem a ir contra os valores previamente estabelecidos pela geração anterior (OWRAM, 1999). Os interesses dos jovens baby boomers detinham grande influência na moda dos anos 70, “os baby boomers têm ideias bem definidas e sólidas sobre o que querem” (FRINGS, 2012, p. 40-41). Ao decorrer dos anos, John Waters nunca sofreu bullying, diferente de seus amigos e outros colegas excêntricos, porque ele sempre teve a destreza e perspicácia de fazer seus inimigos rirem junto dele, esta sempre foi sua arma e defesa mais eficaz. Desde jovem,

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“William S. Burroughs foi parte da geração beat, a qual é conhecida por desafiar os valores sociais de seu tempo experimentando com novas formas de escrita”. (ZITA, 2011, p. 1, tradução nossa) 8 O que é brega é visto como vulgar ou de mau gosto; brega é a consequência da ignorância das massas, exemplifica a deteriorização da cultura popular promovida pela mídia. (FONTANELLA, 2005) 9 “Afinal, eu sou um baby-boomer”. (Tradução nossa)

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Waters observava, no colégio, delinquentes juvenis10, mas nunca foi de fato um, era como um fã deles. Nessa época, ao observá-los, ele já escrevia biografias e criava personagens, imaginando suas histórias (JOYCE, 1993). A primeira maneira que o artista encontrou para se rebelar e se afastar dos pais foi a música. Seus conservadores pais começavam a se irritar com o que ele ouvia. Mattos (2003, p. 55) ilustra: Pais, professores e párocos todos diziam que o rock era ruim para eles [os jovens]. A maioria dos adultos, acostumada com a estrutura hierárquica do local de trabalho e do lar e com o clima social conformista, acha que esta música produzia uma reação espontânea e sensual alarmante em seus filhos.

Por meio de cantores como Elvis Presley11 e Little Richard12, John Waters sentiu-se libertado; a black music 13 da época também teve grande influência nele. Waters possuía muitos amigos negros, apesar da fase de segregação, como visto em um de seus filmes (Hairspray). Em sua vizinhança, majoritariamente, branca, havia duas quadras habitadas por negros e foi ali que Waters fez amigos. Juntos, todos iam a lojas de discos, lá se sentiam em um mundo diferente, integrado e divertido (JOYCE, 1993). Quando John Waters (figura 2) começou a dirigir, ele passava todos os dias em driveins14. Na época, em Baltimore, era o único lugar em que se podia assistir exploitation movies; “Inicialmente, os filmes classificados como exploitation eram aqueles realizados com pouca ou nenhuma preocupação técnica ou artística, tendo em vista um lucro rápido, normalmente através da divulgação de algum aspecto sensacionalista da produção” (CASTELLANO, 2014, p. 7). Foram nessas idas aos drive-ins que o artista conheceu Russ Meyer 15 , Ingmar Bergman16, Andy Warhol17, Federico Fellini18 e outros diretores que o inspiram até hoje.

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Nos anos 50, os filmes de delinquentes juvenis eram uma categoria dos filmes exploitation para adolescentes. (MATTOS, 2003) 11 Músico que obteve fama nos anos 50 e 60. Elvis era carismático e eletrizante, teve grande influência como intérprete, exclusivamente como intérprete. (SAFFLE, 2009) 12 Músico de grande influência na cultura e música popular, famigerado nos anos 50. “Eu acredito que fui o fundador do gay. [...] Eu usava maquiagens e cílios quando nenhum homem usava”. (WATERS, 2010, p. 191, tradução nossa) 13 O termo é utilizado na presente pesquisa para identificar gêneros (jazz, blues, soul e r&b) produzidos nos EUA entre as décadas de 50 e 60. 14 Conhecidos no Brasil como “cinema ao ar livre”. Nestes, filmes eram projetados em telões que se encontravam em estacionamentos, fazendo com que o público assistisse-os de dentro dos seus carros. “Em 1959, a freqüência dos drive-ins equiparava-se à dos cinemas de quatro paredes”. (MATTOS, 2003, p. 57) 15 Diretor de clássicos como Faster, Pussycat! Kill! Kill! (1965) e Beyond the Valley of the Dolls (1970). 16 Diretor sueco, dirigiu mais de 50 filmes e diversos textos para o teatro. “O que era único em Bergman era sua habilidade de utilizar o filme como uma forma pessoal de expressão, ideal para retratar problemas existenciais e psicológicos, bem como um mundo tangível de eventos”. (CASTAÑEDA; LUCCAS; ZACHARIAS, 2012, p. 7) 17 Artista visual e cineasta, passou a ser reconhecido no final dos anos 50. “Warhol capturou, em detalhes, cada minuto da vida em toda sua confusão, glamour habitual e difundiu através de seu trabalho, para uma audiência

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Figura 2: Jovem John Waters

Fonte: Flavor Wire (2014)

No seu aniversário de 17 anos, de presente da sua avó, ganhou uma câmera 8mm. Com ela, faz seu primeiro curta-metragem, Hag in a Black Leather Jacket 19 , estreando Mary Vivian Pearce e Mona Montgomery. Em 1966, John Waters faz seu segundo curta-metragem, Roman Candles, com a primeira aparição da Divine20 (EGAN, 2011). O artista diz que tudo pelo que ele se interessava, ninguém se interessava. Por isso, quando começou a fazer seus filmes, já estava acostumado com isso e era exatamente o que tentava celebrar: interesses excêntricos (JOYCE, 1993).

ampla e receptiva”. (THE ANDY WARHOL FOUNDATION FOR THE VISUAL ARTS, Warhol’s Legacy, tradução nossa) 18 Cineasta italiano. “Não se trata de um cineasta dedicado a recontar sua história, mas que, através de sua história de vida, suas percepções, seus traumas pessoais e sensações, cria seu cinema e suas mensagens, sejam elas discursivas ou somente emotivas”. (SCAMPARINI, 2011, p. 7) 19 Os curtas Hag in a Black Leather Jacket (1964), Roman Candles (1966) e Eat Your Makeup (1968) não foram disponibilizados para o público pelo diretor, salvo pouquíssimas exposições. Fotos das filmagens foram publicadas no livro Director’s Cut (1997). 20 Divine é uma personagem vivida por Glenn Milstead, a qual aparece em quase todos os filmes de Waters. É conhecida como The Filthiest Person Alive, ou seja, a pessoa mais imoral viva. Glenn acabou por ganhar o apelido de Divine, mas ele é simplesmente um ator que costuma ser contratado para fazer papéis femininos. John Waters e Van Smith – figurinista, maquiador e hairdresser – criaram seu clássico look. Glenn Milstead salienta: “Existe a Divine que você está falando agora e existe a personagem Divine, que é algo que eu faço para sobreviver. Ela não existe de verdade. Eu espero que não... se ela existisse eu estaria na prisão ou em um hospício”. (JAY, 1994, p. 3, tradução nossa)

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No ano de 1968, Waters faz seu primeiro curta com filme de 16mm, Eat Your Makeup. No ano seguinte, lança o primeiro longa-metragem – o qual praticamente não conteve diálogo – Mondo Trasho21 (EGAN, 2011). John Waters e seus amigos passaram a chamar sua equipe cinematográfica de Dreamland, cujos principais componentes eram Mary Vivian Pearce, Divine, David Lochary, Mink Stole, Cookie Mueller, Edith Massey e Susan Walsh; alguns podem ser percebidos na figura 3. Waters comentou em entrevista: “Eu não sei como o nome (Dreamland) surgiu. Eu o inventei quando fizemos Roman Candles, no mesmo dia que eu inventei o nome da Divine” (EGAN, 2011, p. 83, tradução nossa).

Figura 3: Dreamland

Fonte: Blogspot (2011)

O primeiro longa-metragem, com diálogo, foi Multiple Maniacs, lançado um ano após o primeiro longa. Em 1972, o clássico Pink Flamingos foi finalizado; sendo financiado pelo pai de Waters, com orçamento de 10 mil dólares. A partir daí, John Waters começa a ganhar fama. Viaja pelo país participando das famosas sessões da meia-noite, da época, com seu novo filme. No meio dos anos 70, fecha contrato com a New Line Cinema22 para distribuição de Pink Flamingos, conquistando público underground. É fechado contrato e realizado o

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Os longas Mondo Trasho (1969), Multiple Maniacs (1970), Pink Flamingos (1972), Female Trouble (1974) e Desperate Living (1977) serão apresentados no ítem “1ª FASE”. 22 A New Line Cinema é uma produtora dos estúdios Warner Bros., foi fundada em 1967 e repercute entre o cinema mainstream e outros nichos.

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filme Female Trouble. Em 1977, a New Line lança Desperate Living, longa com a participação de Liz Renay23 e o primeiro sem a Divine (EGAN, 2011). O diretor possui aversão a certas classificações: “Eu jamais diria ser um artista” (EGAN, 2011, p.177, tradução nossa). Ele acredita que o observador deve julgar o suposto artista, porque classificar o trabalho de alguém como arte é uma crítica favorável. “A palavra ‘arte’ me deixa nervoso” (Ibid., p. 40, tradução nossa). O cineasta também já esclareceu – ao ser entrevistado por John G. Ives em 1992 – que seus filmes até podem ser expressões de assuntos sérios, porém inconscientemente (Ibid.). O diretor ainda teve a audácia de pronunciar: “Eu odeio filmes com mensagens e eu me orgulho do fato de que meu trabalho não tem nenhum valor socialmente gratificante” (WATERS, 2005a, p. 2, tradução nossa). Waters passa a ganhar notoriedade e, em 1981, lança Polyester24; filme estrelado por Divine e Tab Hunter25, distribuído pela New Line Cinema e contendo seu primeiro gimmick26 (cartela odorama). Esse foi o primeiro filme de Waters a sair do circuito de midnight movies27. No mesmo ano de Polyester, foi publicado seu primeiro livro: Shock Value. Em 1983, é lançada a primeira edição do livro Crackpot: The Obsessions of John Waters (EGAN, 2011). No ano de 1988, é lançado o maior sucesso do artista: Hairspray; o longa arrecadou 8 milhões de dólares. Em 1990, foi feito o primeiro filme hollywoodiano do diretor: CryBaby 28 ; estrelado por Johnny Depp 29 , produzido pela Imagine Films e distribuído pela Universal. Pelo meio dos anos 90, é lançado Serial Mom30; longa-metragem estrelado por Kathleen Turner31. Ao final dos anos 90, é realizado Pecker32 com a participação de Edward Furlong33 e Christina Ricci34 (EGAN, 2011).

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Foi prostituta de gangsters, ex-presidiária, stripper, escritora, pintora, atriz e instrutora em uma escola de etiqueta. Nas palavras de Liz Renay: “Eu teria sido uma grande estrela se eu não tivesse sido presa”. (BERNSTEIN, 2007, tradução nossa) 24 John Waters mencionou em entrevista: “Eu acho que é uma piada sobre a real essência da vida americana”. (NIGHT FLIGHT, 1982, 01:29, tradução nossa) 25 Produto da era de ouro de Hollywood. 26 Invenções criadas – no início dos anos 50, pela indústria cinematográfica – com a intenção de manter a presença do público nos cinemas, a televisão colocou a existência dos cinemas em risco. (LEEDER, 2011) 27 Filmes B ou cult projetados no cinema à meia-noite. 28 Nas palavras de Johnny Depp: “Eu gostei do fato de que meio que brincou... meio que pegou essa coisa de ídolo adolescente e fez um tipo de paródia disso, brinca com isso”. (UNIVERSAL CITY STUDIOS, 1990, 00:27, tradução nossa) 29 Ator estadunidense, costuma fazer parcerias com o cineasta Tim Burton. 30 “Em Serial Mom, Kathleen Turner dá vida a uma mãe com tendências sociopatas, muitas vezes expressadas através de vinganças por desrespeitos cometidos contra sua família”. (EGAN, 2011, p. 126, tradução nossa) 31 Obteve fama com seus papéis nos filmes Body Heat (1981), Romancing the Stone (1984) e Prizzi’s Honor (1985). 32 “O qual o protagonista é um tipo de artista acidental que deixa uma breve marca no mundo artístico”. (EGAN, 2011, p. 186, tradução nossa) 33 Ator reconhecido por seus papéis em American History X (1998) e Detroit Rock City (1999).

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No início do segundo milênio, é lançado um filme estrelado por Melanie Griffith 35: Cecil B. Demented36. Em 2002, Waters participa como ator em um filme de Herschell Gordon Lewis37: Blood Feast 2. No mesmo ano, Hairspray torna-se musical da Broadway e, no ano seguinte, ganha 8 Tony Awards. A Dirty Shame38 é estrelado por Johnny Knoxville39 e Tracey Ullman 40 , em 2004. No ano vigente, The New Museum of Contemporary Art de NYC apresentou uma grande retrospectiva dos trabalhos do John Waters chamada Change of Life (EGAN, 2011). Em 2006, o artista foi apresentador de uma série chamada John Waters Presents Movies That Will Corrupt You; cada filme é introduzido e comentado pelo cineasta. No mesmo ano, o show de um homem só, This Filthy World, foi iniciado; com direção de Jeff Garlin, John Waters entrava em cena sem qualquer tipo de anotação. Ainda em 2006, ele participou das gravações de uma edição especial de DVD da Pequena Sereia; dado o fato de que a personagem da animação, Ursula, foi inspirada em Divine, personagem criada por Waters. Em 2007, foi criado o remake hollywoodiano (figura 4) de Hairspray (EGAN, 2011).

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Atriz californiana conhecida por diversas atuações, incluindo filmes tais como The Addams Family (1991), Casper (1995) e Buffalo ‘66 (1998). 35 Atriz americana, foi nomeada a diversos prêmios, como Emmy e Golden Globe. Ganhou o Golden Globe Award de melhor atriz (de filme musical ou comédia) pelo seu papel em Working Girl (1988). 36 Sobre Cecil B. Demented, John Waters diz: “Para uma comédia, eu tentei imaginar pessoas tão agressivas sobre seus gostos cinematográficos que foram à guerra”. (EGAN, 2011, p. 150, tradução nossa) 37 Cineasta americano – pioneiro do subgênero de filmes de horror gore – famigerado Godfather of Gore. 38 John Waters explica que A Dirty Shame “é sobre viciados de colarinho azul em Baltimore e a busca deles por algum tipo de dignidade. É sobre pessoas que são compulsivas por suas vidas sexuais, mas que não querem ser”. (EGAN, 2011, p. 145, tradução nossa) 39 Ator, comediante, produtor de cinema e roteirista. É mais conhecido pela série de filmes em que é co-criador e personagem: Jackass. 40 Atriz, comediante, cantora, dançarina, roteirista, diretora, escritora e mulher de negócios.

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Figura 4: DVD Hairspray

Fonte: IMDB (2014)

No ano de 2010, foi publicado o livro Role Models. Em 2014, The Film Society of Lincoln Center sediou uma retrospectiva completa dos trabalhos do John Waters. No mesmo ano, o artista participou do documentário – I Am Divine – que fala sobre sua personagem, Divine, o ator por trás dela, Glenn Milstead, e suas trajetórias. Ainda em 2014, foi publicado o livro Carsick; no qual o autor retratou sua experiência ao atravessar os EUA pedindo carona à beira de estradas (figura 5) (EGAN, 2011).

Figura 5: Pedindo carona

Fonte: Flavor Wire (2014)

22

No final de 2014, foi anunciada a sequência de Pink Flamingos; Kiddie Flamingos. Em 2015, John Waters participou como jurado do reality show RuPaul’s Drag Race 41 , o episódio foi em sua homenagem. Em setembro e outubro de 2015, acontece a exposição The Complete Films of John Waters (Every Goddam One of Them...) que celebra os 50 anos de carreira cinematográfica do cineasta, na BFI – organização beneficente de cinema – de Londres. Em 1982, para a revista Artforum, Scott MacDonald atesta: Ele se tornou um cineasta com audiência massificada sem se converter à imagem de um diretor da indústria, e sem suprimir sua hostilidade para com filmes mais convencionais e conteúdo televisivo. Na sua tentativa de revigorar a experiência do cinéfilo com um novo arquétipo de comédia, ele vem se dispondo a correr o risco de ofender quase todo mundo. (EGAN, 2011, p. 72-73, tradução nossa)

MacDonald evidencia a audácia recorrente de Waters, que se encontra com a própria fala do artista, especialmente em relação a sua primeira fase cinematográfica. Já se percebe nessa fala a propensão de John Waters ao choque através da comédia.

2.2 1ª FASE “The thing that would upset me would be if someone came up and said ‘it’s alright’”42 (John Waters)

Os primeiros longas-metragens do John Waters foram realizados entres os anos de 1969 e 1977. Nesta época, o cineasta era muito jovem e seus filmes eram trash. A preocupação com o shock value43 e noções de bom gosto e mau gosto nunca estiveram tão bem representadas na obra do diretor como nessa fase. Esses cinco primeiros filmes – Mondo Trasho, Multiple Maniacs, Pink Flamingos, Female Trouble e Desperate Living – foram determinados como uma fase inicial, pela semelhança que possuem em seus valores e estética. Para começar, John Waters diz em entrevista que “nada é espontâneo” (EGAN, 2011, p. 56, tradução nossa), todos os seus filmes possuem roteiros que são rigorosamente acompanhados. Neste tópico, será identificada a dita fase inicial dos longas de Waters. Aqui, os figurinos, maquiagens, trilhas sonoras, temas, filmagens e locações são similares. Scott 41

Programa competitivo americano em que RuPaul, como apresentadora, busca a próxima drag superstar americana. 42 “O que iria me chatear é se alguém surgisse e dissesse ‘tá legal”. (Tradução nossa) 43 Os conceitos de shock value, bom gosto e mau gosto serão apresentados no capítulo Hairspray.

23

MacDonald, colaborador da revista Artforum, salienta que “as tramas, que parecem ser malformações genéticas das Hollywoodianas tradicionais, envolvem ataques a convenções e também à relação tradicional da audiência com o filme” (EGAN, 2011, p. 71, tradução nossa). John Waters explica que confia em Vincent Peranio – ele faz todos os cenários dos filmes do diretor – e Van Smith – maquiador e figurinista dos filmes – porque eles entendem exatamente o que Waters deseja; o figurino e os cenários são importantes em seus filmes, fazem parte do apelo deles (EGAN, 2011). Adverte-se que a atmosfera dos produtos desta fase, algumas vezes, é indescritível e inclassificável por causa das sensações e emoções envolvidas durante a contemplação das obras; estes produtos podem ser percebidos como os movimentos de estilo, segundo Patrice, “são ‘inomináveis’ [...], pois são às vezes tão estranhos às referências de sua época, ou pelo menos eles as ultrapassam a tal ponto que não dispomos [...] de palavras existentes para designá-los” (BOLLON, 1993, p. 118). É de suma importância o relato da fase vigente do diretor uma vez que, posteriormente, elementos desta serão apontados para se entender os conceitos de shock value, bom gosto e mau gosto utilizados no filme escolhido para análise: Hairspray. J. Hoberman, crítico de cinema, intima: “Eu realmente recomendo ver esses filmes, eles realmente não são como qualquer outro” (FILM SOCIETY OF LINCOLN CENTER, 2014, 14:20, tradução nossa).

2.2.1 Mise en scène

Segundo Oliveira Jr. (2010), a expressão mise en scène surgiu para denominar as atividades realizadas por um indivíduo ou diversos colaboradores. Os realizadores são encarregados da tradução da carga expressiva de um roteiro, argumento ou texto para ações ou gestos em um plano visível, em uma realidade sensível. Ou seja, os realizadores da mise en scène podem ser vistos como ilustradores de um texto, eles são responsáveis pela “feição da obra”, pois agem sobre a representação do que é mostrado com a particularidade do seu olhar. Portanto, a mise en scène não é apenas o conjunto de meios que viabiliza um espetáculo mas, também, arte, porque revela a qualidade estética de uma obra. Ainda seguindo esta corrente de pensamento, Bordwell e Thompson (1997) complementam que a mise en scène é composta pelo setting 44 , figurino e maquiagem, iluminação, expressão e movimento de figuras. Desse modo, pode-se perceber que a mise en

44

Locação, cenário; pode ser interno ou externo. (BORDWELL; THOMPSON, 1997)

24

scène é um trabalho colaborativo; colocar em cena não é uma ação isolada. Como visto anteriormente, além do próprio John Waters, Van Smith e Vincent Peranio são parte integrante e essencial na composição da mise en scène da obra do cineasta, pois são eles que auxiliam o diretor na tradução da carga expressiva para o plano visível e sensível. É apontado por Bordwell e Thompson (1997) que a mise en scène, diversas vezes, é julgada por padrões de realismo, o que pode não ser muito coerente, já que ela tem como fim um tipo de harmonização do todo. O realismo é relativo, submeter a mise en scène ao realismo pode empobrecer a obra. Noções de realismo variam de acordo com cultura, tempo ou indivíduos. A mise en scène é “uma complexa dinâmica onde todos os elementos intervêm: uma concepção global do filme ancorada em dados tão técnicos e pragmáticos quanto abstratos e, não raro, líricos” (OLIVEIRA Jr., 2010, p. 15). Por isso, foi constatado, anteriormente, que a atmosfera da obra de John Waters pode ser, algumas vezes, indescritível ou inclassificável, “ninguém sabe de maneira segura e universal o que faz a mise en scène no cinema” (OLIVEIRA Jr., loc. cit.). Essencialmente, ela é a variação dos pontos de vista, a atenção e máxima exploração dos detalhes – texto, atuação, cenário, iluminação e afins – materiais e imateriais, assim como suas relações, com o intuito de transpor “um efeito espetacular máximo” (Ibid., p. 16) que só é identificado e sentido quando a obra é posta em cena. Através dos pensamentos de Raymond Bellour, Oliveira Jr. (2010) explica que pode ser impossível determinar o que é mise en scène, pois a sua definição só pode ser elucidada quando é feita a partir do que ela não é. Oliveira Jr. (op. cit., p. 17) ressalta que “a mise en scène de cinema é de fato o que não se pode ver – e no entanto está lá”. Ela pode ser inominável, como os movimentos de estilo, de acordo com Bollon (1993).

2.2.2 Mondo Trasho (1969) “If you’ve never seen any of my work and go see that first, you ain’t coming back”45 (John Waters)

Mondo Trasho foi o primeiro longa-metragem de Waters, lançado em 1969, feito em preto e branco e praticamente não possui diálogos. O filme é estrelado por Mary Vivian

45

“Se você nunca viu qualquer um dos meus trabalhos e for ver esse primeiro, você não vai voltar”. (Tradução nossa)

25

Pearce, Divine, David Lochary e Mink Stole. A produção, direção, filmagem, edição e o roteiro são realizados por John Waters. O título do longa já sugere que o filme pode se encaixar em uma subcategoria do cinema extremo: mondo. Os filmes desta subcategoria possuem violência extrema e esta é justificada pelo fato de que os filmes mondo são supostamente documentários. De acordo com Scarpa (2007), os filmes mondo prometem filmagens amadoras, cenários excêntricos, acidentes espetaculares e mortes violentas, junto de cenas com pouca relação entre si. O objetivo desta subcategoria do cinema extremo é chocar os espectadores usando de imagens comportamentais “que conseguem despertar em nós um sentimento de estranheza” (FREUD, 1976, p. 284). A subcategoria também é conhecida pelo termo shockumentary46; “o exótico, o erótico e o repulsivo” (SCARPA, 2007, p. 47). O filme inicia fazendo referência ao longa, de 1962, Mondo Cane (EGAN, 2011). A história se desenrola a partir de um dia ruim da protagonista (figura 6) vivida por Mary Vivian. Figura 6: Bonnie

Fonte: Mondo Trasho (1969)

Ela é perseguida por um homem com fetiche por pés, é atropelada, sequestrada, mantida em um hospício, submetida a uma cirurgia realizada por um médico louco, abandonada à beira da estrada; presencia uma morte agonizante na lama de uma fazenda e só então, quando suplica por um milagre, percebe que pode se teletransportar; como a Dorothy

46

Junção das palavras choque (shock) e documentário (documentary).

26

no Mágico de Oz. O filme termina com duas senhoras conservadoras fofocando (figura 7), julgando e insultando a jovem (MONDO TRASHO, 1969).

Figura 7: Fofocando

Fonte: Mondo Trasho (1969)

A trilha sonora dramática – composta por músicas dos anos 50 e 60, incluindo artistas como Elvis Presley, Little Richard, Mae West47, Ray Charles48, Chuck Berry49, Link Wray50, Bill Haley51, The Chordettes52 e The Ikettes53 – ajuda a contar a história, ao diversas vezes expressar as emoções dos personagens. O filme de fato se encaixa na subcategoria mondo, contendo cenas de shock value, acidentes, mortes, violência, imagens estranhas e filmagem e edições amadoras (figura 8).

47

Atriz, cantora, dramaturga, roteirista e sex symbol americano dos anos 20/30, também chamada de “Rainha do camp” (ver página 33, nota de rodapé nº 63). Conhecida por seu senso de humor controverso, repleto de double entendres e sem inibições. 48 Compositor, pianista e cantor. Pioneiro do soul nos anos 50, chamado de “Sacerdote do soul”. 49 Pioneiro do rock and roll. 50 Guitarrista experimental que obteve fama nos anos 50, um dos primeiros a usar power chord. 51 Popularizou o rock and roll nos anos 50. 52 Quarteto de mulheres que ganhou fama nos anos 50, cantando clássicos populares e a cappella. 53 Grupo de r&b dos anos 60, formado pelo casal Ike e Tina Turner junto de um trio ou quarteto de backing vocal.

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Figura 8: Consultório

Fonte: Mondo Trasho (1969)

Tanto a maquiagem, como o figurino e o cabelo são frutos de pesquisa de John Waters e, neste filme, de David Lochary. O figurino e maquiagem da Divine (figura 9), como dito por Waters, é trashy54 e com roupas justas (EGAN, 2011). A maquiagem é marcante, incomum ao mesmo tempo em que é harmoniosa, seguindo o exemplo do figurino e dos cenários. O cabelo, a maquiagem e os objetos de cena são glamourosos – sempre com inspiração nos anos 50 e 60, incluindo hair hoppers55, Jayne Mansfield56 e Marilyn Monroe57 –, quase sempre sobrepostos de cenários e situações decadentes; cenários como sarjetas, becos e lavanderias (EGAN, 2011).

54

“Discrepância das normas do ‘bom gosto”. (CASTELLANO, 2009, p. 1) Na década de 50, mulheres com penteados muito altos – mantidos em pé com uso exagerado de spray de cabelo – eram chamadas assim. 56 Atriz americana, blonde bombshell, foi sex symbol nos anos 50 e 60. 57 Atriz, modelo e cantora americana, foi sex symbol nos anos 50 e 60. Ícone da cultura pop. 55

28

Figura 9: Divine

Fonte: Mondo Trasho (1969)

As atuações, em todos os trabalhos de Waters, são excepcionais. O diretor não gosta de improvisações – quase sempre escreve papéis pensando em quem irá interpretá-los –, vê grande importância nas atuações e ensaia diversas vezes com os seus atores (FILM SOCIETY OF LINCOLN CENTER, 2014). Elementos de sua adolescência podem ser notados ao decorrer do longa-metragem, como o shoplifting58. É de se apontar a influência da obra de Andy Warhol sobre John Waters que pode ser vista com mais clareza em cenas iniciais as quais contêm imagens banais do cotidiano da protagonista (figura 10).

Figura 10: Bonnie

Fonte: Mondo Trasho (1969)

58

“Desconto dos cinco dedos” (five-finger discount), pequenos roubos em lojas de departamento.

29

Vômito e nudez estão presentes, assim como o tema religião – o qual foi abordado levianamente. Desde Mondo Trasho, podemos ver as relações de lixo e luxo na obra do cineasta, como apontado por Scott MacDonald: “A falta de gosto em certos momentos prepara para a elegância anárquica (figura 11) de outros: veja, por exemplo, a elegância da imagem de abertura da Divine em que ela dirige um Cadillac conversível (em Mondo Trasho, 1969) enquanto na trilha sonora toca ‘The Girl Can’t Help It’ do Little Richard” (EGAN, 2011, p. 72, tradução nossa).

Figura 11: Divine

Fonte: Mondo Trasho (1969)

MacDonald traz uma fala de valor, à qual pode ser relacionada a todos os filmes desta fase. O mau gosto agravado antecede o bom gosto exacerbado, e vice-versa. Mondo Trasho, sendo uma das primeiras experiências cinematográficas de Waters, pode assustar qualquer audiência pela falta de recursos, roteiro confuso e a falta de diálogos.

2.2.3 Multiple Maniacs (1970) “Multiple Maniacs was made to offend hippies”59 (John Waters)

Multiple Maniacs foi o primeiro longa-metragem com diálogo de Waters, lançado em 1970, em preto e branco. O filme é estrelado por Divine, David Lochary, Mary Vivian Pearce 59

“Multiple Maniacs foi feito para ofender hippies”. (Tradução nossa)

30

e Mink Stole. Susan Lowe e Susan Walsh também fizeram parte do elenco. Foi a primeira participação de Cookie Mueller e do set designer Vince Peranio. David Lochary cuidou da maquiagem, cabelo e figurino da Divine. A produção, direção, filmagem, edição e o roteiro foram realizados por John Waters. O longa traz a história da Cavalgada da Perversão, show nômade apresentado por Lady Divine e seus aliados (figura 12), para atrair e assaltar desavisados.

Figura 12: Mr. David

Fonte: Fanpop (2012)

Lady Divine inquieta-se com o show e percebe que Mr. David, seu namorado, interpretado por David Lochary, a está traindo. Durante uma caminhada, ela é atacada por membros da sua Cavalgada, encontra um tipo de anjo e se deixa levar por ele até uma igreja (figura 13).

31

Figura 13: Lady Divine e o Menino Jesus de Praga

Fonte: MovieFanFare (2010)

Durante o longa-metragem, há cenas bíblicas de outro filme. Divine tenta se comunicar com Deus enquanto está na igreja, se confessando. Ela se sente observada e distraída por uma mulher misteriosa enquanto reza; as duas têm relações sexuais na própria igreja e saem juntas (figura 14).

Figura 14: Lady Divine e o policial

Fonte: Tumblr (2014)

Divine e sua amante resolvem continuar juntas, visto que Mink – a mulher misteriosa – quer ajudá-la a liquidar seu namorado. Mr. David e sua amante, em um quarto alugado, decidem eliminar Lady Divine também (figura 15).

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Figura 15: Mr. David e sua amante

Fonte: Wordpress (2013)

Mr. David é o primeiro a chegar à casa, Cookie (filha de Divine) e seu namorado já estavam lá. Mr David e sua amante exterminam todos na casa e esperam a chegada de Lady Divine. Quando ela e Mink chegam, aniquilam a amante de Mr. David (Bonnie) e ele também. Divine vê sua filha morta e, num frenesi, assassina Mink. A personagem tem um surto psicótico (figura 16) e, então, surge uma lagosta gigante que a estupra.

Figura 16: Lady Divine e o coração dilacerado

Fonte: Multiple Maniacs (1970)

Em seguida, Lady Divine sai enlouquecida, espumando pela boca, caminhando pelas ruas e finalmente é perseguida e abatida pela Guarda Nacional (MULTIPLE MANIACS, 1970). “Close-up (figura 17) do rosto deformado e mutilado da Lady Divine enquanto ela

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finalmente sucumbe às rígidas regras da sociedade” (WATERS, 2005b, p. 314, tradução nossa).

Figura 17: Close da Lady Divine

Fonte: Multiple Maniacs (1970)

A trilha sonora inclui rockabilly music 60 e hillbilly music 61 (WATERS, 2005b). O shock value também está presente nesta obra, mesmo que menos chocante e excêntrico; o nudismo se repete com maior intensidade e o gore 62 também. O crítico de cinema Elvis Mitchell apontou, ao entrevistar Waters, que “existe esse interessante tipo de antônimo nos seus filmes, entre camp63 e arte e uma necessidade de chocar” (INDEPENDENT FOCUS, 1999, 17:26, tradução nossa). O filme é simples, mas os diálogos e situações (figura 18) são excepcionais, possuem frases originais, temas pouco abordados e humor.

60

Rock clássico, anos 50. Música caipira, folk norte-americano. 62 Os filmes gore “cultivaram o sexo, a violência e o horror com o propósito de causar repulsa aos espectadores”. (MATTOS, 2003, p.75) 63 Comportamento, atitude ou interpretação exagerada, artificial ou teatral. É como o brega. (página 15, nota de rodapé nº 8). 61

34

Figura 18: Lobstora!

Fonte: Blogspot (2011)

Os cenários incluem objetos de cena como um velho Cadillac conversível, móveis também velhos, figuras religiosas e pôsters de filmes extremos (WATERS, 2005b). O figurino (figura 19) é o mais comum dentre todos os da primeira fase de John Waters, mesmo incluindo vestuário checoslovaco original do Menino Jesus de Praga, roupas justas e purpurinadas (Ibid.).

Figura 19: Lady Divine

Fonte: Pinterest (2013)

35

O cabelo tem referência nos anos 40 e 60 – estrelas hollywoodianas e hippies –, com teor visionário devido a, por exemplo, cabelo longo masculino descolorido. A maquiagem é pesada e teatral (figura 20), segundo Waters (2005b).

Figura 20: Mink

Fonte: Blogspot (2012)

O perspicaz Scott MacDonald relata: Há um artifício incrível perto do começo onde você expõe os pervertidos, depois mostra as reações inacreditáveis das outras pessoas, e as reações delas são tão mais detestáveis do que as perversões que a audiência tende a estar do lado dos pervertidos. (EGAN, 2011, p. 80, tradução nossa).

Com o auxílio do relato de Scott, pode-se identificar que Waters conta com um estratagema interessante. Neste filme, o mau gosto dos pervertidos não ultrapassa o mau gosto amplificado dos pedestres suburbanos. O exagero na reação das mulheres de subúrbio se faz necessário; sem ele a fala seria costumeira e, possivelmente, não faria o público notar o mau gosto intrínseco, como não costuma perceber no cotidiano. Isto faz com que a audiência sinta empatia pelos pervertidos, o que expande a mente da audiência, preparando-a para os próximos atos.

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2.2.4 Pink Flamingos (1972) “You think this is bad, look at this one (Pink Flamingos)”64 (WATERS, 2003, p. 84)

Pink Flamingos foi o primeiro longa-metragem colorido de John Waters, lançado em 1972. O filme foi produzido, escrito, dirigido e filmado por Waters e estrelado por Divine, David Lochary, Mary Vivian Pearce, Mink Stole e Danny Mills. Edith Massey, Cookie Mueller e Susan Walsh também fizeram parte do elenco. O figurino e a maquiagem são de Van Smith, enquanto os cenários foram pensados pelo assistente técnico Vince Peranio. É importante ressaltar a menção de John Waters (EGAN, 2011) de que foi frequentemente questionado sobre ainda morar em um trailer. Isto mostra que Pink Flamingos tem características de shockumentary, sendo que a maior delas não é a sua filmagem amadora e, sim, seus atores; pois os papéis foram escritos por Waters pensando em quem iria interpretá-los, auxiliando no encaixe da categoria proposta por Robert Bresson: “modelos’, que são não-profissionais ‘encontrados na vida’ e que devem ‘ser em vez de parecer” (MARTIN, 2007, p. 74 apud BRESSON, s/d, p. 10 e 24). A narrativa parece ser um tipo de continuação de Multiple Maniacs, é sobre a pessoa mais imoral viva, Divine, que está vivendo sob a alcunha de Babs Johnson (figura 21).

Figura 21: Connie

Fonte: Pink Flamingos (1972)

64

“Você acha que isso é ruim, olha este aqui (Pink Flamingos)”. (Tradução nossa)

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Forçada a mudar sua aparência e a se afastar da civilização, Divine reside em um trailer com sua amiga (parceira de crime) Cotton, seu filho (delinquente) Crackers e sua mãe (doente mental) Edie. Connie e Raymond Marble (figura 22) invejam a notoriedade de Babs e acham que podem tirar o seu título de pessoa mais imoral viva. O casal tem como uma de suas profissões sequestrar meninas, prendê-las em um porão sujo, obrigar seu servo homossexual a engravidá-las e vender os bebês para casais lésbicos.

Figura 22: Connie e Raymond Marble

Fonte: Pink Flamingos (1972)

Além disso, eles possuem lojas de pornografia e trabalham com uma rede de traficantes que ficam em escolas. Connie e Raymond contratam uma mulher para investigar Divine e, então, descobrir como destruí-la. O filme se torna uma batalha imoral entre os Marble e a Babs e seus aliados (PINK FLAMINGOS, 1972). “Nenhuma atriz contemporânea é mais deslumbrante que a Divine ao final de Pink Flamingos (figura 23)” (EGAN, 2011, p. 72, tradução nossa), pronunciou MacDonald.

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Figura 23: Divine

Fonte: Pink Flamingos (1972)

Poderia ser só mais um shockumentary (EGAN, 2011), mas os pavorosos diálogos – como posto por Simon Doonan (WATERS, 2005a) –, atuações, figurino, maquiagem, cabelo e cenários o torna inigualável. O longa-metragem utiliza de diversas cenas de shock value para buscar uma reação, seja ela qual for, do público mantendo-o entretido (figura 24); há grande quantidade de cenas exóticas, eróticas e repulsivas porque o cineasta queria descobrir quais os limites das pessoas.

Figura 24: Aniversário da Babs

Fonte: Pink Flamingos (1972)

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Elvis Mitchell comenta em seu programa que “existe uma linha real de bondade que segue através de todos os seus filmes. Eles são todos sobre família (figura 25)” (INDEPENDENT FOCUS, 1999, 09:20, tradução nossa) e Waters replica com “Sim, eles são e a maioria das famílias se apoiam e então são atacadas por um grupo de fora” (INDEPENDENT FOCUS, loc. cit.).

Figura 25: Família

Fonte: Pink Flamingos (1972)

Contemplando o longa, distinguimos a influência de Andy Warhol e dos irmãos Kuchar65 nas cores, fotografia e personagens. Tudo é muito colorido. A trilha sonora ainda possui clara influência dos anos 50 e 60, incluindo clássicos como The Swag66, Surfin’ Bird67, Riot in Cell Block #9 68 e I’m Not A Juvenile Delinquent 69 . A maquiagem e o cabelo são visionários, Waters e Van Smith inspiraram-se em personagens como a madrasta da Cinderela, a rainha má da Branca de Neve, as bruxas malvadas do Mágico de Oz, o palhaço Clarabell70, Mae West e Jayne Mansfield. Podem ser identificados, como visto na figura 26, os extremos de luxo e decadência tanto nos personagens e diálogos quanto nos cenários e figurino.

65

Cineastas underground, Sins of the Fleshapoids (1965) é um dos seus filmes mais conhecidos. Lançado em 1958 por Link Wray. 67 Lançado em 1963 por The Trashmen. 68 Gravado em 1954 por The Robins. 69 Lançado em 1956 por Frankie Lymon and the Teenagers. 70 Palhaço do show Howdy Doody (1947-1960). 66

40

Figura 26: A clássica cena do cocô

Fonte: Pink Flamingos (1972)

A obra de John Waters tende a trabalhar extremos, o título do filme saiu de um item banal que se tornou saturado; os flamingos de plástico cor-de-rosa os quais, às vezes até em quantidade exagerada, decoravam gramados de subúrbios por toda a América do Norte. Ou seja, o diretor queria dar um título comum – que não fosse sensacionalista – para um filme extremo (FILM SOCIETY OF LINCOLN CENTER, 2014).

2.2.5 Female Trouble (1974) “Here lies beauty–crime and beauty”71 (Donald Dasher)

Female Trouble, o segundo filme colorido de John Waters, foi lançado no ano de 1974. O filme foi escrito, dirigido, filmado e editado por John Waters e estrelado por Divine, David Lochary, Mary Vivian Pearce, Mink Stole e Edith Massey. Cookie Mueller e Susan Walsh também fizeram parte do elenco. Os cenários são de Vince Peranio, o figurino e maquiagem são de Van Smith e o cabelo é por David Lochary e Chris Mason. A trilha sonora apresenta desde clássicos natalinos até músicas de bandas como The Frogmen72. O longa narra a biografia de Dawn Davenport e tem início em 1960, quando a protagonista, vivida por Glenn Milstead, está no colégio. Na primeira parte, chamada de juventude, verifica-se um grupo de amigas – hair hoppers – ainda com resquícios dos anos 50 71 72

“Aqui mora a beleza–crime e beleza”. (Tradução nossa) Grupo dos anos 50/60. Foi a primeira banda de surf music a entrar nos gráficos da Billboard.

41

e 60 presentes em suas aparências. Elas são desinteressadas, revoltadas e audaciosas, tal como na figura 27. Os diálogos e atuações continuam extremamente semelhantes aos dos filmes anteriormente descritos: ousados, buscando o limite do espectador (JOYCE, 1993).

Figura 27: Sala de aula

Fonte: Female Trouble (1974)

Dawn briga com seus pais, larga o colégio e foge de casa; no mesmo momento, já começa sua vida criminal e engravida (figura 28). O filme é muito colorido, como Pink Flamingos.

Figura 28: Dawn grávida

Fonte: Wordpress (2013)

42

De 1961 a 1967, Dawn trabalha em lancherias durante o dia e, à noite, é stripper e prostituta; nas horas vagas ela assalta com suas amigas de colégio (figura 29). Neste momento, é de se distinguir a influência do longa Faster, Pussycat! Kill! Kill! dirigido por Russ Meyer em 1965.

Figura 29: Dawn e suas parceiras de crime

Fonte: Female Trouble (1974)

A partir de 1968, ela conhece Donald e Donna Dasher (figura 30) – através do excêntrico salão de beleza Lipstick – e sua vida criminal ganha prestígio com a ajuda deles, que encorajam a vida de crimes de Dawn; segundo o casal de donos do Lipstick, crime é beleza.

Figura 30: Mr. Dasher e Dawn

Fonte: Female Trouble (1974)

43

No salão, Dawn conhece Gator e eles se casam, mesmo com a forte oposição da tia de Gator, Ida, que insiste que o sobrinho “se torne” homossexual. O longa trata de alguns temas do cotidiano – como homofobia, por exemplo – com muita despretensão, a interpretação ou reconhecimento do tema cabe a quem está assistindo. “Eu ficaria tão orgulhosa se você fosse veado e tivesse um bom namorado esteticista – eu nunca precisaria me preocupar” (FEMALE TROUBLE, 1974, tradução nossa). Depois de alguns meses de brigas entre Dawn, tia Ida, Gator e Taffy (filha de Dawn), ela decide se separar do recente marido. Os Dasher decidem fotografar Dawn Davenport em seu cotidiano. Os novos chefes de Dawn demitem seu futuro ex-marido a pedido dela. Taffy passa a se revoltar com sua mãe. Tia Ida entra num frenesi de raiva porque foi afastada de seu sobrinho, Gator, e joga ácido no rosto de Dawn. Após o ocorrido, seus amigos e chefes insistem que ela está ainda mais bonita do que antes e convencem-na a não realizar nenhum tipo de cirurgia, apenas cobrindo seu rosto com maquiagem. A protagonista fica infeliz com sua aparência, mas confia em seus amigos. A partir daí, a personagem começa a enlouquecer e sua aparência começa a se modificar. Ela precisa de mais e mais atenção (figura 31).

Figura 31: Dawn Davenport

Fonte: Wordpress (2012)

Taffy decide se juntar aos hare krishnas 73 e isso descontrola sua mãe. Dawn Davenport inicia seu primeiro show, a polícia é acionada e ela é presa. Durante a noite do show, a protagonista assassina a filha com suas próprias mãos e atenta contra a vida dos espectadores. Donald e Dona mentem ao testemunhar contra Dawn e esta fica completamente 73

Liga religiosa, cultural e filosófica proveniente do Hinduísmo.

44

desequilibrada (figura 32). Dawn Davenport é sentenciada à morte por cadeira elétrica e vê isso como seu último show (FEMALE TROUBLE, 1974).

Figura 32: Dawn enlouquecida

Fonte: Fanpop (2014)

Desde o início do filme pode ser identificada a presença do shock value, que se torna cada vez mais extremo; como, por exemplo, quando Dawn e suas amigas acorrentam Taffy no sótão. A maquiagem é pesada e, às vezes, grotesca (WATERS, 2005b) – ainda inspirada em Jayne e Clarabell – e o figurino é muito singular – contendo, inclusive, máscaras de tule para assaltos, sem contar com babados, brilhos, transparências, modelagens inusuais justas (figura 33) e fluídas, estampas e, é claro, muitas cores. O jornal Soho News advertiu: “Você não quer sentar perto demais da tela por medo de ser arrebatado por essa terrível e narcisista armadilha de morte que eles vivem” (WATERS, 2005a, p. 110, tradução nossa).

Figura 33: Tia Ida

Fonte: Fanpop (2014)

45

É explanado por Martin (2007, p. 65) que o cenário pode “[...] desempenhar o papel de contraponto simbólico”. Female Trouble é um exemplo, graças aos cenários compostos por colchões sujos à beira da estrada, liga novamente as matérias de decadência e glamour; exatamente como nos outros filmes. O glamour neles expresso pelo figurino, maquiagem e cabelo dos personagens (figura 34).

Figura 34: Mr. e Mrs. Dasher

Fonte: Female Trouble (1974)

O cabelo é inspirado nos anos 50 e 60, com muito volume, altura e descolorações (WATERS, 2005b). Quanto à música, pode-se dizer que John Waters “[...] a faz intervir apenas nos momentos mais importantes do filme” (MARTIN, 2007, p. 129). Estes são descritos por Martin (2007) como determinantes na evolução psicológica de personagens, ou seja, Waters faz utilização da trilha sonora com êxito, pois ela é aplicada, principalmente, nas fases da vida de Dawn, decorando-as. Female Trouble é quase uma novela, um filme cheio de discussões, brigas e personagens de mau-caráter (EGAN, 2011).

2.2.6 Desperate Living (1977) “Nowhere’s as bad as Mortville”74 (John Waters)

Desperate Living foi o terceiro filme com cor de Waters, lançado no ano de 1977. O filme foi escrito, dirigido e filmado por John Waters e estrelado por Liz Renay, Mink Stole,

74

“Nenhum lugar é tão ruim quanto Mortville”. (Tradução nossa)

46

Susan Lowe, Edith Massey e Mary Vivian Pearce. Os cenários são do diretor de arte Vince Peranio, o figurino e maquiagem são de Van Smith e o cabelo é por Chris Mason. A trama se dá em um subúrbio. Uma esposa neurótica (figura 35) – Peggy Gravel, vivida por Mink Stole – volta para casa, a pedido de seu marido, depois de ter passado alguns meses no sanatório devido a um surto.

Figura 35: Peggy Gravel

Fonte: Desperate Living (1977)

Ao chegar em casa, furiosa e paranoica, acredita que todos estão tentando matá-la. A esposa assusta a governanta – Grizelda Brown – gritando que seu marido está tentando assassiná-la; Grizelda sobe às pressas e aniquila o patrão com seu peso (figura 36), “um dos mais bizarros assassinatos que Waters já teve em filme, o que diz muito” (QUARLES, 2001, p. 64, tradução nossa).

Figura 36: Grizelda homicida

Fonte: Desperate Living (1977)

47

Peggy e Grizelda, apavoradas, fogem juntas e acabam molestadas por um policial pervertido. Elas são forçadas por ele a escolher entre viver na cadeia ou se mudar para um pequeno vilarejo muito peculiar e decadente: Mortville (figura 37).

Figura 37: Ruas de Mortville

Fonte: Desperate Living (1977)

As duas optam pela nova vida na pequena cidade e alugam um pequeno quartinho de fundos. O quarto estava vago porque o último morador se suicidou – o corpo ainda jazia na cama – e possui apenas uma cama e nenhum banheiro, porque não existem banheiros, e nem comida, em Mortville. As mais novas residentes da cidade são levadas pelos guardas da rainha do vilarejo, Carlotta, até o palácio. Lá, a rainha Carlotta proclama que Peggy Gravel e Grizelda Brown devem receber um makeover e se vestir como o que realmente são: lixo (figura 38).

Figura 38: Grizelda Brown

Fonte: Twitter (2011)

48

Os guardas usam quepes semelhantes aos nazistas, calças de couro justas, jaquetas de couro, luvas de couro e blusas fishnet – material similar ao da meia arrastão. A princesa, apaixonada por um lixeiro, é retratada por Mary Vivian (figura 39) e a rainha, deveras opulenta, é vivida por Edith Massey (DESPERATE LIVING, 1977).

Figura 39: Princesa Coo-Coo

Fonte: IMGArcade (2013)

Waters comentou que a rainha Carlotta (figura 40) é “só uma tirana que inventou algumas coisas ridículas para fazer, só para humilhar pessoas” (EGAN, 2011, p. 51, tradução nossa). O castelo possui diversos quadros e pode ser percebida uma pintura de Hitler.

Figura 40: Rainha Carlotta

Fonte: HippoWallpapers (2015)

49

Este longa, assim como os outros apresentados, possui os extremos de decadência e glamour, porém ainda mais acentuados; principalmente o estilo de vida da rainha fazendo antagonismo com as condições em que o seu povo vive. Pode-se dizer que Desperate Living é uma mistura de Salò75 com Freaks76 e O Mágico de Oz. O shock value é proposto na obra com os quesitos citados anteriormente: exótico (figurino e cenário), erótico (comportamentos) e repulsivo (figura 41, ao unir gore e seres humanos tão desprezíveis e perversos); "Tem um guarda com fetiche por calcinhas, um lixeiro nudista, e uma lésbica que faz mudança de sexo e daí decide desfazer a operação com uma faca" (QUARLES, 2001, p. 64, tradução nossa).

Figura 41: Mole castrada

Fonte: Desperate Living (1977)

O filme chegou a ser utilizado como referência pela banda Marilyn Manson & the Spooky Kids77, a qual trabalhava somente com extremos. Desperate Living é quase um filme de terror. Foi quando o humor do diretor se tornou mais obscuro (figura 42) e também foi o último filme da sua fase trash inicial.

75

Longa-metragem de 1975, dirigo por Pasolini. Inspirado nos contos do Marquês de Sade. Filme controverso de horror de 1932, dirigido por Tod Browning (diretor de Dracula, do ano anterior). 77 Banda de rock de Fort Lauderdale nos anos 90. Os componentes criaram seus apelidos fazendo a junção de nomes de mulheres famosas e serial killers. 76

50

Figura 42: Peggy

Fonte: HippoWallpapers (2015)

John Waters fez da sua cidade, Baltimore, os seus filmes; ele mesmo escreveu que “você nunca vai encontrar uma cidade mais estranha com estilo tão extremo” (WATERS, 2005a, p. 76, tradução nossa). Sua cidade natal teve grande influência em seu trabalho, especialmente em seus filmes, considerando que todos foram filmados em Baltimore e que o artista vive lá desde o seu nascimento. Na cidade, todos parecem se apelidar de hon78, o que mostra que inclusive a linguagem dos longas é inspirada pela “Axila da Nação” (Ibid.). O cineasta diz que o motivo de ele escolher permanecer em Baltimore são as pessoas inacreditáveis que a cidade acomoda, assim como seus personagens. Mas a antiga capital dos Estados Unidos da América não interfere apenas através do seu linguajar, pessoas caricatas e cenários distintos. A cidade também é chamada por Waters (2005a, p. 76, tradução nossa), no livro Shock Value, de “A Capital do Penteado do Mundo” porque foi populada por grande número de hair hoppers (WATERS, 2005a). Em suma, toda a obra de Waters usa a essência de Baltimore. Essa essência é transmitida através de características específicas, como algumas citadas anteriormente, que continuam sendo percebidas em Hairspray.

78

Diminutivo de honey, seria “queri”, diminutivo de querida.

51

3. HAIRSPRAY

O capítulo visa analisar a produção original de Hairspray do final dos anos 80. A análise englobará o roteiro, o figurino, a maquiagem, o cabelo, o cenário, a cor, os diálogos, os atores, a música e o contexto histórico em que o filme se insere. Será proposto um diálogo entre o filme e os conceitos de bom gosto e mau gosto para, a partir disso, se entender conceitos como shock value e estranho, assim como também serão apontados laços com a 1ª fase da carreira de John Waters.

3.1 A HISTÓRIA

Hairspray foi um longa-metragem colorido de John Waters, lançado em 1988. O filme foi escrito e dirigido por John Waters e produzido por Rachel Talalay. A direção de arte é de Vince Peranio, a direção de fotografia é de David Insley, o cabelo é por Chris Mason e o figurino e maquiagem são por Van Smith. O filme é estrelado por Ricki Lake, Divine, Sonny Bono, Ruth Brown, Debbie Harry, Leslie Ann Powers, Colleen Fitzpatrick, Michael St. Gerard, Jerry Stiller, Shawn Thompson, Clayton Prince e Mink Stole (HAIRSPRAY, 1988). O longa tem início durante uma gravação do programa The Corny Collins Show79, alguns jovens estão dançando em pares e outros, vaidosos, se preparando para entrar em cena, como percebido na figura 43. Duas adolescentes (Tracy Turnblad e Penny Pingleton) descem correndo do ônibus escolar em direção à casa de uma delas, ansiosas para assistir ao programa do Corny Collins. Uma senhora, que está conversando com a mãe de Tracy, diz que acha os participantes do show delinquentes e faz um comentário racista. O show continua na televisão enquanto Tracy e Penny assistem dançando coreografadamente. Elas decidem ir escondidas ao programa, de noite, para participar da competição de dança (HAIRSPRAY, 1988).

79

Inspirado no programa The Buddy Deane Show, versão de Baltimore. (WATERS, 2005a)

52

Figura 43: Preparações

Fonte: Hairspray (1988)

Uma das participantes do programa, Amber, sai do set de gravação acompanhada do seu namorado – que também participa do show –, Link. Ela chega em casa furiosa porque tem uma espinha em seu rosto e, ao entrar, sua mãe – Velma – já a aborda fazendo críticas racistas ao comportamento da filha no show (figura 44) e a obriga a treinar as danças coreografadas no mesmo momento (WATERS, 2005b).

Figura 44: Amber e Velma

Fonte: Hairspray (1988)

53

Quando Tracy e Penny chegam ao set de filmagem, percebem que um casal de negros é barrado por um guarda na entrada apenas por seus tons de pele; elas se revoltam, mas acabam não tomando uma atitude a respeito e entram no estúdio (figura 45).

Figura 45: Barrados

Fonte: Hairspray (1988)

Tracy se insere centralizada na fileira da frente, entre o casal Link e Amber, e começa a dançar; ela sabe toda a coreografia perfeitamente. Corny Collins lembra que é noite de competição de dança e anuncia a jurada – que, segundo ele, apresenta o “dia do negro” uma vez por mês no show – Motormouth Maybelle (figura 46). A competição começa e casais se juntam para dançar. Maybelle caminha na pista de dança entre eles.

Figura 46: Corny e Maybelle

Fonte: Hairspray (1988)

54

Amber começa a criar intrigas com Tracy. Motormouth Maybelle acaba deixando apenas três casais na competição; Tracy e Amber permanecem na disputa. Tracy e seu parceiro, Fender, vencem a competição por escolha do público presente e da jurada; Amber está enraivecida (figura 47). Corny convida Tracy para participar das audições do show no dia seguinte, o público encoraja. Música lenta começa a tocar e casais se juntam novamente; Amber continua insultando Tracy, enquanto seu namorado a cumprimenta com charme (WATERS, 2005b).

Figura 47: O casal vencedor

Fonte: Hairspray (1988)

Chega o dia das audições, Penny passa vergonha e uma jovem negra sofre racismo. Membros do conselho do programa são rudes com Tracy, fazem menções ao seu peso; ela não se deixa desanimar e ainda troca faíscas com Amber Von Tussle. Durante a entrevista, rodeada de jovens racistas, Tracy pronuncia que é moderna e a favor da integração. Amber é suspensa do Corny Collins show pelo próprio Corny Collins por sua insolência e preconceitos com Tracy passarem dos limites (figura 48) (HAIRSPRAY, 1988).

55

Figura 48: Tracy versus Amber

Fonte: Hairspray (1988)

Penny Pingleton corre para a casa dos Turnblad para mostrar aos pais de Tracy que ela entrou para o programa (figura 49). Os Turnblad ficam contentes pela filha enquanto Amber fica frenética ao assistir o programa, especialmente depois de Tracy escolher seu namorado como par. Edna Turnblad recebe diversas ligações enquanto assiste ao show, ela prontamente se denomina agente da filha. Tracy confessa estar apaixonada por Link.

Figura 49: Residência e loja dos Turnblad

Fonte: Hairspray (1988)

Edna leva Tracy para fazer compras e as duas fazem parceria com uma loja de moda plus size (figura 50). Tracy Turnblad torna-se um ícone de moda adolescente em Baltimore (WATERS, 2005b).

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Figura 50: Bem-vinda aos anos 60!

Fonte: Hairspray (1988)

Tracy começa a ter problemas na escola, por causa do tamanho de seus penteados. Ela é mandada para uma turma de alunos especiais. Amber aproveita para espalhar fofocas sobre sua inimiga. Tracy descobre que, na verdade, os alunos especiais são majoritariamente negros. Na nova turma, ela conhece o filho de Motormouth Maybelle, Seaweed (figura 51). Penny e Seaweed começam a namorar, assim como Link e Tracy (WATERS, 2005b). Figura 51: Educação “especial”

Fonte: Hairspray (1988)

Tracy Turnblad começa a adquirir fama, é reconhecida nas ruas. Ela e seus amigos vão à loja de discos de Maybelle, no bairro negro. Lá eles são acolhidos e podem dançar qualquer

57

tipo de música, se sentir à vontade, em um mundo sem preconceitos. A senhora Pingleton segue a filha, mesmo apavorada por estar em uma vizinhança negra, e a tira a loja aos berros (figura 52) (HAIRSPRAY, 1988).

Figura 52: Loja de discos

Fonte: Hairspray (1988)

Seaweed e sua irmã são barrados ao tentar entrar no Corny Collins show num dia normal (figura 53). Collins é informado do problema na entrada e prontamente permite a entrada dos dois, mas o guarda diz que a gerência não permite. Tracy quer ajudar; sua mãe tenta impedir, mas ela começa a gritar e vai para frente do estúdio protestar, Link vai junto.

Figura 53: Barrados, parte II

Fonte: Hairspray (1988)

58

A gerência discute com Corny, insistem em não permitir a entrada de uma criança negra. Tracy e seus amigos decidem ir a um baile da Motormouth Maybelle, como apresentado na figura 54. Os Turnblad e os Pingleton seguem os jovens com um psiquiatra, Penny é levada numa camisa de força e Tracy volta para casa com seus pais (WATERS, 2005b).

Figura 54: Baile negro

Fonte: Hairspray (1988)

Chega o dia do concurso Miss Auto Show 1963, apresentado no Corny Collins Show no parque de diversões Tilted Acres. Protestantes estão à volta do parque, Maybelle está junto deles (figura 55). Tammy e Corny discutem com oficiais da rede de televisão, confrontando a ideia de segregação e quase são demitidos.

Figura 55: Protestos

Fonte: Hairspray (1988)

59

Corny apresenta o programa normalmente, introduzindo as concorrentes à Miss Auto Show. A competição tem início com a dança escolhida por Amber (figura 56). Tracy se mostra desiludida durante a coreografia. Do lado de fora, os protestos à segregação continuam. Ao término da música, Tracy assume o microfone e, enquanto apresenta sua música, faz menção aos amigos que não puderam estar lá, apoiando a integração. Amber perde o controle e ataca Tracy verbalmente pelo microfone (HAIRSPRAY, 1988).

Figura 56: Amber e Tracy trocando faíscas

Fonte: Hairspray (1988)

Durante a anarquia, todos se assustam com uma fumaça repentina e os protestantes negros conseguem adentrar o parque, deixando oficiais do estúdio furiosos. Começa a confusão, pessoas se agridem e negros apanham de policiais. Penny está assistindo tudo pela televisão, enquanto alisa os cabelos e recebe terapia de choque (figura 57). Tracy é levada pela polícia (WATERS, 2005b).

Figura 57: Terapia de choque

Fonte: Hairspray (1988)

60

Seaweed, completamente machucado, consegue visitar a namorada Penny. Tracy assiste televisão enquanto alisa os cabelos no reformatório (figura 58). Link aparece no noticiário e sua namorada corre em direção a televisão, lambendo-a incessantemente. Amber Von Tussle também aparece no noticiário, falando mal da Tracy e repudiando a ideia da integração. Ainda nas notícias, negros pedem pela libertação da Tracy Turnblad. Seaweed e Penny fogem juntos (HAIRSPRAY, 1988).

Figura 58: Passando os cabelos no reformatório

Fonte: Hairspray (1988)

O governador aparece para cortar a fita do Auto Show e sai, rapidamente, em horror aos manifestantes. Em frente à casa dos Von Tussle, há um grupo gritando pela libertação de Tracy Turnblad. Como exposto na figura 59, os Von Tussle se preparam para explodir o set caso sua filha não seja a vencedora do concurso. Figura 59: A bomba dos Von Tussle

Fonte: Hairspray (1988)

61

Na mansão do governador há outro grupo de protestantes, liderado por Motormouth Maybelle. Ela e sua filha se algemam ao governador e entram na mansão com ele (figura 60) (WATERS, 2005b).

Figura 60: Algemando o governador

Fonte: Hairspray (1988)

Enquanto isso, no Auto Show, um oficial do estúdio de televisão apresenta a vencedora do concurso. Todos gritam por Tracy e o oficial anuncia com desdém que, tecnicamente, ela venceu. O público comemora com fervor. Porém, como Tracy foi levada ao reformatório, Amber é anunciada como a vencedora do Miss Auto Show 1963; ela é vigorosamente vaiada pelo público enquanto comemora entusiasmada (figura 61).

Figura 61: Amber vaiada

Fonte: Hairspray (1988)

62

Link chora ao ver Amber desfilando no pequeno carro que ganhou. Amber Von Tussle dedica uma dança à Tracy, The Roach 80 , que ainda está assistindo ao programa e faz-se histérica. O governador finalmente cede e liberta Tracy Turnblad, que já sai do reformatório dançando The Roach (figura 62) (HAIRSPRAY, 1988).

Figura 62: Mata a barata!

Fonte: Hairspray (1988)

Velma Turnblad assiste escandalizada à entrada de Tracy no Auto Show. Amber permanece furiosa sentada em seu trono, gritando ofensas (figura 63), enquanto Corny aclama o fato de que, pela primeira vez em televisão local, foi visto um programa integrado.

Figura 63: Miss Amber

Fonte: Hairspray (1988) 80

Referência à cockroach, significa “barata”.

63

Tracy Turnblad tem seu retorno triunfal com a música The Bug, fazendo alusão à Amber. Ela é a vencedora do concurso (figura 64).

Figura 64: Miss Auto Show

Fonte: Hairspray (1988)

A plateia aplaude Tracy com entusiasmo. Todos se divertem dançando, comemorando a vitória de Tracy Turnblad e o fim da segregação racial no Corny Collins Show (WATERS, 2005b).

3.2 SHOCK VALUE, BOM GOSTO E MAU GOSTO

Ao discutir sobre as características da imagem fílmica, Martin (2007, p. 27) afirma que “a imagem, por si só, mostra e não demonstra”, ou seja, uma imagem é simbólica e, sozinha, nunca pode ter uma significação integral. As ideias são apresentadas e o espectador é quem tem o poder da generalização, é ele quem faz a montagem ideológica. Martin (2007, p. 22) ressalta que “o som também é um elemento decisivo da imagem pela dimensão que lhe acrescenta”, pois nos confere a percepção do ambiente como um todo, e não apenas num campo de visão limitado. Isso nos permite analisar que, em Pink Flamingos, apesar das imagens e diálogos chocantes, o espectador atento realmente pode perceber um senso de bondade e um caráter familiar no filme. Aqui é provada a condição de cavalo de Tróia de Hairspray, graças a sua ambivalência em relação à generalização e à montagem ideológica, diversos públicos podem apreciar o filme de maneiras distintas. O longa-metragem pode ser

64

visto pelo espectador através de sua natureza irreverente, em que usa de símbolos incomuns quando, por exemplo, apresenta uma jovem plus size, carismática e popular trajando um vestido de cetim rosa bebê cheio de enormes baratas aplicadas (figura 65). Ou também pode ser interpretado por suas convicções protestantes em uma época de segregação racial, como pode ser constatado pela fala de Corny Collins, retirada do roteiro de Hairspray: “negros e brancos juntos pela primeira vez na TV local! Tudo graças a real vencedora do concurso de hoje – Tracy Turnblad!!” (WATERS, 2005b, p. 105, tradução nossa). Em 1981, David Chute atestou: “Waters’ characters never look more bizarre than when he’s trying to pass them off as ordinary”81 (EGAN, 2011, p. 104). Apesar da natureza ambivalente do filme em questão, o shock value está presente em todos os momentos.

Figura 65: Vestida de baratas

Fonte: Hairspray (1988)

“I love shock value” (EGAN, 2011, p. 90), profere John Waters. Partindo dos princípios de Scarpa (2007), shock value é uma estética de excesso que usa elementos subversivos – comportamentos culturais estranhos, socialmente inaceitáveis –, tais como violência, incesto, zoofilia, tortura, prostituição, estupro e muitos outros, para chocar propositalmente o espectador ou promover determinada obra. É um efeito transgressor, que provém da quebra de preceitos éticos. Explora o campo do exótico, erótico, repulsivo, do absurdo e do impossível.

81

“Os personagens de Waters nunca parecem mais bizarros do que quando ele tenta passá-los como genéricos” (Tradução nossa)

65

Tal efeito aborda temas expressados com mais liberdade no subconsciente humano, pois na sociedade aprende-se a lidar com o medo e a conter impulsos sexuais, por exemplo. “O olho se torna um mediador do prazer precisamente porque a satisfação direta do desejo pelo prazer foi circunscrita por grande número de barreiras e proibições” (SCARPA, 2007, p. 144-145 apud ELIAS, 1990, p. 200). O shock value se mostra triunfal quando sua relação de espaço e tempo é precisa, por isso é importante conhecer o público ou plateia e pensar na relação que este ou esta terá com a obra produzida; ou seja, é preciso pensar na leitura que será realizada pela audiência. Esta estética é transgressora porque trata de transformações sociais, desde as mais ordinárias, aborda temas com os quais a sociedade perdeu o contato – ou seja, ocultos, vistos em sonhos e acontecimentos isolados ditos patológicos – e, então, tornaram-se estranhos. O shock value também se encontra na semelhança entre o cinema de arte e o cinema exploitation, também denominada por Scarpa (Ibid.), como uma predileção pelo excesso e exagero tanto nas atuações quanto no enredo de filmes. O paracinema 82 engloba o shock value e, tanto um como outro, tem o poder de deturpar a linha entre o cinema de arte e o cinema exploitation, extinguindo a dicotomia entre a alta cultura (intelectual) e a baixa cultura (popular). “Portanto, enquanto estupro e violência contra o corpo feminino eram vistos como tendo funções metafóricas ou até mensagens anti-violência no cinema de arte, na cultura popular e no cinema exploitation, o corpo e a violência eram lidos de forma literal” (SCARPA, 2007, p. 155). Ainda em relação ao cinema, é uma estética que oferece algo a mais à audiência, é uma reação ao “cinema comercial”. Com a popularização do cinema entre as décadas de 60 e 70, novos cineastas usaram do shock value, como do cinema exploitation, para difundir sua visão artística e promover seus filmes. Assim como no contra-cinema 83 , o shock value proporciona do artifício técnico e teórico o qual permite que algo cômico seja, simultaneamente, chocante, provocativo ou ofensivo; isto pode ser percebido na figura 66, na qual os namorados Tracy e Link dançam de maneira “indecente” ao som de um mashup84 (SCARPA, 2007).

82

“Filmes que rejeitam ou ignoram a cultura legítima do ponto de vista da crítica cinematográfica”. (CASTELLANO, 2014, p. 2) 83 Aceita a ideologia do mesmo grupo que estuda. (SCARPA, 2007) 84 Música criada a partir da combinação de outras duas (ou mais) já existentes.

66

Figura 66: The dirty boogie

Fonte: Hairspray (1988)

John Waters comenta: “Eu acho que gore é shock value” (EGAN, 2011, p. 41, tradução nossa). Pelas falas de Waters, podemos ligar o shock value ao exagero e ele menciona que exagerar o que a maioria das pessoas deseja esconder é o que ele faz em sua obra (EGAN, 2011). O cineasta encoraja jovens diretores a incluir violência exacerbada nos seus filmes, alegando que é barato e disfarça a falta de estrelas no elenco; além de sempre gerar uma reação. Como exemplo de shock value, Waters fala de entranhas e vômito (WATERS, 2005a). Ele, quando questionado sobre o choque contido em seus primeiros filmes, explica: O humor sempre teve prioridade. A coisa do choque, bom, era humor e choque. Eu queria que as pessoas se chocassem, mas que começassem a rir do choque. Não se irritassem. Não saíssem. Era um choque divertido. Elas não estavam especialmente enojadas de verdade. (EGAN, 2011, p. 24, tradução nossa).

O mesmo serve para a violência abordada em suas obras, ela é cômica, muito semelhante a desenhos animados; os exageros da família Von Tussle, assim como seus planos diabólicos falhos, ilustram o caso, tal como na figura 67.

67

Figura 67: A queda dos Von Tussle

Fonte: Hairspray (1988)

Uma das principais técnicas do artista é usar assuntos que as pessoas jamais lidariam e exagerá-los, é assim que o seu humor e, consequentemente, shock value funcionam. Entretanto, John Waters ressalta que o imprescindível é que a audiência subtraia algum sentimento da obra, uma reação, seja amor, ódio ou outras quaisquer. Para o cineasta, o humor e o shock value devem andar juntos. Graças ao shock value cômico de Waters, ele mesmo percebe que acabou “fazendo filmes exploitation para salas de cinema artístico” (EGAN, 2011, p. 74, tradução nossa). Waters, após anos realizando filmes trash com shock value, diz “eu acho que se pode chocar pessoas com maneiras não tão óbvias. Pode-se ser um pouco mais sutil acerca disso” (EGAN, 2011, p. xiii, tradução nossa). Foi precisamente isto que Scott MacDonald (Ibid.) percebeu, ressaltando a ojeriza dos longas iniciais do cineasta e apontando que, já em Desperate Living, o efeito é estranho porque o nojo surge através de eventos comuns, ordinários. John Waters salienta: Pink Flamingos was a hard act to follow. I knew that once you had a hit, audiences and critics lay in wait for your next project. I knew that if I tried to top the shiteating scene in Pink Flamingos, I’d end up being seventy years old and making films about people eating designer colostomy bags. All my humor is based on nervous reactions to anxiety-provoking situations, so I wanted the ideals rather than the action of Female Trouble to be horrifying.85 (WATERS, 2005a, p. 94).

85

Pink Flamingos foi um ato difícil de seguir. Eu sabia que uma vez que se tem um sucesso, as audiências e críticos fazem fila para o seu próximo projeto. Eu sabia que se eu tentasse superar a cena “comendo cocô” em Pink Flamingos, eu acabaria com setenta anos e fazendo filmes sobre pessoas comendo bolsas de colostomia de marca. Todo o meu humor é baseado em reações nervosas a situações que provocam ansiedade, então eu queria os ideais mais do que a ação de Female Trouble de ser assustadora.

68

O mesmo ocorreu com os filmes posteriores à Female Trouble, e isso inclui Hairspray. O cineasta optou pela – suposta – sutileza dos ideais ao invés das ações. Um exemplo é ilustrado pela figura 68, na qual dois casais de adolescentes – sendo um deles interracial – fogem, durante a noite, e se escondem em uma rua supostamente perigosa (por ser em um bairro habitado por negros em um período de segregação) para namorar.

Figura 68: Making out

Fonte: Hairspray (1988)

Outro princípio do shock value de Waters é o insulto: “[...] meus filmes são baseados em–rivalidades entre dois grupos de pessoas para eu poder trabalhar com muitos insultos” (EGAN, 2011, p. 39, tradução nossa). No fotograma da figura 69, percebe-se que os insultos são encontrados até em pequenos detalhes.

Figura 69: A Amber é uma otária

Fonte: Hairspray (1988)

69

Considerando Hairspray como um filme para toda a família assistir, ele ainda traz cenas de shock value; pois o espectador, mesmo que habituado a cenas incomuns – como, por exemplo, as da primeira fase do diretor –, é surpreendido ao encontrar tais cenas em um filme supostamente familiar. Uma cena estranha no meio de uma comédia dramática se torna uma cena de horror – a figura 70 ilustra este shock value de caráter supostamente delicado, quando um rato passa pelos sapatos cor-de-rosa de Tracy ao trocar declarações com o namorado – e, como pronuncia Zinoman (2011, n.p., tradução nossa), “um dos prazeres centrais de assustarse é que isto foca a mente. Quando você encontra o medo extremo, você esquece o resto do mundo. [...] os bons filmes de horror te fazem pensar; os grandes te fazem parar”.

Figura 70: Que romântico!

Fonte: Hairspray (1988)

Graças a esta constatação, é de se apontar que, possivelmente, quando John Waters insiste que seu trabalho não traz valor socialmente gratificante, ele busca inserir sua obra no conceito de grande filme de horror proposto por Zinoman (Ibid.). Acerca das constatações de Waters sobre seu trabalho, ele discursa: People are always trying to read stuff into my films, but I never said there was any message. I’m just trying to make a movie to give people a good time and whatever they think it means, they’re right. I’m not trying to tell anybody what to think about it. Make up your own mind.86 (EGAN, 2011, p. 39).

86

As pessoas estão sempre tentando interpretar coisas nos meus filmes, mas eu nunca disse que havia alguma mensagem. Eu só estou tentando fazer um filme para oferecer às pessoas uma boa experiência e qualquer coisa que elas pensem que isso significa, elas estão certas. Eu não estou tentando dizer para ninguém o que pensar. Faça a sua própria interpretação. (Tradução nossa)

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O shock value está diretamente ligado a cenas estranhas e incomuns, por causa do efeito que elas podem causar. Segundo Freud (1976), o estranho – unheimlich – é visto como o que produz medo ou horror, “aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, há muito famíliar” (Ibid., p. 277). O novo (o que não é familiar) tem o poder de gerar estranheza e o familiar (heimlich) pode se tornar estranho, ou seja, o estranho possui significado ambivalente. Conclui-se que o estranho está conectado principalmente a alguns fatores: à onipotência de pensamentos, à realização de desejos e ao medo da morte. A onipotência de pensamentos se dá quando experiências semelhantes são repetidas. A realização de desejos funciona quando o que se é desejado acontece quase que de maneira imediata; bem semelhante à onipotência de pensamentos, elas se complementam. O medo da morte tem ligação com o relacionamento emocional das pessoas com a morte – é um medo primitivo – e com a falta de conhecimentos científicos sobre ela. Contíguo a estes fatores, há outras hipóteses maiores, relacionadas também a coisas que deveriam permanecer ocultas, mas que, de alguma maneira, chegaram ao nosso âmbito (FREUD, 1976). Todo o afeto que provém de algum impulso emocional e é reprimido, converte-se em ansiedade; uma subcategoria do estranho seria composta por algo – talvez secretamente – familiar, que foi reprimido, e retorna. Os elementos que levam ao sentimento de estranheza costumam estar, de maneira ou de outra, ligados à repressão. Foi comentado que a estética transgressora do shock value trata de temas com os quais a sociedade perdeu o contato, este seria como o estágio de repressão de algo familiar; quando retorna em filme, torna-se estranho (unheimlich), provocando choque. Outro fator que pode causar estranheza é a falta de diferenciação entre a imaginação e a realidade, isso ocorre quando algo imaginário toma realidade ou até quando um símbolo assume as funções do que simboliza. Além disso, o estranho também pode surgir por meio de velhas crenças – já superadas, nas quais não acreditamos mais – que, a qualquer pequeno estímulo, podem ressurgir e reafirmar nossas antigas convicções; pois as novas ainda não estão bem asseguradas (FREUD, 1976). Fica estabelecido que, nos diferentes casos expostos, existem duas vertentes: a da realidade e a do ideativo. Freud (Ibid., p. 310) finaliza: A nossa conclusão podia, então, afirmar-se assim: uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se.

O próprio autor relata que a diferenciação é comumente difícil, porque ambos os casos tem forte relação com a infância. Porém, não é tudo que relembra desejos reprimidos e modos

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de pensar superados que é estranho. O estranho na literatura e na ficção, assim como na área cinematográfica, se torna um campo muito mais engenhoso por causa de dois fundamentos. Sendo eles, a maior variedade de modos de criar o estranho no cinema do que na vida real e o que não passa sensação estranha nos filmes pode passar na vida real. Quando figuras e cenários estão em sintonia dentro de uma realidade poética, essas figuras e cenários perdem quaisquer estranhezas que poderiam conservar; todavia, caso ocorresse na vida real, tudo seria diferente, estranho. A audiência está à mercê do cineasta, ele pode manipular os cenários e figuras a fim de influenciar a reação de estranheza; aí as reações até podem ser tal qual seriam na vida real. É de se considerar o caso da empatia, ou de sentir-se no lugar de tal personagem. Caso o público não esteja vendo algo através de um personagem, ele pode não sentir estranheza, aí o evento pode fazer-se cômico. Freud (1976, p. 313) salienta: Até mesmo um fantasma ‘real’, como O Fantasma de Canterville de Oscar Wilde, perde todo o poder de pelo menos despertar em nós sentimentos repulsivos tão logo o autor começa a divertir-se, fazendo ironias a respeito do fantasma e permitindo que se tomem liberdades com ele.

Elementos como a escuridão, o silêncio e a solidão estão intimamente ligados à ansiedade infantil, conseguem fazer parte da vertente do ideativo, se mostrando de realidade psíquica; “algo reprimido que retorna” (Ibid., p. 300). O conceito de estranho proposto por Freud também pode ser ligado ao mau gosto. O que é de mau gosto é considerado estranho, e vice-versa. John Waters esclarece que mau gosto é entretenimento, é um sorriso. A leveza com que Waters aborda questões de gosto, diferente de diversos outros autores, é refrescante. Tratar o mau gosto como uma maneira de entreter, ou seja, de divertir e distrair, é muito sagaz, dado que o mau gosto, assim como o shock value, – ambos por serem de natureza estranha – sempre geram reações, chamando atenção. John Waters busca trabalhar com o dito – por ele mesmo – “bom mau gosto”. O bom mau gosto ocorre quando a audiência ri junto dele (do bom mau gosto) e não dele em si; graças ao humor e personalidade da Tracy, ela pode usar roupas consideradas de mau gosto (figura 71) fazendo com que a audiência se divirta junto com ela, ao invés de rir dela, produzindo bom mau gosto. Isto é, tem a ver com diversão e não com discriminação.

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Figura 71: Bom mau gosto

Fonte: Hairspray (1988)

Quando há falta de bom gosto, o bom mau gosto não existe também. Se alguém que não tem, ou não conhece bom gosto tenta brincar com o mau gosto, ele se torna um mau gosto ruim; pois as pessoas irão rir dele e não com ele (EGAN, 2011). Alison Lurie compartilha de pensamentos semelhantes. Ao discursar sobre eloquência e mau gosto no livro A Linguagem das Roupas, a autora evidencia a existência de pessoas, as quais ela chama de talentosas, que possuem o poder de combinar peças de vestuário estranhas “em uma eloquência brilhante de declaração pessoal” (LURIE, 1997, p. 36). Estas pessoas talentosas possuem o bom mau gosto proposto por Waters. O “mau” mau gosto de Waters equivale à falta de gosto da autora. Segundo Lurie (Ibid.), são os tipos “artistas sem talento” que possuem falta de gosto; suas combinações de vestuário insinuam desarmonia e “inabilidade pessoal”. Partindo dos conceitos de shock value, estranho, bom gosto e mau gosto, pode-se analisar alguns elementos fílmicos importantes de Hairspray, com o objetivo de compreender o filme. Os elementos abordados – o cenário, a cor, o vestuário, a maquiagem, o cabelo, os atores, os diálogos e a música – serão utilizados para complementar os conceitos estudados anteriormente (VANOYE; GOLIOT-LÉTÉ, 2008). O cenário, no cinema, inclui ambientes exteriores e interiores, reais e construídos, naturais e construções humanas. Pensando-se em uma concepção geral, o cenário de Hairspray é realista, pois não tenta significar nada além do que é naturalmente, ou seja, amplamente, a cidade de Baltimore. O filme possui cenários em ambientes de construções humanas (Baltimore), externos (ruas, parque Tilted Acres) e interiores (colégio, Corny Collins Show, residências, salões, lojas), reais (existentes) e construídos (em estúdio). É proferido por

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Martin (2007, p. 66) que “o cenário desempenha quase sempre um papel de contraponto com a tonalidade moral ou psicológica da ação”, isto pode ser concebido na residência com decoração requintada e opulenta dos Von Tussle se contrapondo ao mau-caráter da família (figura 72). Hairspray retoma a primeira fase de Waters em questões de cenário, a diferença é que com mais sobriedade (MARTIN, 2007).

Figura 72: Bunker dos Von Tussle

Fonte: Hairspray (1988)

A função da cor não é meramente fidelizar o realismo da imagem e, sim, funcionar como realce dos valores e implicações psicológicas e dramáticas. A cor tem poder decorativo, metafórico e expressivo, especialmente em filmes exóticos, musicais e comédias, como Hairspray. Quando utilizada com perspicácia, a cor também deve ser contraponto psicológico e dramático da ação e esta é uma boa justificativa para todos os filmes coloridos de John Waters. Os personagens vis fazem contraponto com cores contrastadas, em todos os filmes coloridos do cineasta (MARTIN, 2007). Além disso, a cor causa impacto forte e imediato, “psicólogos descobriram que o simples fato de olhar cores diferentes altera a pressão sanguínea, a pulsação e o ritmo respiratório” (LURIE, 1997, p. 195). Os atores são grande parte da construção do universo fílmico de um diretor. As atuações, tanto na primeira fase de John Waters quanto em Hairspray, podem ser classificadas como frenéticas, pois exigem expressões verbais e gestuais exageradas. Além da empatia da audiência com os personagens, o diferencial de um ator é a personificação, ou seja, é importante que a personalidade do ator esteja inserida no personagem, o que não foi grande problema para Waters em sua primeira fase, já que os papéis eram escritos pensando em quem

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iria interpretá-los; assim como alguns personagens de Hairspray. Outro importante ponto, particularmente em relação à Ricki Lake e aos antigos Dreamlanders, é a fotogenia. Segundo Fischer (2012, p. 189), a fotogenia “permite vermos e sentirmos algo além da identificação e da objetivação, nos elevando a um estado de afeto intimamente subjetivo e sublime”. A fotogenia foi uma grande preocupação do cineasta no momento de procurar a atriz para o papel da Tracy Turnblad. O cineasta explicou, em entrevista ao Film Journal, que se ninguém gostasse da Tracy, ninguém iria gostar do filme (EGAN, 2011). Ricki Lake teve a sagacidade de “colocar-se na pele do personagem” (MARTIN, 2007, p. 74). A música é um elemento de intensificação e aprofundamento da sensibilidade que opera através dos sentidos e acrescenta substância sensorial à imagem, a atmosfera da música traz dimensão ao filme. Martin (2007, p. 121) comenta que “a imagem obtém da música o melhor de sua expressão ou, mais precisamente, de sua sugestão”, propondo que a música antecipa – sugere – à audiência o caráter do filme. A música deve prover para elucidar a história do filme e, quando em êxito, possui condição decorativa. Em Hairspray, a trilha sonora composta por músicas dos anos 50 e 60, traz harmonia entre a palavra e a imagem do filme. (MARTIN, 2007). Os diálogos são compostos pela fala, a qual é um elemento de caracterização dos personagens, assim como o figurino e o comportamento. É constatado por Martin (2007, p. 176) que “há, portanto, uma adequação necessária entre o que diz um personagem – e o modo como diz – e sua situação social e histórica”. Esta adequação, junto ao desempenho dos atores, contribui para a credibilidade do filme; estes fatores fizeram com que parte da audiência de Pink Flamingos acreditasse que o filme fosse um tipo de documentário. Martin (2007, p. 178) reforça que “a fala deve evitar o máximo possível ser uma simples paráfrase da imagem”, ou seja, a fala não deve ser um pleonasmo da imagem quando não há necessidade. Considerando a ligação da obra de Waters com sua cidade natal, nota-se que os diálogos dos seus filmes são realistas, porque usam a linguagem dos habitantes de Baltimore; um exemplo é o termo hon, visto no final do capítulo 2. O diálogo realista busca explicitar o cotidiano (falado), procura parecer natural e usual. Jacques Manuel declara: “O vestuário é o que está mais próximo do indivíduo” (MARTIN, 2007, p. 61 apud MANUEL, 1949, p. 3-4), ao considerar que o cinema observa o homem e se apodera das suas emoções, gestos e atitudes. Desta maneira, o figurinista precisa vestir caracteres. É possível que os filmes de John Waters se encaixem na categoria de vestuário para-realista, proposta por Martin (2007). O vestuário para-realista se inspira na realidade histórica, “procedendo a uma estilização”. Esta estilização do estilo e da beleza

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prevalece sobre a autenticidade histórica. O figurino para-realista usufrui de uma realidade manipulável, que se torna atemporal (MARTIN, 2007, p. 61). É esclarecido por Lurie (1997) que a moda é uma linguagem e “o vocabulário das roupas inclui não apenas peças de roupas, mas também estilos de cabelos, acessórios, joias, maquiagem e decoração do corpo” (Ibid., p. 20), isto é, quaisquer adornos corporais fazem parte da linguagem da moda. A roupa tem o poder de definir quem a usa, expressar ideias e emoções, refletir o que somos ou desejamos nos tornar. “A roupa, às vezes, é mais eloquente que o discurso nativo daqueles que a vestem” (LURIE, 1997, p. 37). A pessoa veste-se para cumprir um papel social. O significado da roupa tem ligação direta com o tempo e o espaço em que ela está inserida. Como no bom gosto e mau gosto propostos por Waters, Lurie (1997) afirma, através de Irving Goffman, que a roupa apropriada (bom gosto) está vinculada à situação. Uma roupa vista como adequada em um lugar e momento, pode não ser vista assim em outro lugar e momento. A pessoa que está vestindo uma roupa adequada para certa situação revela seu envolvimento com tal acontecimento, assim como a pessoa que está vestida de forma inadequada (mau gosto) explicita sua falta de envolvimento. A língua, relacionada ao conceito de roupa apropriada, também pode ser relacionada ao conceito de mau gosto: “distinguimos entre alguém que pronuncia bem uma frase – claramente, com confiança e dignidade – e alguém que pronuncia mal” (LURIE, 1997, p. 28). Isto é, quem “pronuncia bem uma frase” pode possuir o bom mau gosto enquanto “alguém que pronuncia mal” possui “mau” mau gosto. Lurie (1997, p. 93) relata que, no início dos anos 60, “uma nova onda de entusiasmo romântico e inovação – política, espiritual e cultural, ou melhor, contracultural – irrompeu no mundo ocidental”. Esta onda é perfeitamente representada em Hairspray, assim como nos outros filmes do diretor, especialmente se relacionada ao figurino; o qual incluiu peças coloridas, extravagantes, com aparência barata ou sofisticada. A década de 60 foi uma época de diversidade em relação à roupa, “as roupas eram tratadas como fantasias” (figura 73) (LURIE, 1997, p. 96).

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Figura 73: O estilo divertido de Motormouth Maybelle

Fonte: Hairspray (1988)

Ao final dos anos 60, a aparência da mulher era “com um rosto que faz beicinho e olhos grandes e um corpo infantil: pernas longas e finas, corpo estreito e pouco desenvolvido e uma cabeça proporcionalmente grande” (LURIE, 1997, p. 94). Fica claro, a partir da definição de Lurie, que as hair hoppers – vistas principalmente em Hairspray e Female Trouble – eram realmente extremistas da época, provando a estranheza de Baltimore. Lurie (1997) também elucida a construção do penteado da época, afirmando que a dita cabeça grande era alcançada através de secador elétrico, hair teasing (ratted)87 e hairspray88. Através do ponto de vista de Vita (2009), percebemos que o cabelo da década de 60, além de ser alto, volumoso e precisar de muito hairspray para se manter em pé, utilizava-se de apliques de cabelo ou enchimentos de materiais variados, como esponjas de aço (para dar forma e volume, além de altura). As hair hoppers usavam cortes e penteados usuais, porém com proporções exageradas (figura 74). Alguns cortes e penteados usuais eram o sassoon 89 , gatinho90 e chucrute91 (VITA, 2009).

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Técnica que consiste em escovar (normalmente com um pente fino) seções do cabelo ao contrário (das pontas à raiz) com a intenção de enosá-lo, obtendo volume. 88 Spray de cabelo, laquê. 89 Corte “capacete” com um lado mais comprido que o outro. É conhecido como sassoon porque foi criado pelo cabeleireiro Vidal Sassoon, o qual possuiu salão em Londres e foi considerado o cabeleireiro da década. É conhecido por seus cortes assimétricos. (VITA, 2009) 90 Neste corte, as pontas eram onduladas para cima e o cabelo era bem armado. (VITA, 2009) 91 Cabelo penteado para cima, muito alto e volumoso. (VITA, 2009)

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Figura 74: “The bigger the hair the closer to god”

Fonte: Hairspray (1988)

Consequentemente, os jovens de 1960 já eram cheios de novas ideias e conceitos. Vanoye e Goliot-Lété (2008, p. 54) ressaltam que “um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto sócio-histórico”. A história dos anos 60 foi muito marcante. As mudanças, em relação à moda, foram extremas, não há padrões ou tendências específicas. Duas tendências facilmente identificadas na época foram o batom branco e o vestido trapézio; usado por Tracy, em Hairspray, no fotograma da figura 75 (VITA, 2009).

Figura 75: Vestido trapézio

Fonte: Hairspray (1988)

Quanto à maquiagem dos anos 60, era indispensável a presença de sombras, bases, delineadores, pancakes, blushes, máscaras para cílios e cílios postiços. Os cílios postiços eram

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grandes e artificiais – usados dia e noite –, acompanhados por diversos tons de sombra e delineador líquido. Os lábios praticamente não possuíam cor, eram preenchidos por tons claros, como bege e rosa, e até, branco (figura 76) (VITA, 2009).

Figura 76: Maquiagem das Von Tussle

Fonte: Hairspray (1988)

As unhas da década eram pintadas dos mesmos tons leitosos dos batons (VITA, 2009). Waters (2005a) explica como funciona a maquiagem, realizada por Van Smith, em seus filmes. O diretor costuma contratar pessoas feias para fazer papéis de bonitas e vice-versa, para dificultar o trabalho do maquiador. Van planeja mentalmente como aflorar as piores características de cada ator. Waters (Ibid., p. 133) salienta: “He totally understands the look of ‘inner rot’ I demand”92. Van Smith (WATERS, 2005a, p. 133-134, tradução nossa) explana seu método: Eu gosto de começar com um rosto recém-lavado. Primeiro, eu aplico espinhas feitas de cola para cílios, e se eles possuem qualquer brilho natural, eu jogo sujeira na cara deles como uma boa base. Depois eu desenho cravos, marco com lápis quaisquer marcas de idade, faço bolsas nos olhos com um sombreado severo, e agrido a cútis deixando clara de ovo secar na pele deles. Se o roteiro pede, eu posso enfiar um ranho para entupir suas narinas ou aplicar cicatrizes feitas de látex. Quando eu sei que eles têm um close-up, eu aplico pequenas quantidades de tinta nos seus dentes para dar uma aparência demasiadamente decadente e recomendo que comam um saco de salgadinhos para que eles tenham placa. Ajuda se eles forem filmados contra a luz. Mais importante, ajuda se o ator abraçou a miséria como um estilo de vida.

Ainda nos anos 60, os homens passaram a deixar o cabelo crescer em sinal de liberdade, o que ainda mostra o quão visionária era a equipe Dreamland; em que John Waters 92

Ele entende perfeitamente o visual “podridão interior” que eu exijo. (Tradução nossa)

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e seus amigos possuíam cabelos compridos e coloridos. “Jovens audaciosos escovavam o cabelo no sentido contrário propositalmente como sinal de sua independência da restrição convencional” (Ibid., p. 181). Enfim, os anos 50 e 60 exalavam mudanças, o individualismo surgia e marcas buscavam mostrar aos jovens clientes que apoiavam a criatividade e a liberdade; fazendo com que eles pudessem largar o hábito dos brechós. Em períodos de expansão, como a década de 60, as roupas como um todo tendem a ser mais infantis, informais, inventivas e bastante coloridas. (Ocasionalmente, tornam-se decididamente tolas.) [...] Cores discretas parecem enfadonhas e fora de moda, e qualquer reserva na maneira de vestir [...] torna-se um sinal de conservadorismo político e social. (LURIE, 1997, p. 171).

Como visto na vida de Waters, os conservadores da época sentiam-se ofendidos e incomodados pelas novas visões e costumes – tais como música, arte e política – dos jovens nascidos durante, e após, a Segunda Guerra Mundial. Esta cultura jovem, explícita em Hairspray, ocorreu por causa dos altos índices de jovens em relação à população dos Estados Unidos. Isto é, os jovens, consequentemente, possuíam grande disponibilidade financeira. “Os adolescentes dos anos 50 distinguiam-se das gerações anteriores de jovens americanos em número, riqueza e auto-consciência” (MATTOS, 2003, p. 54). Como a década de 40 e o início da década de 50 foram épocas de sofisticações e convenções devido ao período pós-guerra, os jovens de meados dos anos 60, além do poder aquisitivo e do fator contracultural, eram sofisticados, como seus pais (LURIE, 1997). O aspecto da sofisticação destes jovens, nesta época específica, é de suma relevância para a presente pesquisa, pois foi aí que Waters começou a fazer suas conexões de bom gosto e mau gosto. John Waters nasceu em meados dos anos 40, viveu no subúrbio com uma família de classe média católica, em uma cidade peculiar e provinciana. O cineasta teve sua vida exposta aos extremos da contracultura e sofisticação e, através de sua carreira profissional, pôde encontrar equilíbrio em sua vida, criando suas visões de bom mau gosto e “mau” mau gosto, celebrando-as. Além disso, a peculiaridade de Baltimore foi um grande aspecto em sua carreira, ela é a estranha província dos Estados Unidos que, apesar de conhecer os costumes do resto do país, escolheu priorizar os seus próprios; daí vem a forte relação, de admiração, do artista com sua cidade natal. É por isto que o artista insiste que é importante ver seus assuntos ou sujeitos como ídolos, apesar de suas características cômicas e incomuns, e não como objetos passíveis de depreciação. Os filmes da primeira fase de Waters foram extremamente contraculturais, já que tratavam de novos movimentos políticos, espirituais e culturais. Hairspray foi lançado ao final da década de 80 e pôde reviver este período (anos 50 e 60) de vasta importância na vida

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de John Waters e de todo o mundo ocidental. Vita (2009, p. 133) complementa: “A grande revolução comportamental do mundo moderno deu-se mesmo na década de 1960. [...] Sem a menor sombra de dúvida, [...] germinou todas as mudanças que hoje são corriqueiras”. É um período que influenciou todas as obras do cineasta e se mantém relevante em uma sociedade em que a cultura jovem continua a ser propagada. Entende-se principalmente que o shock value é uma estética de excesso. A observação da obra de John Waters mostra isto, é criada uma abertura para que o shock value seja mais abrangente. Os conceitos de bom gosto, mau gosto e estranho, deixaram a entender que o shock value não precisa estar necessariamente ligado à exploração, ele pode provir de uma estética de excesso. No caso de Waters, os diversos fatores – já apresentados – desta estética de excesso, ligados a um humor subversivo, culminaram em filmes dotados de uma eloquência extraordinária.

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4. CONSTRUÇÃO DE MARCA DE MODA

Neste capítulo, será evidenciada a marca criada para a realização da futura coleção de moda. A marca será apresentada através da sua identidade visual, princípios norteadores e objetivos estratégicos, assim como será proposto o composto de marketing e o público-alvo. Além disso, serão apontadas duas marcas inspiracionais – a Shrimps e a Ashley Williams –, as quais terão seus históricos, públicos e compostos de marketing brevemente explanados.

4.1 APRESENTAÇÃO DAS MARCAS INSPIRACIONAIS

A concorrência abrange os substitutos rivais, atuais ou potenciais, que um cliente possa considerar (KOTLER; KELLER, 2012). Foram identificadas duas concorrentes em potencial: Shrimps e Ashley Williams. Estas duas marcas foram identificadas como inspiracionais, ou até possíveis concorrentes, a partir da observação das suas estratégias de marketing e público-alvo. A estratégia de marketing é composta pelo mix de marketing – ou composto de marketing – e, este, é totalizado por quatro ferramentas conhecidas como os quatro Ps do marketing; produto, preço, praça e promoção. O primeiro P é referente a produto, que tem “a finalidade de satisfazer às necessidades ou desejos do consumidor” (REICHELT, 2013, p. 85), este é constituído pelos produtos (ou serviços) ofertados aos clientes pela marca. O segundo P é atribuído ao preço, ele pode ser definido a partir de uma análise de custos (preço mínimo), clientes (preço máximo) e concorrentes (preço variável). O terceiro P concerne à praça, ou seja, à estratégia de vendas do produto, onde o produto será distribuído. A praça é a ponte que liga o fornecedor e o consumidor, ela deve ser conveniente ao cliente. O quarto P pertence à promoção, ele está ligado à divulgação da marca e dos seus produtos. A promoção é realizada através dos modos de comunicação da marca com o mercado. Os meios precisam estar de acordo com o público-alvo para a promoção funcionar. É importante descobrir quais as mídias e locais que o possível cliente frequenta (MEADOWS, 2010). A estratégia de comunicação da marca é totalmente dependente do público-alvo, por isto a identificação do público é indispensável. Kotler e Keller (2013, p. 313) complementam: “O público-alvo exerce uma grande influência sobre as decisões do comunicador no que diz respeito ao que dizer, como, quando, onde e para quem”. Quando se tem conhecimento da marca, um modo interessante de descobrir o público-alvo é analisando sua imagem.

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Adverte-se que, devido aos poucos anos de atuação das marcas concorrentes, os dados para a realização desta etapa foram retirados de entrevistas, reportagens e dos sites das marcas em questão. As redes sociais (Facebook e Instagram) das marcas concorrentes também foram analisadas.

4.1.1 Shrimps

A Shrimps é uma marca de moda de Londres lançada em 2013. Participa da London Fashion Week desde 2014. A designer Hannah Weiland é a criadora da marca, ela é formada pela London College of Fashion em design de superfície e sempre esteve envolvida com história da arte. A designer se inspira na arte moderna e trabalha com modelagem e texturas de uma maneira divertida. Os tecidos utilizados, comumente pele falsa, tem ênfase na cor e na textura. Para iniciar a observação do composto de marketing da marca, apresenta-se sua gama de produtos. A Shrimps é conhecida por seus casacos de pele falsa, mas além deles, a marca possui produtos como cachecóis, saias, blusões, kilts, bolsas e chaveiros (figura 78) (SHRIMPS, 2015).

Figura 78: Painel de produto da Shrimps

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

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Em segundo lugar, podemos perceber que os preços da Shrimps variam, aproximadamente, entre 60 e 900 euros (SHRIMPS, 2015) (figura 80). Como a marca possui pouco tempo de mercado e uma gama de produtos reduzida, seus preços não são tão altos.

Figura 80: Painel de preço da Shrimps

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

A praça da Shrimps consiste em loja virtual de alcance mundial, além de varejistas na Europa, Ásia, Estados Unidos e Rússia. A sua promoção é feita por redes sociais – como Facebook, Twitter, Instagram e Tumblr –, além de parcerias e reportagens em revistas e jornais (SHRIMPS, 2015). O público, segundo Meadows (2010), reflete a mensagem original que a marca possui. No intuito de refletir a imagem da marca, foi construído um painel de público, visto na figura 82, logo abaixo.

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Figura 82: Painel de público-alvo da Shrimps

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

A editora de moda do The Guardian, Cartner-Morley (2014, tradução nossa), diz que “o casaco da Shrimps faz você feliz. Você não pode ficar realmente mal-humorado usando um”. Dito isso, o público-alvo da marca é a mulher visionária que busca diversão na moda (SHRIMPS, 2015).

4.1.2 Ashley Williams

Ashley Williams é uma designer de Londres, graduada em moda pela University of Westminster em 2012. Em 2013, lançou sua primeira coleção ao participar do grupo Fashion East, para jovens designers emergentes. Em 2014, Ashley fez uma coleção cápsula para a Selfridges Denim Studio (TSJENG, 2014). Em 2015, Ashley Williams foi escolhida para receber patrocínio para a London Fashion Week do programa NEWGEN (do British Fashion’s Council), assim apresentando seu primeiro desfile solo (LONDON FASHION WEEK, 2015). Partindo dos princípios do composto de marketing, os produtos da Ashley Williams são bem variados. Podem se resumir em, principalmente, blusas, camisetas, vestidos, saias, bolsas e sapatos, como percebido na figura 77 (WILLIAMS, 2015).

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Figura 77: Painel de produto da Ashley Williams

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

Em relação ao preço, os produtos da Ashley Williams variam, aproximadamente, entre 40 euros e 1.200 euros. A marca também trabalha com promoções, como ilustrado no painel da figura 79 (WILLIAMS, 2015).

Figura 79: Painel de preço da Ashley Williams

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

A praça da Ashley Williams é a loja virtual – a qual tem alcance mundial – e varejistas no Reino Unido, América, França Itália, Japão, China e Coreia. A promoção da marca é

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realizada através de redes sociais – como Facebook, Instagram e Twitter –, desfiles, parcerias com marcas, programas e revistas. A Ashley Williams tem grande apoio da revista Dazed and Confused (WILLIAMS, 2015). O público-alvo da marca Ashley Williams é composto por jovens mulheres irreverentes (WILLIAMS, 2015) (figura 81). Tanto que a designer promove a marca – em seu Instagram, por exemplo – com fragmentos da sua vida pessoal, mostrando que ela não só conhece seu público-alvo como se identifica, fazendo parte e buscando proximidade dele (MEADOWS, 2010).

Figura 81: Painel de público-alvo da Ashley Williams

Fonte: Elaborado pela autora, 2015.

A diferença de preço das duas marcas estudadas pode ser argumentada pelo tempo de mercado. O pouco tempo de mercado da Shrimps, juntamente com a sua menor gama de produtos, faz com que seus preços sejam inferiores; mesmo com a utilização de materiais diferenciados e de qualidade (MEADOWS, 2010). Apesar da Shrimps ser uma marca mais jovem, é perceptível que ela já é concorrente da Ashley Williams, ameaçando-a; através de dos elementos do composto do marketing e do público. Estas duas marcas, apesar de tratadas como possíveis concorrentes da Flamboyant, são contempladas como marcas inspiracionais,

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pois já possuem breve histórico e situam-se em Londres, participando do circuito de moda britânico.

4.2 MARCA PRÓPRIA: FLAMBOYANT

A Flamboyant é uma marca autoral que foi criada no ano de 2014, para a disciplina de Projeto de Moda II do curso de Moda da Universidade Feevale, como uma nova linha de outra marca de moda. A nova linha obteve continuidade, de fato tornando-se uma marca, para a disciplina de Desenho de Moda II, no mesmo ano. Em 2015, a marca foi melhor planejada ao decorrer da disciplina de Comunicação na Moda, participando do evento de comunicação de moda da Universidade Feevale: o Brandfashion. Meadows (2010, p. 39) pronunciou: “Um grande nome é o começo de uma grande marca”. A marca chama-se Flamboyant, porque, segundo Frings (2012, p. 310) “os nomes de marca devem ser adequados para a imagem que o fabricante quer projetar, refletir o estilo e o humor das roupas ou acessórios e despertar o interesse do cliente”. Flamboyant é uma palavra de peso que não pode ser traduzida por apenas uma palavra. Flamboyant é um comportamento interno e externo, significa ser brilhante, colorido, extravagante, exagerado, espalhafatoso, fabuloso, vibrante, audacioso, pomposo, elaborado, suntuoso, resplandecente, pretensioso, chamativo, exuberante, surpreendente, corajoso, excessivo, impulsivo, teatral, notável, fascinante, distinto e ousado (figura 83). A origem dela é francesa, do verbo “flamboyer” que significa “pegar fogo”. Ou seja, é um nome que reflete o estilo e a personalidade do negócio, assim como o humor das roupas e, ainda, desperta o interesse do cliente (MEADOWS, 2010).

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Figura 83: Painel de DNA da Flamboyant

Fonte: Elaborado pela autora, 2014.

Uma ferramenta de marketing essencial é a identidade visual. Uma marca é reconhecida pelo público dela principalmente (KOTLER; KELLER, 2012). A identidade visual da Flamboyant não possui cores e é relativamente simples; Meadows (2010) afirma que a simplicidade gera eficiência. O significado do nome da marca já é opulento e, então, para trazer a irreverência da marca, foi utilizada uma fonte que remete a escritas rascunhadas; porque, segundo Meadows (2010), o logo deve exprimir uma noção dos produtos e serviços da marca e a fonte prove o diferencial. Ocorre falta de cores na identidade para sua fácil aplicação em qualquer tipo de material. A identidade visual da Flamboyant sempre será facilmente notada, principalmente quando estiver no meio da explosão de cores e texturas que a marca pode proporcionar (figura 84).

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Figura 84: Identidade visual da Flamboyant

Fonte: Elaborado pela autora, 2014.

Em relação ao planejamento estratégico de marketing, devem ser identificados os princípios norteadores da marca, pois estes têm o poder de ajudar a construir a identidade do negócio de maneira organizada. Os princípios são padrões de conduta e metas dissociados entre visão, missão e valores (REICHELT, 2013). A missão proporciona referência e foco, pois costuma ser um objetivo de longo prazo ou a razão de existir da marca. Em suma, a missão serve para elucidar. A missão da Flamboyant é suprir a necessidade do público da marca de expressar o seu intelectual pelo visual (REICHELT, 2013). A visão tem objetivo de concentrar esforços. Ela deve transmitir como a marca deseja ser vista e reconhecida, onde ela almeja estar futuramente. A visão da Flamboyant consiste em ter reconhecimento entre um público consciente e pensante (REICHELT, 2013). Definir os valores prezados pela marca é deveras proveitoso, pois pode atrair funcionários dedicados – que sabem como se comportar dentro da empresa – e clientes que partilham dos valores em questão. O mais importante é que os valores sejam, de fato, postos em prática, porque são eles que regem a marca. Os valores da Flamboyant são conhecer e entender o público pensante da marca, com a ajuda de formadores de opinião, cativando-o com conteúdo atualizado, cultura e diversão (REICHELT, 2013). O posicionamento estratégico da marca está ligado à competitividade, é necessário para “fazer frente à concorrência” (REICHELT, 2013, p. 72). Após a determinação dos princípios norteadores, é importante que a marca defina um objetivo estratégico. Este objetivo é o principal caminho, o primeiro passo, para alcançar as metas propostas nos princípios norteadores. A definição de tal objetivo, de acordo com Meadows (2010), proporciona foco à ideia de negócio enquanto permite o planejamento de atividades. A Flamboyant utilizará o objetivo estratégico de diferenciação, o qual consiste em fatores que possam produzir diferenciação diante da concorrência; estes sendo estilo, design, atendimento e outros.

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Reichelt (2013, p. 73) menciona que: “Essa estratégia se caracteriza pela criação de algo de valor, que seja reconhecido como exclusivo pelo mercado”. Uma grande vantagem são os preços, se o público acreditar na exclusividade, altos preços são justificados, tornando-se justos.

4.2.1 Mix de Marketing

Meadows (2010) afirma que é importante entender o possível cliente para desenvolver uma coleção adequada, que atenda às necessidades do público-alvo. Considerando que a Flamboyant possui “uma mensagem e uma atitude diretas que se afinem com o seu comprador” (MEADOWS, 2010, p. 93), a proposição inicial de produto pode ser de peças de vestuário variadas, como calças, saias, vestidos, camisetas e camisas. Inicialmente, o preço mínimo proposto pela Flamboyant é de 170 reais e o máximo é de 450 reais, visto que o público-alvo da marca, no Brasil, é menor e tem poder aquisitivo mais baixo do que ao redor do mundo. “A maneira como o cliente tem acesso ao seu produto determina de que modo ele vai enxergar a marca e a imagem dela” (MEADOWS, 2010, p. 76). Ou seja, quanto à praça, a Flamboyant propõe loja virtual de alcance mundial e varejos, assim como suas concorrentes em potencial. A Flamboyant planeja se promover através de redes sociais – Facebook, Instagram e Tumblr –, desfiles, eventos, feiras, revistas e zines (REICHELT, 2013).

4.2.2 Público-alvo

Com o objetivo de oferecer o produto ideal, a Flamboyant definiu o seu público-alvo. A proposta única de valores da marca se destaca, atraindo um público específico. Este público (figura 85) é pensante, aberto a coisas novas e, acima de tudo, bem humorado (MEADOWS, 2010).

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Figura 85: Painel de público-alvo da Flamboyant

Fonte: Elaborado pela autora, 2014.

Além disso, este público busca maneiras de se expressar através da sua imagem. Não há preocupação com gêneros nem idade, porque o que importa aqui é o comportamento e o estilo de vida. Isto é, o que importa para a Flamboyant é o espírito, as ideias e os ideais do cliente (MEADOWS, 2010).

4.3 RELAÇÃO ENTRE O ESTUDO E A COLEÇÃO

O estudo da primeira parte do trabalho de conclusão foi desenvolvido com o intuito de gerar aporte para uma coleção de moda, a qual será materializada na parte seguinte da monografia. A estética da produção cinematográfica de John Waters foi analisada no TCCI e, portanto, continuará em evidência no TCCII. A segunda parte da monografia visa desenvolver uma coleção de moda que culminará em um desfile acadêmico – intitulado Projeta-me, essa é a sua 23ª edição – no Teatro Feevale. O objeto de estudo se tornou o próprio tema da coleção de moda. A coleção e o desfile utilizarão os conceitos de shock value, bom gosto, mau gosto e estranho, buscando produzir no espectador um sentimento semelhante ao que se tem ao assistir a um filme do John Waters. É importante considerar que uma coleção e um desfile não possuem os mesmos recursos de

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um filme, portanto, o objetivo é aproximar-se ao máximo da dinâmica da mise en scène do cineasta. O shock value estará presente na coleção em detalhes das peças, como as baratas no vestido da Tracy Turnblad, assim como vai se mostrar no caráter dos modelos, como no exibicionismo da Dawn Davenport, ou possivelmente em algum tipo de performance, como as da Cavalgada da Perversão. Não se pode descartar também o shock value através da maquiagem, como a de Mole, ou no glamour seguido de mau gosto, visto em Mondo Trasho. Ou seja, os elementos que compõe a estética dos filmes estudados serão transpostos para a coleção e o desfile, através de cada detalhe que possa ser trabalhado, visando produzir mise en scène. O shock value será testemunhado a partir de uma quebra de valores morais, fazendo com que o público pare para, depois, refletir. A Flamboyant é uma marca ligada a extremos e é através deles que ela concebe o seu shock value. Como a marca visa possuir reconhecimento entre um público consciente e pensante, é claro que suas coleções devem exprimir conceitos e, como a Flamboyant tem a missão de suprir a necessidade do seu público de expressar o intelectual pelo visual, ela deve se caracterizar como uma marca que produz uma moda comercial não massificada. Assim sendo, pode-se explorar a relação da Flamboyant com o John Waters, o que resultará no tipo de coleção que será desenvolvida. A escolha da coleção conceitual e não massificada tem sua justificativa associada aos gêneros de filmes produzidos por Waters. Como visto ao longo da pesquisa, o shock value pode se encontrar na afinidade entre o cinema de arte e o cinema exploitation. Também foi apontado que o próprio John Waters diz fazer filmes exploitation para salas de cinema de arte. Assim sendo, é pertinente fazer equivalência do cinema de arte com a moda conceitual e o cinema exploitation com a moda comercial não massificada, a união dos gêneros pode produzir shock value. Desse modo, a coleção de moda a ser desenvolvida para a marca Flamboyant se encontrará entre a moda conceitual e a moda comercial não massificada, assim como o cinema de Waters se vê entre o cinema de arte e o cinema exploitation. Conceitual por culminar em reflexão e comercial não massificada porque não tem o intuito de adaptar tendências, lançadas por grandes designers de moda, produzindo-as em larga escala com materiais de qualidade inferior (MEADOWS, 2010).

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5. DESENVOLVIMENTO DA COLEÇÃO DE MODA

Segundo Treptow (2013), uma coleção de moda precisa ser coesa e deve levar em consideração o perfil do consumidor, a identidade da marca, o tema, a cartela de cores e materiais. Jones (2011) relembra que é importante considerar silhuetas e detalhes de estilo. O designer prevê a necessidade do consumidor e, a fim disso, ele acaba por propor novas ideias que são provenientes do seu próprio senso estético. O processo de criação de um designer exige uma metodologia para que se possa desenvolver uma coleção de moda coerente. Esta pesquisa será guiada pela metodologia proposta por Treptow (2013). Na primeira parte desta monografia, foi apresentada a marca autoral – Flamboyant – para qual a coleção de moda será confeccionada, bem como suas marcas inspiracionais – Shrimps e Ashley Williams. Nos próximos itens, haverá continuidade desse estudo, aplicando-o ao planejamento e à construção da coleção. Após a identificação do público alvo e identidade da marca, serão definidas as cores, materiais, silhuetas e superfícies, através de painéis (JONES, 2011). Posteriormente, serão apresentados os croquis da coleção e, a partir deles, virão as fichas técnicas de produção que culminarão na modelagem e, então, costura de cada peça.

5.1 PLANEJAMENTO DA COLEÇÃO

O planejamento de uma coleção de moda engloba diversos fatores, é um conceito amplo. Treptow (2013) elucida que o planejamento é uma etapa que não é composta apenas pela concepção e processo criativo. Esta etapa contempla a análise da viabilidade produtiva e comercial, assim como sua coerência em uma coleção. Frings (2012) ressalta que o planejamento compreende o estudo dos clientes-alvo, orçamento e metas financeiras, tamanho, tecidos e produção. Estas etapas do planejamento são fundamentais por que influenciam diretamente na criação da coleção; algumas peças podem sofrer alterações ao longo dessas fases. Na coleção de moda que será apresentada nesta monografia, o planejamento é identificado através da análise de coleções, tema, cartela de cores, pesquisa de referências, elementos de estilo, cartela de materiais e superfícies.

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5.1.1 Análise de coleções das marcas inspiracionais

Os dados coletados de uma análise de coleções anteriores trazem subsídios para a criação de uma nova coleção de moda. É importante que sejam identificadas as marcas inspiracionais, supostas concorrentes, de uma nova marca para que se possa familiarizar com o mercado (TREPTOW, 2013). A análise de coleções anteriores tem como objetivo nortear a próxima coleção a ser concebida. A análise pode trazer novas ideias, evidenciar problemas, apontar estilo ou tendência. A análise de coleções faz com que o designer se familiarize com o mercado, com o que está sendo oferecido e como suas concorrentes trabalham (FRINGS, 2012). A análise de coleções anteriores auxilia no desenvolvimento do conceito da coleção seguinte. Seivewright (2009) menciona que a interpretação de uma coleção fornece dados como as silhuetas, cores, texturas, detalhes, estampas e adornos e, que todos estes dados, fazem parte da pesquisa. Esses elementos enriquecem tanto as ideias para a próxima coleção, quanto a análise do trabalho da concorrência. Nesta monografia, é realizada a análise de duas coleções anteriores de cada marca inspiracional. A análise se dá através do número de peças e looks, tema da coleção, cores, silhueta, matéria-prima, superfícies, acabamentos e elementos de estilo. A primeira coleção a ser analisada é da marca londrina Shrimps, para primavera/verão de 2015. O tema da coleção é faux fur with silk pajamas93 e ela é composta por 12 looks que totalizam 35 peças (figura 86).

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Pele falsa com pijamas de seda. (Tradução nossa)

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Figura 86: Shrimps SS15

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

A Shrimps trabalha com pelo e cores vivas em todas as suas coleções. As principais cores identificadas são branco, amarelo, rosa, azul, lilás e cinza; ou seja, cores contrastantes entre si e o branco de cor base (JONES, 2011). De acordo com Seivewright (2009), a silhueta é um dos primeiros elementos que se nota ao observar um look ou uma coleção. Nesta coleção da Shrimps, a silhueta é reta. A matéria-prima também tem o poder de criar texturas e superfícies diferenciadas, aqui vê-se a sobreposição da seda e do pelo se contrapondo (FRINGS, 2012). Ao observar o painel da coleção, nota-se que as superfícies são a estampa animal, estampa desenhada e pelo. O comportamento dos tecidos tem influência direta nos acabamentos; são identificados botões, bainha italiana, vivo, bainha lenço, zíper e forro (FISCHER, 2010). Treptow (2013, p. 28) declara que “estilo é o conjunto de traços e características individuais que diferencia a produção estética”. Dito isso, os elementos de estilo da coleção em questão são pelo, estampas e simetria. A segunda coleção da Shrimps a ser observada é a de outono/inverno de 2016. A coleção conta com 17 looks montados através de 38 peças e o seu tema é girly-gothic94 (figura 87). 94

Garotinha gótica. (Tradução nossa)

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Figura 87: Shrimps AW16

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

A coleção desfruta com cores quentes e frias; possui tons de rosa, vermelho, azul, branco e preto (JONES, 2011). Aqui, pode-se perceber que, além da presença da silhueta reta – clássica da Shrimps –, há a silhueta “A” trazendo mais volume e amplitude para a parte inferior dos looks (SEIVEWRIGHT, 2009). Diversas possibilidades de matérias-primas foram identificadas, como o veludo, pelo, malharia, sintéticos e organza; a grande variedade de materiais têxteis cria texturas (FRINGS, 2012). As superfícies utilizadas foram a estampa animal, estampa desenhada, devorê, pelo, patches e poá. Os acabamentos devem apresentar a estética da coleção, são identificados botões, bainha invisível, bainha simples, bainha lenço, franzimento, zíper e forro (FISCHER, 2010). Os elementos de estilo trazem identidade à coleção, aqui eles são o pelo, devorê, estampas e simetria (TREPTOW, 2013). As cores são utilizadas para irradiar conteúdo. Ambrose e Harris (2009) determinam que elas são códigos que comunicam significados. As cores vivas utilizadas nas coleções da Shrimps apresentam o caráter divertido da marca, a qual visa atingir um público que busca diversão na moda. Ao longo dos anos, a marca mostrou seu lado obscuro e enigmático,

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através do uso de cores mais escuras, desenhos abstratos e fashion films com uma atmosfera estranha. Tudo isso sem perder sua natureza divertida. A primeira coleção escolhida para análise da marca londrina Ashley Williams é da primavera/verão de 2015. A coleção tem como tema rabiscos adolescentes decorando vestuário com inspiração asiática e possui 23 looks produzidos através de 49 peças (figura 88).

Figura 88: Ashley Williams SS15

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

As cores da coleção são o branco, preto, rosa, laranja, amarelo e cinza. A coleção é predominantemente branca e preta, com pontos cinza e rosa, enquanto o amarelo e laranja não são tão relevantes, mas estimulam forte atração visual (JONES, 2011). Em geral, na Ashley Williams, a silhueta é variada, encontra-se “H”, “X”, “A” e “O”, proporcionando diversos tipos de volumes e linhas. As variações seguem na matéria-prima, que é composta por malharia, tecidos leves e tecidos estruturados. Tecidos traduzem ideias, as matérias-primas identificadas mostram que a identidade ousada da marca se encontra em todos os detalhes (SEIVEWRIGHT, 2009). As superfícies são estampas e círculos. Os acabamentos podem deixar uma aparência memorável na coleção, como os nós vistos nesta; além dos clássicos drapeados, abotoações e

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viés (FISCHER, 2010). Os elementos de estilo são o que está intrínseco na coleção, a sua essência; aqui são as estampas, o brilho, nós e fendas (TREPTOW, 2013). A segunda coleção escolhida da Ashley Williams é a da primavera/verão de 2016. Ela tem o tema Bad Mood95 e possui 19 looks formados por 30 peças (figura 89).

Figura 89: Ashley Williams SS16

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

A cor dominante é a preta, mas pode-se observar o branco e o vermelho usados para contrastar, enquanto o rosa e azul acentuam causando “forte atração visual” (JONES, 2011, p. 133). As silhuetas seguem variadas nessa coleção, como “H”, “X”, “A” e “O”, o que faz com que a atmosfera da coleção seja mais bagunçada, pois não sugere uma forma ideal para o corpo. A matéria-prima é escolhida pela sua qualidade estética, aqui ela é constituída por tecidos leves, malharia, vinil e couro (SEIVEWRIGHT, 2009). As superfícies encontradas são estampas, devorê, babados, listras e poá. Todos esses elementos, expostos de maneira tão distinta, enfatizam o caráter irreverente da marca. Fischer (2010, p, 165) informa que “alguns estilistas criaram seus próprios acabamentos para dar uma aparência exclusiva às suas criações”, esse é o caso da Ashley Williams, que utilizou de patches, rasgos e amarrações; além dos transpasses, bainhas lenço, cintos, galoneiras, 95

Mau humor. (Tradução nossa)

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transpasses e botões. Os elementos de estilo possuem papel importante na tradução dos valores estéticos da coleção; aqui eles são insetos, estampas, tiaras e pelúcias (TREPTOW, 2013). A cor, de acordo com Ambrose e Harris (2009), provoca reação emocional. Pode-se dizer que a Ashley Williams trabalha exatamente ao contrário da Shrimps. A maior parte das suas coleções tem o foco no preto e no branco, com outros pontos de cor. Isso sugere que a marca prefere deixar seu lado obscuro em evidência, mas também sem perder a diversão.

5.1.2 Tema, pesquisa de referências e elementos de estilo

O tema e o seu processo de pesquisa é o que traz a singularidade à coleção de moda. Seivewright (2009) argumenta que o tema, ou conceito, de uma coleção deve estimular a criatividade do designer. Para que haja total aproveitamento do tema, o designer precisa, ao escolher o conceito, levar em consideração os seus interesses e personalidade, assim como atrelar a sua visão de mundo ao tema. É importante, na hora da escolha do tema, que se preserve a identidade da marca para a qual a coleção é realizada, caso contrário ela pode ser esquecida pelos consumidores com facilidade ao longo das suas coleções. O tema da coleção, além de servir de inspiração, conta uma história. Essa história desperta ideias – inspira – para todo o planejamento da coleção; desde o tema até a divulgação da coleção, passando por tópicos como a fotografia, a beleza, acessórios, atitude dos modelos, superfícies, cores, estilo e afins (TREPTOW, 2013). A principal fonte de inspiração para o tema é a parte inicial desta pesquisa, pois o tema da coleção segue sendo o mesmo da monografia. O objetivo é transpor a estética da produção cinematográfica de John Waters para uma coleção de moda; tendo em vista que, nesta transposição de filme para coleção de moda, muito se perde ou se transforma. Foi realizada a análise dos valores do cineasta através da sua produção cinematográfica, a fim de possibilitar essa transposição. A primeira parte da monografia englobou as etapas de pesquisa, compilação e análise para conceituar o processo de criação. Todas as etapas geraram subsídios para o tema, ou seja, coleção final. Ao cumprir essas etapas, inicia-se a fase de afunilamento das referências, ou seja, a fase que visa focar e identificar os elementos que serão trabalhados. Esse momento

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pode ser apresentado através de painel temático (SEIVEWRIGHT, 2009). Na figura 90, apresenta-se o painel temático da coleção de moda Flamboyant’s Cavalcade of Perversion96.

Figura 90: Painel temático da coleção

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

O painel temático da coleção em questão foi realizado a partir de imagens e falas dos filmes analisados ao longo da pesquisa, com a intenção de transmitir a atmosfera proposta pelo cineasta John Waters. É importante salientar que, embora a inspiração de grande parte dos painéis temáticos de coleções de moda seja apenas literal e objetiva, aqui, o que inspira não são apenas as imagens e seus elementos mas, sim, o que elas representam, a ideia por trás delas. Este painel foi o ponto de partida de toda a coleção; com base nele, surgirá pesquisa de referências, elementos de estilo, cartela de cores, materiais e superfícies. A pesquisa de referências é um registro de informações que tem cunho divertido e busca estimular, mas o seu principal objetivo é a sua serventia. A necessidade de a moda se reinventar faz com que a pesquisa de referências tenha cada vez mais importância e seja mais profunda. A interpretação da pesquisa é crucial para a transposição da mesma na coleção de moda (SEIVEWRIGHT, 2009).

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Cavalgada da perversão da Flamboyant..

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A pesquisa inclui leitura, visitação ou observação, mas ela, em si, é o registro dessas informações. Ela se dá através da coleta de materiais físicos ou de inspiração visual. A sua finalidade é inspirar, estimular, abrir caminhos, explorar possibilidades, produzir conhecimento, expandir a mente, enfim, descobrir informações desconhecidas. Seivewright (2009, p. 17) completa “Por fim, vale lembrar que a pesquisa deve ser, principalmente, inspiradora e útil”. A figura 91 exibe o painel da pesquisa de referências realizada nesta monografia.

Figura 91: Painel da pesquisa de referências

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Neste trabalho, a pesquisa de referências é o próprio estudo. Toda a coleção surgirá a partir dos longas-metragens, conceitos e artista estudados. Ou seja, as referências para esta coleção de moda são extraídas dos conceitos de shock value, estranho, bom gosto e mau gosto, os filmes Mondo Trasho, Multiple Maniacs, Pink Flamingos, Female Trouble, Desperate Living e Hairspray e o cineasta John Waters. Em consequência da extensa pesquisa realizada a fim de conceber a primeira parte desta monografia, algumas referências, apesar de não constarem de modo literal em painéis, podem ser aplicadas inconscientemente. O vasto conteúdo da produção cinematográfica de John Waters, aliado aos anos de interesse da autora

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desta monografia no assunto, influencia de maneira que a pesquisa de referências possa se tornar mais abstrata, não tão linear. O estudo do conceito de pesquisa de referências mostrou que, no caso do tema em questão, a sua pesquisa de referências não abriu novos caminhos ou informações desconhecidas, ela inspirou da mesma maneira que o restante do planejamento da coleção e a pesquisa realizada no início da monografia; justamente, porque ela é a própria monografia. Constatou-se que os elementos utilizados na coleção seriam modelagens ajustadas, transparências, padronagens e brilhos. Porém, devido ao processo criativo da própria autora da pesquisa, não foi possível, nesta etapa, definir de maneira pontual como estes elementos seriam empregados. Os elementos de estilo são identificados a fim de expressar unidade visual, coerência, na coleção de moda. Eles são particularidades que se repetem ao longo da coleção, porém de modo inusitado em cada look. Os elementos de estilo podem ser elementos do design, a utilização dos princípios do design, uma cor em evidência ou um tecido distinto. Entretanto, Treptow (2013, p. 133) ressalta que eles são representados “principalmente, pelo uso de aviamentos e detalhes de modelagem”. Em seguida, na figura 92, pode-se contemplar o painel de elementos de estilo confeccionado para esta coleção.

Figura 92: Painel de elementos de estilo

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

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A execução do painel de elementos de estilo, neste momento, mostrou-se de pouca importância para este tema. Os elementos identificados foram os mesmos da pesquisa de referências; transparências, estampas e brilho, os quais, em formato de painel, não possuem a mesma relevância e utilidade de aviamentos e detalhes de modelagem, como visto através de Treptow (2013). Analisando pelos conceitos de Seivewright (2009), o painel de elementos de estilo composto por transparências, estampas e brilho não conteve informações desconhecidas sobre o tema. O painel de elementos de estilo trouxe o mesmo problema que o painel da pesquisa de referências. A sua apresentação, neste momento do planejamento da coleção – e aqui ele deve estar, de acordo com os autores que guiaram o desenvolvimento desta coleção e são citados ao longo de todo o capítulo –, fez com que ele se tornasse vago; por causa do processo criativo da autora desta pesquisa, como mencionado ao discursar sobre a pesquisa de referências. Não obstante, pôde-se identificar os elementos de estilo desta coleção de moda após a sua concepção. Estes elementos são, principalmente, as cores – branco, azul, vermelho, marrom, roxo, rosa, preto e amarelo –, os materiais – plástico, filó, pelo, veludo e cetim – e as superfícies – dálmata, manchas, bordados e patches. Percebe-se que os elementos definidos anteriormente estão contidos nestes que foram identificados após a conclusão da elaboração de croquis. O brilho está no veludo e no cetim, a transparência está no plástico e no filó e as estampas – ou padronagens – se tornaram os patches, bordados e dálmata. Esses elementos poderão ser contemplados através dos croquis no subcapítulo “construção da coleção”. Por fim, o painel temático, aliado de toda a pesquisa da parte inicial desta monografia, provou-se suficiente para a realização das próximas etapas do desenvolvimento da coleção. A confecção e apresentação dos painéis de pesquisa de referências e de elementos de estilo – antes das etapas de elaboração das cartelas e croquis – fez-se desnecessária, visto que eles foram imprecisos e tornaram-se repetitivos.

5.1.3 Cartelas de cores, materiais e superfícies

A cartela de cores dita as cores que serão empregadas na matéria-prima, ou seja, tecidos da coleção. Nesta cartela, de acordo com os princípios de Treptow (2013), devem estar inclusas todas as cores utilizadas, inclusive o preto e o branco. A quantidade de cores é incerta, normalmente varia entre 6 e 12 amostras, mas isto não é uma regra. A cartela da

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coleção em desenvolvimento possui 8 cores, as quais foram dispostas em representação de fezes, como se percebe na figura 93.

Figura 93: Cartela de cores

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

As cores da cartela necessitam estar em completa sintonia com o tema da coleção para que, conforme Ambrose e Harris (2009) dissertam, possa ser transmitida a ideia da coleção, para que o tema possa ser interpretado pelo espectador. Assim como a cor dos filmes de John Waters possui grande influência na mise en scène, ela possuirá nesta coleção de moda. A cartela é composta por cores intensas, concentradas, quentes, frias, acentuadas e contrastantes para exprimir o caráter divertido da produção cinematográfica do diretor, assim como gerar estranheza (JONES, 2011). Cada cor foi nomeada em homenagem aos principais integrantes da equipe Dreamland. Os conceitos de reações emocionais das cores de Ambrose e Harris (2009) auxiliam na interpretação dos tons das cores com as personalidades dos atores escolhidos. O azul – cor fria que propõe mistério – foi nomeado Lochary por causa do cabelo de David Lochary em Pink Flamingos. A cor branca foi batizada como Edie por fazer menção à atriz Edith Massey, a qual, como a cor, remete pureza e simplicidade. Susan Lowe representa o marrom Susan, pois seus papéis na produção de Waters são tão versáteis quanto a própria cor,

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a qual pode ser ligada tanto à simplicidade e natureza quanto à sujeira. O roxo, ou púrpura, foi denominado Divine, porque é a cor da realeza – e Divine é percebida como realeza na filmografia do cineasta –, pode simbolizar a sabedoria ou a arrogância. O verde fluorescente intitulado Cookie, a partir da atriz e escritora Cookie Mueller, o verde – assim como Mueller – é associado a frescor, porém, o caráter fluorescente pode cansar os olhos. A cor preta, batizada de Waters – por causa do próprio diretor –, denota peso e é imponente, como as ideias do cineasta. O rosa representa a dreamlander Mary Vivian Pearce – por isso é chamado de Bonnie, seu apelido –, assim como a cor, a atriz simboliza jovialidade e delicadeza. Mink Stole é a grande inspiração para o amarelo Mink, tanto a cor como a dreamlander são vibrantes e versáteis, representando vitalidade. Ou seja, como a cor desencadeia reações emocionais no espectador, ela pôde ser ligada às personalidades presenciadas nos filmes estudados a fim de expressar as mesmas emoções na coleção de moda. A cartela de materiais é construída com o intuito de exibir os materiais que compõem a coleção de moda, sendo eles, principalmente, tecidos. É ideal que os tecidos sejam apresentados em todas as cores e texturas em que estarão disponíveis, para que haja melhor entendimento da proposta da coleção. A apresentação dos materiais é importante porque, além de se ter um tipo de pré-visualização da coleção, eles podem ser identificados através de seus nomes comerciais e composições. Além disso, o valor do material adquirido irá compor o custo da coleção e de suas peças (TREPTOW, 2013). Os tecidos tem maior relevância na cartela de materiais de uma coleção de moda porque eles também podem auxiliar na montagem de cada look. Jones (2011) relembra que tanto os tecidos quanto os aviamentos devem estar na cartela de materiais, pois a combinação deles gera uma identidade única para a coleção. Sobrepor as amostras criando novas combinações é um método para acentuar a coerência entre um look e outro, tanto em relação às texturas, quanto às cores. Ademais, é interessante realizar o cruzamento do painel temático com as cartelas de cores, materiais e superfícies, para garantir que haja total coesão entre eles. Segue, na figura 94, a cartela de materiais da coleção em desenvolvimento.

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Figura 94: Cartela de materiais

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

A cartela de materiais da coleção em planejamento contempla todos os tecidos e cores que estarão disponíveis nos looks que serão confeccionados, assim como seus principais aviamentos. Durante a pesquisa de materiais, ao cruzar amostras, surgiu a ideia de utilizar o plástico unido ao filó, o que trouxe uma textura singular a algumas peças. Ademais, é possível perceber que os materiais que predominam a coleção são o veludo, plástico, pelo, cetim e filó. A cartela de superfícies é integrada por padronagens criadas pelo designer. A padronagem pode ser alteração de cor, uma nova textura, estampas, bordados e diversos acabamentos (TREPTOW, 2013). Analisando a figura 95, percebe-se que as superfícies utilizadas nesta coleção são bordados, patches97 e manchas.

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Pedaço de tecido – neste caso, bordado – que constitui uma imagem e se encontra colado ou costurado em alguma peça de vestuário.

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Figura 95: Cartela de superfícies

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

As figuras foram idealizadas pela autora da pesquisa e desenhadas pela colega Monique Braghirolli, que trabalha com ilustração. Após a execução das artes dos bordados e patches, as mesmas foram enviadas para uma empresa de bordados (Edu Bordados), que confeccionou a matriz das artes para, depois, consumar os bordados e patches. As manchas que representam sangue e fezes foram testadas e realizadas pela autora da pesquisa. Na figura 96, apresenta-se o painel do processo de tingimento.

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Figura 96: Processo de tingimento

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

As manchas foram executadas a partir de tintas para tingimento de tecido e água quente, com o auxílio de borrifador e pincéis. Primeiramente – para a mancha do macacão –, foi confeccionado um estêncil, em folha de raio-x, a partir de um desenho de útero ensanguentado para que, posteriormente, se pudesse pincelar a água quente com tinta no formato adequado. O efeito de pingos de sangue foi produzido com um pano embebido em tingimento. Pensava-se em realizar as manchas de fezes com borrifador, mas foi verificado que o líquido do tingimento entupia o mesmo, então, optou-se por pincelar a mancha à mão livre. A capa do look 1 – disponível no subcapítulo “construção da coleção” na figura 99, página 113 – possui bordado inspirado no manto da Nossa Senhora Aparecida, com uma coroa recheada de fezes, rodeada de moscas no centro das costas e o escrito “filthy highness” no capuz. Este bordado remete à rainha Carlotta de Desperate Living, à dramática cena das fezes de Pink Flamingos e às referências religiosas de Mondo Trasho. O macacão do look

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possui mancha de menstruação, simbolizando o corpo feminino, enquanto quem o veste é uma drag queen98. O look 4 – disponível no subcapítulo “construção da coleção” na figura 102, página 116 – possui fezes bordadas na saia de veludo branco, patch de fezes na blusa de plástico, o escrito “OH SHIT” na parte das costas da saia e mancha simulando fezes. Aqui a referência para a criação das superfícies também é a cena das fezes de Pink Flamingos. O look 5 – disponível no subcapítulo “construção da coleção” na figura 103, página 117 – possui bordados de mamilos no short de pelo e patches de mamilos no plástico da blusa. Estas superfícies foram inspiradas em Multiple Maniacs, na monstruosidade de Lady Divine e na liberdade sexual de sua filha. O look 10 – disponível no subcapítulo “construção da coleção” na figura 108, página 124 – possui o bordado “I could vomit just looking at you” que é uma paráfrase da fala da personagem Dawn Davenport em Female Trouble. Também há um bordado na faixa do vestido com o escrito “princess perfect”, que é uma fala de Donna Dasher também em Female Trouble. O short possui patch com genitália masculina, relembrando o close de Gator no mesmo filme. A concepção das cartelas de cores, materiais e superfícies serviram de planejamento para a construção da coleção. As cartelas são amostras do que será exibido na coleção, facilitam o entendimento do trabalho para todos os envolvidos e elucidam possíveis dúvidas do designer. Dado o fim desta etapa, segue o desenvolvimento com a construção da coleção.

5.2 CONSTRUÇÃO DA COLEÇÃO

A etapa de construção da coleção tem início no final do planejamento. Ela se dá quando a pesquisa, a coleta de dados e materiais, cessa. Essa fase é composta pela criação dos croquis, apresentação do plano de coleção, realização das fichas técnicas e modelagens e montagem das peças (TREPTOW, 2013). É salientado por Frings (2012) que, aqui, o foco é a produção das roupas. Todas as etapas que se encontram na construção da coleção existem com a finalidade de produzir peças de vestuário. Enfim, o conceito de construção ou desenvolvimento de coleção, diferente do conceito de planejamento de coleção, não é suscetível a muitas adaptações, pois é a etapa em que as peças são concebidas.

98

Personagem criado por artista que faz performances.

110

5.2.1 Croquis e plano de coleção

Após o planejamento da coleção e, principalmente, a definição das cartelas de cores, materiais e superfícies, pode-se partir para a etapa de realização dos croquis. No entanto, antes dos croquis oficiais, o designer expõe suas ideias iniciais em papel, através de esboços e anotações. “O esboço não possui compromisso estético; [...] também não possui compromisso comercial” esclarece Treptow (2013, p. 136-137). O único compromisso é aprimorar ideias. Seivewright (2009) ressalta que os esboços são pessoais e têm o objetivo de trabalhar ideias. Além disso, é possível que os esboços sirvam para “apresentar as informações produzidas” (Ibid., p. 85) para outros envolvidos. Eles também têm a utilidade de mostrar a evolução do processo criativo da coleção de moda. Treptow (2013) sugere que uma maneira de estimular a criatividade na criação é drapear os tecidos no manequim de moulage, visando obter novas formas. Nesta coleção, o maior desafio foi a combinação das cores dos tecidos. Durante a fase de criação de croquis, muitas vezes os tecidos foram sobrepostos gerando diversas combinações. Na figura 97, estão expostos alguns esboços da coleção em questão.

Figura 97: Esboços

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

111

Apesar dos esboços não estarem comprometidos com a estética ou funcionalidade, a autora esboçou já iniciando proposições de beleza e atitude dos modelos, bem como a viabilidade das peças. A maioria dos esboços está sem cor pelo fato de as combinações dos tecidos terem sido realizadas manualmente, com o intuito de verificar a funcionalidade da sobreposição de cores e texturas. Os materiais e superfícies exigem mais atenção aqui, as anotações são em relação a eles. São especificações de tecidos, manchas, bordados e patches. Ao finalizar a fase de esboços, pode-se materializar os croquis oficiais da coleção. O croqui, ou desenho de moda, tem o poder de mostrar as combinações entre as peças da coleção, formando os looks que desfilarão na passarela. O tema da coleção é percebido na relação entre as suas peças, o croqui é importante porque comunica “na postura dos manequins, no uso dos acessórios, nas combinações produzidas” (TREPTOW, 2013, p. 137). Seivewright (2009) indica que deve haver, no croqui, não só a silhueta, mas também, detalhes das peças; como cores, materiais, e superfícies. Seivewright (Ibid.) também sugere que o domínio das técnicas de desenho e o traço próprio são importantes, porém, ele mostra a opção da utilização de um croqui básico. O croqui básico é uma imagem pré-desenhada que é reutilizada ao ser retraçada em um papel de desenho. Nesta coleção de moda, os croquis foram realizados a mão livre e sem croqui básico. Foi utilizada folha para aquarela naturalmente branca, com textura e gramatura 300. Os croquis foram desenhados com lápis 2b, pois posteriormente seriam aquarelados. Após a finalização da aquarela, a autora fez experimentações com esmalte de unhas e purpurina. Depois de secos, os desenhos foram finalizados com canetas nanquim e gel. O processo originou 10 looks para a coleção Flamboyant’s Cavalcade of Perversion, levando em consideração o tema, os painéis e as cartelas apresentadas no planejamento. Não obstante, os croquis contemplaram um esboço de atitude dos modelos e beleza. Foram definidos 4 looks – a partir dos 10 – para compor o desfile que será apresentado na 23ª edição do Projeta-me da Universidade Feevale. Esses 4 looks foram confeccionados pela autora da pesquisa. A seguir, no plano da coleção (figura 98) – o qual também se encontra disponível no apêndice B –, estão os 4 looks escolhidos; croquis 1, 4, 5 e 10, respectivamente.

112

Figura 98: Plano da coleção

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

O look “Oh, Mary” é composto por duas peças. Um macacão de veludo branco fechado com amarração na frente, com mancha simulando menstruação. Uma capa com capuz bordada, de veludo azul e forrada com cetim amarelo, semelhante ao manto da Nossa Senhora Aparecida, tanto as cores como o bordado. O bordado da capa simula a padronagem do manto da Nossa Senhora, porém vai se modificando no centro, tornando-se uma coroa com fezes no centro, rodeada de moscas, e o escrito “filthy highness”99. O look 1 está disponível na figura 99.

99

Alteza lixosa.

113

Figura 99: Oh, Mary

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

O macacão foi inspirado nos maiôs e peças amarradas dos anos 60 e na personagem Divine e suas inspirações, como Jaine Mansfield. O macacão é branco para evidenciar a mancha de menstruação. Ela representa o gore dos filmes de Waters e faz contraponto com a representação da mulher através da drag queen. Esse look será o primeiro desfilado, pela drag queen Candy Diazy. O bordado da capa foi inspirado na Queen Carlotta, do filme Desperate Living; nele, a rainha possui uma vida pessoal luxuosa enquanto o seu povo é tratado por ela como lixo. A inspiração da Senhora Aparecida surgiu através dos acontecimentos do filme Mondo Trasho, em que Divine se depara com a aparição de Ave Maria. “Oh, Mary”, o nome do look, é uma frase repetida por Divine no filme em questão.

114

O look “Religious Hoe” é composto por duas peças. Uma calça de cintura alta de veludo branco e uma camiseta cropped100 de veludo branco. Ambas as peças são bordadas na temática da religião. O segundo look pode ser visto na figura 100.

Figura 100: Religious Hoe

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

A inspiração primordial da peça é a personagem vivida por Mink Stole no filme Multiple Maniacs. O terço bordado em formato de calcinha fio representa os rosaryjobs que a personagem performava. Além disso, ela era conhecida como a “religious whore”, por isso o look foi intitulado com o termo. Este look também é inspirado no look lamê da personagem de Divine no longa-metragem Mondo Trasho. Ele evidencia o corpo através de tecido justo e com brilho; sem esquecer de forjar a pureza, simplicidade e bondade que a cor branca

100

Peça de roupa que não cobre a barriga, é “cortado”.

115

simboliza (AMBROSE; HARRIS, 2009). O contraste do cabelo vermelho e extravagante com tecido brilhoso foi inspirado na personagem Connie Marble, de Pink Flamingos. Ela é uma mulher impiedosa e opulenta. O look “Bloody Days” é composto por três peças. Essas sendo uma blusa cropped de plástico, uma saia envelope de plástico com patches de mamilos e uma calcinha de veludo branco. A calcinha de veludo possui mancha de menstruação e a blusa de plástico conta com manchas de sangue na área dos mamilos, como visto na figura 101.

Figura 101: Bloody Days

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

A inspiração para este look foi a vida de Dawn Davenport em Female Trouble e o gore de Multiple Maniacs. Mais especificamente, seus momentos de intimidade com o marido e a vida de prostituição. Brilho, transparências e roupas justas marcaram essas fases ditas imorais perante a sociedade, assim como o terceiro look da coleção. Aqui, o branco que pode

116

representar sofisticação e limpeza (AMBROSE; HARRIS, 2009), é desonrado pelo sangue da menstruação. O nome do look é uma referência à menstruação. O look “Turd Princess” é o quarto da coleção. Ele possui duas peças. Uma blusa de plástico, fechada com zíper destacável no centro das costas, com patch de fezes na frente e uma saia lápis envelope com fezes bordadas e frase bordada. Não obstante, há uma mancha de fezes nas costas da saia, como percebido na figura 102.

Figura 102: Turd Princess

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Este look é o segundo a desfilar para a coleção. A inspiração foi a clássica cena da Divine ingerindo fezes em Pink Flamingos, aliada da personagem de atmosfera onírica Princess Coo-Coo do longa-metragem Desperate Living. A aura inocente da personagem Princess Coo-Coo contrapõe-se com os atos de rebelião sexual e amorosa dela. Daí vem o contraste da pureza e limpeza da cor branca com a sujeira da cor marrom (AMBROSE;

117

HARRIS, 2009). O look foi batizado “turd princess” porque Coo-Coo é a princesa de um reino de lixo e Divine – ou Babs Johnson – recebeu fezes de presente de aniversário; o cruzamento de referências deu vida ao look “princesa do cocô”. O look “Titty Vamp” é o terceiro a ser desfilado. Ele é composto por duas peças. Uma blusa cropped de plástico com mangas compridas raglan de pelo e um hot pants101 de pelo. O hot pants possui bordados de mamilo, enquanto a blusa possui patches de mamilo, como exposto na figura 103.

Figura 103: Titty Vamp

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Este look foi inspirado nas peças vestidas por Mary Vivian Pearce (Bonnie) ao longo dos filmes analisados. Outra fonte de inspiração foi o uniforme de crime de Dawn Davenport

101

Shorts de cintura alta muito curtos ou até sem pernas.

118

e suas amigas, em Female Trouble; como elas eram prostitutas supostamente imorais, vestiam roupas reveladoras. Também foi visto no início desta monografia que pudor ao se vestir, nos anos 60, acabava por ser um sinal de conservadorismo social e político; que é o contrário do que busca-se atingir tanto na produção cinematográfica do diretor quanto nesta coleção de moda. Por isso, a silhueta é ajustada e as peças são reveladoras. A monstruosidade que tornou-se Lady Divine e a nudez da sua filha em Multiple Maniacs também inspiraram a criação deste look. O nome do look vem de um monstro, um morcego com seios, pensando na estética vamp

102

. O roxo/púrpura predominante das peças simboliza autoridade e

espiritualidade (AMBROSE; HARRIS, 2009), o que faz com que a cor seja uma ótima aliada a um look com inspiração em monstro. O look “Twisted Mind” é composto por duas peças. Uma blusa de plástico com detalhe em pelo, filó, faixa bordada e cordas e uma calça bordada de veludo branco. O bordado da calça representa pelos nas pernas e na região pubiana, como se nota na figura 104.

102

Femme fatale (mulher fatal) que não precisa possuir beleza genérica, mas é exótica e deve possuir certo fascínio. Além disso, costuma ser “sem coração” e sedutora.

119

Figura 104: Twisted Mind

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

A inspiração deste look é o estilo extravagante da Tracy Turnblad em Hairspray e o anseio do mordomo dos Marble – Channing – em Pink Flamingos, em tornar-se glamouroso como os patrões. Além disso, o escrito “twisted mind” é parte de uma fala de Lady Divine, em Multiple Maniacs, em um frenesi, para si mesma. A utilização da extravagância aliada aos pelos geraram o look. Foi visto na primeira parte da monografia que a década de 60 abrigou peças infatilizadas, inventivas e coloridas. Em razão disso, buscou-se criar combinações de tecidos inusitadas em cada look e peça. As peças pequenas e coloridas pretendem exalar caráter infantil, como a blusa deste look, que é um mini vestido trapézio. O branco, associado à pureza e limpeza (AMBROSE; HARRIS, 2009), é contrastado com bordado de pelos para causar estranheza. O look “I AM GOD” possui duas peças. Uma blusa de plástico com cordas e faixa bordada e uma saia composta por tiras de plástico e pelo. O croqui está visível na figura 105.

120

Figura 105: I AM GOD

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

O look formado por transparência, pelo rosa e amarração também teve inspiração na vida de prostituição de Dawn Davenport e suas amigas em Female Trouble. A fase career girl – que foi entre 1961 e 1967 – de Dawn contou com peças ajustadas e reveladoras. É importante retomar que a década de 60 foi uma época de criatividade, individualismo e liberdade, especialmente numa cidade com estilo tão extremo como Baltimore. O rosa que representa delicadeza (AMBROSE; HARRIS, 2009) conflita com a nudez que o plástico e a modelagem das peças proporcionam. A frase “eu sou Deus” é a resposta de Divine, em Pink Flamingos, quando questionada sobre sua crença. O look “Most Beautiful Abortion” possui duas peças. Uma é um vestido composto por tiras de plástico e veludo, com bordado na frente e a outra é um casaco de pelo. O bordado do vestido é uma fala de Dawn Davenport em Female Trouble. Segue na figura 106 o croqui do look.

121

Figura 106: Most Beautiful Abortion

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Outras inspirações para este look foram as personagens de Mink Stole, Taffy Davenport (Female Trouble), e Liz Renay, Muffy (Desperate Living). Taffy foi chamada pela própria mãe de “pequeno aborto conivente e dissimulado”, daí vem o bordado do vestido. O estilo baby doll103 do vestido é inspirado nas roupas de Taffy ao longo do filme, lembrando que a personagem tem retardo mental e, apesar de parecer uma mulher, tem apenas 14 anos e se veste como uma criança. Muffy inspirou o look por suas roupas justas unidas à casacos oversized104. O bordado do casaco “most beautiful person in the world” é uma fala da Lady Divine em Multiple Maniacs em que ela refere-se como a mulher mais bonita do mundo. O azul e a transparência trazem jovialidade (AMBROSE; HARRIS, 2009) e o extremismo da moda dos anos 60.

103 104

Vestido muito curto sem mangas, normalmente para dormir. Peças de tamanho grande ou gigante.

122

O look “Trashy Brat” possui duas peças. Uma blusa cropped de plástico com filó e veludo, bordada, e um hot pants de pelo com patches. A simulação de sangue nas alças da blusa é feita através de veludo e os patches do short são genitália feminina e fezes. O look tem inspiração na Taffy Davenport, que sempre é chamada de fedelha pela mãe e adora brincar de acidente de carro com muito ketchup. A figura 107 ilustra o look em questão.

Figura 107: Trashy Brat

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Outra inspiração para este look é a personagem Mole de Desperate Living, que fez cirurgia de redesignação sexual, além de ter vestido uma fantasia de wrestling105 com uma grande genitália feminina na frente enquanto lutava. É relevante relembrar que uma das poucas tendências identificadas nos anos 60 – que foram anos de mudanças extremas, quebra

105

Forma de luta coreografada.

123

de padrões, em relação ao vestuário – é o vestido trapézio. O cropped é inspirado no vestido trapézio, é uma versão reduzida. O look contém contrastes de cores e superfícies porque, como visto anteriormente, cores discretas tornam-se enfadonhas e fora de moda na década trabalhada. O nome do look vem do gênero trash e do apelido de Taffy. O último look, tanto da coleção quanto do desfile, é o “Princess Perfect”. O look é composto por três peças. Um casaco de pelo bordado e forrado, um hot pants de pelo com patch de órgãos genitais masculinos e um vestido de plástico com filó, faixa bordada e amarração. O look pode ser visto a seguir, na figura 108.

Figura 108: Princess Perfect

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

124

Assim como o penúltimo look, este também teve inspiração em Taffy e Mole, pelos mesmos motivos listados acima; baby doll e redesignação sexual. Ademais, o termo “princess perfect” é usado por Donna Dasher no longa-metragem Female Trouble para descrever a si própria. O bordado do casaco de pelo está parafraseando a frase original de Dawn Davenport “look at you, I could vomit” 106 em relação à filha, Taffy. Aqui, continua-se utilizando o casaco oversized e o vestido trapézio. O patch de genitália masculina foi inspirado na cena de Female Trouble em que há um close dos órgãos genitais de Gator enquanto ele diz para a enteada “come suck your daddy’s dick”. Todos os escritos da coleção foram inspirados nas paredes do prédio da Tracy Turnblad, em Hairspray. O processo de elaboração dos croquis não foi tão simples, deparou-se com algumas barreiras. O primeiro look teve uma alteração, o sangue de menstruação tornou-se uma mancha de sangue em formato de útero, um pouco acima do local original. Isto foi feito com o intuito de minimizar o impacto do choque causado no Projeta-me, o que vai contra tudo que se foi trabalhado nesta monografia; porém, são regras da instituição. Não obstante, a solução trouxe novas interpretações e elementos de choque. Apesar da apresentação dos croquis ter causado o estranhamento e choque desejados, isso dificultou um pouco a construção da coleção. O tema causou furor, mas foi debatido e apoiado por diversas instâncias da instituição, por fim possibilitando que se construísse a coleção quase integralmente. A proposição foi uma coleção que não se preocupa com gênero ou idade. Dito isso, optou-se por realizar alguns croquis com um look da coleção em diversos corpos, mostrando o caráter inclusivo e irreverente da Flamboyant. O look escolhido foi o Trashy Brat. Na figura 109, há alguns exemplos.

106

Olha pra ti, eu podia vomitar.

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Figura 109: Trashy Brats

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Buscou-se utilizar o máximo de elementos da análise realizada na primeira parte desta monografia. Os elementos mais utilizados foram as cores, figurino, cenário, narrativa e personagens. A junção dos elementos visa promover a mise en scène estudada, mesmo que seja apenas uma transposição do cinema para a moda. Acredita-se que, através do aproveitamento desses elementos, pôde-se produzir bom mau gosto e, talvez, shock value.

5.2.2 Ficha técnica e modelagem

A principal função da ficha técnica, segundo Treptow (2013), é documentar. As fichas são utilizadas para que todos os envolvidos, desde a modelagem à costura, entendam cada detalhe de cada peça. Nelas estão contidas informações sobre os materiais das peças, suas medidas e respectivos desenhos técnicos. Outra função da ficha técnica é fornecer dados para realizar uma estimativa de custo da produção de cada peça e, consequentemente, seu preço de venda. A ficha técnica do designer é uma planilha. Pode acontecer de cada departamento – de tecidos, aviamentos, design – preencher os seus dados na ficha. Frings (2012) inclui na ficha técnica a data em que a peça foi desenhada, temporada de venda, tamanhos, referência da peça, descrição simples da peça, desenho técnico, cores, tecidos, descrição de materiais, informações sobre acabamentos e custos de terceirizações. Já Treptow (2013), inclui, além

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dessas informações, o nome da marca, nome da coleção, nome do designer responsável, nome do modelista e desenhos ampliados de detalhes significativos. A ficha não é invariável, ela é elaborada a partir de um formulário pré-definido pelos envolvidos. Além disso, Treptow (2013, p. 163) realça que “o designer deve fornecer uma ficha técnica preliminar ou ficha técnica do protótipo”. Segue, na figura 110 – também disponível no apêndice A –, a ficha técnica que foi utilizada neste projeto.

Figura 110: Ficha técnica

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Pode-se perceber que ela é um entrelaçamento dos padrões concebidos por Treptow (2013) e Frings (2012). Treptow (2013) diz que pode haver desenhos aumentados de detalhes na ficha técnica e isso acontece aqui. A ideia de ampliar detalhes para facilitar a compreensão na montagem da peça é, de fato, esclarecedora; especialmente para detalhes terceirizados como patches, os quais são muito utilizados nesta coleção. Considerando que o projeto desta monografia é uma coleção para todas as idades e gêneros, preocupando-se com ideais e não tamanhos ou padrões, foi retirada a informação dos tamanhos dos moldes, mantendo apenas o tamanho da peça pilotada. Mesmo porque, a coleção proposta é um protótipo em si e não visa

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produção em maior escala. As fichas técnicas das peças confeccionadas desta coleção encontram-se no apêndice A. O desenho técnico é um desenho planificado e sem cor, serve para especificar informações e elucidar o setor de modelagem e pilotagem. Ele deve ser claro e simples, diferente de um croqui. O importante no desenho técnico é expressar a maneira com que a peça deve ser construída, quanto mais detalhes melhor (TREPTOW, 2013). A partir da ficha técnica e, principalmente, do desenho técnico, a modelista pode iniciar a sua etapa. O desenho planificado da peça já demonstra como o molde deve ser concebido. A descrição da peça e de materiais é crucial na confecção da modelagem. A modelista precisa saber qual o caimento e fechamento da peça, além da incontestável necessidade do desenho, para confeccionar os moldes. Treptow (2013, p. 151) enfatiza: “A modelagem está para o design de moda assim como a engenharia está para a arquitetura”. O protótipo da modelagem, segundo Treptow (2013) é confeccionado a partir da ficha técnica, no tamanho padrão da marca. Existem duas técnicas de modelagem, a plana e a moulage. A moulage é a modelagem tridimensional, “é a técnica que envolve modelar ou dar forma a um tecido em um manequim (também chamado de busto) ou modelo vivo” (FISCHER, 2010, p. 121). A modelagem plana é bidimensional e seus moldes convertem algo plano, realizado em papel ou software CAD/CAM, em uma peça tridimensional. Nesta coleção, optou-se por trabalhar com o método de modelagem plana em papel vegetal e pardo, pois as peças possuem modelagem relativamente simples, já que o foco são os materiais, as cores e as superfícies. E, de acordo com Jones (2011, p. 180), “as roupas que seguem os contornos do corpo [...] são desenvolvidas com mais sucesso por meio da modelagem plana”. Toda a modelagem das peças escolhidas para confecção foi realizada pela autora, como visto no painel de imagens abaixo (figura 111).

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Figura 111: Modelagem e corte

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Para produzir os moldes das peças criadas, é necessário que se tenha as tabelas de medidas das peças pilotos. Entretanto, “cabe a cada empresa conhecer seu público-alvo e desenvolver ou adaptar tabelas de medidas, de forma a melhor atender à sua clientela” (TREPTOW, 2013, p. 152). Algumas das medidas contidas nas tabelas são circunferências de busto, tórax, cintura e quadril, distância entre seios, largura das costas, gancho e comprimento de manga, além de diversas alturas. As medidas da tabela são rentes ao corpo, portanto, cabe ao modelista fazer a interpretação das medidas da peça piloto. Para isso, o modelista pode precisar do desenho de moda, ou croqui, pois ele é mais realista e mostra como a peça se comporta em um corpo, e não apenas planificada fora dele (TREPTOW, 2013). Em síntese, é fundamental que o designer e a modelista entendam o processo que envolve transformar algo bidimensional em uma peça tridimensional, porque “uma peça de roupa nasce de um conceito bidimensional e se torna um objeto tridimensional” (FISCHER, 2010, p. 11). Compreender a relação das medidas do corpo com o seu molde é essencial para que as peças desenvolvidas se ajustem da maneira desejada e idealizada. Para a validação dos moldes, uma costureira deve cortar a modelagem em tecido e montar a peça, para que se

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possa perceber se a peça veste como deveria. Após estes testes, as peças podem ser cortadas e costuradas nos seus materiais oficiais.

5.2.3 Montagem das peças

Após a finalização da modelagem, é possível que se inicie a etapa de montagem das peças. Esta etapa é formada por diversas operações de costura. A sequência de operações varia de peça para peça; tanto a modelagem quanto os materiais influenciam nesta sequência. Para que haja produção das peças em maior escala, é necessário que se prepare uma planilha de operações na sequência ideal para que as peças sejam montadas da maneira mais rápida possível (FRINGS, 2012). Jones (2011, p. 192) pronuncia, em relação à costura, que “a grande motivação é ver a roupa que você desenhou ser bem realizada”, além de conferir credibilidade num futuro profissional. Dito isso, a autora fez a escolha de executar a montagem de todas as peças definidas para confecção. No painel da figura 112, podem ser vistas algumas operações da montagem de peças, assim como o corte dos moldes, realização de acabamentos e aplicação de patches.

Figura 112: Costura do look da foto conceito

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

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Através do painel acima, também contempla-se a utilização da mesa de corte e de dois tipos de máquina. As máquinas utilizadas para confeccionar as peças desta coleção foram as máquinas doméstica e overloque. A máquina doméstica pode produzir diversos tipos de ponto, ou seja, não faz apenas costura em linha reta. A máquina de overloque elabora acabamento em barras que também serve para costurar emendas. Em um movimento, essa máquina emenda tecidos, corta-os e passa a linha no seu tipo de ponto, criando um acabamento limpo que não permite o desfiamento do tecido (FRINGS, 2012). A máquina doméstica foi utilizada tanto para as costuras em linha reta, quanto para franzimentos e acabamentos em zigue-zague e outros pontos. Não obstante, a máquina proporcionou a colocação de patches bordados em peças de pele, plástico e veludo. A máquina de overloque foi essencial para dar acabamento em tecidos como o cetim, além de unir peças de pelo, plástico e filó. Os acabamentos utilizados foram forros, limpezas, bainhas simples e costuras feitas à mão. O forro é aplicado na parte interna da roupa, ele tem a função de esconder costuras internas, proporcionar conforto, aquecer e prevenir transparências indesejadas. Nesta coleção, o forro teve grande papel estético, transmitiu a ideia do tema através de cores e texturas (FISCHER, 2010). A limpeza “é utilizada para fazer o acabamento das bordas de uma roupa” (FISCHER, 2010, p. 168). Ela pode ser feita em cós, para que o tecido do forro não escorregue e apareça pelo lado direito da peça. Ela também produz acabamento em linhas arredondadas, em que não se pode ser feita a bainha simples. A bainha simples exige apenas uma dobra da barra e uma costura reta a fim de prendê-la. Em alguns momentos, por mais que a junção das peças exigisse máquina doméstica, eram operações pequenas ou que teriam melhor acabamento quando feitas à mão. Alguns exemplos foram a junção do forro com o tecido principal na barra das mangas e shorts e do forro com a barra do casaco. Essa opção se mostrou eficiente pelos anos de experiência da minha avó, Gessi Guimarães dos Santos, com esse tipo de acabamento; foi ela quem executou todas as costuras de mão das peças confeccionadas. É apontado por Fischer (2010, p. 169) que “fechamentos são itens funcionais que mantêm a roupa fechada”. Prezando conforto e acabamento, foi utilizado o elástico como fechamento da cintura de shorts e saias de veludo e pelo. Considerando a segurança do fechamento das peças, assim como o modo como elas devem vestir o corpo, algumas blusas receberam fechamento de zíper destacável colorido. Sabe-se da fragilidade do zíper invisível,

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por isso o zíper colorido foi a melhor opção. O zíper destacável é utilizado em jaquetas, pois permite a abertura da peça inteira para que ela possa ser vestida. O último tipo de fechamento definido foi a amarração. Em algumas peças ela foi encontrada no próprio molde, revisitando fechamento utilizado em blusas, camisas e maiôs nos anos 60; lembrando que a década exalava diversidade nas roupas, as quais, como visto na primeira parte desta monografia, eram tratadas como fantasias. No look que teve sessão de fotos em estúdio (figura 113), a amarração em cordão branco foi utilizada para sustentar o vestido.

Figura 113: Detalhe de fechamento da coleção

Fonte: Acervo da autora, fotógrafa Dinara Dal Pai.

O vestido dublado de plástico transparente e filó amarelo e com faixa bordada abaixo dos ombros demandava algum tipo de sustentação, a solução foram diversos fios de corda branca, reguláveis através de amarração. O acabamento da faixa bordada foi realizado na máquina de overloque e ponto zigue-zague. Esse acabamento não foi executado com intuito decorativo, mas sim com a intenção de estruturar a faixa. Apesar da utilização de “materiais pouco usuais, como plástico” (JONES, 2011, p. 196) e a mistura dele com tecidos como o filó, veludo, pelo e cetim, a tarefa da montagem das peças não foi impraticável. A produção dessas peças proporcionou um momento de

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aprendizagem e treino, o qual gerou aptidão, preparando o aluno para o futuro mercado de trabalho.

5.3 COMUNICAÇÃO DA COLEÇÃO

Após a finalização da coleção, faz-se necessária a divulgação da mesma. Para que se obtenha reconhecimento, a coleção deve chegar até o público a qual é destinada. Se não houver ações de marketing, todo o desenvolvimento da coleção torna-se inútil, pois não haverá receptividade do público. Aqui, as ações de divulgação foram através de release, fotos e desfile (TREPTOW, 2013). O tema da coleção deve se propagar através da divulgação, “é preciso que todos os materiais e eventos de divulgação da coleção transmitam a mesma mensagem” (TREPTOW, 2013, p. 189). Dito isso, criou-se o release da coleção. Ele é um texto de divulgação que exprime o conceito da coleção. O release pode estar junto de fotos ou não e é distribuído em meios de comunicação. Na figura 114, segue o release da Flamboyant’s Cavalcade of Perversion.

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Figura 114: Release Flamboyant’s Cavalcade of Perversion

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

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O release da Flamboyant’s Cavalcade of Perversion, assim como o próprio nome da coleção, é uma adaptação à introdução de David Lochary para a Cavalgada da Perversão da Lady Divine, no longa-metragem Multiple Maniacs de 1970. O apresentador informa o público, que está prestes a adquirir ingressos para o espetáculo, dos horrores com os quais eles irão se deparar, além de assegurar que eles são reais e não forjados. Toda a etapa de comunicação visa manter a identidade da coleção, que remete lixo e luxo. Seguido do release, foi realizada sessão de fotos de um look da coleção. A sessão deuse no laboratório de fotografia da Universidade Feevale, a fotógrafa foi a professora Dinara Dal Pai. Para que não se perdesse a identidade da coleção, foi elaborada uma pesquisa de referências para a beleza, poses e atitude do modelo; bem como a escolha do modelo em si. Na figura 115, encontra-se o painel de fotos do Vinícius Guadalupe, que foi escolhido para dar vida ao décimo look da coleção. Figura 115: Vinícius Guadalupe – Look 10

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Ao considerar-se a personalidade do modelo e identificação imediata dele com a coleção, foi realizada a escolha para a foto conceito da coleção. A proposta de elaborar painéis para os modelos da coleção torna-se relevante porque, tanto a identidade da marca quanto a da coleção, não pedem modelos profissionais. O importante é que o suposto modelo seja uma pessoa real, que tenha conexão com a marca ou o tema, que não precise fingir,

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apenas ser. Na figura 116 está o painel da primeira nodel a desfilar, a drag queen Candy Diazy. Figura 116: Candy Diazy – Look 1

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Pode-se perceber algumas características da Divine na Candy; perucas opulentas, expressões divertidas e postura altiva. Ela é uma drag queen glamourosa e campy, como a personagem vivida por Glenn Milstead. Os painéis podem apresentar um pouco da personalidade dos nodels. O designer Moses Gauntlett Cheng (CHENG, 2016), em entrevista para a revista londrina Dazed and Confused, explica que, ao fazer o casting dos seus nodels107, o que atrai inicialmente é a personalidade. O essencial é não limitar a conexão da roupa com quem a veste. Na figura 117, pode-se ver o painel da terceira nodel escolhida, a Jaqueline Rodrigues Damazio.

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Não-modelo.

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Figura 117: Jaqueline Damazio – Look 4

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

O carisma da Jaqueline Damazio pode facilmente ligá-la à dreamlander Edith Massey. A sua curiosidade e disposição conectou-a à coleção, além da inspiração que ela proporciona. O designer Eckhaus, também em entrevista para a Dazed, salienta que o cast dos seus desfiles é composto por um conjunto de pessoas próximas que o inspiram. Então, para fechar o casting de nodels da Flamboyant, a colega Monique Braghirolli (figura 118) foi intimada a dar vida ao penúltimo look do desfile. Figura 118: Monique Braghirolli – Look 5

Fonte: Elaborado pela autora através do acervo da fotógrafa Michelle Salguero, 2016.

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A Monique é uma das fontes de inspiração da marca Flamboyant, assim como da coleção. Seu gênero no perfil do Facebook é “merda gourmet”, o que claramente já a entrelaça com os conceitos de bom mau gosto estudados nessa pesquisa. Eckhaus, sem a intenção, descreve o sentimento da Flamboyant com seus nodels ao falar sobre os seus: “nós adoramos ter as roupas ativadas através das diversas energias que exalam dos membros do cast” (STANSFIELD, 2015, tradução nossa). Após a definição dos nodels, começou-se a pensar sobre a beleza da coleção. Na figura 119, vê-se as referências de poses e atitude para as fotos e desfile.

Figura 119: Painel de referências de poses e atitude

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

O painel de referências de poses e atitude foi confeccionado a fim de familiarizar os nodels com o tema. A intenção foi nortear e de nenhuma maneira restringir. Percebeu-se, a partir daí, a necessidade de alguns materiais de apoio para a sessão de fotos. Optou-se por um cupcake com baratas. Depois da definição do nodel, das referências de poses e atitude e dos objetos de cena, foi pensada a beleza da foto. O painel de beleza auxiliou na definição de cabelo e maquiagem, tanto para as fotos, quanto para o desfie (figura 120).

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Figura 120: Painel de beleza

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

Elegeu-se a purpurina para cobrir os cabelos, total ou parcialmente, dos nodels. A maquiagem é composta, principalmente, por sombras coloridas, blush, rímel e delineador líquido; referenciando a clássica maquiagem dos anos 60. Os nodels também contaram com unhas postiças confeccionadas pela autora da pesquisa. Como trabalha-se, nesta coleção, com nodels, é importante lembrar que a pessoa deve sentir-se confortável e em completa conexão com o look que está vestindo. Portanto, tanto a maquiagem como o cabelo são adaptados a cada personalidade. Essa adaptação não foi complexa, visto que a própria autora foi inteiramente responsável pela beleza, fazendo o cabelo e a maquiagem dos nodels, com auxílio de Gessi Guimarães dos Santos. Buscando seguir os ensinamentos de Van Smith, o maquiador dos filmes estudados, o nodel comeu cupcake durante a sessão de fotos. Segue, na figura 121, um painel com algumas fotos da sessão para divulgação da coleção.

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Figura 121: Sessão de fotos - look 10

Fonte: Elaborado pela autora, 2016.

O próximo passo da etapa de comunicação é o desfile. Treptow (2013, p, 193) ressalta que “o objetivo do desfile de lançamento é gerar notícia e fortalecer o nome da marca no mercado”. Também é posto por Treptow (Ibid.) que muitas vezes uma coleção não pode ser apresentada integralmente. Este é o caso do evento em que a coleção Flamboyant’s Cavalcade of Perversion será desfilada, o Projeta-me da Universidade Feevale. O evento é de cunho acadêmico e visa apresentar os formandos do curso de Moda ao mercado de trabalho. Por isso, há pouco tempo e recursos para cada aluno desfilar sua coleção. Não se tem a oportunidade de montar um cenário, por exemplo. Cada aluno pode desfilar 4 looks e escolher a sua música do desfile. A música eleita para o desfile é Human Fly da banda The Cramps. A banda rockabilly estadunidense formou-se em 1976 e foi crucial para o desenvolvimento do movimento psychobilly108. O estilo da banda era teatral, sexualizado e repleto de humor, com referências de gêneros cinematográficos como horror e sci-fi. The Cramps é fortemente influenciada por Elvis e surf music, assim como John Waters. Tanto a banda como o cineasta ascenderam mais ou menos na mesma época. No entanto, esses não são os únicos fatores utilizados para definir 108

Mistura de elementos do punk, rockabilly, rock and roll e rhythm and blues.

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a música do desfile. A letra da música também teve grande influência, não só o instrumental. Logo abaixo é disponibilizada a letra de Human Fly:

Well I'm a human fly I said F-L-Y I say "buzz buzz buzz" And it's just because I'm a human fly And I don't know why I got 96 tears and 96 eyes I got a garbage brain That's drivin' me insane And I don't like the ride So push that pest aside And baby I won't care 'Cause baby I don't scare 'Cause I'm a reborn maggot using germ warfare Rocket! I'm a human fly I said F-L-Y I say "bzz bzz bzz" And it's just because I'm a unzipped fly And I don't know why And I don't know why But I say Bzzzzzzz Rock tonight, and I say Bzzzzzzz Rocket ride, and I say Bzzzzzzz But I don't know why Aw, I just don't know why

A letra conta com expressões como “mosca humana”, “verme renascido” e “cérebro de lixo”, que remetem à estética trash da produção cinematográfica de John Waters. Há trechos que falam sobre não importar-se e não assustar-se, o que expressa a identidade dos personagens dos filmes estudados. Enfim, a música é tão irreverente quanto o trabalho de John Waters e, por isso, deve fazer parte da coleção Flamboyant’s Cavalcade of Perversion. A fotógrafa Sarah Regis registrou alguns momentos do desfile da Flamboyant. Na figura 122, há uma fotografia da autora com os nodels, ao final do desfile no Teatro Feevale.

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Figura 122: Projeta-me

Fonte: Sarah Regis Fotografia

Pode-se perceber, através da figura acima, que se obteve sucesso na escolha dos nodels; os quais trouxeram vida, com destreza, aos looks da coleção. Ademais, os 4 looks escolhidos devem transmitir com maestria o tema da coleção. Dito isso, a beleza, os acessórios, a ordem de entrada e os modelos fizeram toda a diferença. Jones (2011, p. 224) explica que o desfile da universidade faz com que o estudante possa ser avaliado quanto à “utilização consciente de sua capacidade de trabalho, a capacidade de se concentrar num foco e a habilidade para apresentar um mostruário coeso e, ao mesmo tempo, criativamente estimulante e relevante”. A fim de expor ainda mais a estética da coleção, há fotos do backstage do desfile no apêndice C. A fotografia foi estudada pela autora, em conjunto com a fotógrafa Sarah Regis, que retratou momentos de preparação, transmitindo a mise em scène proposta. A comunicação da coleção é a etapa final desta monografia, na qual a estética de John Waters é transposta para o desenvolvimento da coleção de moda Flamboyant’s Cavalcade of Perversion.

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6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para se entender o shock value, o bom gosto e o mau gosto propostos por John Waters, foi inicialmente pensada a escolha de um dos longas-metragens do cineasta para relacionar com o conceito. Porém, ao mesmo tempo, certo padrão foi encontrado em uma determinada era. Este padrão foi identificado como uma primeira fase cinematográfica do diretor. Além disso, a ligação do filme Hairspray com a primeira fase de Waters foi irrefutável e, portanto, não pôde ser desconsiderada. É interessante a abordagem da primeira fase e de Hairspray em uma única monografia, pelo fato de que os filmes são muito distintos e semelhantes ao mesmo tempo. Estas distinções e semelhanças serviram de aporte para elucidar o conceito do shock value. Inicialmente, o bom gosto e o mau gosto foram tratados como um grande tópico mas, posteriormente, chegou-se à conclusão de que o bom gosto e o mau gosto, além do conceito de estranho – proposto por Sigmund Freud – poderiam ser trabalhados como fatores que resultam no shock value, assim, se uniriam aos fatores da análise fílmica. Ou seja, as relações da análise fílmica, juntamente com os conceitos de bom e mau gosto, estranho e o tempo e espaço da obra em questão, serviram de contribuição para o desenvolvimento da caracterização do shock value de John Waters. Para o entendimento dos conceitos estabelecidos e dos elementos fílmicos, houve a necessidade de apresentar a vida e carreira do cineasta. Também é posto que, para a interpretação dessa estética específica, é imprescindível o reconhecimento e observação do tempo e espaço em que John Waters esteve inserido; pois há grande similaridade com o tempo e espaço da obra em análise, além de ser um assunto tratado pelo diretor em sua obra bibliográfica. É conveniente relatar que, a princípio, a presente pesquisa teria seu foco em figurino. Ao decorrer do estudo, fez-se fundamental a análise dos demais elementos fílmicos, dado que o shock value provém da associação de todos estes elementos. Mesmo que a monografia tenha resultado em uma coleção de vestuário, a moda, segundo Frings (2012), estuda as condições do mercado e o estilo de vida, além de observar a roupa. Isto é, a apresentação e observação dos elementos fílmicos, assim como de tempo e espaço, foram indispensáveis para a criação e desenvolvimento de uma coleção de moda, porque se equivalem à pesquisa de comportamento e estilo de vida e, estes elementos serviram de subsídios para a idealização da coleção.

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A fim de desenvolver uma coleção de moda, foi utilizada a marca própria Flamboyant. A marca tem como um dos seus objetivos cativar o seu público-alvo com cultura e diversão. Foi mencionado que o público da Flamboyant é pensante, bem humorado e está aberto a novidades, não há preocupação com gênero ou idade. Por isso, acredita-se que a marca poderia propor a transposição da estética da produção cinematográfica de John Waters, através da análise dos seus valores, para uma coleção de moda, porque o público dela apoiaria o espírito, as ideias e os ideais da coleção. Sendo assim, iniciou-se a etapa de desenvolvimento da coleção. Foi visto que para se desenvolver uma coleção de moda, há três etapas fundamentais, sendo elas o planejamento, a construção e a comunicação. O planejamento teve início com um processo de grande auxílio para a elaboração de croquis, a análise de coleções anteriores das marcas inspiracionais. As marcas inspiracionais foram definidas por serem irreverentes e opulentas, como diversos elementos dos filmes estudados e, por isso, a análise de suas coleções foi tão importante para a concepção da coleção. A análise gerou ideias, amparou na questão da unidade da coleção e mostrou como são trabalhados os elementos de estilo nas coleções inspiracionais. A relevância da análise de coleções é irrefutável em uma monografia que explora a mise en scène de um cineasta a fim de transpô-la para uma coleção de moda. Da mesma maneira que se fez análise fílmica, para entender o filme, foi necessário fazer análise de coleções, para se entender coleção e moda. Isso possibilitou a transposição da estética de John Waters para uma coleção de moda foi a observação da estética de outras coleções. Considerando que o tema da pesquisa e o tema da coleção é o mesmo, assim como a pesquisa de referências, não houve grandes mudanças ou informações desconhecidas nestas etapas – tema, pesquisa de referências e elementos de estilo – do planejamento. A estética do cineasta seguiu inspirando cada detalhe de cada fase do planejamento da coleção, desde a nomeação das cores da cartela de cores até a concepção das superfícies utilizadas na coleção, passando pela escolha dos materiais. Na verdade, foi a partir da pesquisa de materiais que se pôde assimilar as cores da coleção. A proposição inicial dos elementos de estilo proporcionou aporte para definir materiais. Buscaram-se materiais que ostentassem o brilho e a transparência identificados nos filmes analisados. Depois de determinar pele, veludo, cetim e plástico, buscou-se – a partir da predefinição da cartela de cores – as melhores opções de cores dos materiais no mercado e, assim, foi concebida a cartela de cores da coleção.

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O desenvolvimento das superfícies aplicadas na coleção surgiu na etapa de elaboração de croquis. Pensou-se em temas para cada look a fim de iniciar esboços. Para a concepção dos looks, foram associados personagens, filmes, elementos, valores ou cenas; como explicado na descrição de cada croqui. Ao assimilar esses aspectos, surgiu a coleção e, junto dela, as superfícies. Após a finalização dessas etapas, foi possível identificar, com facilidade, os elementos de estilo da coleção. As etapas seguintes da construção da coleção foram as fichas técnicas, modelagens e montagem das peças. As fichas foram executadas com o intuito de simulação, caso a coleção fosse confeccionada em maior escala. Devido à simplicidade das modelagens desenvolvidas, os esboços e croquis serviram de amostra no lugar das fichas, durante o processo. A montagem das peças foi uma etapa mais extensa, por causa das terceirizações das superfícies e dos tecidos utilizados. Atenção e calma garantiram a viabilização da etapa de montagem das peças. Apesar da simplicidade da modelagem desenvolvida, a combinação dela com as cartelas – de cores, materiais e superfícies – fez com que o shock value fosse, de fato, produzido. A modelagem, as cores, os materiais e as superfícies, vistos separadamente, não produzem o efeito; o que pôde transmitir o shock value foi a maneira como estes elementos foram trabalhados e entrelaçados. Todos os elementos que compõem uma coleção de moda foram estudados a partir da estrutura de construção de coleção dos autores citados nesta monografia. Como visto anteriormente, a análise de coleções anteriores das marcas inspiracionais, ao relacionar-se com a análise fílmica, elucidou a transposição. Ou seja, a estética dos filmes analisados foi transposta através de todos os elementos que compõem uma coleção de moda. Só se produz mise en scène quando todos esses elementos agem mutuamente e foi essa a relação almejada. A etapa final do desenvolvimento da coleção foi a comunicação. Definir nodels, beleza e música para o desfile não foi uma tarefa difícil depois de tanta pesquisa. Como dito anteriormente, cada detalhe de cada etapa teve atenção, porque através deles que pode-se assemelhar a mise en scène dos filmes analisados. Através de postagens do curso de moda da Universidade Feevale e da autora da pesquisa, pôde-se perceber a aceitação do público em relação à coleção; através de curtidas e comentários. A escolha dos nodels também possibilitou maior alcance da divulgação da coleção para o público-alvo. Concluindo, ainda que esta monografia buscasse responder à questão apresentada – a fim de alcançar o objetivo de criar e desenvolver uma coleção de moda que transmitisse a estética cinematográfica de John Waters –, ela proporcionou uma valiosa e perdurável relação

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entre moda comercial não massificada e cinema trash. A transposição da mise en scène de John Waters fez com que a coleção comunicasse, ocasionando uma moda como discurso. Através dessa ligação, pode-se levantar questionamentos a partir da apresentação desses assuntos pouco expostos, tornando um público maior mais consciente; de assuntos como gênero, cinema underground, humor, bom gosto/mau gosto e shock value.

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______. Crackpot: the obsessions of John Waters. Paperback ed. EUA: Scribner, 2003. ______. Hairspray, Female Trouble, and Multiple Maniacs: Three More Screenplays by John Waters. 1. ed. EUA: Thunder’s Mouth Press, 2005b. ______. Role Models. 1. ed. EUA: Farrar, Straus and Giroux, 2010. ______. Shock Value: a tasteful book about bad taste. 4. ed. EUA: Running Press, 2005a. WILLIAMS, Ashley. Disponível em: . Acesso em: 19 nov. 2015 WORDPRESS. Dawn Davenport. 2012. Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2015 ______. Dawn grávida. 2013. Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2015 ______. Mr. David e sua amante. 2013. Disponível em: . Acesso em: 2 nov. 2015 ZINOMAN, Jason. Shock Value: How a Few Eccentric Outsiders Gave Us Nightmares, Conquered Hollywood, and Invented Modern Horror. 1. ed. Nova Iorque: The Penguin Press, 2011. n.p. ZITA, Antonín. The Exterminator Does a Good Job: The Discourse of Naked Lunch. 2001. 146 f. Dissertação (Mestrado em Língua Inglesa e Literatura) – Masaryk University, República Tcheca, 2011. ZORDAN, Paola. Melodrama e ideal ascético: Prolegômenos nietzschianos para pensar o mau gosto. Santa Catarina: Revista Palíndromo, 3. ed, 2010, p. 203-221.

153

APÊNDICE A – FICHAS

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal PNT01 Vitória Leal 29/09/16 42 HOT PANTS

154

Hot pants com patch no centro da frente, forrado e com elástico embutido na cintura.

1. Pele baixa

Dálmata

1,40m

100% PES

DGP

30,90

50cm

2. Cetim c/ elastano

Turquesa

1,50m

97% PES 3% PUE

DGP

11,90

50cm

Branco

100% PES

Corrente

1,45

30m

Preto

59% PES 41% PUE

São José

1,50

1m

Linha Elástico

Patch PNT

PNT00

Edu bordados

93

1

155

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal VSTD1 Vitória Leal 08/10/16 42 VESTIDO TRAPÉZIO

PRINCESS PERFECT

156

Vestido trapézio dublado com faixa bordada na altura do busto e fechamento com amarração nas alças.

1. Plástico

Sem cor

1,40m

Plástico

Plásticos e lonas

8,90

1m

2. Filó

Amarelo

2,30m

100% PA

Central de tecidos

7,49

50cm

Linha

Branco

100% PES

Corrente

1,45

1

Cordão

Preto

100% CO

São José

28,90

1

Bordado PP

PP1

Edu bordados

R$120

1

157

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal BMB2 Vitória Leal 30/09/16 42 BOMBER OVERSIZED

158

Bomber oversized com bordado no centro das costas, forrado e sem fechamento.

1. Pele baixa 2. Cetim c/ elastano

Rosa

1,40m

100% PES

DGP

30,90

1,5m

Turquesa

1,50m

97% PES 3% PUE

DGP

11,90

1,5m

100% PES

Corrente

1,45

1

Linha

Bordado vômito

Rosa

VMT1

Edu bordados

R$120

1

159

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal CP1 Vitória Leal 06/10/16 42 CAPA

160

Capa bordada com capuz volumoso.

1. Veludo clássico Turquesa liso 2. Cetim c/ Amarelo elastano

Linha

Bordado FH

1,40m 1,50m

Turquesa

40% CO 34% PA 26% CA 97% PES 3% PUE

100% PES

FH1

Pálacio das 48,90 decorações

2m

Catarinense

9,90

2m

Costuratex

1,45

1

Edu bordados

R$250

1

161

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal MC01 Vitória Leal 10/11/16 42 MACACÃO

162

Macacão sem mangas com recorte abaixo do busto para fechamento em amarração e mancha simulando sangue centralizada na frente.

1. Malha veludo liso

Linha

Branco

1,40m

Branco

96% PES 4% PUE

DGP

41,90

1,5m

100% PES

Corrente

1,45

1

163

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal BCC1 Vitória Leal 07/11/16 42 CROPPED CAVADO

164

Cropped dublado cavado com patch no centro da frente e fechamento com zíper no centro das costas.

1. Plástico

Sem cor

1,40m

Plástico

Plásticos e lonas

8,90

50cm

2. Filó

Marrom

2,30m

100% PA

Empório de Sedas

7,90

50cm

Linha

Marrom

100% PES

Corrente

1,45

1

Zíper

Marrom

Plástico

São José

1,00

1

Patch Merdão

MERDÃO

Edu bordados

R$120

1

165

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal SCC1 Vitória Leal 11/11/16 42 SAIA ENVELOPE

OH SHIT

166

Saia envelope forrada com elástico embutido, bordados na lateral frente, bordado no centro das costas e mancha no centro das costas.

1. Malha veludo liso 2. Cetim c/ elastano

Branco

1,40m

96% PES 4% PUE

DGP

41,90

1,5m

Marrom

1,50m

97% PES 3% PUE

DGP

11,90

1m

Branco

100% PES

Corrente

1,45

1

Preto

59% PES 41% PUE

São José

1,50

1m

Linha Elástico

Bordado merdinha

MRDNH

Edu bordados

R$70

1

Bordado OH SHIT

OHSHIT

Edu bordados

R$70

1

167

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal MML1 Vitória Leal 03/11/16 42 CROPPED MANGA LONGA

168

Cropped de plástico com mangas raglan de pele (forradas), gola de pele, patches de mamilos e fechamento com zíper destacável no centro das costas.

1. Pele baixa

Roxo

1,40m

100% PAC

DGP

30,90

1,20m

2. Plástico

Sem cor

1,40m

Plástico

Plásticos e lonas

8,90

30cm

3. Cetim c/ elastano

Verde

1,50m

97% PES 3% PUE

Empório de 19,90 Sedas

1m

Linha

Roxo

100% PES

Costuratex

1,45

1

Zíper

Roxo

Plástico

São José

1,00

1

Patch mamilo

PMM1

Edu bordados

R$105

34

169

Flamboyant’s Cavalcade of Perversion Vitória Leal MML2 Vitória Leal 04/11/16 42 HOT PANTS

170

Hot pants de pele com patches de mamilo, forrado e com elástico embutido na cintura.

1. Pele baixa 2. Cetim c/ elastano

Roxo

1,40m

100% PAC

Verde

1,50m

97% PES 3% PUE

DGP

30,90

1m

Empório de 19,90 Sedas

1m

Linha

Roxo

100% PES

Costuratex

1,45

1

Elástico

Preto

59% PES 41% PUE

São José

1,50

1m

Bordado Mamilo

BMM1

Edu bordados

R$105

1

171

APÊNDICE B – PLANO DE COLEÇÃO

172

APÊNDICE C – BACKSTAGE PROJETA-ME

173

174

175

176

177

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