Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962)

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Pedro Miguel Jorge Réquio

Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962)

Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, orientada pelo Doutor Rui Manuel Bebiano do Nascimento, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra 2016

Faculdade de Letras

Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962)

Ficha Técnica: Tipo de trabalho Título Autor/a Orientador/a Júri

Identificação do Curso Área científica Especialidade/Ramo Data da defesa Classificação

Dissertação de Mestrado Mudança Cultura e Política na Academia de Coimbra: O caso da Via Latina (1958-1962) Pedro Miguel Jorge Réquio Doutor Rui Manuel Bebiano do Nascimento Presidente: Doutora Maria Alegria Marques Vogais: 1. Doutor Miguel Cardina 2. Doutor Rui Bebiano 2º Ciclo em História História História Contemporânea 25-10-2016 17valores

Resumo Esta dissertação tem como objectivo analisar a criação e o consumo cultural e artístico dos estudantes da Associação Académica de Coimbra durante o período compreendido entre 1958 e 1962. Durante esta época, Portugal viveu sob o regime do Estado Novo, encabeçado por António de Oliveira Salazar. Um regime dictatorial de cariz nacionalista e de inspiração tradicionalista. É num contexto de asfixia das liberdades de expressão e de luta política que o meio artístico universitário se desenvolve, bebendo influência de diversos movimentos artísticos nacionais e internacionais e também da oposição ao regime. A produção artística e o consumo cultural estão assim carregados de um forte conteúdo político. Analisa-se também a modificação do papel feminino na sociedade portuguesa, em parte devido a um alargamento do conhecimento geral dos estudantes. Palavras-chave: Cultura, Coimbra, Estado Novo, Universidade, Literatura e artes, Mulheres.

Abstract This thesis aims to analyze the creation and cultural consumption among the students of the Academic Association of Coimbra during the period between 1958 and 1962. During this time, Portugal lived under the Estado Novo regime, headed by António de Oliveira Salazar. A dictatorial regime of nationalist nature and traditionalist inspiration. It is in a choking context of freedom of expression and of political struggle that the university art world develops, drinking influence of various national and international artistic movements and also from the opposition to the regime. The artistic production and cultural consumption are so laden with strong political content. Also considers whether to female role of change in Portuguese society, in part, due the intelectual discoveries of the studentes. Key-Words: Culture, Coimbra, Estado Novo, University, Literatura and arts, Women

Agradecimentos Os agradecimentos que quero aqui deixar expostos estendem-se não só às pessoas que me apoiaram e ajudaram durante a elaboração desta tese mas também às que me acompanharam e apoiaram durante toda a minha vida. Deste modo ser-me-á impossível agradecer a todos eles. Não me refiro só a grandes amigos, familiares ou pessoas próximas, mas também a quem a memória olvidou e se envolveu comigo em acesos debates sobre os mais variados temas, contribuindo para o desenvolvimento do meu espírito crítico e da capacidade de análise daí decorrente. Quero agradecer ao Doutor Rui Bebiano, pelo apoio prestado e pela preciosa ajuda que me deu, em sugestões, leituras e pontos de referência. Elementos que se revelaram imprescindíveis para a realização desta dissertação. Um sincero agradecimento. Quero também agradecer a Eliana Gersão, Rui Namorado, António Avelãs Nunes e Abilio Hernandez Cardoso pelas entrevistas prestadas. Sem eles este trabalho teria ficado com muitas pontas soltas. Um bem haja! Não só pela amabilidade de me terem concedido depoimentos mas sobretudo pelo papel que tiveram na resistência ao Estado Novo e na luta por uma sociedade mais livre. Não posso também esquecer os funcionários da biblioteca da FLUC, da Biblioteca Geral de Universidade de Coimbra e da Biblioteca Municipal da cidade de Coimbra. Por fim quero agradecer aos meus pais e à Nádia pela confiança e perseverança que me incutiram.

Siglas Utilizadas AAC – Associação Académica de Coimbra AM – Assembleia Magna CADC – Centro Académico de Democracia Cristã CCC – Cine-clube de Coimbra CEC – Centro de Estudos Cinematográficos CEL – Centro de Estudos Literários CF – Conselho Feminino CITAC – Centro de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra DG – Direcção Geral FCG – Fundação Calouste Gulbenkian MP – Mocidade Portuguesa MPF – Mocidade Portuguesa Feminina MUD – Movimento de Unidade Democrática OMEN – Obra das Mães pela Educação Nacional PCP – Partido Comunista Português SPN/SNI – Secretariado da Propaganda Nacional/Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo UC – Universidade de Coimbra TEUC – Teatro Universitário de Coimbra VL – Via Latina As citações mantiveram-se no seu original, tendo em conta que o trabalho foi escrito com o antigo acordo ortográfico.

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Índice Introdução ........................................................................................................................... 3 1 -Movimento Estudantil e luta pela autonomia académica ................................................. 8 1.1-O Estado Novo, a Universidade e a Academia de Coimbra .......................................... 8 1.2 - O decreto 40.900: Uma viragem no movimento estudantil ..................................... 10 1.3 - As listas de esquerda na AAC e a crise académica ................................................... 13 2 - Via Latina: aspectos técnicos......................................................................................... 19 2.1 - Equipa da redacção ................................................................................................ 19 2.2 - A censura e a Via Latina ......................................................................................... 20 3 - A cultura: Na universidade de Coimbra e na sociedade portuguesa ............................... 25 3.1 - 1958-1962: Anos de transformação na Academia de Coimbra ................................ 25 3.2 - A cultura oficial do Estado Novo ............................................................................. 27 3.3 - A cultura da oposição ............................................................................................. 31 3.4 - A importância da cultura no meio universitário e na VL .......................................... 34 4 - Literatura ...................................................................................................................... 39 4.1 - O neo-realismo na VL ............................................................................................. 42 4.2 - O existencialismo na VL .......................................................................................... 49 4.3 - Poesia .................................................................................................................... 54 4.4 - Centro de Estudos Literários ................................................................................... 56 5 - Teatro ........................................................................................................................... 60 5.1 - TEUC ...................................................................................................................... 60 5. 2 - CITAC..................................................................................................................... 64 5.3 - O teatro como instrumento de oposição ................................................................ 66 6 - Cinema.......................................................................................................................... 71 6.2 - A crítica de cinema na VL ........................................................................................ 77 6.3 - O cinema internacional: De Hollywood à Europa .................................................... 80 6.4 - A prática cinéfila em Coimbra: do espectador ao criador ........................................ 85 6.5 - O cinema na VL e o cine-clubismo .......................................................................... 88 7 - Questão Feminina ......................................................................................................... 92 7.1 - As mulheres no Estado Novo: Na sociedade e no ensino......................................... 92 7.2 - A estudante universitária ....................................................................................... 95 7.3 - A estudante universitária na VL (1958-1960) .......................................................... 97 7.4 - Um novo papel para as mulheres ......................................................................... 101

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7.5 - A polémica de “Carta a Uma Jovem Portuguesa” .................................................. 107 7.6 - A rapariga e o desporto universitário.................................................................... 112 7.7 - Conselho Feminino ............................................................................................... 117 Conclusão ........................................................................................................................ 121 Bibliografia ...................................................................................................................... 124 Anexos ............................................................................................................................. 130

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Introdução O tema escolhido para a realização desta dissertação insere-se numa temática já amiúde referida mas que não foi estudada de forma autónoma. É com objectivo de preencher uma lacuna existente nos estudos sobre a cultura universitária, bem como da produção e discussão cultural da época, que se empreendeu a realização do presente trabalho. A baliza cronológica eleita, entre 1958 e 1962, coloca-se num contexto de profunda crise do regime Salazarista, coincidente com uma agudização do movimento estudantil que veio a provocar um violento litígio entre as Associações Académicas e o governo. Uma longa quezília que se prolongou até aos alvores da revolução de Abril. Em 1958 deu-se a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da República, a efeméride que assinalou o princípio da segunda grande crise do regime, classificada por Fernando Rosas como o “terramoto delgadista” (Rosas, 1994: 579). Sucessivamente, eclodiram outras vicissitudes que contribuíram para uma desestabilização da hegemonia social e política do governo de Salazar. O assalto ao paquete Santa Maria por Henrique Galvão, a perda dos territórios de Goa, Damão e Diu, o assalto ao quartel militar de Beja e ainda o começo da guerra colonial em Angola. A somar a estas ocorrências, deu-se a primeira crise académica, em 1962. Resultado de um longo período de reivindicações estudantis, que, a partir desta altura sofreram uma paulatina radicalização, remetendo-as cada vez mais para uma aproximação do espectro político da oposição ao Estado Novo. A identificação do movimento estudantil com a oposição democrática não é um processo simples e directo. Foi antes um resultado de um caminho titubeante e complexo, que ora sofre refluxos, ora se desenvolve de modo mais patente. O propósito deste estudo, não é porém, o de sistematizar as evoluções do movimento estudantil e as suas relações com a Universidade e o governo. Este pedaço de história já foi analisado em várias obras que importam ser mencionadas. Vejam-se os estudos de Nuno Caiado (Movimentos Estudantis em Portugal), 1990, Álvaro Garrido (Movimento Estudantil e Crise do Estado Novo), 1994, Luís Reis Torgal (A Universidade e o Estado Novo – O Caso de Coimbra 1926-1961), 1999, Elísio Estanque e Rui Bebiano (Do Activismo à Indiferença), 2007, ou Miguel Cardina (A Tradição da Contestação – Resistência Estudantil em Coimbra no Marcelismo), 2005. 3

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Com esta dissertação pretende-se reconhecer uma área de desenvolvimento da produção cultural e artística da Academia de Coimbra que se cruzou com os processos de transformação e de reivindicação por parte da comunidade estudantil. Recorrendo a uma caracterização do perfil da produção cultural académica inserida num contexto de asfixia política e negação da liberdade de expressão. O jornal da AAC Via Latina foi escolhido como o objecto central de estudo. Tendo em conta o facto disponibilizar informação bastante preciosa a propósito do tema abordado. Esta publicação já foi objecto de estudo, numa tese de mestrado de História Contemporânea apresentada na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e realizada por Januário Pires, intitulada Contributo Para o Estudo da Via Latina (1937-1969) durante o Estado Novo (1994), todavia, este trabalho não faz qualquer alusão ao desenvolvimento cultural pelo qual a Academia de Coimbra passou. Apesar de tudo, com algum atraso, Portugal foi testemunhando o aparecimento de inovações culturais e artísticas, correntes de pensamento filosófico, bem como alguns dos debates ideológicos e políticos que surgiram na Europa e no Mundo. As ideias vindas do exterior, expressas através da literatura e do cinema por exemplo, difundiam conceitos contrários à moral corporativista do Estado Novo (Bebiano, 2003). Também em Portugal, parte substancial da produção artística concebida após a década de 1940 foi realizada por indivíduos desafectos ao regime ou até mesmo ligados a organizações políticas oposicionistas (Ó, 1999). De facto, a progressiva dinamização cultural que se efectivou nas três academias, em particular na de Coimbra, foi acompanhada pela discussão acerca dos propósitos ideológicos e ontológicos da arte. Para a geração que estava agora a chegar à Universidade, a produção e a difusão de cultura configurava-se não só como um elemento de qualificação intelectual, mas sobretudo como uma forma de emancipação política face ao regime. Urge assim assinalar o modo de como, caso de Coimbra, os estudantes se mostraram permeáveis aos elementos da cultura oposicionista então existentes, os assimilaram, e tornaram seus. Envolta nas suas próprias idiossincrasias, a Academia de Coimbra, bem como toda a cidade, constituiu um caso bastante singular e importante na produção e difusão cultural portuguesa. Mais uma vez, a baliza cronológica compreendida entre 1958 e 1962 foi eleita como a mais pertinente tendo em conta não só a conjuntura política e institucional mas sobretudo devido aos dados que nos fornece relativamente a um dos períodos mais assinaláveis do desenvolvimento e 4

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transformação artística pelo qual Portugal passou durante o século XX. Outra razão para a delimitação de datas foi a quantidade de informação disponível. Foi necessário inserir-se o estudo numa cronologia não muito extensa. Se entendermos cultura por tudo aquilo que não é produto da natureza, ou seja, o que provém da criação humana, como a fala, a religião, a arte, a ciência, então cultura é tudo aquilo através da qual se transmitem emoções ou concepções mentais (Saraiva, 1993: 11). No presente trabalho, o conceito de cultura é assumido na vertente associada às expectativas intelectuais e lúdicas. Face à cultura académica propriamente dita, o seu único elemento “tradicional” aqui sistematizado é o Teatro Académico. O Orfeão, as tunas, os grupos corais e o desporto, são de um modo geral deixados de parte, visto constituírem actividades que à partida não contêm elementos significativos sobre as reivindicações políticas da época. De ter em conta também, que algum destes grupos mais tradicionais – como é o caso do Orfeão – eram compostos por indivíduos afectos ao regime ou à extrema-direita (Marchi, 2008). Também a música de intervenção e as artes plásticas (em 1958 é fundado o Círculo de Artes Plásticas da AAC) o foram pela mesma razão. É certo que a música de intervenção, a de José Afonso mais concretamente, viria a ser igualmente um importante veículo das ideias oposicionistas, porém, até 1962 esta ainda se encontrava num estágio embrionário. Só nesse ano é que José Afonso viria a lançar o seu primeiro trabalho. A literatura, o teatro e o cinema são pois então as formas de expressão artística que manifestam um engajamento ideológico sócio-político mais flagrante. E por isso foram as eleitas. Para além da Via Latina, foram também consultados outros órgãos da imprensa estudantil da época em conjunto com as obras presentes na bibliografia. O recurso bibliográfico foi complementado com o testemunho oral, proveniente de quatro entrevistas realizadas a antigos membros da Associação Académica de Coimbra que presenciaram e actuaram nalguns dos acontecimentos aqui apresentados. As pessoas em questão, e a quem quero sinceramente agradecer, são: Eliana Gersão, Rui Namorado, António Avelãs Nunes e Abilio Hernandez Cardoso. Quanto à classificação política do Estado Novo, optei por seguir os mesmos conceitos utilizados por historiadores bastante familiarizados com o magma político dos regimes ditatoriais europeus do século XX. Tanto Luís Reis Torgal (1999: 6066), Fernando Rosas (1994: 216-226), como João Bernardo (2003: 88-95), garantem que apesar do regime de António de Oliveira Salazar ser mais correctamente 5

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categorizado como “católico corporativista”, não é de todo errado aplicar-lhe o epíteto “fascista.” Já para António Costa Pinto é errado rotular o regime do Estado Novo de fascista (Pinto, 1992). Resolvi não me referir directamente ao Estado Novo como um regime fascista, no entanto, ocasionalmente identifico os membros da oposição como antifascistas. Principalmente porque muitos deles se intitulavam assim. A estrutura organizativa do trabalho encontra-se divida por vários capítulos, divididos em sub-capítulos, agrupados no enquadramento e no desenvolvimento. O primeiro capítulo é dedicado a uma breve exposição da evolução do movimento estudantil desde a fundação do Estado Novo. São descritas as condições sobre as quais o movimento estudantil de Coimbra e do país se estruturou e metamorfoseou politicamente. Também a questão da autonomia universitária é aqui debatida, tendo em conta a importância que teve no quadro reivindicativo do movimento. A compreensão do clima político e social sobre o qual vivam os estudantes é fulcral para que se entenda a evolução da cena cultural estudantil. No segundo capítulo, aquele que encerra o segmento do enquadramento, são expostos os pormenores técnicos sobre o jornal Via Latina, da Associação Académica de Coimbra. Bem como a relação entre os estudantes que o compunham a comissão de censura nacional. Este capítulo foi elaborado, em boa parte, através do recurso a fontes orais, tendo em conta a absoluta escassez de fontes bibliográficas. A importância deste jornal para a elaboração da dissertação foi a maior, considerando que é a principal fonte de estudo. No terceiro capítulo, que dá abertura à secção do desenvolvimento, é sistematizada a problemática da cultura e a sua instrumentalização como ferramenta de emancipação. São caracterizados os principais movimentos artísticos portugueses e a sua influência nos meios universitários, em conjunto com a transformação cultural em Coimbra e a sua cobertura na Via Latina. No quarto capítulo, dedicado à literatura, são apresentadas as correntes literárias dominantes no panorama nacional e a sua extensão à literatura produzida e publicada pelos estudantes na Via Latina. No quinto capítulo é abordado o tema do teatro universitário e a sua transformação na viragem da década de 1950 para a seguinte. São salientadas as características democratizantes que caracterizaram os dois grupos de teatro pertencentes a Associação Académica de Coimbra e a sua progressiva politização. 6

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O sexto capítulo é dedicado ao cinema e à sua consensualização no meio académico. São estruturadas as razões do aparecimento do movimento cine-clubista e a sua infiltração no meio académico. O cinema e a sua crítica, em particular, encontravam-se aliados a uma retórica contestatária e subversiva. O capítulo final debruça-se sobre a presença das mulheres, em particular das raparigas universitárias, na Universidade de Coimbra e na sociedade portuguesa da época. São analisados os comportamentos das estudantes universitárias e a identidade social feminina na ideologia do Estado Novo. Bem como a reconceptualização do papel feminino que a década de 1960, a nível nacional e estrangeiro, testemunhou. Um debate originado pelas alterações da estrutura morfológica portuguesa, pelas ideias políticas e associativas mas também pela produção e pelo consumo cultural.

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1 -Movimento Estudantil e luta pela autonomia académica 1.1-O Estado Novo, a Universidade e a Academia de Coimbra De acordo com Luís Reis Torgal, a relação entre o Estado Novo e a Universidade de Coimbra pode ser rotulada como “um namoro constante.” A Universidade de onde António de Oliveira Salazar saíra, era para este uma “guardiã da cultura ocidental e cristã, nacionalista e corporativa” (Torgal, 1999: 107-109). Durante as primeiras décadas do novo regime, a Universidade Coimbra foi a principal fonte de capital humano intelectual para a coordenação da máquina do Estado. Também as direcções da instituição mantiveram uma estreita colaboração com o regime. Vejam-se as inúmeras homenagens e celebrações dirigidas pelo Senado da Universidade e pelos próprios reitores à acção política desenvolvida pelo Estado Novo. Todavia, se a Universidade se converteu numa importante muleta ideológica e de recrutamento do regime, o mesmo não se pode dizer da Associação Académica de Coimbra, que, mediante o período histórico, mais particularmente quando sentia a sua autonomia universitária ameaçada, desenvolveu uma postura assumidamente reivindicativa (Garrido, 1996: 42-43). O carácter geral das relações estabelecidas entre a Academia e o governo é no entanto difícil de segmentar em períodos distintos. Como Álvaro Garrido referiu no seu trabalho Movimento Estudantil e Crise Do Estado Novo, a “designação “crise de 62” – como de resto outras de teor similar, como a de “65” ou de “69” – quando tomada em termos absolutos assume um carácter redutor e convencional que importa ter presente na consecução de estudos sobre a matéria” (Idem, Ibidem: 196). De facto, é impossível parcelar as crises e tumultos registados nas relações entre o governo, universidades e respectivas academias. Todas são parte integrante do mesmo percurso iniciado nos alvores da ditadura e concluído com a queda do Estado Novo. Um diálogo conturbado e volátil estabelecido entre o governo e os estudantes das universidades que foi sofrendo mutações consoante o zeitgeist da época. Sem embargo, existiu um perene espírito de resistência, que ciclicamente sofria retrocessos ou influxos, às tentativas do Estado Novo de integrar por completo as academias universitárias no seu projecto corporativo.

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Ao longo do século XX, as movimentações estudantis da academia de Coimbra acompanharam os tumultos políticos pelos quais o país passava. A luta académica manteve-se durante os anos conturbados da instauração da ditadura militar. Entre 1927 e 1931 ocorreram acções estudantis contra a ditadura militar, em sintonia com outras que simultaneamente floresciam em Lisboa e no Porto. Em Coimbra, o Centro Republicano Académico – com estudantes como Paulo Quintela, Vitorino Nemésio ou Sílvio Lima – teve um papel importante na oposição da época. Ao impulsionar a vitória da facção frentista nas eleições de 1932 para a AAC (Estanque, Bebiano, 2007: 33). Após a consolidação do regime Salazarista, o governo enceta uma série de medidas que procuram subordinar a Universidade e a AAC ao seu controlo. A Universidade teve que passar a viver integrada no Estado Novo, tornando-se numa “corporação orgânica”, onde não é permitida qualquer tendência de oposição estrutural ao Estado Novo. Assim, a partir de 1934 foram desenvolvidas uma série de medidas que buscaram pôr em prática este plano. É extinta a imprensa da Universidade, procurando atingir o seu director, o Professor Joaquim de Carvalho, republicano convicto e difusor de ideias e textos que não se coadunavam com o regime. A 13 de Maio 1935 foi publicado um decreto que admite a demissão dos funcionários “que tenham revelado ou revelem espírito de oposição aos princípios da Constituição Política, ou não dêem garantia de cooperar na realização dos fins do Estado.” Em 1936, através de uma ordem de serviço, foi suspensa a representação dos estudantes da Assembleia Geral e foi também impedida a realização de eleições na AAC, sendo nomeada uma Comissão Administrativa para a dirigir (Torgal, 1990:211). Apesar dos esforços governamentais para coordenar por completo a Academia, surgiram organismos autónomos que, insuflados por vida própria, conseguiram perpetuar o espírito académico e oposicionista à revelia das imposições governamentais. O Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), foi um destes organismos (Barata, 1990: 348). Neste caso, o TEUC, durante este período foi quase inteiramente composto por indivíduos oposicionistas. O encenador do grupo, Paulo Quintela (professor na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra) era simpatizante dos ideais republicanos, e alguns dos estudantes-actores, como Arquimedes Silva Santos e Deniz Jacinto, foram membros do PCP (Adegas, 2011: 42-44). Gradualmente, os estudantes oposicionistas, bem como aqueles que simplesmente defendiam a autonomia da associação, foram demonstrando o seu 9

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descontentamento para com uma AAC manietada. Com a derrota das forças do eixo e o final da segunda guerra mundial, o regime deu esperanças de uma futura e progressiva democratização, que nunca se chegou a efectivar 1 (vd. Rosas, 2012: 224). A 13 de Dezembro de 1944, foi eleita pelos estudantes uma direcção para a AAC, presidida por Salgado Zenha, a que o Reitor da Universidade, Maximino Correia, deu posse. A posição de Zenha e da sua lista, entrou em confronto com as directrizes governamentais. A lista recentemente empossada, composta por elementos da esquerda universitária e certos sectores católicos democráticos, promoveu uma série de conferências em que participaram algumas personalidades desafectas ao regime, lutou pela realização do I Congresso dos Estudantes Universitários e recusou-se a comparecer na manifestação de 19 de Maio, a Salazar, por ter preservado Portugal da guerra. Salgado Zenha, ao recusar que os estudantes comparecessem na manifestação, invocou a razão de que considerava tal acto um gesto político, um procedimento que entraria em confronto com os estatutos académicos, tomando em consideração o carácter “apolítico” da AAC. No entanto, Maximino Correia, considerou a recusa de Zenha um gesto “político” e demite-o a 29 de Maio. Este acontecimento veio gerar um debate polarizador que divide a Academia em dois sectores: o grupo favorável a Zenha e ao carácter reivindicativo da sua lista, e outro grupo, que, embora afirmasse defender as liberdades académicas, encarava essas reivindicações como um ataque ao governo. No rescaldo deste tumulto, que se prolongou durante o último quartel da década de 1940, a AAC passou a tomar posições muito menos contestatárias e por vezes, até manifestou uma certa “sensibilidade pró-governamental” (Torgal, 1990: 213-214). Com a aprovação do decreto 40.900, em 1956, os conflitos entre os estudantes e o regime são retomados, e operou-se uma nova e veemente cisão entre os estudantes e o governo. É no seio destas polémicas que se efectiva uma crescente politização estudantil.

1.2 - O decreto 40.900: Uma viragem no movimento estudantil

Para uma melhor compreensão das alterações efectuadas no regime durante o período do pós-guerra consultar Rosas, 2012:221-246. 1

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O ano lectivo de 1956-1957 foi marcado pela contestação estudantil ao Decreto 40.900, um documento destinado a regulamentar o associativismo estudantil. A relativa autonomia, que as Academias tinham vindo a conquistar desde o relaxamento do regime após o final da segunda guerra, passou a ser ameaçada com a aprovação do Decreto pelo governo (Estanque, Bebiano, 2007:34). O ministro da Educação Nacional, Leite Pinto, elaborou um projecto semelhante ao que havia sido desenvolvido em 1936, no qual estipulava a dependência das estruturas associativas ao Ministério da Educação Nacional. No Decreto 40.900 estava consagrado que “as associações e organizações só podem coordenar as suas actividades para fins especiais e desde que o Ministro da Educação Nacional o autorize em cada caso”. Também os futuros estudantes eleitos para cargos “de direcção ou orientação só [podiam] entrar em exercício após o ministro da Educação nacional ter sancionado a eleição ou [a] nomeação”. A nova legislação pretendia cortar qualquer tipo de influência e contacto de estudantes estrangeiros, ao proibir “as relações com organismos internacionais ou de outro país, a não ser por intermédio dos competentes de serviços do Ministério da Educação Nacional.” (Cardina, 2008; 23) O movimento de contestação gerado pela tentativa de imposição do decreto representou uma marca indelével no movimento estudantil português. Em Coimbra, todavia, a reacção estudantil assumiu características distintas das restantes academias (Namorado, 2015, Nunes, 2015). Ao propugnar uma retórica vincadamente tradicionalista, subjugada a um certo ideal de “corporativismo universitário”, a defesa da autonomia da AAC e a preservação do seu perfil jurídico, revestiu-se de argumentos tradicionalistas que identificavam a especificidade do caso de Coimbra (Garrido, 1996: 64-65). Rui Namorado afirmou que um dos argumentos frequentemente utilizados na defesa da autonomia associativa estabelecia uma perspectiva que facilmente se coadunava com o ideal corporativo do regime: “Se a Universidade é uma corporação de mestres e alunos. Então, nós estudantes, como membros dessa corporação, temos direito a uma associação livre de amarras por parte do governo (Namorado, 2015) ”. Também o recurso à praxe, como simbologia suprema da identidade académica, evidencia um compromisso para com o tradicionalismo coimbrão. (Cardina, 2008:27) De facto, a consubstanciação da autonomia estudantil aos ideais corporativos/tradicionalistas foi a principal razão mobilizadora por detrás do movimento estudantil de Coimbra. A luta pela AAC aproximou os sectores politicamente próximos do regime com as 11

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esquerdas estudantis (Estanque, Bebiano, 2007: 34). Também o facto do desporto, em particular o futebol, se encontrar ameaçado pela tutela governamental, como transparecia no 5º decreto de lei, exponenciou o número de apoiantes à luta pela autonomia associativa. As próprias organizações estudantis católicas tomaram posições públicas ao lado dos dirigentes associativos. Assim sucedeu com o Centro Académico de Democracia Cristã 2 , que expressou oficialmente à AAC o seu “repúdio pelo conteúdo do Diploma, considerando-o um “atentando à gloriosa tradição da Academia (Garrido, 1996: 67). A 16 de Janeiro de 1957, um largo grupo de estudantes compostos vários membros das três academias do país assistem à discussão do decreto no hemiciclo, tendo-se registado alguns confrontos com a polícia. O governo decidiu neutralizar o decreto após várias horas de debate. A luta contra o decreto 40.900 teve importantes consequências no movimento estudantil. Alargou a desconfiança para com o regime a sectores católicos e criou um “sentimento difuso de unidade estudantil, alimentado pela noção de que os estudantes partilhavam problemas comuns, independentemente do lugar onde estudavam” A celebração do Dia do Estudante, que desde 1951 tinha vindo a incitar as três Academias a realizações conjuntas, adquiriu a partir de 1956 uma importância gradual, que a proibição da sua realização em 1962, vem a atestar. Por certo, foi a tentativa governamental de tutelar a associações de estudantes, que contribuiu para uma intensificação do contacto inter-académico (Cardina, 2008: 26). A crescente politização do meio estudantil, bem como a adopção de uma postura reivindicativa face às decisões governamentais, trouxe para a Academia de Coimbra uma nova polémica. Estatutariamente, a AAC é uma instituição “apolítica”, ou seja, encontra-se expurgada, teoricamente, de qualquer ideologia política. Ainda que se fale genericamente em “esquerdas” e “direitas” a presidir a direcção da AAC. Neste sentido, o que é ser político? Que actos podem ser considerados políticos? De um modo geral, pode dizer-se que é aceite que o estudante tem o direito de ser político na medida em que pode interferir na defesa dos seus interesses associativos e da sua universidade (Torgal, 1999: 215). O debate centrado da politização do estudante, que se seguiu após luta contra do decreto 40.900, preencheu as páginas da VL. Em “Política e a Condição Universitária”, na qual F. Jasmins Pereira responde a um estudante que afirmava que

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Enquanto estudante de Coimbra, António de Oliveira Salazar fez parte do Centro.

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o estudante não deveria intervir em qualquer decisão tomada pelo governo, é assumido que o estudante deve ter consciência política: “Do que precisamos não é de construções, de purezas desencarnadas, ou de monstros lógicos, mas sim de uma observação ao rés-da-realidade, de uma observação sincera e despreconcebida dos interesses reais dos Universitários. Que importa trajar-se defensor da pureza associativa se não tem em consideração que ao universitário não basta isso e pelo contrário sente a imperiosa necessidade de um esclarecimento político sobre os problemas que o rodeiam, e, muitos, estão para além do âmbito universitário? [sic.] (VL, 1959, 90)

Um outro artigo, igualmente publicado no mesmo ano, afirma que “o estudante universitário, como cidadão que é, deve prestar o seu contributo à política do seu país.” E que a posição tomada pelo movimento estudantil perante o decreto 40.900 foi uma posição política (VL, 1959, 92). Já em “Política e a Condição Universitária” o autor afirma: “Quanto à política académica (ou associativa), como logo de inicio se reconheceu, ela só pode ser útil. DESDE QUE SE PROCESSE À MARGEM DO QUE EM REGRA SE ENTENDE POR POLÍTICA. Isto é, inserir quaisquer dimensões políticas no plano associativo é falsear a finalidade e a utilidade das associações: uma associação académica não tem como associados indivíduos de diversas formações políticas mas única e simplesmente universitários (VL, 1959, 94).

Por certo, as polémicas da politização do meio estudantil devem ser devidamente enquadradas para que se compreendam as razões que levam alguns alunos a aceitar a política e outros a rejeitá-la. A partir de 1958, o regime entrou na sua “segunda grande crise”, com o tumulto político e social causado pela campanha presidencial de Humberto Delgado. Este acontecimento marcou o inicio de um novo capítulo na história Estado Novo.

1.3 - As listas de esquerda na AAC e a crise académica A segunda grande crise do regime, que Fernando Rosas balizou entre 1958 e 1962 foi pontuada por uma série de eventos que ameaçaram a estabilidade do Estado Novo com uma força nunca antes testemunhada. A calma aparente, que se havia 13

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instaurado na sociedade portuguesa desde 1949 (o ano da candidatura à presidência de Norton de Matos), camuflou as tensões acumuladas numa “sociedade em mudança mas aperreada por bloqueios políticos, institucionais e ideológicos de toda a ordem” (Rosas, 1994, 579). Se as lutas estudantis – bem sucedidas - contra o Decreto 40.900 foram um sinal premonitório das cisões que se adivinhavam, a candidatura do general Humberto Delgado à presidência da República foi a efeméride que efectivamente despoletou a “segunda crise do regime 3” (Rosas, 1994: 579). A somar à instabilidade provocada pelo “terramoto delgadista”, surgiram, em catadupa, no ano de 1961, uma sucessão de acontecimentos que vieram dar alento às ambições dos grupos oposicionistas: o assalto ao paquete Santa Maria, o inicio da guerra colonial em Angola, o golpe palaciano frustrado do Ministro Botelho Moniz, a fuga dos dirigentes do PCP do Forte de Caxias, a operação militar da União Indiana contra Goa, Damão e Diu e ainda o assalto ao quartel de Beja. No ano seguinte, em alguns pontos do país dão-se inúmeros levantamentos populares: as manifestações de Março no Porto, as manifestações dos mineiros de Aljustrel, as greves do 1º de Maio em Lisboa e no Porto, em que duas pessoas, respectivamente, são mortas a tiro pela polícia, as greves pelas 8 horas de trabalho no Alentejo e Ribatejo e ainda a luta do movimento estudantil pela livre organização inter-universitária, pautada pela greve aos exames e às aulas (Idem, 2012:32-33). Em sintonia com a agitação política e social pela qual o país passava, a Academia de Coimbra foi palco de uma bipolarização, entre as “direitas” e as “esquerdas”. As “direitas”, compostas por nacionalistas, católicos e tradicionalistas, que presidiram as direcções gerais dos anos-lectivos 1958/1959 e 1959/1960 (Marchi, 2008, 557), não conseguiram estabelecer uma hegemonia capaz de conter a afirmação do espectro oposto. A campanha do general Humberto Delgado gerou uma enorme onda de apoio popular e entre os estudantes, e, em certa medida contribuiu para a fortificação das fileiras oposicionistas. A 31 de Maio de 1958, Delgado visitou Coimbra, onde foi recebido com uma enorme manifestação de apoio. O reitor da Universidade, Maximino Correia, redigiu um comunicado onde atacou a oposição e elogiou Salazar (Torgal, 1999: 232), no entanto, para muitos estudantes, a campanha de Delgado representara a aprendizagem inicial de uma militância oposicionista. As 3

Fernando Rosas assume que este período representou uma crise para o regime na medida em que a candidatura do general Humberto Delgado e os seus pressupostos políticos “democratizantes” atraíram boa parte da população, contribuindo para o crescente descontentamento face ao regime. (Rosas, 1994, 579-585).

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vivas repercussões da campanha presidencial do general Humberto Delgado estenderam-se até ao ano seguinte. Quando em Fevereiro de 1959, quatro centenas de estudantes (compostos por membros das três academias) assinam um documento que corrobora a intenção do “general sem-medo” de demitir Salazar. O artigo intitulavase “402 estudantes das 3 Academias pedem o afastamento do Dr. Salazar” (Cardina, 2008:37-38). Após

1958,

o

movimento

estudantil

de

Coimbra

caracterizou-se,

maioritariamente, por um posicionamento político anti-salazarista bipolarizado. De um lado estão organizações universitárias católicas pro-democráticas 4 , do outro, núcleos clandestinos ligados ao PCP, ou somente de inspiração marxista ou de esquerda. Contudo, a expressão dos elementos ligados ao PCP é ainda muito reduzida no final da década de 1950, o que, para Álvaro Garrido, explica a derrota sistemática das esquerdas, até 1960 (Garrido, 1996: 78-80). Em 1961, o PCP resolveu alterar as políticas coordenadoras dos seus sectores juvenis. Se até à data prevaleciam os velhos esquemas organizativos do MUD 5 Juvenil, assentes em pequenas fracções desvinculadas entre si, que procuravam apenas assegurar a orientação do partido nos organismos que integravam, os comunistas resolvem criar “organizações locais ou regionais de jovens comunistas, tão fortes quanto possível”. Com esta nova orientação, as organizações juvenis do PCP terão crescido rapidamente nas principais cidades do país. De acordo com alguns autores, em algumas repúblicas de estudantes de Coimbra, como a Pra-Kys-Tão, grande parte dos membros eram militantes do partido (Madeira, 2013: 366-367). O ano lectivo de 1960/1961 foi marcado pelo regresso das listas de “esquerda” à Direcção Geral da AAC. A lista presidida por Carlos Candal, então finalista de Direito, “procurou secundarizar ou mesmo declinar no seu programa eleitoral quaisquer conotações de ordem política, proclamando-se “isenta” e tão somente interessada em defender os interesses da Academia” (Garrido, 1996: 86). De facto, os rótulos de “esquerda” e “direita” quando aplicados às listas da AAC, são sobretudo construções a posteriori, baseadas numa interpretação do percurso político de cada lista. É óbvio que os estudantes que compunham as listas tinham convicções 4

Após 1958, surge um sector na Igreja Católica que se opõe ao Estado Novo. Esta facção surge no rescaldo da candidatura de Humberto Delgado, quando o Bispo do Porto envia uma carta a Salazar na qual clama por uma democratização do regime. (vd. Rosas, 2012:259-260). 5 Movimento de Unidade Democrática: Uma organização composta por diversos grupos oposicionistas. Salgado Zenha militava no MUD quando foi presidente da AAC.

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políticas claras, contudo, estas não poderiam ser demonstradas publicamente, e a retórica das listas de “esquerda” baseava-se sobretudo na defesa da autonomia universitária. Era um discurso sincrético, simultaneamente inovador e tradicionalista (Torgal, 1990: 216). A lista de Carlos Candal, bem como as procedentes listas de esquerda que viriam a presidir à AAC até à crise de 1962, foram patrocinadas pelo Conselho de Repúblicas6, e compostas por “estudantes claramente não identificados com o salazarismo” (Namorado, 2016: 40). É evidente que o enriquecimento cultural da Academia já havia dado sinais de vida antes da tomada de posse de Carlos Candal, como o comprovam as inaugurações de vários organismos culturais autónomos, onde constam o CITAC (Ciclo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra), o CEC (Ciclo de Estudos Cinematográficos) e o CELUC (Coral de Estudantes de Letras da Universidade de Coimbra). No entanto, a nova conduta da DG impulsionou a criação de novos organismos culturais e desportivos a um ritmo frenético. A intensa actividade da nova direcção da AAC, aberta a elementos de diversas sensibilidades políticas e ideológicas, “inaugurou um período de relativa ruptura com as preocupações predominantemente “corporativas”, deslocando o eixo do trabalho associativo de prestação de serviços para as realizações de ordem cultural e social” (Garrido, 1996: 87-88). Com as “esquerdas” no poder, a VL redobrou as colunas dedicadas à preocupação com a renovação do ambiente sócio-cultural. Existem inúmeros textos nas páginas da publicação onde são debatidas questões nunca antes abordadas. Como a ligação entre os estudantes e a cultura, o papel da mulher na sociedade, uma descrição pormenorizada da vida nas repúblicas, a importância da auto-gestão universitária e também a urgência de criar uma federação estudantil que congregue todas as Associações de Estudantes do país. Logo no primeiro número da VL publicado após a tomada de posse de Carlos Candal surge um artigo demonstrativo desta nova preocupação de aproximar as estruturas associativas da massa estudantil. O papel do jornal, é, para a nova lista, a ferramenta fundamental para a comunicação entre os estudantes: “Que ninguém se iniba de considerá-la sua! Ninguém será impedido de apostolar um anseio, de justificar uma sugestão, de formular críticas nas suas colunas (VL, 1960, 118). Como irá ser exposto mais à frente, a VL teve de facto 6

Órgão sobre o qual se reuniam todos os membros da Repúblicas de estudantes de Coimbra. (vd. Lopes, 1982: 65-70).

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um papel fulcral na divulgação dos ensejos académicos, sociais, culturais e políticos dos estudantes. Entretanto, em 1962, como resposta à repressão conduzida às reuniões interacadémicas deflagrou a crise académica. O litígio principia com a proibição do I Encontro Nacional de Estudantes, agendado para 9,10 e 11 de Março de 1962, em Coimbra, com a participação de estudantes das restantes academias. Contrariando a decisão governamental, o encontro realiza-se. Pela primeira vez, os estudantes de todas as academias pedem por “uma urgente democratização do ensino” bem como pela “extensão do ensino universitário a todos os estudantes portugueses, independentemente de considerações de ordem política, religiosa, rácica ou de qualquer outra espécie” (Garrido, 1996: 124). Ainda no mesmo mês, em Lisboa, a comemoração do Dia do Estudante, a 24 de Março, é proibida na véspera, e o Ministério do Interior envia uma carga policial para reprimir os estudantes. A situação foi tão grave que o reitor da Universidade, Marcelo Caetano, se demitiu em conjunto com os directores das outras faculdades. Em Coimbra, ao contrário do que aconteceu na capital, o posicionamento pró-governamental do reitor Guilherme Braga da Cruz levou ao confronto entre a Academia e a Universidade. No seguimento deste conflicto, estruturaram-se três grupos distintos: a direita nacionalista anti-associativa, a esquerda de pendor sindicalista-estudantil, dominante na época da crise, constituída por membros do PCP ou por outros elementos de esquerda, simpatizantes das três direcções-gerais que haviam tomado posse desde a lista de Carlos Candal, e ainda a linha corporativa, que defendia a autonomia da AAC, dos católicos do Centro de Académico de Democrática Cristã (CADC). A crise de 1962 deixou uma marca indelével na Academia de Coimbra. Acelerou a politização de uma ampla camada estudantil, mas, em simultâneo, expurgou a Universidade de Coimbra dos seus estudantes mais activos politicamente. A prisão das quatro dezenas de estudantes que ocuparam a sede da AAC (que havia sido encerrada pela polícia), o silenciamento da Via Latina, e a provação de um novo decreto de lei (semelhante ao 40.900) contribuíram para um refluxo do movimento académico na cidade de Coimbra (Cardina, 2008:48-51). Porém, a luta pela autonomia associativa não estava encerrada, como confirmaram as posteriores crises académicas. Tendo como pano de fundo os conflitos entre os estudantes e o governo a cultura, e a criação cultural, tomaram um papel importantíssimo na contestação 17

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política ao regime e aos seus valores. O papel limitante e repressor da censura, bem como os riscos provenientes da oposição directa, tornaram a cultura na ferramenta primordial, através da qual os estudantes procuram difundir ideais e tecer considerações explícitas contrárias às acções e princípios morais do Estado Novo: “Um efervescente ambiente de teor reivindicativo, questionador de um conjunto amplo de valores políticos e culturais mais conservadores, começou então a afirmar-se e a transformar-se num importante factor de mudança. O movimento exprimia já uma forte componente de procura cultural democrática, da qual foi testemunho a visível vitalidade de alguns organismos associativos e a variedade e o rasgo da maior parte dos artigos publicados, muitos deles com um grande impacto público, no importante jornal académico Via Latina “ (Estanque, Bebiano, 2007: 35-36).

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2 - Via Latina: aspectos técnicos

2.1 - Equipa da redacção O jornal Via Latina, fundado em 1937, começou como quinzenário, apesar da sua publicação irregular. Foi só durante os anos 50 que a Via Latina se converteu a semanário, continuando no entanto a manter frequente irregularidade. A partir dos últimos anos da década de 50, e em particular após a tomada de posse de Carlos Candal, a Via Latina passou a apresentar um nível de regularidade passível de fazer jus à sua categoria de semanário (Pires, 1994: 18-36). A redacção da Via Latina era relativamente pequena, uma vez que era composta por um núcleo que se situaria entre os dez e os vinte estudantes, talvez mais próximo dos vinte de acordo com os depoimentos prestados. (Namorado, 2015; Gersão, 2015; Nunes, 2015). Quanto à periodicidade, a publicação é classificada como semanal. Uma vez que ela própria se intitulava como semanário independentemente de alguns atrasos que se podiam prolongar por uma ou duas semanas, no máximo. Se este hiato se verificasse a redacção preocupava-se ocasionalmente em publicar dois números consecutivos na mesma semana, alguns surgiam então em uma edição contígua e outros em número separados. A regularidade com que a VL foi emitida destacava-a das restantes publicações do mesmo género (publicações académicas) e ainda de alguns semanários distritais ou regionais (Namorado, 2015). A equipa da Via Latina dividia-se nos seguintes cargos: director, secretário da redacção e redactor. O director estava incumbido de submeter a composição do jornal à tipografia e posteriormente à Comissão de Censura. O cargo de Director foi durante várias décadas (de 1941 a 1961) partilhado com o de Presidente da AAC. A separação dos cargos só é consumada durante a presidência de Carlos Candal na Direcção Geral da Academia, na qual António Avelãs Nunes é eleito director da VL (Nunes, 2015; Gersão, 2015). Quanto à autoria dos materiais publicados pelo jornal é seguro afirmar que eram maioritariamente resultado dos membros constituintes da redacção. Excluindo o trabalho de tipógrafo, todos os pormenores técnicos estavam ao encargo da equipe da VL, organização, estrutura, paginação e venda. Porém, importa também mencionar os frequentes contributos dos estudantes comuns, não esquecendo que a lógica da 19

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publicação redundava no incentivo à participação de todos os estudantes. Já quando era necessário um artigo que apresentasse um elevado grau de complexidade no conteúdo a redacção optava por recorrer ao apoio de um professor universitário ou de um académico conceituado (Gersão, 2015; Nunes, 2015). Antes de os artigos serem submetidos à censura era necessário que o jornal fosse impresso, e só de seguida é que os censores avaliariam cada artigo individualmente.

2.2 - A censura e a Via Latina Com a implementação da ditadura militar a legislação da imprensa sofreu uma alteração que condicionou a informação difundida pelos jornais nacionais. Se após a instalação da República os órgãos de imprensa usufruíram de considerável liberdade estatuária, o advento do golpe militar encabeçado por Gomes da Costa e Mendes Cabeçadas (que viriam a ser Presidentes da República após o putsch) a 26 de Maio de 1928 veio asfixiar a autonomia da imprensa nacional. Excluindo algumas ocasiões particulares, tais como a “ofensiva” que alguns jornais dirigiram ao governo republicano durante a Primeira Grande Guerra, os dirigentes da República concediam relativa liberdade aos órgãos de imprensa, chegando inclusive a tolerar duríssimas críticas (Carvalho, 1999: 15-16). Apesar de inicialmente ter sido eleito pelos militares e pela direita conservadora como o homem ideal para a direcção da máquina estatal, Mendes Cabeçadas foi rapidamente afastado dos cargos ministeriais e de Presidente que ocupava, sendo substituído por Gomes da Costa. Após a sua chegada ao Conselho de Ministros, Gomes da Costa afirmou que “ (…) não estou disposto a estabelecer a censura. Pelo menos enquanto os jornais não me incomodarem [sic.] ” (Idem, Ibidem: 26). E de facto incomodaram, pois pouco tempo após estas afirmações o jornal O Mundo decide emitir uma notícia com um assunto proibido, levando assim à promulgação de uma lei que obrigava qualquer jornal a ser apresentado ao ComandoGeral da GNR antes de ser lançado nas bancas. Sintomaticamente, a partir de 24 de Junho de 1926 os jornais passam a apresentar, pela primeira vez, uma informação que os acompanhará até à presidência de Marcelo Caetano: “Este número foi visado pela Comissão de Censura”. (Cangueiro, 2009: 37). Foi no rasto deste tipo de censura preventiva, que não admitia uma postura manifestamente oposta ao regime vigorante, que a futura censura estado-novista se fundamentou. 20

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Com a formalização do Estado Novo foi referendada e decretada uma nova Constituição, em 1933, onde estão salvaguardados os pretensos direitos e liberdades individuais do cidadão. Todavia, esses direitos e liberdades encontravam-se subordinados a “leis especiais” que os acomodavam, criando uma elasticidade normativa que permitiu ao regime manobrar a carta constitucional e as leis que lhe eram inerentes do modo mais oportuno. Esta contradição é patente nas alíneas referentes à liberdade de imprensa. Apesar da Constituição estipular, teoricamente, a garantia da “liberdade de expressão do pensamento sob qualquer forma”, afirma em simultâneo que existem leis especiais que a deverão regular, de forma a “impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos”. O segundo artigo presente na Constituição consagrava que “continuam sujeitas a censura prévia as publicações definidas por lei de imprensa e bem assim as folhas volantes, folhetos, cartazes e outras publicações, sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social” (Idem, Ibidem: 48). As publicações periódicas estavam consequentemente sujeitas a um rigoroso escrutínio por parte da Comissão de Censura, o que obrigava os redactores a suprimirem palavras, frases e por vezes artigos na íntegra. Após a revisão dos artigos, o censor carimbava categoricamente: Autorizado, Autorizado com cortes ou Suprimido (Idem, Ibidem: 85). O próprio Salazar, afirmou a António Ferro que apesar da censura lhe parecer paradoxal, “constitui a legítima defesa dos Estados livres, independentes, contra a grande desorientação do pensamento moderno [e] a revolução internacional da desordem” (Ferro, 1933: 127). Para a “defesa do estado”, os Serviços de Censura elaboram uma lista com os jornais que consideram “comunistas” e “com ligações maçónicas”, em suma, uma lista nas quais constam todas as publicações que o regime considera nocivas. Com efeito, neste clima de repressão, muitos jornais de esquerda, republicanos e democráticos são suprimidos ou dissolvem-se por força das circunstâncias (Cangueiro, 2009: 52). Desde o seu ano de fundação a VL (1941), sendo uma publicação de carácter académico, nunca atraiu uma grande atenção por parte da comissão de censura, ao contrário de outros jornais nacionais de cariz republicano ou democrático, como foi o caso da Seara Nova. A censura assumia que o jornal fosse exclusivamente lido pelos estudantes da cidade e não extravasasse os limites do perímetro da cidade de 21

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Coimbra. O que não correspondia à realidade, pois como declararam António Avelãs Nunes (Nunes, 2015) e Eliana Gersão (Gersão, 2015), a VL era assinada por alguns intelectuais anti-fascistas que habitavam fora de Coimbra. A importância dada pelos censores à publicação é no entanto redobrada após as eleições que colocaram Carlos Candal na direcção da AAC (Namorado, 2015). No decorrer da escrita de um texto o autor deveria pois ser bastante cauteloso nas palavras que empregava na composição de um artigo, bem como no tema a eleito. Quando a VL publicava uma notícia referente a uma Assembleia Magna, teria de o fazer com a devida prudência, dada a espontaneidade de muitas das intervenções e carácter explicitamente anti-salazarista que algumas apresentavam. Os redactores tentavam contornar a censura ao empregar frases ou expressões dissimuladas e pouco objectivas que teriam a probabilidade de passar incólumes aos olhos dos censores mais tacanhos e menos perspicazes. Importa também referir que alguns autores testavam os limites dos censores, ao recorrerem a expressões que poderiam ser facilmente associadas a um vocabulário político de esquerda ou marxista (Namorado, 2015; Nunes, 2015). No entanto, os redactores tinham por vezes que se abster de transmitir informações que já sabiam que seriam inevitavelmente suprimidas: “Houve auto-censura, como é óbvio. Todavia, desafiávamos constantemente o sistema. Tentávamos passar mensagens sub-reptícias. Mas de um modo geral não havia muita contenção pela nossa parte. Os textos iam sempre à censura, uns passavam, outros não. A dimensão de auto-censura só se dava em casos mais flagrantes. Quando sabíamos mesmo que uma noticia daquele tipo nunca seria possível de ser aprovada pelo censor .” (Namorado, 17.09.2015)

De facto, algumas destas mensagens mais incendiárias lograram passar incólumes aos olhos da censura. Veja-se por exemplo o caso da utilização da expressão “burguês” com uma conotação evidentemente pejorativa (VL, 1959, 89). A prática de testar os limites dos censores era aliás transversal a todos os redactores de publicações desafectas ao regime. Sendo contudo um costume secundarizado face à preferência de emitir artigos com um carácter implícito e menos combativo. Expressões como “camadas menos favorecidas da população” ou “intervenção das autoridades” são escolhidas em detrimento de “proletariado” ou “repressão” (Carvalho, 1999: 47).

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De acordo com António Avelãs Nunes, a equipe da VL teve contudo alguma margem de manobra para se aventurar na redacção ou publicação de artigos/textos mais audaciosos, dado os elementos da comissão de Censura de Coimbra serem indivíduos de baixa formação intelectual, o que não invalidava o facto de serem menos cuidadosos quando pensavam detectar algo de subversivo que não conseguiam identificar objectivamente. Se assim fosse, o artigo em questão seria imediatamente enviado para Lisboa, onde lá seria revisto por funcionários especializados. (Nunes, 2015). Destacam-se vários artigos particularmente ousados para os padrões do regime tais como a “Carta a Uma Jovem Portuguesa” (que a censura bloqueou durante um mês, até que finalmente foi permitida (Gersão, 2015; Nunes, 2015), “Relações entre Rapazes e Raparigas”, dois artigos sobre o Decreto 40 900 (levando o último ao encerramento da temporário da VL), entrevistas a Óscar Lopes e Joel Serrão (opositores ao regime) e ainda um poema de Manuel Alegre que colocou António Avelãs Nunes – na altura director da VL - numa situação complicada. De acordo com o próprio o poema foi publicado com a aprovação do chefe da Comissão de Censura de Coimbra, que chegou inclusive a demonstrar admiração durante a sua leitura. Não obstante, após a publicação do mesmo e a difusão do respectivo número da VL, o chefe da Censura de Coimbra foi alertado pelas autoridades que Manuel Alegre era um desertor, locutor da Rádio Argel e membro do Partido Comunista. Avelãs Nunes sofreu uma repreenda por parte dos censores de Coimbra e alegou que não tinha conhecimento das ligações políticas de Manuel Alegre. A acção dos censores não foi além de um pequeno aviso (Nunes, 2015). Avelãs Nunes recordou também um artigo presente na VL no qual se lamentava a morte de um colega universitário no teatro de guerra em Angola (VL, 1961, 132-133). Foi o mais perto que a VL esteve alguma vez de apresentar uma crítica directa ao conflito recentemente despoletado. Apesar de o artigo em questão apenas ostentar lamúria pela morte de um colega encontra-se desprovido de qualquer sentimentalismo patriótico ou propaganda nacionalista. Pela ausência destas características Avelãs Nunes foi invectivado pelo reitor da universidade Braga da Cruz (Nunes, 2015). Como foi explicitado anteriormente, todas os artigos integrados nas publicações periódicas da época tinham de ser submetidos à comissão de censura, onde o famoso lápis azul aprovava ou cortava parcialmente ou na íntegra os escritos. Sem embargo, os artigos não poderiam ser entregues em forma de esquisso, só após a 23

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sua impressão nas tipográficas é que seriam sujeitos à censura. Esta imposição revelou-se bastante dispendiosa para os financiadores das publicações, em particular para as mais modestas, tais como a VL. Esta prática constituía naturalmente uma tentativa da parte do Estado que procurava estrangular financeiramente as publicações não alinhadas com o regime. O saldo dos cofres da Via Latina, quando se apresentava positivo, foi sempre bastante reduzido. Alguns dos contributos monetários mais importantes para o jornal vieram de alguns intelectuais não universitários que estavam engajados na oposição ao regime e difundiam a publicação nas franjas intelectuais desafectas ao Estado Novo (Nunes, 2015). A relação entre a VL e a Comissão de Censura pautou-se sempre por um clima de desconfiança. Foi também bastante frequente, no período 1960-1962, haver uma quantidade considerável de artigos parcialmente cortados ou suprimidos (Gersão, 2015). Efectivamente, a VL foi temporariamente suspensa durante o período da crise Académica de 1962 até 1966, devido à publicação de um extenso artigo sobre o dia do estudante intitulado “Depois das palavras do senhor Ministro da Educação Nacional – Os estudantes esperam ver os seus direitos finalmente respeitados” no qual o decreto 40.900 e a política do Ministério da Educação Nacional são veemente desaprovados (VL, 1962, 144): “A VL foi fechada por causa da notícia do dia do Estudante. A notícia foi enviada para a Censura, com quatro ou cinco linhas, e depois de eles aprovarem, nós emitimos uma notícia de uma dimensão muito maior (uma página inteira). Após o número 144, a VL foi proibida de ser emitida. Convergindo com este facto, alguns estudantes que faziam parte da VL foram expulsos, - inclusive eu - mas por outras razões. Nomeadamente as relacionadas com as do activismo estudantil. Os números publicados até 1975 não têm significado nenhum, eram feitos pelos estudantes ligados ao regime e não eleitos” (Namorado, 17.09.2015).

Como referiu Rui Namorado na entrevista concedida, a VL até 1975 esteve sob o controlo de um grupo de estudantes afectos ao regime. Sem embargo, houve uma publicação clandestina emitida pelo Conselho de Repúblicas intitulada O Badalo que procurou seguir o rastro trilhado pela VL. Apesar de ser uma publicação mais modesta, foi organizada de forma a manter a mesma estrutura programática (notícias sobre a vida académica mas também páginas dedicadas às mais variadas actividades culturais). 24

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3 - A cultura: Na universidade de Coimbra e na sociedade portuguesa 3.1 - 1958-1962: Anos de transformação na Academia de Coimbra O conceito de cultura aqui utilizado refere-se essencialmente à sua vertente lúdica e popular, estando no entanto por vezes articulada com o seu significado geral (Saraiva, 1993: 11). A acepção de cultura popular, proveniente do inglês pop culture, é drasticamente diferente da conotação folclórica e étnica que o Estado Novo lhe atribuía (Bebiano, 2010: 440-450). Assim sendo, para evitar imbróglios, é preferível apelidar esta nova cultura popular de “cultura de massas”, na medida em que constitui um conjunto de práticas de consumo cultural difundido à escala global, e por isso mesmo completamente distinta daquilo a que em Portugal era comumente designado por cultural popular (Cuche, 2004: 122). Das temáticas culturais a serem abordadas, duas inscrevem-se na chamada “cultura de massas” que se propagou na Europa em larga escala após a segunda guerra mundial (Idem, Ibidem: 123), nomeadamente o cinema e a literatura existencialista, só para dar alguns exemplos. Já o teatro representou uma actividade artística há muito tempo integrada na cultura académica de Coimbra. Sendo no entanto afectada pelas inovações estéticas e ideias políticas consideradas subversivas para o regime. Tomando a sua definição essencialmente recreativa, a cultura académica de Coimbra desdobra-se em duas tendências que se passarão a considerar distintas. De um lado está o folclore que imputa à universidade e aos estudantes os seus caracterizantes elementos identitários sui generis (Lopes, 1982: 39-45), constituídos pela praxe, repúblicas de estudantes, vestes talares, tunas e festividades académicas. Do outro estão as diversas práticas artísticas e intelectuais que são importadas pelos estudantes para o circuito académico (literatura, cinema, teatro e outras). Das duas correntes em questão, a segunda é a que virá a ser interpretada e contextualizada neste estudo. No período compreendido entre 1958 e 1962, a academia de Coimbra viu nascer no seu interior múltiplos organismos que estão associados a uma vontade colectiva – restrita a um número algo reduzido de estudantes - de impulsionar a criação e o consumo artístico nos circuitos universitários. As páginas da VL servem como testemunho e também como catalisador desta transformação. A viragem da 25

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década de 1950 para o decénio procedente foi marcada pelo aparecimento de várias entidades culturais associadas à AAC que se sedimentaram num curto espaço de tempo. Entre estas encontram-se o Centro de Estudos Cinematográficos (1958), o Centro de Estudos Literários (1960), o Centro de Estudos Filosóficos (1960), o Círculo de Artes Plásticas (1958) e ainda o Centro de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (1958). Excluindo as quatro primeiras organizações, que representam o desabrochar de inovações artísticas e intelectuais no âmbito académico de Coimbra, a prática teatral já se encontrava enraizada na universidade de Coimbra desde tempos imemoriais. De acordo com alguns autores, remonta ao século XVI, durante o reinado de D. João III. (Barata, 1990: 379-383). Todavia, a actividade teatral dos estudantes de Coimbra nunca se destacou com verdadeira proeminência durante séculos consecutivos. É só com o aparecimento do Teatro dos Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC) em 1938 e a sua subsequente actividade, impulsionada sob a direcção de Paulo Quintela (Idem, Ibidem: 379), que o teatro de Coimbra ganhou um novo fôlego ao apresentar frequentes espectáculos que são exibidos não só em Coimbra mas também em outras localidades do país. Bem como em várias cidades europeias, tais como Bristol, na Inglaterra. (VL, 1959, 101). Em paralelo a estas inovações culturais, efectivou-se a construção e reestruturação de alguns edifícios que vieram renovar as instalações da universidade e da academia. Em 1961 foi inaugurado o Teatro Académico Gil Vicente (que terá um importante papel na difusão da produção artística académica) e no ano seguinte a Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Já em 1963, a sede da AAC foi transferida do Palácio dos Grilos para a Praça de República, fixando-se num edifício contíguo ao Teatro Académico Gil Vicente (vd. Bernardino, 2013: 74-75). A dinamização cultural que se manifestou na Universidade de Coimbra durante os finais de 1950 e princípios de 1960 foi produto de diversos factores que se interpenetram de modo a revestirem a AAC e a própria cena cultural da cidade de uma nova roupagem. Em primeiro lugar deve considerar-se o aumento da população universitária nacional a ritmo lento, que apesar de tudo, acompanhava com algum atraso os seus congéneres nos outros países europeus. (Nunes, 2000: 300). No ano de 1960 a cidade de Coimbra tinha cerca de 5000 alunos, dos quais cerca de 36% eram raparigas (Gomes, 1987: 100). A extensão que o corpo universitário por toda a Europa foi adquirindo entre o período do pós-guerra e a década de 1960 contribuiu para a uma 26

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radicalização política, social e artística das massas estudantis, em particular nos países com regimes ditatoriais na qual a organização colectiva era repreendida. Os estudantes eram, de facto, os únicos grupos de cidadãos ao qual era permitida uma acção política e social colectiva (Hobsbawm, 1996: 293-294). Apesar do isolamento provocado pelo regime salazarista, os estudantes conseguiam acompanhar algumas das novidades artísticas que surgiam nos países da Europa central, nomeadamente através de leituras de livros ou publicações periódicas estrangeiras que chegavam a Portugal, mormente as de origem francesa (Namorado, 2015). Sendo excepção, alguns alunos mais abastados tinham o privilégio de conseguir viajar para fora do país e trazerem consigo alguns livros e conhecimentos inéditos para os seus círculos de amigos (Gersão, 2015). O choque provocado pelo desfasamento cultural e comportamental entre Portugal e a Europa, para além de uma “asfixiante, paupérrima e tradicionalista cena artística nacional” (Cardoso, 2016), propalou os estudantes a aspirarem a uma renovação estrutural dos hábitos culturais. Existiam contudo vários movimentos artísticos nacionais que representavam um contraponto à cultura oficial preconizada pelo regime, dentro dos quais, se destacaram os movimentos neorealistas e cine-clubistas, que tiveram um enorme peso nos intelectuais de Coimbra e nos membros integrantes da VL. Mas estas são questões que serão sistematizadas nos capítulos dedicados à literatura e ao cinema. Passemos à apresentação das actividades culturais empreendidas pelo regime, que, apesar de nunca terem adquirido um carácter total na produção e difusão artística nacional, contribuíram em larga medida para uma consolidação e manutenção da hegemonia dos ideais estadonovistas na sociedade portuguesa (Santos, 2008: 64-65).

3.2 - A cultura oficial do Estado Novo Após a institucionalização do Estado Novo como regime, que se dá no rescaldo de um longo processo iniciado com o golpe militar de 28 de Maio e concluído com a promulgação da Constituição de 1933, o governo procurou submeter a população portuguesa aos seus ideais político-ideológicos. “Deus”, “Pátria”, “Autoridade”, “Família” e “Trabalho” são conceitos repetidos até à exaustão nos discursos de Salazar e na propaganda do Estado Novo (Rosas, 1994: 318). De acordo com o pensamento salazarista, seria necessário reeducar um povo caracteristicamente “individualista, abúlico e destituído de espírito crítico” sob a 27

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tutela dos velhos “valores nacionais”, procurando pervernir a acção perversa dos “inimigos da ordem” (Idem, Ibidem: 318-319). Estes inimigos encontravam-se materializados no pensamento republicano liberal, no ateísmo e principalmente no comunismo. Agentes da “deturpação” e “desnorteio” que ambicionavam corromper os valores nacionais. Para resguardo do país seria imperioso submeter a população a uma rigorosa “política do espírito”, um conceito criado por António Ferro, ministro do Secretariado da Propaganda Nacional (Santos, 2008: 61). O Estado Novo procurou fomentar a “política do espírito” através de múltiplas organizações que tutelavam cada sector ou actividade da sociedade civil. Entre 1933 e 1936 surgem os sindicatos nacionais, as casas do povo e dos pescadores, a Mocidade Portuguesa, a Organização das Mães para a Educação Nacional, a Federação Nacional para a Alegria no Trabalho e também o Secretariado da Propaganda Nacional. Cada uma destas organizações aspirava à modelação do quotidiano de acordo com os “paradigmas ideológicos disciplinadores” da moral de inspiração nacionalista e tradicionalista (Rosas, 1994: 319). O Secretariado da Propaganda Nacional (SPN), que mais tarde se tornaria em Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) em 1945, surgiu como complemento de todas as outras organizações doutrinárias, através do qual o regime tenta instrumentalizar a cultura e as artes com o propósito de continuar a disseminar os seus ideais, recorrendo à “política do espírito” e à “campanha do bom gosto”. Para Salazar o papel do SPN/SNI era fundamental para a consolidação fundamental da sua linha política: “Grande missão tem sobre si o Secretariado, ainda que só lhe toque o que é nacional, porque tudo o que é nacional lhe há-de interessar. Elevar o espírito da gente portuguesa no conhecimento do que realmente é e vale, como grupo étnico, como meio cultural, como força de produção, como capacidade civilizadora, como unidade independente no concerto das nações” (Salazar, 1967 como referido em Melo, 2001:54).

A ideia estado novista de que necessário seria necessário reeducar o povo português de acordo com a política do espírito, manifestou-se com particular evidência na sua relação com a cultura. Para António Ferro existiam dois tipos de cultura: a “alta cultura”, que era produzida pelas melhores personalidades do país, e a “outra cultura”, a popular, que deveria ser um simples e passivo receptáculo da 28

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primeira (Idem, 2001: 58). A “cultura popular”, na sua acepção estado novista, tornase assim a única a que o povo deve ter acesso, dado que a influência exercida por outros conhecimentos pode produzir nele uma “metamorfose mental”, o desenvolvimento de uma certa capacidade crítica e até o desejo de insubordinação política (Idem, Ibidem: 68-69). Ferro, antes de se tornar ministro do SPN, foi um artista modernista que esteve ligado à revista Orpheu, contactou com os futuristas italianos e entrevistou Benito Mussolini. A sua vasta experiência artística e política fez com que Salazar o colocasse no comando da máquina de propaganda do Estado. De facto, António Ferro foi o grande teórico da propaganda do regime, através da fusão de algumas linhas estéticas modernistas com o ideal tradicionalista e ruralista característico do Estado Novo (Santos, 2008: 65). Para além de esteta da imagética do Estado Novo, Ferro colaborou, até 1950 (ano em que deixa do SNI), no planeamento das actividades culturais das casas do povo. As casas do povo eram instituições subordinadas à Federação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) e juridicamente definidas como “organismos de cooperação social, com personalidade jurídica”. Estas instituições encontravam-se espalhadas por uma grande parte das freguesias rurais de Portugal metropolitano (desde 1934 passaram a poder instalar-se nas zonas mais “rurais” de vilas e cidades) e visavam, para além de outras funções, facultar actividades aos populares durante os tempos livres. Tais como a criação de pequenas bibliotecas, desenvolvimento de algumas actividades desportivas, sessões de cinema nas quais os filmes eram criteriosamente escolhidos pelo SPN/SNI mas principalmente a formação de grupos corais, ranchos folclóricos, fanfarras e filarmónicas (Melo, 2010: 42-43). O principal objectivo das casas do povo era o de enquadrar a população numa mentalidade rural e tradicional, baseada num ideal folclórico que foi também difundido nos meios urbanos, como o demonstram as realizações das marchas populares. Estas actividades tradicionais, em particular a dança e o canto, tiveram uma grande atenção por parte do Estado Novo, que as via como uma expressão viva da cultura nacional e como um instrumento de utilidade propagandística e escapista (Idem, Ibidem: 64). A literatura, em especial, a de carácter “rural”, também constitui um dos principais enfoques culturais da política da SPN/SNI. Após o fim da segunda grande guerra, em 1945, o Secretariado encetou uma campanha de difusão literária através das casas do povo, que sazonalmente passaram a receber bibliotecas itinerantes. Os catálogos das bibliotecas eram compostos por romances históricos e de aventuras, 29

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poesia, livros científicos (principalmente estudos etnográficos) e alguns livros técnicos. Este espólio literário enquadrava-se dentro dos ditames vigentes, pois a principal missão das “bibliotecas ambulantes de cultura popular” era a de familiarizar as “populações com as grandes figuras e os grandes problemas da cultura nacional” (Ó, 1999: 138). Os livros de ficção disponibilizados pelas bibliotecas pertenciam maioritariamente ao romantismo do século XIX, autores como Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e Eça de Queirós constituíam o grosso do seu corpus literário. Autores estrangeiros como Emilio Salgari e Júlio Verne figuravam também em grande abundância nas listas da biblioteca ambulante do SNI (Idem, Ibidem: 143). A grande maioria dos autores nacionais contemporâneos era categoricamente rejeitada, dado o facto de uma se enquadrarem no movimento neorealista ou noutros grupos artísticos oposicionistas. Até mesmo escritores que se podem enquadrar no género “pitoresco” ou “rústico” como Aquilino Ribeiro ou José Loureiro Botas foram rejeitados devido à sua componente de crítica social. (Melo, 2010: 51). Contudo, a literatura, nunca foi um dos principais interesses do público português. Mesmo nos finais da década de 1950, quando a taxa de alfabetização recrudescera consideravelmente, o cinema, o teatro, a rádio e os grupos de dança e canto constituíam as principais actividades lúdicas do público nacional (Ó, 1999: 206-210). Entre 1933 e 1950 o SNI demonstrou um forte índice de actividade, vindo a sofrer um forte abalo após a saída de António Ferro. Foi Ferro quem institucionalizou a Exposição de arte moderna do SPN/SNI que se desdobrou em várias edições entre 1933 e 1951, o único evento de arte modernista promovido pelo regime. As restantes exposições de arte estimuladas pelo regime eram maioritariamente dedicadas a um conteúdo etnográfico, folclórico ou a qualquer outra temática consubstanciada nos ideais nacionalistas (militar, histórica ou de artesanato) do Estado Novo (vd. Melo, 2010; Ó: 1999). A cultura oficial procurou impor á sociedade portuguesa um “modelo nacionalista-ruralista-tradicionalista" de cultura popular, com o duplo objectivo de legitimar politicamente o regime e de estabelecer um consenso social em torno de um conjunto de valores” (Melo, 2001: 375). A grande generalidade da produção artística criada em Portugal que não surgiu sob a tutela do estado, foi concebida principalmente como um instrumento de reivindicação contra os modelos impostos. No campo literário, principalmente, a

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oposição ao estado novo foi praticamente ecuménica (Avelãs, 2015; Namorado; 2015; vd. Ó, 1999: 210-220).

3.3 - A cultura da oposição A cultura de pendor reivindicativo durante o Estado Novo repartiu-se em diversos vectores. Do literário ao teatral, do movimento cine-clubista às artes plásticas. Das vertentes enumeradas é a corrente neo-realista a que talvez seja mais profícua para compreender as complexidades do húmus cultural oposicionista. Não só porque constituiu uma base que se viria a ramificar por vários outros modos de expressão artística (literatura, pintura, cinema) mas também por fornecer um elemento de estudo que permite compreender com alguma objectividade alguns dos movimentos e debates que animaram a contra-cultura do regime. Até à década de 1960, destacam-se três movimentos: presencismo, neo-realismo e surrealismo. O presencismo, encabeçado por José Régio, Miguel Torga, Branquinho da Fonseca e outros, propugnava uma visão subjectiva do trabalho poético e rejeitava qualquer base que transcendesse a reflexão centrada na pessoa e na personalidade. Já o surrealismo português de Mario Cesariny de Vasconcelos e António Pedro marcou um compromisso com o escândalo e a rejeição do convencional, tal como seu irmão francês, teorizado por André Breton (Ó, 1999: 221-223). Das três correntes, o neo-realismo é aquela que mais importa realçar neste estudo, devido ao papel hegemónico que gorou no seio dos intelectuais portugueses e à vasta quantidade de obras publicadas entre as décadas de 1930 e 1960 que foram categorizadas com este epíteto. No decorrer das décadas de 1930 e 1950, cerca de 24 títulos de publicações periódicas auto-denominavam-se como neo-realistas. Entre estas destacam-se Pensamento (1930-1940), Diabo (1934-1940), Sol Nascente (1937-1940), Síntese (1939-1941) e Vértice (1942-), sendo as duas últimas publicações originárias da cidade de Coimbra (Idem, Ibidem, 217). A revista Vértice teve uma importância capital na difusão e homogeneização do neo-realismo português, não só no seio dos intelectuais mas também no meio académico de Coimbra. A defesa intransigente do neo-realismo por parte dos seus membros integrantes estendeu-se até ao cinema e à pintura. Mesmo o cinema neo-realista italiano – que apresenta diferenças do português - foi eleito pela revista Vértice como a mais importante corrente da sétima arte (Ramond, 2008: p.254-257).

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O conceito de neo-realismo é porém difícil de definir numa acepção hermética. Designa-se de um modo geral, por neo-realismo, o movimento político, artístico e cultural que se desenvolveu em Portugal a partir da década de 1930 modelado a partir do materialismo histórico. Uma estética que procura combater as tendências excessivamente formalistas dos modernismos experimentais e abstractos, ao valorizar a interpretação da realidade presente como ponto de partida para a criação da obra de arte. Para os neo-realistas importa regressar à realidade material e colocar em primeiro plano a questão histórico-social, indissoluvelmente ligada ao determinismo histórico marxista. A arte, fica assim dividida entre a tarefa de dar a conhecer a realidade, e a de criar situações que prefigurem ou ilustrem o próprio devir histórico” (Pita, 2010: 15). Já para Mário Sacramento, um dos mais famosos teóricos do movimento, o neo-realismo foi “um movimento ideológico e estético que exprimiu a incidência cultural dum processo histórico económico-sociopolítico [sic.] ” alternativo à conjuntura existente. A sua linha política procurava a “instauração, no imediato, de uma democracia de tipo popular e socialista, ou acesso a ela através de uma fase prévia de democracia liberal e burguesa” (Sacramento, 1968: 30). A importância da estética não deve ser relegada para um papel subalterno, porque o “realismo literário envolve uma dialéctica em que o cientifico e o estético se conjugam em prol do último”, unidos numa frente comum que “rejeita o idealismo filosófico e artístico”. O realismo, assente numa interpretação materialista da realidade, representa a verdadeira finalidade estética da arte, independentemente dos trejeitos subjectivos que são inerentes à própria criação artística (Idem, ibidem: 3334). Para Júlio Pomar, artista plástico e teórico neo-realista, a arte deve também ser realista e inteligível para o público comum, despida de adornos formalistas e abstractos. Segundo Pomar, a “arte foi um produto das classes burguesas”, “fruto de e para um meio”, e terá que ser sujeita a uma profunda transformação para que deixe de ser um “produto das classes privilegiadas e se [torne] aliada do povo, identificando-se temática e formalmente com as questões imediatas do povo (…) falar na língua do povo de tudo quanto ao povo diga respeito.” (Oliveira, 2010: 55). O neo-realismo português representou um movimento que bebia inspiração das teorias culturais de Bento Jesus Caraça, do naturalismo e de autores denominados “realistas” como Máximo Gorki ou Jorge Amado (Pita, 2010: 25). De acordo com Bento de Jesus Caraça, que recorreu à noção de cultura como uma questão fulcral para a compreensão e transformação da sociedade, existe um carácter unitário em 32

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toda a actividade humana. O “indivíduo não existe para si, desenraizado dos outros e de condições que individualmente o transcendem. Pelo contrário: o homem existe em resultado da mesma evolução progressiva a que todos os seres vivos estão sujeitos.” O homem culto, de acordo com Caraça será aquele “que consegue consciencializar a sua posição no universo e na sociedade, reconhecer a dignidade inerente a qualquer indivíduo e colocar como seu fim supremo o aperfeiçoamento interior (Idem, Ibidem: 15). A função do homem culto será a de através do desenvolvimento cultural se transcender e em simultâneo emancipar os outros (vd. Caraça, 1995: 20 – 30). Neste sentido, existe uma coincidência entre as teorias culturais de Caraça e o conceito de hegemonia concebido pelo marxista italiano Antonio Gramsci. De acordo com Gramsci, a ideologia do “grupo social fundamental” (burguesia) afirma-se sobre a ideologia dos “grupos subordinados” (proletariado), numa combinação de coerção e consentimento que se efectua através diálogo entre os interlocutores. Será portanto necessário a afirmação de uma cultura revolucionária para quebrar com a hegemonia do “grupo social fundamental” (vd. Gramsci, 1974: 330). O neo-realismo, que a partir de meados da década de 1930, foi estabelecendo uma conquista pelo poder no campo literário e artístico português, configurou-se nos decénios seguintes como o grupo cultural mais produtivo, coeso e assinalável. Encetou litígios com os movimentos presencistas e surrealistas, apelidando o primeiro de “egocêntrico” e o segundo como “incapaz de estabelecer uma válida “conexão” analítica com o mundo circundante.” Para o movimento neo-realista, todas as outras correntes de vanguarda eram “estéticas da decadência” que se encontravam desprovidas de qualquer tipo de preocupação com o “conteúdo” ao procurarem fugir realidade” (Ó, 1999: 221-222). Esta oposição entre a forma e conteúdo na obra de arte, na qual o movimento neo-realista procurou alcançar um balanço entre as duas, deu origem a uma das polémicas mais importantes da cultura portuguesa, desdobrando-se por vários decénios. Desde a sua origem, por volta de 1930 até às décadas de 1950 e 1960, chegando inclusive a ser debatida por estudantes, como o demonstram as páginas da VL (VL, 1959, 86; VL, 1960, 107). O movimento neo-realista, é, de acordo com alguns teóricos, como Mário Sacramento ou Alexandre Pinheiro Torres dividido em duas fases que não se encontram totalmente desagregadas. A primeira, que iria até 1950, seria caracterizada por tentar alcançar um equilíbrio entra forma e conteúdo, dando por vezes mais relevo ao último. Outra das suas preocupações foi a de procurar desenvolver uma linguagem 33

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corrida, limpa e acessível. Abordaria também, personagens e ambientes exclusivamente rurais. Vejam-se obras como Gaibéus (1939) de Alves Redol ou Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes. A segunda fase, é marcada por uma inovação estética no qual se renova a linguagem empregue, bem como os pressupostos mais ortodoxos da primeira fase. O movimento amplia-se, quando não se imbrica com outras tendências. Fernando Namora incorpora elementos do romance picaresco espanhol, e Virgílio Ferreira, de modo gradual, vai transitando para o existencialismo. (Sacramento, 1968: 64; Lopes, 1986: 82). De notar também que a partir da segunda fase do movimento se deu uma passagem do ambiente rural para o citadino (Torres, 1977:10-19). Excluindo as correntes artísticas que dominaram a cultura oposicionista, importa ademais mencionar o papel das associações socioculturais livres. Estas associações representaram um pólo de resistência ao projecto cultural salazarista, “devido à sua democraticidade interna e à capacidade de gerar alternativas culturais e sociais.” Destacam-se a Federação Portuguesa das Colectividades de Cultura e Recreio, as cooperativas, o movimento cine-clubista, o associativismo estudantil, a Fundação Calouste Gulbenkian7 (que financiou várias organizações culturais de norte a sul do país) e ainda os compositores das canções de protestos, tais como José Afonso e Adriano Correia de Oliveira. Este foco contra-cultural permitiu a existência de uma maior diversidade sócio-cultural, bem como outros modos de pensar e actuar sobre a sociedade e o mundo, ao optarem por uma intervenção cívica pródemocrática (vd. Melo, 2010: 114-116).

3.4 - A importância da cultura no meio universitário e na VL Dadas as circunstâncias da época, a produção cultural simbolizava o único meio através do qual era possível difundir ideais, conceitos e situações que procurassem hostilizar a moral dominante e apresentar alternativas à mesma. O conceito de cultura apresentado nas páginas da VL adquire uma acepção que não se limita ao mero conhecimento da produção artística e se estende até ao seu formato geral. Apresentando por vezes semelhanças - e num caso particular, referências explicitas - com aos conceitos preconizados por teóricos marxistas como Bento de Fundada em 1956, a Fundação Calouste Gulbenkian teve um importante papel no desenvolvimento cultural, científico e humano português. Criou institutos de investigação nas mais variadas áreas, atribuiu bolsas de estudo e financiou inúmeros projectos culturais de grande relevo, onde se destacam a biblioteca itinerante e a produção artística universitária (Vilar, 2006). 7

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Jesus Caraça, Antonio Gramsci ou até mesmo Georg Lukacs. Apesar de a cultura ser abordada de um modo essencialmente restrito à sua concepção artística na VL, por vezes foi apresentada como uma cultura total que se desdobra pelas mais variadas vertentes do conhecimento científico e artístico. Urge, em primeiro lugar, evidenciar a importância dada à cultura como elemento isolado de qualquer implicação política. Esta visão idónea circunscreve-se apenas aos últimos anos da década de 1950. A partir de 1960,e principalmente durante e após o período de Carlos Candal, o debate da questão cultural revestiu-se de ideias e modos de pensar que se aproximam das ideias sustidas pelos teóricos marxistas citados. Inicialmente, a cultura é sobretudo encarada como um complemento indispensável da formação académica: “Amputaram-nos uma parte das nossas tendências humanas – a melhor parte, a que faz o pensamento crítico e reflexivo: a cultura. Construíram-nos duma forma bizarra. Hoje somos uma Academia de “monstrozinhos” que apenas sabemos teoricamente – da nossa especialização. Não possuímos aquela verticalidade que, certamente, atingiríamos se tivesse existido uma formação anterior autêntica e real, uma educação estética capaz de nos interessar por todas ou algumas, manifestações artísticas que, nessas circunstâncias encontraríamos [sic.] (VL, 1958, 87).”

O texto exterioriza o descontentamento do autor com a falta de cultura artística do estudante comum, bem como a inexistência de organismos culturais associados à AAC. Porém, o ano 1958 viu nascer vários organismos, tais como o Centro de Estudos Cinematográficos, o Ciclo de Teatro Académico de Coimbra e ainda o Círculo de Artes Plásticas. A dinamização destes grupos só viria no entanto ganhar a devida exposição e consagração mais tarde, em particular a partir de 1960, como prova um artigo assinado por Feliciano David. Em “O despertar de uma consciência”, o autor salienta o papel renovador propulsionado pela nova direcção da AAC, afirmando que esta deseja “lutar contra o marasmo geral.” A luta pela dinamização da cultura académica foi encabeçada pelo Círculo de Teatro da Académico de Coimbra, Artes Plásticas, Cinema, Orfeon Misto e Danças Regionais. De acordo com o artigo, o esforço da VL foi importantíssimo para esta renovação, ao “estabelecer um diálogo na Academia e ao “ [contribuir] para uma tomada de consciência.” Para David “é elucidativo o facto de, nos últimos anos terem saído 40 número da revista, enquanto que em 18 anos de existência somente 76 foram 35

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publicados.” O apoio da Fundação Calouste Gulbenkian tornou-se também decisivo na transformação da vida académica, pois a instituição contribui anualmente com centenas de milhares de escudos para as manifestações culturais, incentivando assim “enormemente o interesse do estudante pela cultura do espírito” (VL, 1961,122). Ademais, a vida cultural da cidade de Coimbra foi insuflada por convívios e tertúlias realizados em cafés, repúblicas e outros espaços frequentados por estudantes. (Estanque, Bebiano, 2007: 60-70). Práticas que contribuíram para discussões profundas acerca dos hábitos culturais e a tudo o que lhe é intrínseco. A cultura na sua acepção genérica, entrelaçada com implicações políticas portanto, começou a proliferar nas páginas da VL durante o ano de 1960. Veja-se um artigo intitulado de “O Perigo da Pseudo-Cultura”, no qual o autor veemente condena – recorrendo à ironia – aquilo que encara como uma mercantilização da arte, a redução da obra cultural a um sub-produto da sociedade de consumo: “Pelo lado comercial foi-se mais longe: fez-se da arte moderna uma mercadoria (como razão perguntavam: Porque havemos nós de deixar escapar este negócio? Pois actualmente tudo se pode fazer um negócio?”. A arte, submetida aos ditames do mercado, reduzse à categoria de simples instrumento de diversão, “pois no fundo a nossa cultura serve apenas para nos desviar da realidade; é um requintado prazer espiritual, muitas vezes apenas acessível a certas classes e camadas da população: um passatempo!”. No final, remata com uma frase de Bertolt Brecht e alega que “a cultura burguesa não utiliza a arte para outra coisa senão para divertir-se” (VL, 1960, 112). A cultura, assumida como elemento de “qualificação e emancipação intelectual face ao obscurantismo (Namorado, 2015), integrada numa defesa do acesso geral ao conhecimento por parte da população, tem o seu baluarte em dois artigos particulares. O primeiro, da autoria de Marinha de Campos, de seu nome “A necessidade consciente de uma cultura”, justifica é que necessária a criação de uma “cultura de libertação”, que não se perca em “especulações estéreis no silêncio dos gabinetes”, e que seja difundida pelo “homem comum, trabalhador manual ou intelectual, que vive e luta, que sofre a indiferença ou miséria, mas vence todos os dias a solidão no seu esforço comum.” Uma cultura que não deverá ser só artística mas “fundamentalmente económica, filosófica, histórica, biológica, numa palavra, científica.” Para Marinha de Campos o propósito não é o de “aumentar a elite” mas o de a “integrar numa massa estudantil culta.” Pois “da parte da elite existente não

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deve haver o repúdio e o desprezo pela ignorância das massas, mas sim a facilitação a estas da cultura que permitiu a formação dessa elite” (VL, 1961, 123). Já em “Para uma perspectiva válida de cultura”, Rui Namorado inseriu um excerto do ensaio de Bento de Jesus Caraça A Cultura Integral do Individuo. Este fragmento anexado no artigo de Namorado procurou definir o que caracteriza um “homem culto”. “O homem culto será aquele que “tem consciência da sua posição no cosmos e, em particular, na sociedade a que pertence, bem como da sua personalidade e da dignidade que é inerente à existência do ser humano.” É também aquele que faz do “aperfeiçoamento do seu ser interior a preocupação máxima e fim último da sua vida.” Por fim, Rui Namorado concluiu que “é hoje uma necessidade premente ser culto. E se o acesso á cultura é infelizmente um privilégio, cumpre que nesses privilegiados se consiga a sua expansão de uma forma autêntica, para que possam ser um factor de verdadeiro progresso.” Cabe às escolas e, quando estas não conseguirem, às associações de estudantes essa tarefa de primordial importância” (VL, 1962, 138). De acordo com o texto de Bento de Jesus Caraça, a cultura é vista como um instrumento de emancipação social e intelectual que não pertence a uma elite cultural mas a todo povo, e que deve ser criada com a finalidade de aprimorar as qualidades de vida da população. O próprio conceito de elite cultural não está ligado às classes dirigentes da sociedade, e a primeira pode até entrar em conflito com as estruturas do poder quando ameaça os seus valores e a sua hegemonia política. A formação de uma consciência cultural (dos domínios científicos aos artísticos) foi assim assumida com um propósito potencialmente subversivo, que se ergue contra as classes dirigentes quando estas se opõem ao progresso social e material (vd. Caraça, 1995: 39-41). O carácter ostensivamente revolucionário do ensaio de Bento Caraça não pode ser inserido no artigo de Namorado dado ao risco de o artigo poder ser integralmente censurado, como seria expectável. O autor optou por inserir apenas duas ou três alíneas mais comedidas. (Namorado, 2015). Estes dois artigos presentes na VL, que postulam a difusão generalizada do conhecimento cultural, não são caso ímpar na imprensa estudantil portuguesa da época. Tome-se o exemplo de “A situação da universidade” de José Augusto Seabra, presente na revista Quadrante, órgão de imprensa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Seabra refere: “… a Universidade só realizará realmente uma função positiva na medida em que mergulhar nos problemas vivos e candentes da Cultura nacional, que não se

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Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962) reduzem a um círculo fechado das “elites” ensimesmadas e divorciadas das massas, mas penetrem em profundidade nas camadas mais amplas da população. Só uma Universidade sincronizada com as necessidades efectivas de progresso cultural do nosso povo estará apta, não apenas para a preparação de cientistas, intelectuais, especialistas e técnicos competentes, e sim também à criação de um clima de renovação geral do ambiente em que se processa a vida da nação (Quadrante, 1959, 2). ”

A defesa de uma posição semelhante à de Rui Namorado e Marinha de Campos (que pode ou não ter sido influenciada pela leitura de Bento de Jesus Caraça), é enfatizada com uma conclusão que se aproxima ainda mais dos ideais marxistas exibidos no texto A cultura integral do indivíduo do que os dois artigos presentes na VL atrás mencionados. Seabra clamava por “uma universidade em que o universalismo não se traduza em termos de privilégios de grupo ou classes, como tem sucedido historicamente” (Idem, Ibidem). De facto, é transversal ao ambiente universitário nacional da época uma grande preocupação com a emancipação cultural do estudante, preocupação esta que se estende à criação e à produção artística nos meios académicos. As publicações universitárias de Lisboa (Quadrante, Encontro) bem como a VL são testemunhos desta evidência, apesar das particularidades que as diferem. Literatura, teatro e cinema notabilizam-se nas páginas das publicações. Tal como alguns artigos dedicados às artes plásticas e à música, em menor abundância todavia. A literatura, no entanto, parece ser colocada em primeiro plano, visto ser a mais prestigiada de todas as formas de expressão artística, bem como a mais inclusiva. Uma vez que a escrita de um poema ou de um pequeno conto é acessível à grande generalidade dos estudantes.

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4 - Literatura Até aos princípios da década de 1960, os movimentos artísticos e literários que dominavam a cultura portuguesa eram praticamente os mesmos que se haviam sedimentado e percorrido as décadas anteriores, mais concretamente desde o final de 1930. De um lado estava a literatura oficial do regime, que procurou incorporar sob a sua égide escritores clássicos portugueses, ao enquadrá-los na doutrina corporativista salazarista. Autores românticos como Júlio Dinis mas também escritores da chamada “geração de 70”, que no decurso das décadas de 1940 e 1950 foram premiados pelo Secretariado Nacional da Informação e Turismo (SNI): Ramalho de Ortigão (Ensaio), Eça de Queirós (Romance), Fialho de Almeida (Novela ou conto) e Antero de Quental (Poesia). Esta linha de integração resolveu retirar aos autores todas as suas características políticas e somente publicitar as obras desprovidas de implicações ideológicas e considerações sócio-políticas. Os restantes prémios atribuídos pelo SNI pertenciam a autores contemporâneos “menores”, e hoje praticamente esquecidos (Torgal, 1999 (2): 408-409). No pólo oposto encontram-se os movimentos que já foram apresentados: neo-realismo, presencismo e surrealismo. No período da pós-segunda guerra mundial, a chamada cultura de massas europeia e norte-americana começa a penetrar nas franjas intelectuais e juvenis da população (vd. Bebiano, 2003). Tome-se o exemplo da corrente existencialista, que marca a sua entrada nos circuitos intelectuais portugueses no final da década de 1940 (vd. Saraiva, Lopes, 2000: 1048-1058; Ramond, 2008: 276-277), só se manifestando no final do decénio seguinte nas revistas culturais estudantis (vd. VL, 1956, 72; Quadrante, 1959,). O relevo atribuído ao existencialismo por parte dos estudantes restringe-se quase exclusivamente a uma análise qualitativa do mesmo, através da exposição dos seus pressupostos teóricos. Não sendo publicada nenhuma obra enquadrável nesta tendência nas páginas da VL à excepção de um conto. Para além dos autores e dos diversos movimentos literários em Portugal durante a época, destacam-se duas publicações periódicas de enorme peso na cultura refractária. A Seara Nova e a Vértice, agentes que actuaram como rampa de lançamento para a difusão de vários autores, ensaístas e teóricos. Ambas concediam igual importância à questão cultural, diferindo todavia em termos de conteúdo e de orientação político-ideológica. A Seara Nova, oriunda de Lisboa e formada ainda durante a primeira república, foi animada por pensadores republicanos democratas e 39

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simpatizantes das ideais socialistas, tais como António Sérgio, Raúl Proença e Aquilino Ribeiro. Não apresentava uma linha estética nem política oficial e difundia uma vasta pluralidade de ideias e autores, onde se incluíam alguns neo-realistas. Já a Vértice, originária de Coimbra, assumiu-se como a principal porta-voz do neorealismo português, na senda de o Diabo (composta redactores de Lisboa, Coimbra e Viseu) e de Sol Nascente, revistas suspensas até ao inicio da década de 1940. É certo, que também a Seara Nova mantivera contactos directos com autores neo-realistas, mas não se pode considerar como uma publicação essencialmente ligada ao movimento. A Vértice acompanhou o movimento neo-realista desde os seus primórdios, passando pelo seu desenvolvimento e posterior consagração no meio intelectual português (Ramond, 2008: 22-26). De acordo com Rui Namorado e António Avelãs Nunes, a Vértice “representa a publicação que mais influência teve sobre os estudantes de Coimbra, “mais do que a Seara Nova, apesar da admiração nutrida por um pensador progressista como António Sérgio.” (Namorado, 2015; Nunes, 2015). Até que ponto se propagou o influxo da Vértice pelos estudantes é impossível precisar com objectividade. Sobressaem vários indícios na VL que revelam uma certa homogeneidade cultural neo-realista no meio estudantil. Parte considerável dos textos e poemas presentes na publicação representam uma clara tendência artística que se molda nos princípios do movimento, algo expectável, tendo em conta a Vértice, em conjunto com o Novo Cancioneiro (que partilhava os mesmos autores da Vértice e se inseria na mesma tendência artística), representavam as únicas revistas da cultura oposicionista existentes na cidade de Coimbra. Primeiramente à esquematização das tendências literárias da VL, convém explicitar que os autores inseridos no quadro contra-cultural português, principalmente os de ligação marxista (ligados na sua grande maioria do PCP), “sentiam-se menos como artistas do que como militantes de uma ideia.” (Torgal, 1999 (2): 406), sendo a intervenção política o principal motivo da sua produção literária. É certo que os restantes autores - como os intelectuais da Seara Nova por exemplo – da cultura “resistente” possuíam características completamente distintas, não descurando porém na crítica (por vezes implícita, por outras mais flagrante) à realidade social, moral e política corrente. Esta literatura anti-establishment começou a dar sinais de vida nas páginas da VL após a aprovação do decreto 40.900. Se durante as décadas de 1940 e 1950 foi publicado um escasso punhado de contos e poemas facilmente enquadráveis numa estética neo-realista, é com a crispação das 40

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relações entre a academia de Coimbra e o governo que estes se foram tornando mais profusos. Bem como outros contos distintos do movimento que possuíam igualmente uma forte componente de crítica social e política. Veja-se um conto publicado durante uma direcção da AAC afecta ao regime, presidida por José Manuel Cardoso da Costa, de seu nome “Recordações de um escravo romano”. O texto principia por apresentar o personagem, um escravo romano obrigado a copiar manuscritos. Baseado na exposição da personagem aos manuscritos os autor empreende uma reflexão filosófica onde discorre sobre a importância da memória histórica, as implicações

da

mistificação

de

acontecimentos

por

parte

de

entidades

governamentais e a deificação de figuras históricas, tendo em vista a instrumentalização da população: “Entretanto vamos aguardando a certeza de que tais figuras históricas se reabilitarão em nós e por nós, dentro do tal plano de repetição de factos do passado. Condenaremos as que não se integrarem no conceito exigido da inteira realização humana: exaltaremos as que se elevarem a um plano máximo, figuras típicas de todas as civilizações, símbolos recorrentes que os espíritos fracos e sem imaginação tendem a idolatrar, caindo por vezes (isto é, em determinadas épocas históricas), na feitura de novos mitos e novas religiões. Deixemos os historiadores continuar na sua labuta arqueológica, desenterrando falsidades nos arquivos imperiais, entorpecendo a imaginação com uma arreigada submissão à ordem histórica tradicional (...) ” (VL, 1960, 107).

O desdém pela cultura oficial do Estado Novo é patente nas elucubrações apresentadas no texto. Ao nomear as “figuras típicas de todas as civilizações” como “símbolos recorrentes que os espíritos fracos tendem a idolatrar”, o conto procura depreender que reais implicações se camuflam no endeusamento das figuras históricas por parte das culturas oficiais dos estados. A instrumentalização e submissão são os seus propósitos, de acordo com o autor. Este pequeno conto concluiu com um remate que realça as considerações já tecidas, salientado ainda o papel basilar do indivíduo que tem como missão a transmissão do conhecimento histórico e cultural, uma consideração que se aproxima das concepções presentes no texto de Bento de Jesus Caraça A cultura integral do indivíduo, tal como do conceito de hegemonia gramsciano:

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Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962) “Nesses tempos em que fui escravo romano transmiti uma falsidade que até hoje se tem repetido e da qual sinceramente me envergonho. Aliás esta prática de deturpação da matéria copiada era frequente entre nós os escribas e com ela gozávamos estupidamente, porque, no fim de contas, alguns desses documentos apócrifos que os historiadores encontraram fundamentam hoje o edifício-chave de toda a construção histórica” (Idem, Ibidem).

A notória referência aos postulados teóricos do regime salazarista procurou desmontar os eixos do mesmo, pressupondo que toda a ideologia sustentada substancialmente em fundamentos tradicionalistas/históricos é, à partida, um logro. “Recordações de um escravo romano”, é provavelmente o texto mais radical que se encontra na VL até aos finais de 1950, sendo representativo do pendor reivindicativo (ainda que ambíguo ou implícito) de vários pequenos contos presentes na revista. Mas, “Recordações de um escravo romano” não se insere dentro de nenhum género literário específico e apresenta características próximas de um texto de carácter ensaístico, apesar de ser anunciado como um conto. Os estudantes que escrevem contos para a VL vão buscar inspiração, fundamentalmente, ao neo-realismo.

4.1 - O neo-realismo na VL A corrente literária que mais se destacou na VL é, durante o período no qual este estudo se insere, justamente a neo-realista. Desde a publicação de contos e poemas de conceituados autores que se enquadraram no movimento neo-realista como Vitorino Nemésio, Fernando Namora, Manuel da Fonseca ou Urbano Tavares Rodrigues, a par de produções de jovens autores que então se estreavam no mundo das letras. A forte influência da corrente neo-realista deve-se em boa medida à revista Vértice, que tendo o seu centro nevrálgico em Coimbra (apesar de contar com colaboradores do exterior) favoreceu a proeminência desta tendência no meio estudantil da cidade (Namorado, 2015). Sintomaticamente, em nenhuma outra publicação universitária da época se denota um compromisso tão grande para com o neo-realismo. Este movimento, que paulatinamente se foi revelando no meio intelectual da cidade durante os primeiros anos da década de 1940, só ocasionalmente foi mencionado nas páginas da revista durante os seus anos primários. Registam-se algumas entrevistas a Fernando Namora (VL, 1942, 8) e escassos textos ensaísticos a propósito da estética da tendência, maioritariamente 42

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depreciativos, rotulando o “romance neo-realista” como um “ [pretenso] espelho da vida que nos dá uma imagem vesga e falsa desta. Apresenta-nos uma série de passagens que um fatalismo económico-social persegue” (VL, 1944, 18). Nos últimos dois anos da década de 1950, as menções (em textos ensaísticos por exemplo) e contos assinados por estudantes começaram a proliferar com alguma abundância, redefinindo as prioridades literárias da publicação. Os heróis literários da revista, desde os seus primórdios sempre foram os membros da geração de 70 e outros antigos estudantes a universidade. Eça de Queirós, Antero de Quental, Miguel Torga e Teixeira de Pascoaes ocupam um espaço de destaque na VL. As páginas dedicadas à literatura, que podiam conter produções de estudantes correntes da Universidade, eram principalmente dedicadas a escritores já consagrados. Nos anos finais de 1950, a atenção dada a estes autores perpetua-se, todavia, as produções literárias dos estudantes hodiernos são relegadas para primeiro plano. Os contos neo-realistas escritos por estudantes da universidade que foram publicados pela VL possuem atributos semelhantes às obras inseridas na primeira fase deste movimento (vd. Torres, 1977: 10-19). O ambiente e os personagens são quase exclusivamente rurais, a linguagem empregue é limpa e directa. Tome-se o exemplo dos contos de Manuel Mansilha. Em “Crónica da Aldeia”, o autor descreveu as vidas de várias personagens que habitam num pequeno meio rural, caracterizando as suas vidas como duras e exigentes, ao mesmo tempo que toma estas vicissitudes como intrínsecas à própria condição actual da vida rural: “A rudeza dos habitantes de Mondego é reflexo da serra e fruto dos campos. È preciso compreendê-la. Como a terra, também eles carecem de estrume, de viver à chuva e ao vento. Está-lhes no sangue como nas seiva nas plantas. Por isso o tio Frederico Respiga nas pedras. O Mouco batia na mulher, o senhor Emílio Pedala filosoficamente em busca do jornal e o Armindo não se importa que a filha vá à fonte, à noitinha” (VL, 1959, 80).

Este pequeno texto de Manuel Mansilha, que encera com excerto citado, não é o melhor exemplo da sua produção literária como autor neo-realista. Já o seu conto “Vindimas” revela uma escrita mais fluida e elaborada, próxima do neo-realismo da primeira fase, ao utilizar figuras de estilo habitualmente empregues pelos autores desta tendência, como a sinestesia e a metáfora. Ao estabelecer uma dicotomia entre

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labor árduo e um certo hedonismo, o autor volta a deixar bem claras as suas inspirações literárias: “E os bois que, pacatamente, e a passo de boi, arrastam a dorna enquanto o carro assobia e as videiras cospem lágrimas de desgosto por lhes roubarem os cachos – filhos, como os filhos da gente, levaram um ano a criar e agora vêem partir para serem espezinhados num lagar.” Ainda se a videira soubesse que aquelas uvas vão ter um fim digno. Vão ser vinho que pode muito bem, subir ao Altar!” (VL, 1959, 85)

O diálogo empregue neste conto, procura também aproximar-se dos trejeitos verbais característicos da linguagem rural: ”-ò tonho, despeja lá esta cesta. -Ai filho da mãe…avia-te que já tenho o regaço a abarrotar. -ó tiazinha, isto não é uma sementeira. Olha-me para esses bagos que estão aí no chão! -Eh rapariga, parece que andas à caínça. Num vês o respigo que deixavas neste barbo, Quase uma videira. Raios te partam! Vê se te faz minga abrir-te os olhos. [sic.]” (Idem, Ibidem)

O recurso habitual a expressões populares, subordinado à tentativa de procurar reproduzir literariamente a linguagem popular de um modo fiel, foi uma das ambições dos autores neo-realistas. Vejam-se os mais representativos romances da primeira fase neo-realista: Gaibéus (1939) e Esteiros (1941). Por fim, o autor revela que a escrita deste conto foi inspirada por acontecimentos que ele mesmo presenciou, tornando este pequeno texto ainda mais próximo das obras neo-realistas da primeira fase, que, de acordo com os seu autores, também foram baseadas em experiências, que activa ou passivamente testemunharam: “Tudo recordo e pareço compreender melhor deste miradouro distante. Daqui parece maior o homem rude que é um gigante no seu trabalho suado. Torna-se escabroso o caminho das rogas, Chegam a até mim os acordes da concertina, ferrinhos do bombo ferrinhos e bombo, como se fossem trazidos preguiçosamente, docemente, por um barco rabelo. Por isso eu recordo os barcos rabelos. Por isso eu recordo os Muros e Mondego.” (Idem, Ibidem)

Para além destes contos, Manuel Mansilha publicou na VL, “Homens da Serra”, que seguindo o mesmo modelo de “Vindimas” descreve o modus vivendi de uma família de pastores. “A Montanha” de Torres Neiva, relata história de uma 44

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família de pastores que habita a região agreste dos montes das beiras. Dando principal enfoque ao filho do pastor, um jovem que devido às exigências que lhe são impostas se vê obrigado a comportar-se como um adulto. O autor traça o perfil psicológico do personagem recorrendo ao binómio adulto/criança, em contornos reminiscentes de Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes: “Quim, começou a acompanhar o pai nessa ronda dos pinhais. O Quim. Catorze. Quinze anos quando muito. Uma varita adolescente de marmeleiro na mão e o casaquito aos ombros como os homens à vinda do trabalho. E aqueles olhitos a entrarem por meio dos pinheiros, com duas rugas em arco na testa. O pai em letra minúscula” (VL, 1961,122).

O grosso dos contos neo-realistas inseriu-se dentro da categoria da primeira fase do movimento, ou seja, partindo de um cenário rural, com recurso a uma linguagem vernacular, procura recriar os retratar a dureza da vida campestre, contrapondo-a com rasgos poéticos que constroem um padrão consideravelmente mistificado do trabalhador rural. Portador de uma dureza que lhe permite suportar o trabalho diário e as desgraças que o rodeiam, mas, em simultâneo, também uma alegria típica de um bon vivant. Já em “Uma história para os pobres”, Teolinda Gersão, criou um conto que será mais facilmente enquadrável na segunda fase do movimento, não só por eleger a cidade como o palco da acção, mas principalmente por recorrer a uma ironia excessiva que extravasa o estilo de escrita característico dos autores neo-realistas tradicionais. A autora apresenta (fazendo justiça ao título) o conto como uma história para pobres e que “por isso nem sequer é história. Apenas que se abre – lá em cima, nas águas furtadas – e se torna a fechar sobre o escuro. Começa aí. Mas acaba aí. Não é história” (VL, 1959, 96). Após a introdução, é identificado um dos protagonistas, Pedro. Que caminha pelas ruelas de um bairro de lata até entrar no seu casebre. Chove copiosamente. Ao entrar em casa, Teresa, a sua mulher, atira-lhe uma toalha feita de remendos para que este se seque. Quando descalça as meias, Teresa constata que estas estão completamente rotas. Teresa não consegue manter-se calma, devido à chuvada intensa que abala o casebre. “Agora ela está sentada num joelho bicudo, a chuva bate no alboio [(alpendre)] como se pedisse para entrar.” O vento, uivante, entre pelas frinchas da casa, e Pedro imita-o assobiando, “num sopro fininho.” Teresa diz que vai fazer um café:

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Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962) “A Teresa enche a fogueira a cafeteira e a põe-na no fogão do petróleo. Álcool….álcool Aqui está o frasco na prateleira dos livros. Oh, vazio. Mas há perfume. “Channel” Um bocadinho chega, só para acender o lume. E depois, até o chá fica perfumado quando daí a pouco eles o beberem, pelo mesmo copo de plástico.” (Idem, Ibidem).

Enquanto prepara o café, Teresa relata-lhe o seu final de tarde, enquanto Pedro esteve fora trabalhar: “Eu estive a ver chover, sentada num alboio. Macia, Macia. Lá em baixo na rua. Passavam guarda- chuvas. Havio-os de todas as cores, eram pequenos cogumelos errantes. Os candeeiros eram estrelas. E os faróis dos carros, pirilampos. A rua era um jardim [sic.]”. Quando Teresa metaforiza o ambiente urbano em elementos campestres pode estar a indicar que o casal se deslocou da aldeia para a cidade. Pedro, recorda-se, subitamente da comida que trouxera para o jantar: “Que estúpido que eu sou. Então não me esqueci dos rissóis? Vinham tão quentinhos da loja. Do bolso da gabardine que balança o tecto saiu uma bola amassada e húmida. Não se distingue bem onde acaba o primeiro e começa o segundo.” Por fim, Teolinda Gersão finaliza o conto com o seguinte parágrafo: “O barulho da rua morre lá em baixo. Os ratos agitam-se no forro. E agora eu não sei o que dizer mais. A história, se é que alguma vez começou, acaba aqui. A porta está fechada. A luz apagou-se e há um rectângulo de noite colado no alboio.” A música da chuva pinga no telhado. E é tudo. É uma história para os pobres. Eu logo disse que nem sequer era uma história” (Idem, Ibidem).

O local da acção do conto nunca é especificado, o leitor sabe apenas que o cenário é um bairro de lata. Certamente que se passará na periferia de um grande centro urbano, como Lisboa ou Porto. No final da década de 1950, com o aumento da população dá-se um surto migratório no qual milhares de portugueses em busca de trabalho e melhores condições de vida se dirigem para os perímetros citadinos das grandes localidades nacionais. Nos primeiros anos da década seguinte, outros milhares de portugueses emigram para França. Muitos acabam a morar nos bairros de lata da periferia de Paris, os chamados bidonvilles, onde se sujeitaram a condições de vida bastante precárias (vd. Rosas, 1994: 450-460). “Uma história para pobres” tecnicamente não se pode passar nos bidonvilles, porque o surto migratório que os origina só é alavancado após os primeiros anos da década de 1960, não deixa no entanto de se adequar à situação de muitos imigrantes portugueses. Para uma interpretação mais exacta deste conto, deve-se contextualizá-lo somente na realidade 46

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portuguesa do final da década de 1950, quando o êxodo rural provocado pelo desemprego, tal como a nova vaga de industrialização dos centros urbanos e das suas áreas circundantes compeliu muitas famílias a deslocarem-se para as zonas periféricas das cidades. Os contos neo-realistas presentes na VL abordaram outros temas contemporâneos que transcenderam a austeridade da vida campestre e a precariedade dos habitantes dos bairros de lata citadinos. Em “Rotina”, foi relatado o dia-a-dia de uma família de forma melancólica e mecânica, a personagem principal é a mulher e dona de casa. Através da descrição das relações entre marido e mulher o texto procura denunciar aquilo que encara como um papel de completa subalternidade para mulher, que, acometida na vida doméstica, se encontra sujeita a um tédio permanente. “O marido saía e ia ao café. E se demorava mais, dizia sem ela perguntar nada: - O Sousa convidou-me para ir a casa dele ou – estive com o Silva na conversa até agora…Depois deitava-se ao lado dela, que não desejava nada senão dormir, repousar da rotina, esquecer-se do cansaço da rotina….” Ao domingo tudo era quase igual. Para ela a novidade do Domingo era que podia ter o rádio acesso mais tempo….” (VL, 1959, 99)

Aqui temos um exemplo de como a conduta feminina começou a ser questionada, debatida e repensada por alguns estudantes, neste caso, não através de uma posição pública expressa peremptoriamente, mas através de um conto literário de contornos neo-realistas (estilo da escrita, eleição de um tema sócio-político como enfoque principal). A crescente presença feminina na Universidade aliada a uma formação cultural e política que procurou romper com os moldes tradicionalistas associados ao comportamento das mulheres, gorou uma transformação gradual da identidade feminina, como será apresentado mais à frente, no capítulo dedicado a esta questão. O peso da revista Vértice foi de facto enorme na cultura universitária de Coimbra. Em mais nenhuma outra revista universitária nacional se registam as mesmas características que a VL exibiu. Os redactores do jornal académico inseriram artigos integralmente retirados da Vértice, acompanhados de uma nota indicadora da origem dos mesmos. De ensaios críticos sobre a obra de Fernando Namora (VL, 1958,80) a poemas de Manuel da Fonseca acompanhados de ilustrações de Manuel 47

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Ribeiro Paiva (VL, 1959, 91). O franqueado contraste entre a VL e as restantes revistas académicas nacionais é sintoma da importância que cada uma atribuiu a determinadas correntes artísticas. A Quadrante, da Faculdade de Direito da Universidade e Lisboa, publicou alguns poemas neo-realistas, mas, revela maior fascínio pelas vanguardas de carácter experimental ou “fantástico”. Veja-se os artigos vários poemas de Cesariny, O’Neil, ensaios dedicados a Kafka, acompanhados de desenhos de plástica surrealista (Quadrante, 1958, 1) ou um ensaio sobre a importância da poesia que inclui citações de Stephane Mallarmé e Conde de Lautreamont (Quadrante 1959,2), dois dos mais famosos poetas malditos que se encontram consignados no panteão dos surrealistas. O movimento surrealista, que se desenvolveu em Lisboa (vd. Tchen, 2001), sempre foi desaprovado e denunciado publicamente pelos neo-realistas, levando a um litígio recíproco, o que talvez explique uma certa partidarização artística nas revistas estudantis. No entanto, importa referir que do mesmo modo que alguns poemas neo-realistas foram publicados na revista Quadrante, também nas páginas da VL surgem dois poemas surrealistas, um de Mário Cesariny (VL, 1959, 101) e outro de Alexandre O’Neil (VL, 1959, 93), exclusivamente. Exceptuando a menção da importância do movimento num artigo dedicado à evolução da história da arte, o movimento surrealista não teve praticamente nenhuma exposição na VL. O jornal dos estudantes católicos de Lisboa, Encontro, que também se destacou na época pelo papel de relevo dedicado à cultura, raramente menciona o movimento neo-realista, e quando o aborda, é descrito como um método artístico incipiente. Imputa aos escritores neorealistas a culpa de “acentuar as fraquezas da sociedade”, ao criticarem “impiedosamente aqueles que mais directamente por ela podem responder”. Acusando-os ainda de “se desviarem da literatura” para “o plano exclusivo da luta de classes” ao insistirem em “figuras unilaterais, boas ou más, consoante a classe a que pertencem.” (Encontro, 1962, Ano 6). O próprio Aquilino Ribeiro, que não era neorealista,

detendo

porém

contornos

estéticos

facilmente

enquadráveis

no

realismo/naturalismo, foi veemente criticado nas páginas de o Encontro. Sendo considerado um “renovador da língua até ao exagero”, obcecado com a “sexualidade e o anticlericalismo”. “Uma crítica séria e posterior arrumará muitos dos últimos volumes saídos da pena do autor de O Malhadinhas como inferioridades infelizes” (Encontro, 1959, Ano 4).

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4.2 - O existencialismo na VL A corrente literária existencialista, que marca a sua entrada no panorama literário português pelo intermédio da obra do autor Virgílio Ferreira no princípio da década de 1950 (Saraiva, Lopes, 2000: 1091; Sacramento, 1968: 64), sustentou-se na escola do pensamento filosófico existencialista. O existencialismo é uma corrente filosófica caracterizada pela crença de que o pensamento filosófico começa pela existência do ser humano como ponto de partida. Ou seja, inverte o clássico pensamento de Descartes, penso logo existo. Para o existencialismo o ponto de partida da reflexão é o indivíduo colocado num mundo a priori absurdo, confuso e sem sentido. O positivismo e o racionalismo não conseguem desvendar todos os fenómenos da realidade, a consciência humana e a existência são algo sem aparente explicação. Cabe ao homem, através da auto-reflexão tentar transcender a angústia e as dificuldades que se lhe apresentam. O existencialismo (vd. Colette, 2007) foi uma corrente que teve o seu inicio no pensamento do filósofo dinamarquês do século XIX Soren Kierkegaard e que através do século XX foi sendo adoptada – e modificada – por outros filósofos. Edmund Husserl, Martin Heidegger, Jean Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir foram os autores mais representativos do existencialismo (Emanuele, 2001: 236-245) Alguns romancistas, como Dostoievski, Tolstoi e Kafka foram considerados existencialistas. A utilização do termo existencialismo como corrente filosofia/literária que procura englobar todos os autores citados surge apenas no pós-segunda guerra mundial. Os filósofos ditos existencialistas foram assim categorizados dado ao facto da questão da existência ocupar um papel central na sua obra, apesar das inúmeras diferenças que apresentam. Os existencialistas renegam a capacidade que as ideias e filosofias académicas, bem como o conhecimento científico generalizado, têm para explicar todos os mistérios relativos à existência humana e ao absurdo da vida quotidiana. Considerando-nas demasiado afastadas das experiências reais, e por isso mesmo, utópicas. Para os existencialistas é na própria vivência que se encontra a chave para a felicidade humana. De acordo com Alexandre Morujão:

“O mundo deixa de ser uma teia de relações matemáticas ou matematizantes, ligando exteriormente fenómenos esquemáticos, apresentados a um sujeito esquemático também é, por isso mesmo, utópico. Volta a existir mundo para o homem em que as

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Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962) palavras destino, liberdade, opção, risco e fé possuam um sentido; em que o outro, o próximo, se ergue prenhe de significação; em que fazer filosofia não se resume a sistematizar o saber positivo, nem em reflectir sobre as condições lógicas da sua possibilidade, voltando costas à vida, construindo um sistema em que tudo é explicado menos a existência. E nestes anos da tragédia que o mundo sentiu tão abandonado, em radical soledade, tornou-se mais patente ainda esse desejo do concreto, do real em tudo a sua plenitude de que homem carece para viver” [sic.] (Morujão, 1954: 22-23)

Dada a diversidade do pensamento existencialista os únicos autores que irão ser referidos são Jean Paul Sartre, Albert Camus e Simone de Beauvoir, expoentes máximos do existencialismo francófono. Ademais, são também os únicos que para além de filósofos são romancistas e gozam de considerável espaço nas páginas das publicações universitárias portuguesas do período 1958-1962. Ao contrário da revista Vértice, que devido à sua ortodoxia neo-realista categoricamente rejeitou o existencialismo ao rotulá-lo como uma teoria individualista e afastada da realidade (Ramond, 2008: 375-376), o mesmo foi recebido com entusiasmo pela VL. Apesar de algo escassos, os artigos relativos ao existencialismo são reveladores de exultação para com o movimento, em particular para Albert Camus. Em 1956 a revista aborda pela primeira vez o existencialismo, num artigo sobre Jean Paul Sartre onde a sua teoria existencialista é exposta em traços sintéticos (VL, 1956, 72). No número seguinte surge um artigo dedicado Albert Camus que toma o romance existencialista como o verdadeiro romance moderno. “A literatura moderna é portanto uma literatura problemática, como problemática é a existência actual. A estabilidade dos séculos anterior tornava a criação literária uma tarefa de certo modo aprazível.” Este ensaio, procura tentar ultrapassar o aparente negativismo da obra de Camus: “Contudo, descobrir nela apenas pessimismo seria negar-se a compreender a missão de uma literatura que responde à realidade da época” A Peste (1961), a obra de Camus que este texto analisa, relata a história de uma cidade argelina sitiada pela peste bubónica. No decorrer do romance as vítimas da peste vão morrendo arbitrariamente. Um padre morre quando perde a fé. O personagem principal, o médico Bernard Rieux que desde o princípio do romance cuida de doentes, chega incólume até ao final. Quando a peste finalmente começa a desaparecer da cidade, o amigo de Rieux, Rambert morre subitamente (vd. Camus, 2006). Tudo é absurdo e inexplicável. O ensaio

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dedicado a este livro de Camus, concluiu com o derradeiro propósito do existencialismo, através da auto-reflexão o homem lograr a emancipação: “Viver não basta, nem lutas bastam tão pouco, mas acima da vida e da luta deve realizar-se uma união que não pode definir-se, uma união que Camus ainda desconhece, mas aos poucos parece descobrir. Veja-se agora o que diz na Peste, uma das personagens Rambert: “Sei agora que o homem é capaz de grandes acções mas se não é capaz de um grande sentimento não me interessa (VL, 1956, 73).

Após a morte de Camus em Janeiro de 1960, ocorrida três anos após ter recebido o Prémio Nobel da Literatura, a VL publica “Albert Camus ou o Absurdo e a Saga”, um ensaio de Carlos Pereira de Carvalho. O autor refere que Camus tinha apenas uma missão: viver. “Viver e sentir humanamente com os homens, Sinceramente. Humanamente sofrendo e vivendo com os homens. Amando com os homens. Odiando com os homens.” Num mundo novo, o mundo contemporâneo do pós segunda guerra mundial onde mais nada faz sentido após a barbárie. “A sociedade absurda da negação do homem. O vegetar constante. O amarfanhadinho quotidiano. O nada. E uma sociedade de anónimos escravizados.” A tecnologia e a ciência falharam, quando prometeram à humanidade a optimização do seu modo de vida. “Um século de limitações ao homem. De entraves. Opressão. Negações. Aniquilações. Absurdo. Um mundo absurdo.” O ensaio referencia passagens O Mito de Sisifo (1941) e A Peste (1947) para melhor ilustrar o pensamento existencialista de Camus. “Todos serão aniquilados pelo hálito maldito da doença. Embora se lute. Embora haja um trabalho insano para suster a epidemia. De nada vale. O homem é vencido e aniquilado” (VL, 1960,110). Só através da procura do sentido da sua existência, da auto-reflexão, do diálogo, de um processo libertação que até o próprio Camus desconhecer, o homem conseguirá alcançar a felicidade: “Absurdo total. Nem esperança. Nem amor. Nem Deus. Tudo negado. Tudo negado por um processo humano, histórico. Em que Camus se filia. Mas há que vencer o absurdo. Há que libertar o homem. Há que dar-lhe felicidade. Ele que se encerre em si. Ele, que é a única realidade, que se feche. Que se pense. E como a Fénix ele tirará de si o que lhe falta. È de si que virá a felicidade. Ele próprio encontrará a solução. Bastalhe o impossível (Idem, Ibidem).

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Também em Encontro, numa edição do jornal emitida no mesmo mês em que Camus morreu, se pode encontrar um texto sobre a obra do autor argelino que se assemelha ao ensaio de Carlos Pereira de Carvalho. A mesma preocupação com a luta pela dignidade humana num mundo sem sentido é tomada como o derradeiro propósito da obra literária de Camus. A Peste é mais uma vez eleita como o ponto de partida para a análise das contradições aparentemente insuperáveis da existência: “No mundo há crianças que sofrem, e a revolta em Rieux é um imperativo. A sua luta é um perpétuo anátema lançado a um universo sem sentido. Assim de uma atitude negativa, desentranha-se um magnífico ardor combativo. Há limites para a injustiça (Encontro, 1960, Ano 4). A Peste parece de facto, ter sido uma obra bastante acarinhada pelos estudantes da época. Em “Do Zero Até Zero” o único conto existencialista assinado por um estudante publicado na VL, sobressai uma passagem que denota uma possível leitura presente da obra de Albert Camus. Este conto de Alfredo Rasteiro, narra a história de um rapaz entediado com o seu círculo de amigos, a sua família e com o percurso académica. Com a vida, de um modo geral. “Já não tinham interesse para si as obrigatórias aulas aborrecidas de mestres enfadonhos. Já não tinham interesse para si as conversas com conhecidos nem as piadas trocadas à mesa do café. Deixou de conviver com os amigos e cada vez mais procurou a solidão da noite.” Durante uma das suas passeatas nocturnas, vê uma mendiga em andrajos a tossir constantemente. Ajuda-a a sentar-se na borda do passeio. Ela diz que tem fome e ele dá-lhe laranjas. Vendo-a a tiritar com frio oferece-lhe a sua capa do traje. Afasta-se dela e caminha para longe, para depois divagar em pensamentos lúgubres. “Absorto, ia pensando na sua rota capa dada a uma mendiga que tinha frio (VL, 1960,110). Assolado por dúvidas, emoções irracionais, e um estado de profunda desinquietação, o estudante universitário entra em estado de puro delírio: “Viu rapariguinhas de rostos angélico a atirarem-se aos braços dos homens, temendo se acabe o mundo. Velhos e velhas tísicos e nus e crianças a pedir esmolas. Mulheres que acabam de parir fremem de gozo se o médico ou parteira lhes lava os genitais. Homens depravados que vieram de manicómios. Empreiteiros, encarregues de obras, suicidas, assassinos profissionais. O seguro paga. Vira cadáveres a boiar em tanques de formol e outros, empestado de glicerina, esquartejados cheios de larvas de varejeira a bulirem. A apodrecerem em mesas de mármore. Era este o mundo em que teria de viver. Sorriu” (Idem, Ibidem).

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Este ostensivo cortejo de pormenores grotescos, através do qual o autor procura fazer sobressair o suposto absurdo da existência é reminiscente das passagens mais violentas de A Peste. As visões ocupam-lhe todo o pensamento e atenção, distraído, o estudante deixa-se atropelar por um automóvel. “Deitado de costas no meio do asfalto continua a sorrir. Indiferente ao polícia que atrapalhado tira notas e faz perguntas, continua a sorrir” (Idem, Ibidem). O existencialismo de Sartre e Camus que em parte surgira como uma resposta aos horrores da segunda guerra mundial, ao colonialismo, e à opressão política e social, foi ademais aproveitado por uma juventude estudantil em mutação que ambicionou romper com os ditames da sociedade tradicional e antiquada. Um facto que se verificou um pouco por toda a Europa. Em Portugal, o existencialismo marcou entrada na produção literária propriamente dita através da obra de Virgílio Ferreira, como já foi referido, todavia, as publicações estudantis da época não mencionam o nome do autor Português, optando por abordar apenas os consagrados existencialistas estrangeiros. Camus e Sartre são os predilectos (vd. Encontro, 1960, Ano 5, VL, 1961, 124). O existencialismo procurou continuar a combater a mesma ordem social que o neo-realismo, deixando de lado as descrições objectivas da realidade e virandose para um subjectivismo introspectivo. Ao contrário do neo-realismo que elegia a realidade material como o foco da sua atenção, o existencialismo encara a questão da existência como a única que poderá resolver os problemas da humanidade. Num artigo presente na revista Quadrante intitulado “A Crise da Juventude” encontram-se plasmadas as dúvidas que assolam o jovem moderno. A crença positivista na ciência como factor inevitável do progresso contínuo foi estilhaçada após a violência das guerras mundiais. “A evolução do animal racional” modelado pela experiência conduziu-o à amargura. O jovem de hoje surge-nos amargurado.” Um jovem que se encontra separado da velha sociedade. “Outros apelidam desprezivelmente de existencialista, de modernistas, de inconscientes todos os que não seguem a cartilha velha, bafienta e cheia de bolor que orienta o seu conformismo.” (Quadrante, 1959, 2). Da mesma forma que a revista Quadrante submerge as dúvidas existencialistas no quadro das preocupações e motivações comportamentais da juventude portuguesa, a VL segue o mesmo modelo, fazendo no entanto uma análise mais profunda, ao assumir a delinquência juvenil (perpetrado por jovens burgueses) como uma resposta irreflectida para com o modelo social vigente. “Sendo assim, parece-nos que a 53

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verificar-se em Portugal um tal surto de delinquência este seria [proveniente] dos bairros de Alfama ou da Mouraria 8, e não da jovem e ociosa burguesia [sic.] (VL, 1959, 89) ”: “Essa juventude que temos falado, e que constitui um grave problema para os governos – reúne-se em bandos, no instintivo desejo de sentir o bafo acalentador da solidariedade; e, na ânsia de se vingar de uma sociedade que ela, embora inconsciente, sente no próprio sangue como sendo culpada do descalabro, verificando-se, dentro e fora de si, essa juventude dizíamos torna-se cruel: atestam-no uma série de assaltos, roubos e violações” (Idem, ibidem).

A angústia sentida pela juventude foi interpretada como uma reacção emocional

legítima

a

uma

sociedade

opressora.

Porém,

este

profundo

descontentamento deve ser subordinado a um criterioso sentido crítico e, igualmente, ao sentimento de responsabilidade, para que se evite cair na violência e no vandalismo. “Precisamente a responsabilidade, no nosso entender, constitui o traço que distingue a juventude que falamos em primeiro lugar desta última [sic].” A angústia implica uma tomada de consciência que permita a revisão dos valores sobre os quais se alicerça toda a estrutura social. “Esta angústia não é definitivamente mais uma certidão, a juntar à irreverência das maneiras de ser ou de vestuário.” (Idem, Ibidem). Já o Encontro, encarou o descontentamento juvenil como uma ingerência da cultura estrangeira cosmopolita. O rock n’ roll, as estrelas de cinema, bem como as “meninas de calças e despenteadas a ler Sartre e Dali [sic.] ” são os verdadeiros sintomas de uma sociedade em decadência (Encontro, 1958, Ano 3). 4.3 - Poesia A poesia, mais do que o conto ou o ensaio, sempre obteve um espaço de grande destaque nas páginas da VL e nas restantes publicações e suplementos juvenis da época, tal como nas outras publicações académicas nacionais. Desde os primórdios que a revista da academia de Coimbra dedicou pelo menos uma página à publicação de poemas em praticamente todos os números. Alguns pertenciam a autores exteriores à AAC (maioritariamente autores nacionais clássicos mas também 8

Bairros pobres de Lisboa.

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poetas correntes), outros foram assinados por estudantes universitários, alguns usando pseudónimo. Alguma da poesia (exclui-se a de cariz amoroso ou sentimental, que representa a maioria) publicada na VL reflecte uma evidente influência das correntes artísticas referidas anteriormente, ou seja, as tendências neo-realistas e existencialistas. Num ensaio intitulado “Do menosprezo pelos poetas”, de Henrique Lima Freira, o autor inicia o seu texto com uma citação de Soren Kierkegaard, de seguida descreve o poeta como um individuo solitário, condenado à “fatalidade de percorrer um caminho implacável, de se apresentar revestido duma configuração que lhe impõe desajustamentos e inconformidades da conduta, e lhe empresta um sotaque, um toque” o poeta pertence a “uma raça que o diferencia da normalidade quotidiana dos outros”. E ele é um “estrangeiro na sua própria vida 9, por demasiado familiar do mistério e do abismo” que não “pode surgir com naturalidade na assembleia dos homens que vivem “todos os dias iguais” sem sonhos que valham uma estrela cadente” (VL, 1959, 89). O poeta, descrito como o existencialista por excelência, submetido à inquietação constante, que, ao praticar a solitária e autoreflexiva arte da poesia se fecha sobre si mesmo para aí encontrar a possível resposta aos mistérios da existência e do mundo. O facto de ser poeta automaticamente distancia-o dos não poetas e leva-o a procurar refúgio de um mundo imerso na vulgaridade. Esta atitude de separação da comunidade e de rejeição das práticas consideradas triviais pode também ser encontrada em poemas igualmente publicados na VL, tais como em “Manifesto Juvenil” 10, no qual o autor, seguindo os moldes “camuseanos”, rejeita a existência de Deus (“Vão pelos parques, apanhar os bocados de Domingo, que o vosso Deus, lançou à terra”), e rejeita integrar-se no comportamento quotidiano dos seus pares (“Podem viver todos assim, enforcados de mediocridade, mastigando longamente, o bafio das tradições”) (VL, 1960,120). Encontram-se

igualmente,

poemas

existencialistas

que

reflectem

dúvidas

semelhantes às levantadas por Sartre, sobre a importância que a opinião alheia tem sobre o individuo, e de como pode, ou não moldar a sua personalidade. Em “BiDimensão Psicoburugesa11” o autor interroga-se: (“Mas no fim a questão é sempre a mesma, Nós…, nós não: eu!, (basta de armar em procurador da opinião alheia)”). E

9

Referência a uma passagem de O Estrangeiro de Albert Camus. Ver Anexo 1. 11 Ver Anexo 2. 10

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no fim conclui (“Vivo demasiado fora de mim, ou então excessivamente dentro de mim, para que possa de verdade, Ser eu!”) (Idem, Ibidem). As preocupações neo-realistas constam também em alguns poemas. Veja-se um poema12 de César de Oliveira, (“No Natal, os miúdos da minha terra, não têm brinquedos, nem árvores do Natal”). Concluído com uma frase reminiscente 13 de Esteiros (1941): (“e à noite, dormem tranquilos, julgando que foram meninos”. (VL, 136,1962). Também Manuel Alegre integrou nas fileiras da poesia oposicionista. Em “Como se houvesse festa”14, Alegre descreveu, de forma algo explícita, a conjuntura social nacional, mencionado a existência da censura (“uma nação vestida de tristeza, as notícias que trago são proibidas.”), as condições de vida da grande generalidade da população (“São homens que não sabem o tamanho, de suas mãos curvadas sobre a terra, são mulheres pálidas e magras que não sabem, desse povo que trazem na barriga”), e a expectativa de um futuro melhor (“Venho escrever no coração dos homens, a palavra esperança e a palavra liberdade.” (VL, 1961, 123). Para além destas temáticas abordadas na poesia da VL, a guerra foi também o tema de vários poemas, imediatamente após o deflagrar a guerra em Angola, a Janeiro de 1961. Em Abril do mesmo ano, a VL publica sete poemas de César de Oliveira, todos eles portadores de um patente sentimento anti-bélico 15. Poemas como ”Repto” (De que servem canhões, sem em gestos brandos, a paz pode vir ao mundo?) (VL, 1961, 130) ou “Libertação” (Ah! A liberdade do mundo universal do homem ainda por conquistar. Ah! Os ricos que num banquete ceiam os bocados melhores dos despojos da batalha de todos os homens.”) (Idem, Ibidem).

4.4 - Centro de Estudos Literários O Centro de Estudos Literários (CEL), começou por ser um esboço de um projecto de um clube literário. Em Janeiro de 1960, sob a assinatura de José Carlos Vasconcelos, é publicado na VL, “Sobre a necessidade de um clube literário”, no qual se propõe a criação de um organismo que procure valorizar a difusão e a criação

12

Ver Anexo 3. Na introdução do romance consta a seguinte frase: “Dedicado aos filhos dos homens que nunca foram meninos”. 14 Ver Anexo 4. 15 Ver Anexo 5. 13

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literária. Tomando como ponto de partida a dinamização artística pela qual a AAC passava, José Vasconcelos interroga porque razão não fora criado um clube literário: “Só a literatura não tem qualquer entidade cujo fim, seja primordialmente o seu estudo e a sua divulgação; isto na principal Universidade dum País, que, precisamente ( e julgo não ser gratuita a minha afirmação) tem nas letras – especialmente na poesia – o seu principal motivo de orgulho(…)Porque não havemos nós de ter um clube literário? As suas actividades podiam ser variadas, entre elas por serem maiores as possibilidades de realização – destacamos: conferências sobre escritores. Seguidas dum colóquio ( o qual, sempre que possível, teria a presença do escritores causa), à semelhança do que já se vem fazendo, com bons resultados na Associação de jornalistas e Homens de letra do Porto.” Porque não formarmos pois, um clube literário?” (VL, 1960, 105).

Logo no número seguinte, Armando Luiz responde ao artigo de José Carlos Vasconcelos, afirmando que a criação de um clube literário seria uma inutilidade, tendo em conta a abundância de textos literários publicados na VL e a possibilidade de uma eventual infiltração político-ideológica no mesmo clube, dado o facto que este poderia gozar de relativa independência face à supervisão da AAC. Para Armando Luiz em “nenhum outro ramo das artes é tão esquivo a ideologias préformuladas e impostas, como a literatura.” Por esta ser um “veículo de afirmação necessário ao equacionamento de qualquer trabalho da razão. Porque o espírito humano é único e não uno. [sic.] ” (VL, 106,1960). No ano lectivo seguinte (1960/1961), no qual a presidência da AAC é encabeçada por Carlos Candal, foi publicada uma notícia que confirma a criação do CEL. Na mesma assinada pelo estudante que propôs a sua criação, e que foi nomeado director do organismo, José Carlos Vasconcelos. O director do CEL alegou que com a criação do Círculo a “Academia se encontra mais próxima do ideal pelo qual devemos lutar.” E que “a cultura pressupõe esclarecimento. E quanto maiores estes forem, maior será indubitavelmente, aquela solidariedade que nos deve unir, a nós e aos alunos de outras universidades.” O CEL propôs, logo desde a sua origem divulgar a produção literária contemporânea, promover conferências sobre escritores seguidas de colóquios sobre a obra dos mesmos bem como “iniciativas tendentes a desenvolver o gosto e as aptidões para a criação literária no seio da Academia, até à organização de cursos especiais sobre diversos temas e a criação de uma boa biblioteca para uso dos universitários” (VL, 121, 1960). No mês procedente, o CEL publicitou nas páginas da VL a “futura possibilidade de passar a organismo autónomo, dado a sua 57

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relevância”, em paralelo com a organização de duas sessões dedicadas a Fernando Pessoa e uma Antologia de Poesia, no qual os estudantes puderam participar.” (VL, 123, 1961). A actividade do CEL durante os anos lectivos de 1960/1961 e 1961/1962 mostrou-se bastante dinâmica, ao promover com frequência a realização de vários debates e colóquios. Entre estes eventos destacam-se: A realização de uma conferência sobre Eça de Queirós que contou com a presença de Manuel da Fonseca (VL, 1962, 139); uma iniciativa conjunta entre o CEL e o Centro de Estudos Cinematográficos sobre a relação entre a literatura e o cinema, sob a orientação de Urbano Tavares Rodrigues (VL, 126-127, 1961); um debate sobre a mulher no romance contemporâneo, onde se abordam os “mitos femininos criados pelas preocupações e sonhos masculinos (VL, 142, 1962); a abertura de um curso sobre o romance português dividido nas seguintes lições: “Camilo e a tradição romântica do romance português”, por Vitorino Nemésio, “Naturalismo, regionalismo e reacção anti-naturalista” por Joel Serrão e Neo-Realismo e realismo crítico” por Óscar Lopes. (VL, 130-1961). Destaca-se uma conferência dada por Óscar Lopes, que se prolongou por vários dias, na qual o género neo-realista foi analisado até à medula, desde a sua evolução ao seu presente estado. O colóquio abordou vários pontos: “1-realismo (segundo o qual a arte é a própria realidade, as próprias leis do real e de tudo o que melhor determina o homem) – realismo crítico (realismo de desconstrução, na medida em que critica aspectos da sociedade) – naturalismo (segundo Luckacs esta corrente “procura degradar uma sociedade degradada) 2- Caracterização do legado do naturalismo português3-Aquilino Ribeiro – a sua evolução4-Psicologismo e neo-realismo – as suas complexas relações (o saldo positivo do psicologismo é essencialmente a dum correctivo ao naturalismo – veio portanto tratar dum campo que os naturalistas esqueceram “ (VL, 141,1962) .

De acordo com o presidente do CEL o debate foi útil na compreensão de como surgiu e evoluiu o neo-realismo na literatura portuguesa. (Idem, Ibidem). Além da criação de colóquios e conferências o CEL gerou o Concurso Literário Queima das Fitas, aberto a todos os estudantes do Portugal metropolitano e ultramarino no qual todos os géneros literários são aceites: poesia, ensaio, teatro ou conto. (VL, 143, 1962). De ressalvar também a importância do mecenato empreendido pela Fundação Calouste Gulbenkian. A Fundação, e o seu sector de leitura pública (presidido por 58

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Branquinho da Fonseca, um intelectual oposicionista), tiveram um papel importantíssimo na difusão literária nacional durante as décadas de 1950 e 1960. Criaram uma biblioteca itinerante e conseguiram articular-se com outras entidades da sociedade civil, tais como alguns municípios e associações livres (Melo, 2011: 117118). A AAC foi uma das associações que em larga medida beneficiou do apoio prestado pela Fundação Calouste Gulbenkian. O crescente descontentamento que os estudantes tinham para com a inexistência de uma biblioteca universitária (que só viria a abrir no final do ano lectivo de 1961-1962), bem como para o acesso a novas leituras, levou o CEL a pedir apoio à Fundação. Para um estudante da época era bastante difícil obter novos livros. Nas opiniões de Rui Namorado e Eliana Gersão a única maneira seria através das bibliotecas de família ou através de aquisição. E tendo em conta o estatuto financeiro do estudante, este não conseguiria comprar mais do que dois livros por mês. (Namorado, 2015; Gersão, 2015). O CEL, com o apoio da FCG, em 1961 começou a constituir a sua biblioteca. Recebeu uma remessa com livros de várias editoras, onde se salientam obras de Manuel da Fonseca, António Nobre, Eugénio de Andrade, José Rodrigues Miguéis, Anton Tchekov, Bernardo Santareno, Teixeira de Pascoaes, Florbela Espanca, Charles Baudelaire e Gustave Flaubert (VL, 1961,128). Se a impulsão da criação e difusão da literatura não académica representou uma nova prática no ambiente universitário de Coimbra, o mesmo não se pode dizer da actividade teatral, que já era praticada pelos estudantes há vários séculos. No entanto, a partir do final dos anos 30, e nas décadas procedentes, o mesmo havia de sofrer profundas e importantes transformações.

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5 - Teatro A presença do teatro na Universidade de Coimbra é bastante antiga. No século XVI, mais propriamente na época do reinado de D. João III, já se realizavam espectáculos teatrais na Universidade. Durante os séculos XVI e XVIII as produções teatrais são promovidas pelos Jesuítas, e cessam quando estes são expulsos do território nacional pelo governo pombalino. Ainda no final deste século, um grupo de estudantes beneditinos, levantou um teatro no seu Colégio de S. Bento para interpretar Moliére. Nos princípios do século XIX, um novo grupo de estudantes universitários fundou um teatro no Largo do Museu, que vem a ser encerrado pelas tendências liberais do seu reportório. (Barata, 1990: 388-395). Boa parte destes actores-estudantes virá a ser grandes activistas do Constitucionalismo. Almeida Garret é o exemplo de como um estudante de Coimbra se pode tornar actor, dramaturgo e tribuno (Cabrita, 2005: 70). Em 1836, surgiu um novo grupo de teatro, chamado Academia Dramática, que se mantém em actividade até ao final do mesmo século, sendo sucedido na viragem para o século seguinte, pelos grupos dramáticos da Tuna e, mais tarde do orfeão. Ao contrário da Academia Dramática, as práticas teatrais destes dois grupos confinaram-se a simples récitas de despedida, secundarizando a actividade teatral face à interpretação musical. É, por, ambição de alguns membros destes grupos, que em 1938 se formou o Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), uma organização que revolucionou o panorama cultural académico (Barata, 1990: 394).

5.1 - TEUC A prática teatral representou o principal pólo de produção cultural académica, animado por indivíduos oposicionistas ao regime, a manifestar-se no período anterior à renovação cultural do final da década de 1950. Contrariamente à literatura, as “artes dramáticas” encenadas pelos estudantes não assumiam um carácter explicitamente contestário. Todavia, a criação de organismos independentes dento da AAC, sintomatizou a ambição de criar uma alternativa organizacional que opere em revelia dos elos autocráticos impostos pelo governo à universidade. Aquando da institucionalização do Teatro de Estudantes da Universidade de Coimbra (TEUC), erigido das cinzas do Grupo Cénico do Fado de Coimbra (Soares, 1961: 1), a AAC – a par das outras universidades do país - enfrentava um período de perda de 60

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autonomia. Uma comissão administrativa nomeada pelo governo substituiu as direcções da Academia, até à data eleitas livremente pelos estudantes. (Torgal, 1990: 210). Dois anos depois, em 1938, é aprovado em assembleia magna a criação do TEUC, inicialmente chamado Grupo Cénico do Fado Académico, um organismo cultural autónomo, permitindo aos seus integrantes a criação de um agrupamento desvinculado da tutela governamental. O TEUC iniciou a sua actividade com poucos estudantes, ainda sem qualquer experiência teatral, à excepção de José Campos Coroa que tinha vindo do teatro amador. Os estudantes solicitaram de imediato a presença de Paulo Quintela 16 como encenador do grupo, que lhes impõe a representação do repertório de Gil Vicente como condição para aceitar o cargo. A exigência de Paulo Quintela é aprovada e a 27 de Junho de 1938 o TEUC estreia-se no Teatro Avenida com um evento denominado Serão Vicentino, onde foram representadas as peças Todo o mundo e ninguém, A súplica da Cananeia, O lavrador da segunda barca e a Farsa de Inês Pereira (Cabrita, 2005: 71-72). Durante as décadas seguintes, o TEUC consolidou a sua consagração no panorama teatral português e internacional. Através de um intenso trabalho cénico levou os Autos de Gil Vicente, de norte a sul do país e também ao estrangeiro. Porto, Lisboa, Montijo, Lousã, Cantanhede, Mealhada, Vila Real, Algarve, Açores e Madeira são cidades e regiões nacionais que presenciam as peças de teatro do grupo teatral da academia de Coimbra (vd. Soares, 1961: 47-105). No estrangeiro, o TEUC actuou no Brasil (onde fez uma tournée de oito semanas que circulou por catorze cidades), Roma, Moçambique, Angola, Grécia, Madrid e em várias cidades alemãs. De um modo geral, o grupo foi sempre recebido com aplausos, em particular na Alemanha, onde críticas favoráveis aos espectáculos são publicadas em vários jornais alemães, e posteriormente em várias publicações belgas. Provando que as diferenças linguísticas não constituíram um entrave à receptividade do público (Idem, Ibidem:117). A personalidade de Paulo Quintela teve um papel fulcral no prestígio alcançado pelo TEUC nesta fase. Através da adopção da obra de Gil Vicente como ponto central do repertório do TEUC, Quintela conseguiu criar um legado teatral que 16

Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Iniciou a sua carreira de docente como professor auxiliar de Filologia Germânica. Posteriormente leccionou cadeiras relacionadas com literatura alemã e inglesa. Era um profundo conhecedor da cultura germânica (viveu na Alemanha durante vários anos), tradutor e autor. Tinha também simpatia para com os sectores oposicionistas da sociedade portuguesa (vd. Cabrita, 2005, 40-70).

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renovou as interpretações correntes da obra vicentina e abriu espaço no cenário teatral português para o aparecimento do teatro académico. O trabalho de formação e dinamização cultural empreendido por pelo professor da Faculdade de Letras permitiu “cortar com o puro tom declamatório que imperava nas vedetas consagradas dos

palcos

portugueses.”

Ao

trazer

“novos

interpretes,

um

repertório

entusiasticamente vivido e interpretações despidas dos vícios de convencionalidades adquiridas” (Barata: 2008: 93). A inovação oferecida pelo TEUC, pareceu ser facilmente assimilável, através de uma certa instrumentalização, pela cultura oficial de Estado Novo. O estatuto alcançado de ícone cultural, associado a uma interpretação dinâmica da obra de Gil Vicente, despertou em António Ferro a vontade de integrar o TEUC na fé nacionalista do regime. Vejamos os espectáculos realizados para a Mocidade Portuguesa no momento em que se entregavam os prémios do Secretariado de Propaganda Nacional. Deveras, como José Oliveira Barata referiu: “A avaliação de Ferro era essencialmente política pois, conhecendo-se o paradigma estético que o TEUC representava, a recuperação vicentina aproximava-se, embora de forma mais informada, inteligente e cuidada, da tradição do teatro nacional, e de interpretações como a de Adelina Abranches – que Quintela considera juntamente com Villaret e Ribeirinho expoentes do teatro português – a qual, pouco tempo depois, será objecto de homenagem na Academia pela mão do TEUC” (Idem, Ibidem: 96).

O grupo, compreendera imediatamente, que só através da representação de autores queridos ao regime conseguira a consagração nacional. Independentemente das convicções políticas dos seus membros integrantes. Paulo Quintela era um convicto democrata e colaborador da revista Vértice, já Arquimedes Silva Santos (que ocupou os cargos de vice presidente e presidente do TEUC) encontrava-se inscrito na Federação da Juventude Comunista, órgão juvenil do PCP (Idem, Ibidem: 100-101). Deve-se a Arquimedes Santos, tal como a Deniz Jacinto a tentativa lograda de convencer Quintela a renovar o repertório do TEUC, levando o professor a aceitar, embora com alguma relutância, a entrada de peças do teatro clássico para o repertório do grupo (em 1955 o TEUC estreia-se na tragédia grega com Medeia). È também da responsabilidade destes dois estudantes, de acordo com José Barata

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Oliveira, a crescente politização do TEUC, quem em 1945 apoia a candidatura de Salgado Zenha (Idem, Ibidem: 110-115). O conservadorismo estético, radicado na obra de Gil Vicente e a partir de 1955, nos clássicos gregos de Sófocles, Euripedes e Ésquilo, não permaneceu inalterável, apesar da relutância de Paulo Quintela em aceitar incluir no repertório do TEUC peças de autores modernistas. Todavia, a partir da década de 1950, o TEUC desdobra-se sobre duas tendências. Por um lado, a da continuidade da representação dos clássicos, por outro, o da aceitação de autores modernos como Torga, Tchekov, Lorca ou Régio (vd. Soares, 1961: 215-301; Barata, 2008: 120). A tendência clássica foi a proeminente, e era a ela que Quintela recorria sempre que era necessário reafirmar a credibilidade do grupo. Em parte, “o prestígio granjeado pelo TEUC a nível internacional encontrava-se associado aos festivais que, sob a designação de Delfíadas, passavam a congregar os grupos de Teatros Universitários que se dedicavam à encenação de clássicos nacionais ou a teatro da antiguidade clássica.” (Barata, 2008: 121). A subalternização dedicada ao teatro modernista foi uma das razões pela qual no final da década de 1950 surge o CITAC (Círculo de iniciação teatral da academia de Coimbra), uma nova organização teatral da AAC que se ergue na defesa de um teatro modernista e experimental, contra o conservadorismo estético acerrimamente defendido por Paulo Quintela. Para além de responsável pela dinamização do teatro académico e pela renovação da interpretação dos clássicos, foi Paulo Quintela que admitiu pela primeira vez a entrada de raparigas no TEUC, facto inédito em qualquer órgão académico. Até à formação do TEUC, a presença feminina nunca se havia sentido nos organismos associativos dos estudantes (Cabrita, 2005:72). Para A.J. Soares “ a entrada de um elemento feminino num organismo académico poderia ter provocado certos murmúrios mal-dizentes, mas foi, seguramente, o grande passo para o triunfo que depressa alcançou o grupo dramático dos estudantes de Coimbra. [sic.] ” (Soares, 1961: 3). De acordo com José Oliveira Barata a inclusão feminina no TEUC não foi consumada com a simples finalidade de integrar as estudantes nas práticas teatrais e assim abrir caminho para o progressivo envolvimento das mesmas nas actividades académicas. Sobretudo, Paulo Quintela assumiu as práticas teatrais como uma possível extensão complementar do curso de História da Literatura Portuguesa que leccionava na Faculdade de Letras. Foi nessa medida que convidou as alunas a entrarem no TEUC (Barata, 2008: 79). De uma forma ou de outra, a participação das 63

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estudantes no TEUC empreendeu uma alteração nos comportamentos académicos, pressagiando os debates em torno da questão feminina que viriam a surgir final da década de 1950. O TEUC, apesar de não veicular uma expressão teatral propriamente contemporânea, serviu como estimulante da actividade cultural académica, ao congregar em si todo o peso histórico do teatro universitário de Coimbra e em simultâneo ao formar um modelo que inspirou a criação de outros teatros académicos nacionais.

5. 2 - CITAC Os primórdios do Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra (CITAC) remetem para o seu embrião, um grupo de estudantes finalistas do Liceu D. João III que se reunia em casa de intelectuais como Raúl Mendes Silva ou do professor Leitão de Figueiredo, antigo membro do TEUC. Este grupo de alunos, inicialmente chamado de Círculo Académico de Iniciação Teatral, foi conquistando apoios junto de personalidades de grande relevo cultural na cidade de Coimbra. Após um longo período de maturação, no qual o grupo vai sendo integrado e absorvido pelos estudantes de da universidade, surge o CITAC. Este círculo de teatro recentemente formado alicerçava-se na defesa de um teatro modernista, surgindo como um contraponto ao teatro clássico praticado pelo TEUC. O CITAC não surge contra o TEUC no entanto. Mas contra os alinhamentos estéticos intransigentes de Paulo Quintela e dos círculos intelectuais que dominavam a cultura oposicionista. O CITAC fora constituído por jovens que mormente buscam novos caminhos artísticos, intentando escapar à tutela de qualquer dogma estético (Barata, 2008: 163-166). Na Assembleia Magna de 26 de Fevereiro de 1956, o CITAC procura legitimação universitária ao propor-se como organismo autónomo da AAC. O pedido foi imediatamente aceite apesar da controvérsia gerada. Os membros do TEUC defenderam que a criação de um novo grupo de teatro não se justificava em virtude de já existir um organismo representante da AAC no panorama teatral português e internacional (VL, 1956, 70). O CITAC, dinamizado pela ideia de conceber uma prática dramática desvinculada da herança de Paulo Quintela, surgiu por duas razões: A vontade de criar uma actividade teatral que fugisse aos cânones clássicos e a admiração que os estudantes de Coimbra tinham pelo trabalho realizado pelo Teatro Experimental do 64

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Porto, animando pela presença de António Pedro, antigo membro do grupo surrealista de Mário Cesariny. A ligação estabelecida entre o CITAC e o Teatro Experimental da Universidade do Porto tornou-se bastante íntima, como o provam as futuras relações e actividades conjuntas encetadas pelos dois grupos. Foi António Pedro que recomenda aos estudantes de Coimbra o contributo de Vasco de Lima Couto. Passando este último a deslocar-se a Coimbra com “regularidade suficiente para dirigir os primeiros trabalhos do grupo.” (Barata, 2008: 168). O próprio António Pedro dirigiu o CITAC nas peças Dulcinéa ou a última aventura de D. Quixote e Manufactura Universal de Autómatos. Também os Ciclos de Teatro promovidos pelo CITAC convidam a Coimbra o Teatro Experimental da Universidade do Porto (VL, 1959, 94). Durante os seus primeiros anos o CITAC contou com a presença de Luís de Lima, colaborador de Marcel Marceau, encenador e actor perito na representação mímica. Tanto Marcel Marceau como o seu discípulo português actuaram em Coimbra, em 1961, numa representação de O Capote de Nikolai Gogol. De acordo com a opinião expressa na VL, o contributo de Luís Lima para o CITAC “é só por si a garantia de que as esperanças de todos nós na utilidade e no êxito [do CITAC] não serão frustradas (VL, 1961, 123) ” Ao contrário do TEUC, para o qual era difícil entrar dado às exigências de Paulo Quintela, o CITAC revelou uma grande permissividade artística ao ser menos criterioso na admissão de novos membros (não estudantes podiam entrar), bem como em gerar uma plataforma de intervenção teatral bastante abrangente. Sob a sua tutela foi criado um curso livre de teatro, que contou com o apoio da fundação Calouste Gulbenkian (VL, 1961, 123). Sob iniciativa do CITAC foi também aberto um concurso, dedicado a originais dramáticos escritos por autores amadores, de periodicidade anual (VL, 1961, 137). A dimensão alcançada pelo CITAC, tal como a abertura deste aos sectores não estudantis, atraiu inúmeros jovens, alguns destes membros do TEUC, que há muito se sentiam seduzidos pela ideia de renovar as suas actividades teatrais. Em Dezembro de 1959 foi publicado na VL um artigo intitulado “CITAC: Sente-se que trazemos algo de novo”, uma entrevista alguns membros do CITAC, na qual é revelada o impacto imediato do organismo na cultura de Coimbra: “O CITAC é um organismo com algo de novo. Sente-se que trazemos algo de novo. Vocês reparem numa coisa: não temos deslocações de vulto, ao contrário da maioria dos organismos; não temos director artístico; não fizemos portentosas

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Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962) realizações. E, no entanto, querem querer, que em quinze dias, foram aprovadas as propostas de 110 novos sócios? Temos de convir que na realidade há algo de novo no nosso CITAC. Uma entrada de sócios nesta proporção tem de ter uma causa – e é essa a causa que vamos tentar descobrir – e a que tu chamaste o “espírito CITAC”. Quer-me parecer que o que temos de novo é a representação de teatro e um certo tempo – do nosso tempo, para concretizar. Um teatro humano, um teatro próximo da Vida – poderei mesmo dizer um teatro-vida. Creio que é aí que bate o ponto” (VL, 1959, 102).

O texto discorre ademais sobre as adversidades que se impuseram: a falta de material cénico, a paupérrima condição monetária do colectivo (que sobrevive através de um regime de quotização dos sócios) e as pequenas instalações nas quais os ensaios do grupo se realizaram. Mas, sobretudo, o contributo que o CITAC veio trazer para a cultura universitária de Coimbra. “Preencheu-se uma lacuna que se fazia sentir no nosso teatro universitário: a tal de teatro moderno (Idem, Ibidem) ”. Entre 1957 e 1962 o CITAC leva a palco dezasseis peças, onde se destacaram: Nau Catrineta de Egipto Gonçalves, Mar de Miguel Torga, O Pequeno Passeio de Dino Buzzatti, Conversação Sinfonieta de Jean Tardieu e Manufactura Universal de Autómatos de Karel Chapek (Feliciano, 2006: 26) No decorrer dos anos 60, o CITAC foi englobando no seu repertório autores assumidamente mais políticos, ou politizados, como Francisco Garcia Lorca ou Bertolt Brech, vindo a ser encerrado pela PIDE em 1970.

5.3 - O teatro como instrumento de oposição O teatro tem como propósito estabelecer um diálogo mental entre os actores e a audiência, promover o debate, a reflexão, provocar reacções. Em suma, o teatro deve estimular o pensamento crítico. Tudo isto se opõe à concepção que o Estado Novo pretendia da arte em geral, procurando subordinar a actividade teatral aos seus valores intrínsecos. A censura não autorizava qualquer produção teatral que ousasse questionar os valores do regime. Os mais activos dramaturgos da época, como Bernardo Santareno ou Jorge de Sena, raramente viram as suas peças serem levadas a palco durante o regime do Estado Novo. Ora, se os textos teatrais devem traduzir a realidade circundante, “testemunhar os sonhos, as derrotas, as frustrações e as esperanças do seu tempo” como o conseguiram fazer sob a alçada de um regime ditatorial?” (Santos, 2008: 66). 66

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O resultado das políticas culturais de Salazar plasmou-se numa actividade teatral bastante débil. “Em 1957, a frequentação média do teatro por habitante era inferior a um; entre 1950 e 1970, entre as trezentas e vintes salas prontas a receber teatro, menos de um terço apresentava espectáculos” (Idem, Ibidem: 67). ” Para Jorge de Sena, o repertório dos palcos nacionais resume-se a “ uma única peça, [sempre] com o mesmo cenário, as mesmas deixas de patriotismo de coreto e de moral de sacristia, as mesmas Mistinguettes mostrando a bota-de-elástico.” (Sena, 1989: 305). Salazar tinha sobretudo receio do teatro como actividade colectiva e potencialmente política. O carácter comunitário do teatro parece “opor-se a Salazar, mas sobretudo ao sistema de vigilância instituído para proteger o Estado Novo, que sempre procurou isolar os indivíduos” (Santos, 2008: 68). De facto, o problema do público está sempre associado à discussão e à troca de ideias em comunidade. Contrariando a lógica vigente em relação à actividade teatral, surgiram várias colectividades independentes que procuraram fomentar uma democratização das práticas dramáticas. Na cidade de Coimbra, temos o caso do Ateneu. Uma associação cultural integrada, em grande medida, por indivíduos pertencentes ou afectos ao PCP. Em 1940, no mesmo ano da fundação do Ateneu, surge a secção de teatro do organismo, liderada por Arquimedes Silva Santos, um jovem estudante de medicina e antigo membro do TEUC. Deve-se ao grupo cénico do Ateneu a criação de um grupo de teatro amador, a partir de 1945, que permitiu a actores não profissionais representarem peças clássicas da tragédia grega. A representação de peças de elevado valor cultural por parte de amadores originou uma enorme onde de controvérsias e dúvidas. Os detractores desta posição afirmavam que os actores amadores (na sua maioria operários) não possuíam erudição e sensibilidade suficientes para representar tais peças. Apenas os estudantes possuíam um nível cultural que lhes permitia representar devidamente as obras consagradas. Em defesa do teatro amador, Deniz Jacinto, antigo estudante da Universidade e membro activo do TEUC, atribuiu enorme importância à representação de amadores. Pois, só assim, de acordo com Jacinto, é que este tipo de manifestações culturais chegaria com mais facilidade ao grande público (Adegas, 2011: 29). Comparativamente ao teatro universitário de Coimbra, a heterogeneidade do grupo de teatro amador do Ateneu tal como o seu repertório, assemelha-se mais ao CITAC do que ao TEUC. Apesar de ambas as colectividades terem partilhado membros com o grupo de teatro do Ateneu, o CITAC revela uma maior abertura ao público, e, tem também um carácter explicitamente 67

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mais politizado. Não só pelas peças que apresentou como pelas atitudes assumidas durante os períodos das lutas académicas. É certo que o TEUC foi composto maioritariamente por estudantes opositores ao regime, no entanto, apresentou um repertório e uma posição perante arte esteticamente mais conservadores. E, excluindo o apoio à candidatura de Salgado Zenha para a presidência da AAC, raramente assumiu compromissos políticos. Já o CITAC, inseriu-se mais rapidamente no meio estudantil, “participando nas lutas académicas, como a que marcou a reacção da AAC ao decreto 40.900.” Como notou José Oliveira Barata: “A heterogeneidade da formação cultural e política dos seus elementos encontrava na sintonia com os princípios da luta estudantil e na questionação das verdades estéticas estabelecidas a plataforma mínima de entendimento para prosseguir o programa delineado. Verificaremos como esta heterogeneidade conseguiu conciliar, ao longo dos tempos, a militância de destacados quadros políticos (muitos ligados ao PCP) com uma nova visão do trabalho cultural. O CITAC – provocando, como já vimos, alguns anticorpos junto de uma certa inteligentzia coimbrã – acabaria por, na sua diversidade e novidade de interesses, abrir a frente cultural de oposição ao Estado Novo” (Barata, 2008: 170).

Para Feliciano David, o CITAC dos anos sessenta deu seguimento ao projecto que o tinha originado. Aprofundando todavia o seu nível de qualidade artística e o engajamento nas franjas oposicionistas. Tendo sido composto por estudantes maioritariamente de esquerda, o CITAC colocou-se em sintonia com os movimentos estudantis na defesa da autonomia Universitária e na contestação ao regime que “culminaram nas crises de 1962 e 1969” (David, 2006: 26-27). Também a sua actividade teatral foi pautada por um fervor cultural explicitamente oposicionista. Vejamos a inclusão da peça Manufactura Universal de Autómatos de Karel Chapek no repertório do CITAC. O autor checo, de inspiração expressionista, concebeu este texto como um instrumento de revolta “contra a situação de uma cultura e [de] uma civilização que pode permitir uma guerra como a de 1914-1918”. Um dos aspectos do texto dramático de Karel Chapek, foi o de pretender desconstruir “a concepção maquinista e uniforme da humanidade, a redução do homem, que é ser singular e único, a uma máquina, quer através das funções sociais que se lhe atribuem quer através da uniforme igualdade com que são considerados indivíduos e pessoas” (Pedro, 2006: 39). A escolha de interpretar Manufactura Universal de Autómatos não torna inverosímil que a mesma possa ser encarada como um comentário à situação 68

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sócio-política nacional. A desaprovação da arregimentação e militarização do ínviduo e a crítica à guerra colonial (que eclodira à menos de um ano) eram alíneas que constavam nos programas oposicionistas ao regime de Salazar. Apesar das tentativas de Luís de Lima que tentaram esvaziar o CITAC do seu conteúdo político enquanto o dirigiu (Barata, 2008: 184), o grupo do teatro universitário mostrou-se impermeável a este posicionamento, revelando um comportamento literalmente indissociável da actividade política. Tanto na democratização do acesso ao teatro como nas actividades nas quais se envolveu. Os cursos de teatro, abertos a todos os estudantes e não estudantes, que tiveram inicio no ano lectivo de 1960-1961 atestam a tentativa do CITAC de integrar um vasto número de pessoas na prática do teatro amador (Idem, Ibidem: 187). Também as actividades desenvolvidas com o Ateneu de Coimbra sugerem um auxílio mútuo na difusão teatral. Na data do centenário da morte do Tchekov, o Ateneu realizou um serão onde vários dos seus textos foram representados. A sessão contou com o apoio do CITAC, que publicitou o evento. A 27 de Março de 1962 celebrou-se o Dia Internacional do Teatro. Seguidamente, no dia 28, celebrou-se a efeméride no Ateneu de Coimbra. A celebração do evento promovida pelo Ateneu contou com a participação do CITAC e do TEUC, bem como com a presença de António Pedro, que encetou uma palestra intitulada “Conversa sobre Teatro”, onde salientou as virtudes do teatro como instrumento de instrução cultural da sociedade (Adegas, 2011: 45). Convém mencionar, para concluir o capítulo, que apesar do repertório do TEUC se ter restringido quase exclusivamente às representações da obra vicentina e da tragédia grega clássica, não significa que o mesmo não possa estabelecer analogias com a sociedade da época. Aliás, esta particularidade, a da universalidade de certas questões veiculadas pelas peças de teatro clássicas, foi sublinhada pela VL. Num artigo de reflexão sobre o teatro grego. Sobre Euripedes o texto refere: “pela clareza e largueza de espírito” que possui, “pela agudeza com que estuda as paixões e o desenho nítido que sabe traçar nos caracteres, particularmente nas figuras femininas”, o teatro de Euripedes deve ser chamado de “moderno.” Para o autor “tragédia grega é um corpo cheio de vida e as concepções de que ele poderá ser objecto no plano estético, tomando para o apoio a experiência adquirida, serão inspiradas pelo clima próprio de cada época” (VL, 1958, 78) Com efeito, Medeia e Antígona, são as peças da tragédia grega que mais frequentemente foram representadas pelo TEUC (vd. Barata, 2008: 115-125). Ambos os textos apresentam 69

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mulheres fortes e determinadas, que, contrariando a sociedade em que se inserem, procuram pensar e agir consoante o seu próprio arbítrio. É possível, e não de todo despropositado, articular a preferência destas obras com a condição feminina da época. Como irá ser sistematizado no capítulo dedicado à mulher na universidade, o final da década de 1950, tal como o princípio da década procedente, testemunharam nas universidades uma reconceptualização do papel feminino na sociedade portuguesa. O teatro é uma prática artística com enormes capacidades para estabelecer um diálogo com o espectador, comunicando-lhe uma ideia política ou filosófica. Devido às dificuldades geradas pelo próprio contexto – insuficiência logística, censura – o teatro universitário prosseguiu um caminho ziguezagueante e árduo, abordando sempre certas temáticas mais delicadas com a devida cautela. Já um dos herdeiros do teatro, o cinema, mostrou-se como um dos mais eficientes propagadores de ideias e fomentador de debates no meio académico e social de então. Em particular, devido à sua universalidade.

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6 - Cinema 6.1 - O movimento cine-clubista e o cinema em Portugal Para interpretar com maior eficácia a abordagem feita pela VL ao cinema, é necessário compreender a evolução do movimento cine-clubista nacional e logicamente, as mudanças operadas nas preferências cinematográficas do público universitário. Diante da exposição da questão cineclubista, torna-se imprescindível traçar um quadro geral do estado da arte cinematográfica em Portugal e da relação dos intelectuais portugueses com a sétima arte. O cinema foi a forma de expressão artística mais popular a surgir, ou pelo menos a ser difundida em larga escala, no século XX. Se em 1895, os irmãos Lumiére ainda estavam longe de imaginar o fenómeno de massas em que o cinema se viria a tornar, as primeiras décadas do século procedente rapidamente vieram derrubar este preconceito. No decurso dos seus primeiros anos, o cinema sofreu rápidas inovações técnicas e estéticas, consagrou o seu estatuto nos meios intelectuais, e consequentemente conquistou o grande público, mostrando-se como uma das mais estimadas formas de expressão artística (Sadoul, 1960: 10-24). Com este estatuto adquirido, as estruturas do poder – em particular dos regimes europeus de carácter totalitário da década de 1930 -, viram o cinema como uma excelente forma de fazer propaganda política. Sendo o caso português no entanto, muito diferente do russo ou do alemão. Particularmente, em termos de valor estético e na relação entre o Estado e a produção cinematográfica. Divergindo dos outros regimes europeus de natureza ditatorial e de partido único, o Estado português não teve controlo directo sobre as companhias de produção cinematográficas nacionais, não estando estas portanto, sob a alçada da SPN. No entanto, apesar de não terem uma ligação formalmente directa com os organismos do Estado, as companhias de produção cinematográficas portuguesas eram dirigidas e integradas na sua maioria, por indivíduos afectos ao regime, tais como Cortinelli Telmo ou Jorge Brum do Canto (Torgal, 2011: 20-35). Independentemente das particularidades da relação do Estado Novo com a produção cinematográfica, este soube mimetizar os seus “irmãos mais velhos” europeus, apoiando a criação de dois tipos de produção cinematográfica nacional: a 71

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ficcional

e

a

documentarista.

O

cinema

ficcional

português

baseava-se

tendencialmente em narrativas históricas ou em comédias ligeiras, sendo difícil de detectar uma ideologia flagrante que o comprometesse com a “propaganda pura”. Esta “propaganda pura” era veiculada através dos documentários, que visavam “formar” o espectador” e sensibilizá-lo ao espírito nacionalista (Idem, Ibidem: 36). Todavia, nos filmes de ficção, sobressaem certos aspectos da ideologia estado-novista, enquadrados no entanto, numa lógica que os subordina à narrativa fílmica tradicional e aparentemente não propagandística. São filmes imbuídos de uma ideologia «contextual», como Luís Torgal adjectivou 17 (Idem, Ibidem: 33). Crê-se que o público português desta época, compreendida entre as décadas de 1930 e 1950, estava de um modo geral, familiarizado com 3 tipos de cinema: O de Hollywood principalmente, o cinema “oficial” português e um outro cinema de cariz comercial não americano, sobretudo francês e italiano (Ó, 1999: 208). Os cine-clubes apareceram como aspiração de uma elite cultural da classe média alta – inserida em diversos contextos: urbanos, universitários – que tem interesses cinematográficos que transcendem os do público comum. As primeiras congregações ou associações que virão a dar origem aos futuros cine-clubes nascem nas duas grandes metrópoles portuguesas (Lisboa e Porto) e depois em Coimbra. Os cine-clubes, inseridos em contextos urbanos, surgiram assim como espaços associativos “estruturados em tornos de redes de sociabilidade estreitas, estabelecidas entre grupos mais ou menos restritos de públicos de cinema ou de associados.” (Azevedo, 1997: 160). O primeiro lustro da década de 20 viu nascer as primeiras associações cinematográficas, estágios embrionários dos futuros cineclubes, que só conhecem a luz do dia após a década de 30. Até 1935, desenvolveram-se em Portugal oito cineclubes (Granja, 2013: 2), pertencendo um destes á região de Coimbra. O Cine-clube Português de Coimbra, surgido em 1931. Contudo, as actividades dos cine-clubes não são lineares e fáceis de traçar, devido a efemeridade – e ramificações de clubes ou células fragmentadas dos mesmos - de alguns. Em parte devido à repressão conduzida pelo Estado Novo a estas associações.18 Se em 1931, apareceu o primeiro Cine-clube em Coimbra, este ainda não estava informalmente associado (na medida em que a influenciaria a criar um 17

Alguns dos elementos que revelam afinidade ideológica com o regime: Personagens tementes a Deus e à moral cristã; Difusão de sentimentos nacionalistas e colonialistas; entre outras características. 18 A PIDE suspeitava que uma boa parte dos membros dos cineclubes pertencessem a organizações hostis ao regime (Granja, 2013, 40).

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organismo cinéfilo) à AAC, independentemente de muitos dos seus membros serem estudantes universitários. A difusão do cinema pelo meio coimbrão – em particular no Universitário - só viria a registar uma maior aderência, e subsequente notoriedade, durante os anos 50. Década na qual João Bénard Da Costa integra o período de “idade de ouro do cine-clubismo português” (Costa, 1991: 106). Revelando-se assim um padrão concomitante no âmbito de uma maior adesão às práticas cinéfilas. O primeiro organismo a surgir no seio da AAC como extensão sintomática da actual emergência cineclubista foi o Centro de Estudo Cinematográficos (CEC), fruto de uma pequena congregação de estudantes. Era o ano de 1958 (Granja, 2006: 64). O CEC irrompeu assim como um organismo desvinculado de qualquer actividade cineclubista, e deve apenas ser encarado como uma propagação do ideal cinéfilo ao meio universitário. Importa deixar claro, que muitos dos membros dos cineclubes eram estudantes universitários, o que provavelmente explique a importação deste ideal cinéfilo para o ambiente universitário. Os principais objectivos do movimento cine-clubista nacional podem ser sintetizados em três ideias chave: Leccionar uma instrução cinematográfica que visa preparar o espectador comum para saber ver cinema; Inculcar no espectador uma particular preferência pelo cinema europeu e dito de autor, rejeitado o entretenimento escapista proporcionado pela maioria dos filmes – conotados com o termo “comerciais” - de Hollywood, tal como os dramas arcaicos e comédias ligeiras produzidos em Portugal; Em suma: Os cineclubes procuravam fomentar um gosto pelo cinema. “Um gosto crítico, empenhado, e ligado a uma consciência política e artística. O objectivo era incentivar o público a se interessar por bom cinema. Alargar o acesso ao bom cinema ao grande público”(Cardoso, 2015). Tendo como principal sustentáculo estas três ideias base, o movimento cineclubista afirmou-se como o baluarte da defesa do cinema de mensagem. Um cinema comprometido com causas sociais e políticas. Os filmes franceses e italianos encontravam-se no topo da lista de preferência do público cine-clubista, em particular o italiano, devido à estética neo-realista. Apesar da proeminência dada a estas produções, o cinema francês e italiano não era sobrevalorizado a despeito de outras produções internacionais (Idem, Ibidem) 19 .

19

O cinema americano não era de forma alguma desprezado. Vários autores americanos figuravam no pódio dos heróis dos cineclubes, como é o caso de Orson Welles ou John Houston. Somente, o cinema

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Simplesmente estes dois países apresentavam um número substancial de realizadores que se destacaram pelas suas inovações estéticas e pelo seu compromisso com causas políticas de esquerda, em particular o italiano, onde uma parcela significativa da produção cinematográfica de autor se inseria na plástica neo-realista. Como já foi explicitado anteriormente, o neo-realismo foi a corrente artística de eleição da esquerda marxista durante o segundo quartel do século XX (Pita, 2006: 14-16), e consequentemente dos Partidos Comunistas europeus, devido a uma linguagem artística simples e directa, desprovida de excessos formais. Mas também pelo seu compromisso para com as camadas mais desfavorecidas da população. Com efeito, efectivou-se nos círculos cineclubistas uma simbiose entre arte e reivindicação sóciopolítica: “Se é por ventura excessivo ver no movimento cine-clubista que conheceu os seus anos áureos entre 1948 e 1958 uma mera extensão do aparelho ideológico clandestino do PC(P), a verdade é que este o não descurava, e que, nesses anos, o cinema ocupou importante papel como arma de batalha de ideias. Os cine-clubes deviam formar uma nova geração cinéfila, mas também uma geração que estivesse consciente que o cinema podia e devia transformar o mundo e no caso em questão podia e devia transformar Portugal. A Luta por um novo cinema português era um dos passos para essa transformação” (Costa, 1991: 107).

A adesão de membros dos cineclubes aos ideais ou à própria militância política clandestina é impossível de precisar. Só em casos específicos é que se pode comprovar esse mesmo engajamento político. Todavia, é inegável que o espírito contestatário ao regime perfilhava por uma grande parte dos membros dos cineclubes. E se uma boa parte dos seus membros não integrasse as fileiras do PCP ou do MUD, certamente seriam opositores do regime estado-novista (Granja, 2006:178). A corrente neo-realista, que paulatinamente foi penetrando nas preferências cineclubistas, viu surgir nos últimos anos da década de 1950 e no primeiro quartel da década de 60, uma outra corrente, que vem polarizar – a curto prazo - os membros dos cineclubes: a nouvelle vague francesa. Esta aparente descentralização não contribuiu para uma desestabilização do movimento cineclubista, levou apenas alguns membros a comprometerem-se mais particularmente com uma das correntes, americano, à escala macrocósmica, era tido como um tipo de cinema puramente escapista, à excepção de certos casos singulares, como já foi referido.

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não necessariamente desvalorizando outras. Sendo a corrente neo-realista a forma de expressão artística predilecta e preconizada pelos membros do PCP – e das esquerdas marxistas (Pita, 2006: 15) - é compreensível que os intelectuais cinéfilos com ligações ao partido tomassem partido desta corrente em detrimento de outras. Dentro do movimento cine-clubista da época (1958-1962), existiam portanto duas tendências, que ou se completavam, ou antagonizavam. Aquela que “defendia um “cinema moral”, de raízes democráticas, enraizando na mais genuína ortodoxia neorealista” e uma outra corrente que “proclamava um cinema afim da nouvelle vague francesa e que se reclamavam das teorias dos Cahiers du Cinema e da visão do cinema “de autor” (Costa, 1991: 114)20. Esta distinção será inclusive evidenciada em certos números da Via Latina. Entretanto, nas décadas de 1930 e 1940 foram lançadas as sementes daquilo a que se viria a tornar no futuro movimento cine-clubista, preparando o cenário cultural para o boom dos cineclubes que se deu na década de 1950. Múltiplos factores contribuíram para a consolidação do movimento cine-clubista e do cinema em geral a nível nacional. No decurso das décadas de 1940-1950 por toda Europa (com o refluxo da taxa de alfabetização) e em Portugal o cinema passa a ter uma adesão muito mais notória. Para além da falta de outros entretenimentos e da acessibilidade dos preços dos filmes, uma ida ao cinema torna-se na actividade de eleição de famílias de pequena burguesia. No final da década de 1950, o cinema itinerante levou a sétima arte a alguns meios rurais, popularizando-o pelos meios sociais mais carenciados e afastados da oferta cultural a que o público urbano tem acesso (Granja, 2006: 40-45; Azevedo, 1997: 157-160). Todavia, as particularidades dos cine-clubes criaram um núcleo de membros algo restrito. Os cine-clubes tinham problemas de aceitação pela parte do público geral, devido ao seu compromisso para com o filme artístico, pois boa parte das elites conservadoras consideravam o cinema uma arte menor e o público comum não possuía erudição suficiente para apreciar um filme-art. O meio universitário, tornouse por conseguinte, um local ideal para a disseminação do ideal cinéfilo. Durante os anos 50, o movimento cinéfilo propagou-se pela cidade de Coimbra, e subsequentemente, pelo meio universitário, apesar de apresentar um número de

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Segundo a politique d’auteur da escola francesa, o realizador é encarado como o criador completo do filme, não estando subordinado a qualquer preceito artístico veiculados por uma corrente específica. O realizador deve ser um “livre criador”.

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aderentes bastante reduzidos, de acordo com as fontes orais consultadas (Cardoso, 2015; Namorado, 2015). O Cine-clube de Coimbra – o primeiro grande cine-clube da cidade – surge em 1949, e adquire uma maior robustez durante a década de 50, actuando entre o meio universitário, onde consegue recrutar a maioria dos seus sócios (Cardoso, 2015). O CCC, assume-se como uma organização “contra o velho preconceito contra o cinema” propondo-se a “tentar colocar o cinema ao alcance de todos, bem como os meios necessários para uma formação cinematográfica consciente” (Granja, 2006: 108). O CCC, foi uma organização não universitária, sendo porém integrada por alguns estudantes, bem como por vários intelectuais da cidade. Parafraseando Rui Namorado: “ Não havia uma ligação orgânica entre a AAC e o Cine-clube, eram coisas distintas. Contudo, muitos dos membros do CEC faziam parte do Cine-clube. Havia um intercâmbio informal portanto.” (Namorado, 2015). Paralelamente às actividades do CCC, em finais de 1952, surgiu em Coimbra um outro cineclube. O Cine-clube Universitário (sob a curadoria da Mocidade Portuguesa), com a intenção de fazer exibições do teatro da nova Faculdade de Letras (FLUC) 21. Todavia, este cineclube nada tinha a ver com o movimento cineclubista, que se queria isento de qualquer ideologia e que funcionava por princípios cooperativos. O Cine-clube Universitário pode ser visto como uma tentativa do regime de fazer frente à vaga cine-clubista (Granja, 2006: 50). O espírito cinéfilo alastrou-se pelo meio universitário coimbrão, contagiando estudantes que intervêm em duas organizações distintas: o Cine-clube de Coimbra (CCC) e o CEC. Como já foi explicitado, estas organizações encontravam-se formalmente desagregadas, partilhando apenas o ideal cinéfilo e vários membros constituintes. O Cine-clube de Coimbra foi uma organização cinéfila independente que se auto-sustentava através de um regime de cotas (como todos os outros cineclubes nacionais), sendo o CEC uma organização que funcionava sob a tutela académica e que procurava valorizar a importância artística do cinema, socializandoo pelo meio académico e contextualizando-o categoricamente ao lado das outras artes. Do ponto de vista técnico, o CEC era uma organização de mera difusão cinéfila (dispunha de biblioteca, promovia debates) e de tentativa de impulsionar a criação cinematográfica no meio estudantil, não se dedicando à exibição cinematográfica, encontrando-se esta prática ao encargo do CCC. No entanto, deram-se excepções no

21

Note-se que a FLUC havia sido recentemente inaugurada (a 22 de Novembro de 1951).

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CEC, no qual o organismo da AAC realizou projecções de filmes experimentais realizados por equipas cinéfilas amadoras da cidade e do meio académico (VL, 1960, 119). É essencial estabelecer uma ligação - tendo como intermediários um grupo sócios/estudantes partilhados - entre o CCC, o CEC e a AAC para melhor se compreender a abordagem da VL à questão cinematográfica. O contágio cinéfilo propagado por entre as associações mencionadas, interligou-se de forma a que algumas páginas de cinema da VL possam ser assumidas como uma latente – e não oficializada - propaganda cine-clubista, tendo em conta que partilhava os mesmos conceito estéticos e por vezes publicitavam futuras sessões de cinema ou entrevistas a membros dos cine-clubes. Os textos de cinema presentes na Via Latina foram, praticamente na íntegra, responsabilidade de membros do CEC. Autores que propugnavam as ideias e os conceitos estéticos difundidos pelos cine-clubes, plasmando-os nas páginas da Via Latina. Encontram-se inúmeros artigos que comprovam esta adesão., ao pugnarem pela defesa do cinema europeu, ao rejeitarem o cinema “alienante” e também quando apelam a uma urgente reforma do cinema português.

6.2 - A crítica de cinema na VL Para melhor depreender as características determinantes da crítica cinematográfica da VL, é necessário apresentar um breve quadro geral da crítica cinematográfica em Portugal. Antes da consolidação da crítica especializada durante a década de 1930 e no decénio seguinte - através de publicações exclusivamente dedicadas ao tema (O Cinéfilo, O Animatógrafo, A Imagem, A Kino), foi o curto ensaio de António Ferro, (admirador do movimento modernista e futuro dirigente da SPN) “As Grandes Tragédias do Silêncio”, de 1917, que criou a válvula de arranque para o aparecimento da crítica cinematográfica nacional. Os intelectuais cinéfilos desta geração (como António Lopes Ribeiro, Leitão de Barros, Cottinelli Telmo, Jorge Brum do Canto) foram os responsáveis pela difusão e consensualização do cinema na sociedade portuguesa de então. De origens e formações diversas, provinham todos da matriz comum do mundo das belas-artes, partilhando uma paixão pelo cinema e também pelo ainda recém-empossado Estado Novo que, acreditavam, “ser tão capaz de os entender como eles de se entenderam nele”. Por 77

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conseguinte, a crítica cinematográfica deste período encontrava-se ligada à moral política vigente (Ribeiro, 2011: 209-210). Tendo como alfobre as diversas vagas cineclubistas, durante as décadas de 1940 e 1950, surge uma nova crítica cinematográfica em Portugal, que desde cedo assume um carácter contra-corrente face à crítica “oficial”. Estes panfletos distribuídos pelos cine-clubistas restringiam-se exclusivamente a meios clandestinos e académicos. A nova crítica cine-clubista estava isenta de qualquer tipo de influência ideológica e artística da propaganda nacional, e encontrou as suas referências em publicações estrangeiras europeias, vindas de França (Positif e Cahiers Du Cinema), Itália (Bianco e Nero e Cinema Nuovo) e também de Inglaterra (Sight and Sound).22 É na senda desta óptica cinematográfica europeia que a crítica cineclubista nacional se constrói, e logo, a crítica do CEC e da VL (Cardoso, 2015). A importância dada pela VL ao cinema, teve os seus antecedentes, num período muito anterior aquele a que este estudo se dedica. No número 13 de 14 de Fevereiro de 1943, encontra-se um artigo intitulado “O cinema – uma arte incompreendida”, que revela uma preocupação com o desprezo dado ao cinema – e ao estado da arte em geral - a nível nacional e académico. O texto atribui o principal sintoma que causa o desdém com o qual o cinema é encarado: “È uma arte nova.” E depois de se alongar em discrições referentes ao ponto de vista que vários intelectuais pro-cinema conclui que o “público geral encara o cinema como pantomina” (VL, 1943, 13). Este é um dos poucos artigos anteriores 1950 que se encontram na VL relativamente à sétima arte, sinalizando no entanto uma preocupação para com o advento da arte cinematográfica. Estes novos críticos viam no cinema determinadas capacidades artísticas que possibilitavam ao mesmo uma equiparação em termos qualitativos ao lado das outras artes. Independentemente da gradual importância que é dada ao cinema durante a década de 1950, e só após a criação do CEC (Janeiro de 1958) que se verifica uma adesão mais fiel ao ideal cinéfilo de inspiração cineclubista. No mesmo número onde foi anunciado a criação do CEC, encontra-se publicado um artigo sobre a poética do cinema, que evidencia as virtudes particulares 22

Exemplares das revistas mencionadas podem ser consultadas na Casa das Caldeiras de Coimbra, localizada na Rua Padre António Vieira. O espólio bibliográfico do Clube de Cinema de Coimbra encontra-se neste edifício, na sala pertencente ao curso de Estudos Artísticos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. A vasta documentação foi doada pelo Doutor Abilio Hernandez Cardoso à instituição em questão.

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da sétima arte, caracterizando-a como uma arte independente, e portanto, com um léxico próprio: “O cinema, arte de ficção que se revela por processos plásticos, meio de expressão novo e exuberante, apaixonante e apaixonado, descobre a poesia no momento em que a imagem é mais alguma coisa que a simples e neutra realidade que o vazio objecto, quando a imagem é um significado……Sendo a poesia do cinema essencialmente visual (...).A magia do verbo tem lugar, mas deve subordinar-se, integrar-se num todo…” (VL, 1958, 77).

A perspectiva do cinema poético é facilmente integrável no ideal cineclubista, pois sublima o cinema como arte visual, não identificando a narrativa fílmica como uma simples extensão da sua irmã literária, e sim como uma arte independente que cria uma linguagem própria, sui generis. Este artigo constitui um sinal da nova época que se avizinha nos anais da VL. A partir da qual o cinema passa a ter um papel de relevo nas páginas da publicação. Veja-se a abundância de informação sobre debates de cinema, exposição de pormenores técnicos relativos à concepção cinematográfica (plano, cenas, travellings), crítica cinematográfica, notificação de futuras exibições, espaço de debate sobre a integração do cinema na cultura académica e claro, textos sobre as actividades do CEC. Os textos de cinema foram assinados de membros do CEC, onde se destacam Emídio Fernandes (o membro mais activo) e Alfredo Tropa (director do Centro), que escreviam criticas, artigos de carácter ensaístico ou incluíam citações e excertos textuais (alguns bastante extensos) de cineastas/teóricos de cinema de grande estatuto, como André Bazin 23 , Pudovkin ou Eisenstein. Transmitir informação relativa às particularidades técnicas do cinema foi portanto, uma das preocupações do CEC na VL. Embora estes textos sejam algo parcos têm a sua importância. São apresentados ensaios de teóricos do cinema como Abel Gance, ou dos supracitados Bazin, Pudovkin e Eisenstein. Salientam-se os excertos presentes no nº 98, nos quais se aborda o conceito de Montagem. Distinguindo esta última do plano-sequência (VL, 1959, 98). Do ponto de vista da crítica cinematográfica, o CEC foi altamente influenciado pela perspectiva cineclubista, assim sendo, é expectável que a 23

Principal influência da revista de critica cinematográfica francesa Cahiers Du Cinema. Uma das leituras de eleição dos cineclubes.

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abordagem tenha pontos, no mínimo coincidentes com os do público cineclubista. Traduzindo-se esta influência na preferência pelo cinema europeu, neo-realista ou de “autor”, e na rejeição do entretenimento escapista, dito “alienante”. Na visão de Eliana Gersão:” O que nos interessava não eram as estrelas do cinema americano. A partir desta altura interessa-nos mais o nome do realizador do que dos actores. Era a época do chamado cinema de mensagem” (Gersão, 2015).

6.3 - O cinema internacional: De Hollywood à Europa Dois dos géneros mais populares de cinema da época o western e o filme de guerra hollywoodiano, foram encarados com uma perspectiva sofisticada e criteriosa, que deita por terra os estereótipos habituais dos filmes de acção tipificados. Tomando posição ao lado dos filmes que apesar de pertencerem a estes géneros, preferem rejeitar as convenções habituais que são atribuídas ao entretenimento escapista. O western banal é ridicularizado “Assim no Western” há dois tipos de filme: os “maus” – aqueles em que o herói usa colt calibre 45 e a heroína camisola calibre 49, segundo alguém disse – e os “bons”, aqueles realizados com sinceridade.” (VL, 1960, 104). E o chamado western psicológico, que se consolida durante a década de 1950, é considerado um género cinematográfico de considerável nível artístico devido a uma maior preocupação estética, tanto do ponto de vista técnico como na espessura psicológica dos personagens (e da própria narrativa), recaindo sobre estes preocupações morais como a incerteza e a cobardia, ou seja, características ausentes no herói clássico do western. O texto, da autoria de Emídio Fernandes, conclui com uma citação de André Bazin sob este novo tipo de western, o chamado super western: “ (…) .o super western, digamos ser um western que teria vergonha de ser simplesmente um western e procuraria justificar a sua existência por um interesse suplementar: de ordem estética, sociológica, moral, psicológica, política, erótica. “André Bazin, Cahiers Du Cinema, 59 – in Boletim do Cine Clube de Coimbra (Idem, Ibidem).

Este conceito de super-western virá a ser reutilizado pelos críticos do CEC, num contexto diferente, mas sempre na vereda de um western reformista, que logra desmistificar os moldes tipificados geralmente associados a este género de cinema. O 80

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caso a que me refiro em particular é uma crítica publicada sobre o filme de John Ford, Forte Apache de 1948: “É um filme de transição no qual se dá a “humanização do mais clássico mau do oeste – o índio”. Mas é um filme de transição. Como os heróis que morrem calmamente ao redor da bandeira morre o western clássico, abafado por premissas falsas que o não podiam levar mais longe…Mas o próprio Cochise manterá a bandeira de pé. O western clássico morre – viva o super western.” (VL, 1961, 124).

A sobriedade com que os críticos do jornal interpretaram as configurações psicológicas/comportamentais atribuídas a personagens particulares é ilustrativa do espírito humanista que perfilhava pelos cinéfilos do CEC e da VL. O mesmo espírito humanista típico do movimento cineclubista, evidentemente influenciado por uma óptica historicista de esquerda, ou no mínimo, claramente anti-racista. Um outro tipo de cinema bastante popular nos circuitos comerciais da época foi o filme de guerra. Género que também foi analisado detalhadamente e no qual posições ideológicas foram manifestadas. O filme de guerra de inspiração patriótica e pro-bélica foi veemente denunciado e assumido como simples forma de legitimação dos conflitos (aliado a um superficial entretenimento escapista) que adquire contornos semelhantes aos de um filme de propaganda vulgar. Esta postura essencialmente pacifista e anti-militarista sobressaiu em todas as críticas feitas a filmes de guerra deste período. Filmes como Ataque (1956), de Robert Aldrich e A Ponte do Rio Kwai (1957), de David Lean foram eleitos como os “mais interessantes filmes de guerra”, na medida em que o “O herói sem medo que tudo vence é substituído pela realidade física”, e que a apesar de o filme perder em matéria de espectacularidade, “abre um caminho que não sendo sempre o mais fácil é, no entanto, o único moral” (VL, 1959, 93). Todavia, o texto mais elusivo face ao problema da abordagem ao cinema de guerra, foi abordado por Emídio Fernandes num ensaio dedicado ao “Filme de Guerra”: “Revelam-se propícios a uma análise comum os últimos filmes de guerra, cujas analogias não deixam de ser curiosas, pertinentes e altamente significativas. Além disso, mostraram o interesse crescente que os realizadores dedicam aos assuntos militares; à guerra e aos problemas dela derivados; ao comportamento dos homens em batalha; às dúvidas sobre a eficiência duma hierarquia rígida – mesmo assim porta aberto ao

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Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962) compromisso político e ao favoritismo pessoal; ao oportunismo e ao arrivismo profissional e ao menosprezo distante pela “carne de canhão” (…) à origem colonial de algumas guerras modernas; à verificação empolgante do fracasso duma mística imperialista...” (VL, 1961, 134).

Para Fernandes o filme de guerra desdobra-se em duas tendências. E ambas têm sérias implicações políticas: Duma maneira geral este tipo de cinema parece hesitar hoje em dia em se tornar laudatório duma falsa concepção de heroísmo e de tenacidade bélica ou de insistir no carácter fatal dos conflitos (…) ou de vincar a necessidade, por razões sociais e internacionais, de manter legiões de homens no ofício das armas (…) A existência em muitos países duma imprensa e dum associativismo cegamente patrióticos; a rigidez das censuras, o carácter quase institucional que o exército assumiu em variegadas sociedades humanas…. (Idem, Ibidem).

Neste ensaio de Emídio Fernandes é ostensiva a denúncia da hierarquia militar, alicerçada na defesa dos filmes de guerra que conduzem considerações antibélicas e pró-humanista, enfatizando a suposta inutilidade do confronto militar. O conflito bélico transforma-se numa carnificina absurda que apenas serve os propósitos e interesses de uma elite, enquanto o soldado comum se transmuta num mero joguete nas mãos dos poderosos. De facto, as memórias da segunda-guerra mundial e dos cataclismos por ela provocados estavam ainda muito presentes na memória colectiva. A ideia da guerra como sinónimo do colapso civilizacional foi uma ideia bastante comum nos círculos intelectuais europeus das décadas de 1950 e 1960. Também a crítica dirigida ao colonialismo e aliada a uma “verificação empolgante do fracasso de uma mística imperialista” aproxima-se a uma hipotética referência ao então activo conflito franco-argelino e talvez, uma mensagem furtiva dirigida ao próprio colonialismo português. No mês anterior à publicação do texto de Fernandes o conflito com Angola tinha acabado de eclodir. De acordo com estes exemplos, constatam-se implicações de natureza sóciopolítica nas críticas cinematográficas da Via Latina. Na medida em que há uma tomada de posição que embarga uma posição política objectiva. Esta tal “ideologia humanista” – e que por vezes assume um carácter aparentemente de “esquerda” regista-se em praticamente todas as críticas que este período engloba, e por vezes,

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parecem lhe estar subjacentes certas notas reprovadoras face ao próprio regime e à sociedade europeia. Veja-se, por exemplo, uma crítica alusiva ao filme de Jacques Tati O Meu Tio (1958). Esta análise incidiu em particular sobre “conteúdo do filme.” Salientando a sua critica social que recai sobre os valores normativos da sociedade burguesa, ofuscada por um ostensivo materialismo e desprovida de verdadeiras emoções. Um mundo no qual não há espaço para uma forma de pensar e agir diferentes. Em súmula, é uma crítica à uniformização da sociedade capitalista do pós-guerra e às próprias relações intra-humanas. “Numa sociedade onde todas as pessoas fazem o mesmo, dizem o mesmo e pensam o mesmo. Hulot, personificava o novo, o original, o não submetido a preconceitos e convenções, o espontâneo, o verdadeiro – é aquele que está a mais.” (VL, 1959, 89). Um outro artigo que dirigiu duras diatribes ao status quo, intitulado “O Homem Contemporâneo no Cinema”, axiomatizou a preferência que esta nova geração de cinéfilos teve pelo cinema europeu. Um cinema de causas, comprometido com uma análise lúcida dos problemas reais, revestido de uma abordagem experimental, desprovido das características vulgares inerentes à narrativa tradicional e simplista, e por conseguinte, um cinema que renega os maneirismos dos filmes de cariz comercial. “Um mito e não uma mistificação. O símbolo. Um mito em que o homem é criado, vive, é entretido e desesperado pelo amor. É esse o símbolo do homem do nosso tempo que Resnais e Antonioni trazem para o cinema.” Após a proclamação de alguns dos novos paladinos do cinema de autor, foram clarificados os propósitos deste novo tipo de cinema que se apresenta como: “anticomercial, interrogador, não dá soluções nem mensagens, não inventa, não prega, não descobre nem pesquisa, dá-nos simplesmente no cinema uma arte e um mito do homem contemporâneo.”; O autor tem ainda a preocupação de incidir sobre o mesmo alvo que este novo tipo de cinema elege: os valores da sociedade burguesa e as suas relações de poder. “Estes jovens filhos de uma sociedade abastada, têm uma consciência desesperada que afirma não poder e nem saber escolher.” (VL, 1960, 118). O cinema italiano, como foi mencionado, constituía um dos principais interesses do público cine-clubista da época. Existem dois grandes artigos publicados na VL relativamente ao cinema italiano, o primeiro tendo saído no número 98 da revista, em 1959, é um ensaio baseado trabalhos de Vinicinio Marinucci e Cesane 83

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Zavanatti, que descreve a evolução da indústria cinematográfica italiana até ao seu ovacionado apogeu: O aparecimento do neo-realismo na sétima arte. Sublinhando o aparecimento do mesmo como uma necessidade moral, social e artística. Como justificação da importância da chegada do neo-realismo ao cinema, o artigo referiu que “a sua novidade essencial parece-nos ser a descoberta de que a necessidade histórica não era uma maneira inconsciente de disfarçar uma derrota humana, e que se exercia, não fazia senão sobrepor esquemas mortos e factos sociais vivos” (VL, 1959, 98). No número 139, surgiu um artigo bastante extenso, ocupando uma página inteira, da autoria do crítico italiano Guido Aristarco, no qual Visconti e Zavattini (ambos neo-realistas) são eleitos com os mais importantes realizadores italianos e comparados a Honroe de Balzac e Emile Zola, respectivamente. Federico Fellini, que tem uma linguagem cinematográfica mais próxima do “fantástico” é caracterizado como “vanguardista-decadente” (VL, 1962, 139). Uma outra ocasião na qual o cinema italiano foi eleito como o mais sublime pela crítica de cinema da VL, é num artigo de Emídio Fernandes, intitulado “Amor no Cinema”, no qual classifica a abordagem feita pelo cinema americano ao amor como “demasiado físico e pouco espiritual”, pelo francês como “embutido de uma frieza cínica; já a temática do eros abordada pelo cinema italiano é a que tem o “devido equilibro entre ternura e sensualidade. Sem ter uma sobreposição de uma categoria sobre a outra.” (VL, 1960, 108). O cinema italiano é, como se pode constatar, aquele que constitui a principal preferência do núcleo do CEC, e como por conseguinte, de uma grande parte dos membros do movimente cine-clubista. Esta preferência é obviamente motivada pelo compromisso social que os filmes italianos neo-realistas assumem. A escola francesa da nouvelle vague que ainda dava os primeiros passos durante este período – e que só havia de consagrar a sua posição no seio do movimento cineclubista após os primeiros anos da década de 60 – era ainda colocada num papel subalterno face ao cinema italiano. O valor da nova vaga francesa não era todavia, posto em causa. Mas os seus excessos formais eram vistos com alguma reprovação. Esta posição do movimento cineclubista, ingeriu sobre o CEC e repercutiu-se na crítica cinematográfica da VL. Refiro-me especificamente a um artigo. De seu nome Cinema Novo, um texto extenso que se prolonga por três páginas e no qual os autores reprovaram o comercialismo do cinema de Hollywood, 84

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salientam as virtudes do neo-realismo e por fim demonstram a sua visão sobre a então recente nouvelle vague francesa. De acordo com os autores do texto, o cinema francês é secundarizado aquando comparado ao italiano, devido à sua falta de compromisso social que automaticamente o transforma num cinema audacioso em termos formais mas limitado no campo do conteúdo. As obras dos novos cineastas franceses do Cahiers Du Cinema, como Jean Luc Godard e François Truffaut foram recebidas com manifesto desprezo: “Trata-se todavia de revoltados e não de revolucionários: não pensam transformar mundo mas simplesmente arranjar dentro dele um lugar à custa de “coteveladas”. É aqui que espreita o conformismo: o dinheiro e as honras hão-de tomá-los de assalto. (VL, 1962, 141). Convém ressalvar que este inicial desdém pela Nouvelle Vague foi apenas uma ténue querela encabeçada por alguns cineclubistas defensores da ortodoxia neo-realista, não sendo demonstrativa de nenhuma partidarização consumada dentro do movimento a nível geral. Desse modo, terá sido uma ocorrência particular de curta duração, não tendo grandes ressonâncias a nível estrutural no movimento cineclubista. De acordo com Abilio Hernandez Cardoso: “…essa oposição não faz muito sentido, lembremo-nos que a Nouvelle Vague deve muito ao neo-realismo. Recordo-me de discussões bastante violentas. Mas nunca ninguém se zangou por causa das preferências individuais” (Cardoso, 2015).

6.4 - A prática cinéfila em Coimbra: do espectador ao criador Quanto à evolução da valorização do cinema (em termos de adesão geral, de tentativa de fomentar o estudo e produção cinematográfica na Coimbra universitária) no meio académico coimbrão e às próprias actividades do CEC, a VL fornece-nos alguma informação. Servindo como barómetro da actividade cinéfila académica deste período. No número 110 da VL, um artigo da autoria dos membros do CEC, compendia as actividades promovidas por esta organização nos últimos 2 anos de actividade. No artigo em questão é apresentada uma descrição do material de cinema adquirido pelo CEC (máquina de filmar, tripé, projector). Para além desta conquista que apetrechou o Clube de Cinema Universidade, o autor revela ainda a tentativa malograda de institucionalizar um curso de cinema, a pedido dos membros do CEC. (VL, 1960, 110) O CEC, e o seu aparecimento, foi apresentado como uma 85

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consequência do estado da arte cinematográfica – tal como os cine-clubes se legitimaram – em Portugal, e do profundo descontentamento que os cinéfilos nacionais disseminavam face à produção cinematográfica nacional: “Notam-se nos filmes portugueses, um falhanço artístico sob o ponto de vista de arte cinematográfica. Porquê? Falta de Escola, portanto falta de estudo, de debate, de meditação. Não há realizadores portugueses diplomados por escola ou instituto (…) Se em Coimbra apareceu o CEC, não poderíamos de modo algum considerar, um movimento de alto carácter e progressivo. Era um inicio (..) Defender e impulsionar um cinema feito por novos e por conseguinte com ideias novas….”A nossa acção ambiciona ir da elaboração teórica à execução prática. Interessa-nos teorias, ideias, contribuições experimentais e entusiasmo. Reunir isto, numa ESCOLA, e, com o auxilio do Estado e da Gulbenkian, criar o possível, uma expressão artística realidade (…) Para quando um apetrechamento técnico de estúdio? Mas para quando o cinema experimental no ambiente universitário? Nós desejamos contribuir com uma presença.” (VL, 1960, 113).

O CEC afirmou-se então com a ambição de transformar o panorama cinéfilo coimbrão e eventualmente, nacional, seguindo os mesmos moldes e aspirações da vaga cineclubista, ao tentar impulsionar e apoiar uma produção cinematográfica nacional renovada e uma formação académica dos futuros cineastas. No plano prático, o CEC, conseguiu efectivamente alcançar alguns resultados, que passaram pela promoção da actividade cinematográfica e pela angariação de fundos provenientes tanto da AAC como de organizações exteriores, tais como a fundação Calouste Gulbenkian. No ano lectivo de 1960-1961, o CEC promoveu um concurso ao qual seriam atribuídos a dois candidatos, mediante decisão de um júri, um prémio de 2000 escudos. O concurso destinava-se a eleger os “argumentos mais originais.” (VL, 1961, 123). Num artigo distinto, mas incluído na separata do CEC, foi também anunciada a exibição de 6 curtas-metragens experimentais realizadas por membros do Centro. Apresentando as mesmas como sendo o resultado de 4 anos 24 de trabalho, aliadas a “ciclos de cinema, publicações, manutenção da colaboração assídua nas colunas da Via Latina, sessões de cinema sobre arte, concursos de argumento e planificações”, revelando o “amor que estes rapazes e moças têm ao cinema” (Idem, Apesar do CEC ter surgido oficialmente em Janeiro de 1958, crê-se que a sua actividade tenha começado um pouco antes. 24

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Ibidem). No mês seguinte, foi anunciada uma colaboração entre o CEC e a Fundação Calouste Gulbenkian, que procurou criar um curso de formação “técnica e teórica, que se realizará sob a forma de conferências-colóquios dirigidas por cineastas e críticos de cinema” (Idem, Ibidem.). A Gulbenkian forneceu ainda uma bolsa ao CEC destinada à formação de uma biblioteca de cinema especializada (VL, 1962, 140). No plano académico, o CEC, procurou levar avante a institucionalização da actividade cinematográfica, ao pedir ao reitor da universidade, Braga da Cruz, a criação de um curso livre de cinema. “Esse curso, que teria a duração, a título experimental, de um ano, funcionaria junto à Faculdade de Letras e seria constituído pelas cadeiras de Historia do Cinema, estética do cinema, técnica do cinema e história da arte, cadeira esta já existente na Faculdade”.(VL, 1962, 136). Apesar do pedido efectuado pelo CEC não ter dado frutos no plano institucional, crê-se que a intimação feita pela organização tenha levado a Universidade a adquirir material de projecção cinematográfica. O Teatro Académico Gil Vicente recebeu nas suas instalações uma máquina de projecção de 35mm, com capacidade de projecção em Cinemascope e Vistavision (VL, 1962, 142). Para além dos pedidos feitos às instituições académicas no âmbito de angariar material cinematográfico e constituir uma biblioteca especializada de cinema, o CEC foi responsável pela atribuição de descontos nos bilhetes de cinema para estudantes universitários. Em Novembro de 1959, surgiu um artigo de Emídio Fernandes sobre as dificuldades de acesso ao cinema. Em parte, devido ao preço. O artigo referia que a oferta em Coimbra era bastante escassa, pois existiam apenas três cinemas em Coimbra, que pertenciam todos à mesma empresa. O mais activo, projectava mormente filmes de série B, como A Vingança de Frankenstein e A Marca de Zorro. Confrontado com pouca diversidade fílimica, Emídio Fernandes clamou por mais qualidade cinematográfica e por uma maior acessibilidade. Propondo que os estudantes se dirigiam ao cinema trajados como forma de identificação, estando depois sujeito a descontos de 10 a 15 por cento (VL, 1959, 101). Esta reivindicação feita por um dos mais activos membros do CEC revelou-se proveitosa e pertinente, pois conquistou subscritores. Na página da Tribuna da VL número 106, foi publicada uma carta referente ao artigo de Emídio Fernandes sobre o preço do cinema, na qual o autor defendeu a posição anteriormente expressa e enfatizou a importância de facilitar o acesso do estudantes as salas de cinema. Ao estabelecer um termo comparativo entre Lisboa e Coimbra, a carta revelou que os cinemas da capital 87

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enviavam bilhetes gratuitos para a Associação Académica de Lisboa, mas também vales que permitiam uma amortização de 50% no valor de cada bilhete. Em jeito de conclusão, o autor referiu ainda que as piores características das salas de cinema eram os bancos altamente desconfortáveis e falta de higiene apresentada, pois por vezes, a sala encontrava-se repleta de pulgas (VL, 1960, 106). A despeito dos resultados pretendidos não terem sido totalmente alcançados as tentativas de amenizar os preços dos bilhetes revelaram-se proficientes. No nº111 da Via Latina, veio a confirmação: “A direcção da AAC, finalizando uma série de negociações entabuladas com o Exmo. Senhor Mandes de Abreu, como representante das empresas cinematográficas de Coimbra, tem o prazer de comunicar à Academia, que acaba de conseguir condições especiais para estudantes universitários, nos preços dos bilhetes, nos preços dos bilhetes Tivoli e Avenida desta cidade “ (VL, 1960, 110).

Mais uma vez, esta onda de descontentamento face ao cinema e às condições do cinema demonstram uma manifesta paixão pela sétima arte, que evidentemente se coaduna com o ideal cineclubista. O repúdio pelos chamados filmes de série b torna implícito a defesa do cinema de qualidade e a crítica à lógica comercial inerente ao cinema de entretenimento. Porém, o aspecto mais relevante destas reivindicações não é a qualidade cinematográfica em si, mas sim o de simplificar o acesso do estudante comum ao cinema, concedendo-lhe um estatuto especial de espectador.

6.5 - O cinema na VL e o cine-clubismo Concluindo, a perspectiva do CEC (e da VL, claro está) face ao cinema é perceptivelmente semelhante à dos cine-clubes da época devido a diversos factores: Sob a égide dos cineclubes, o CEC procurou promover uma cinefilia assente no cinema de critério elevado e ligado a causas de índole humanística/filosófica. Nesta defesa do cinema de “mensagem” convergiram quatro factores: A influência do cineclube através da partilha de membros, que, articulada com a curiosidade artística de alguns estudantes gerou uma certa sensibilidade para com a sétima arte; Os heróis cinematográficos partilhados: Especial preferência pelo cinema italiano neo-realista (Luchino Visconti, Vittorio De Sica). Admiração pelo cinema de autor europeu vanguardista (Alain Resnains, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman) mas também pelos realizadores americanos e ingleses que veiculavam uma linguagem 88

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cinematográfica idiossincrática, distinguindo-os dos seus conterrâneos e dos clichés hollywoodianos (Robert Aldrich, Stanley Kubrick, David Lean); A difusão da praxis cineclubista que procura elevar a consciência crítica do espectador comum. Munindo-o da aptidão de questionar um filme e o seu propósito; E por fim a defesa da revitalização do cinema nacional. Efectuada através da promoção da criação de filmes isentos de “ideologia oficial.”25 O terceiro ponto é talvez o mais importante, já que é onde a confluência entre o CEC e a prática cineclubista se denota com mais saliência. O cinema foi assumido como parte indissociável das formas de expressão cultural consagradas, sendo assim compreensível a razão pela qual o cinema de qualidade é tão aplaudido e o cinema de entretenimento é tido como alienante e escapista. Porquanto, ao ser elevado a arte maior, o cinema torna-se tão importante como a literatura ou a pintura. Logicamente, o espectador criterioso e detentor de um “espírito crítico” só pode ter em verdadeira consideração o cinema de elevada sofisticação estética. A função da página cinematográfica da VL foi a da defesa de um cinema independente na “luta contra essa ingente e frequente corrupção do Cinema – em que se associam interesses comerciais e não apenas comerciais: também políticos, ideológicos, etc.” estando por conseguinte decididamente na vanguarda, pondo o leitor de sobreaviso contra os meios e modos dessa função deturpadora” (VL, 1961, 132-133). Seguindo esta ordem de ideias, o objectivo desta página é o de estabelecer: “…uma síntese impressiva da panorâmica do Cinema no nosso tempo (no seu tempo), através de noticiários, criticas de filmes já vistos, indicações sobre filmes a ver, textos filmológicos, e, uma vez por outra, alguns artigos originais. Tentaremos sobretudo estar atentos ao que o espectador de Coimbra vai vendo de Cinema – sem deixarmos de acentuar o que devia poder ver – integrando a impressão casuística numa problemática mais funda e numa perspectiva talvez mais criteriosa.” (Idem, ibidem.)

Tomando como ponto de partida o esclarecimento do espectador, o principal objectivo é o de formar um público de cinema esclarecido, tornando-o apto a apreciar e a interpretar qualquer filme. Partindo do princípio que o cinema é uma arte tão

25

Tal como o movimento cineclubista lisboeta conseguiu criar um filme – Dom Roberto 1962 de Ernesto de Sousa - através de um regime cooperativista, ou seja, autonomamente, o CEC também tentou fomentar a produção de filmes autónomos. Neste caso, realizados por estudantes cinéfilos. Todavia, foram filmes experimentais feitos em ambiente académico que nunca ganharam grande exposição.

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válida como as outras, é indispensável a consolidação de uma consciência cinematográfica que forneça ao espectador/estudante as ferramentas necessárias para julgar criteriosamente um filme. Um outro artigo da publicação que importa mencionar, intitulado “Papel dos CineClubes”, esclarece as motivações que levam os sócios cineclubistas a querer incutir no espectador uma erudição cinéfila, fazendo com que o “dado fundamental para saber ver um filme, e em primeiro compreender o cinema como fenómeno sócio-cultural é situar o cinema, pela sua função dentro de uma sociedade, e pela sua integração no complexo cultural” (VL, 1962, 142). Aprioristicamente, é necessária ao cinéfilo uma elevada consciência histórica e social que viabilize a compreensão do fenómeno do filme e do significado do próprio enquanto instrumento doutrinador. Sendo o cinema uma forma de difusão cultural que se pode desdobrar sobre múltiplas variantes (políticas, ideológicas, históricas, religiosas) é necessário que o espectador tenham uma certa “bagagem” intelectual. No contexto português estado-novista, a defesa desta ideia assume um carácter político. Na medida em que um espectador consciente consegue discernir um filme de propaganda, mesmo que seja “propaganda contextual” (narrativas históricas de carácter nacionalista ou pró-regime) de um filme concebido na isenção de qualquer influência exterior. A importância dada pela VL ao cinema integra-se na importância geral dada à cultura. Assumindo a VL como um jornal académico pertencente a uma associação académica (e a uma cidade) que enfrentava um período de transformação cultural, e que nessa associação surgiu um organismo cinéfilo, é perfeitamente compreensível que o jornal tenha atribuído um espaço considerável para o debate da questão cinematográfica. Contudo, há que sublinhar que as considerações sobre o cinema que se apresentam na VL não eram de modo algum semelhantes às que o estudante comum detinha sobre essa arte. O espectador vulgar, de um modo geral, restringia-se ao visionamento de filmes de entretenimento dito “escapista”. A difusão – através da realização de debates, panfletos, páginas do VL – deste ideal cinéfilo era trabalho de uma “certa elite cultural”. Que considerava o cinema como arte, e também com um sentido político, e critico da sociedade. Era uma vanguarda estudantil que procurava popularizar este tal cinema mais “erudito” (Gersão, 2015). E de acordo com a opinião de Rui Namorado: “O estudante vulgar não se mostrava muito interessado 90

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pelas práticas cinéfilas do CEC. Era um ambiente fechado. De um modo geral os estudantes não contactavam com CEC nem como cineclube.” (Namorado, 2015).

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7 - Questão Feminina 7.1 - As mulheres no Estado Novo: Na sociedade e no ensino A crescente escolarização feminina, que se começou a afirmar com mais relevo na década de 1930, abriu as portas às estudantes para um ensino mais especializado. Segundo Irene Pimentel dois factores-chave viabilizaram a entrada da mulher no meio Universitário: A presença cada vez maior das mulheres nos liceus 26 – tornando impossível ao governo conter o acesso feminino ao ensino superior - e o êxito escolar feminino, que em 1963 ultrapassa o masculino. (Pimentel, 2001: 8182). O período sobre o qual este estudo se debruça , converge com um abundante provimento da mulher no meio universitário nacional. Mas fiquemo-nos pelo caso de Coimbra, pois é aquele que constitui o motivo de interesse do nosso estudo. Dos 40972 alunos que frequentaram a Universidade na década de 1950 a 1960, 13664 eram mulheres. Representando portanto cerca de 33,3 % do bolo Universitário (Gomes, 1987:99-100). Independentemente de as raparigas terem constituído apenas pouco mais do que um quarto dos estudantes inscritos na universidade durante as décadas de 1940 e 1950 (vd. Gomes, 87: 99-100), registou-se um número crescente, que se desenvolveu com uma urgência nunca antes registada, da população universitária feminina comparativamente às décadas precedentes. (Estanque, Bebiano, 2007: 50). Em 1962, as raparigas já constituíam 39% dos estudantes da Universidade. (Gomes, 1987:100). Apesar de o número de raparigas ter sido inferior ao de rapazes, não significa que estes representassem a maioria dos alunos inscritos em todas as faculdades. De facto, são várias as faculdades nas quais a percentagem de estudantes foi predominantemente feminina. Veja-se por exemplo os dados relativos ao ano de 1960. Na Faculdade de Letras temos 1205 mulheres para 661 homens, e na Faculdade de Farmácia temos 84 mulheres para 11 homens. Estes valores são ilustrativos da discrepância entre sexos existente a nível interno (faculdade) e externo (universidade em geral), e apesar de sofrerem oscilações consoante os anos, estas foram são significativas. (Idem, Ibidem: 93-94; Nunes, 1968: 335-336).

26

Em 1960 já existiam mais liceus femininos do que masculinos.

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Os números apresentados, traduzem a paulatina “feminização” do meio universitário coimbrão, no contexto do qual os debates em torno da reconsideração do papel feminino da Via Latina foram fundados. O comportamento da mulher na sociedade foi questionado e debatido na VL, e nalguns casos particulares, aparentou entrar nos parâmetros mais vincadamente reivindicativos de género. Contudo, convém ressalvar que a abordagem feita à conduta feminina foi sofrendo mutações constantes ao longo da história da revista. Vários condicionalismos, tais como a lista que preside a AAC, o autor do artigo em questão ou uma circunstância específica contribuíram para um vasto mosaico de considerações acerca do carácter das mulheres e da sua relação com o meio envolvente. Cada artigo deve assim ser estudado casuisticamente, tornando-se impossível de cristalizar num conceito ou numa frase a posição geral da VL face ao papel feminino na Universidade e na sociedade portuguesa. Sendo a VL o jornal da AAC, e assumindo-se como a “voz dos estudantes” (Namorado 2015), é natural que uma vasta diversidade de opiniões sejam veiculadas. Todavia, sendo os constituintes da redacção do jornal membros da lista que preside a AAC, é congénito que a publicação espelhe os valores políticos/sociais do seu grupo. Como foi evidente durante a presidência de Carlos Candal (1960-1961) e nas sucessivas listas de esquerda que presidiram a AAC até à crise académica de 1962. Durante estes mandatos a importância dada às considerações sobre a conduta feminina adquiriu contornos mais acentuados, para além de um papel de destaque nas páginas da publicação. Foi também durante o período de Candal que se tornaram frequentes, e praticamente constantes em todos os números da revista, os artigos referentes ao papel da rapariga universitária. Antes de expor a posição da VL face ao papel das mulheres na universidade e na sociedade é primeiro necessário apresentar a conjuntura que direccionava a conduta feminina em todas as suas vertentes: da componente social à laboral. De acordo com a ideologia preconizada pelo regime estado-novista, a família é a pedra basilar da sociedade, e a mulher o seu fundamental alicerce. Esta visão «naturalista» de inspiração católica e corporativista, afirmava que “a mulher casada, como o homem casado, é uma coluna da família, base indispensável de uma obra de reconstrução moral.” A mulher era o “chefe moral da família” (Pimentel, 2011: 3435). Para Salazar, a função primordial feminina havia sido desvirtuada pelas políticas liberais das últimas décadas que submeteram as mulheres ao mundo do trabalho e à 93

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lógica do mercado. Na defesa da sociedade tradicional seria portanto imprescindível restaurar o papel doméstico da mulher. Incutindo-lhe os valores de boa mãe e esposa. Conforme a lógica do Estado Novo, o aparelho produtivo e o mercado de trabalho não deveriam afastar a mulher do seu dever familiar, tornando assim a actividade laboral numa prática tendencialmente masculina. Este projecto ideológico foi conduzido através das leis que o Estado Novo produziu para formular os direitos políticos e familiares da mulher. Na Constituição de 1933, o “indivíduo só existia «através do agregado natural a que está ligado por natureza», a família e a mulher eram consideradas como a «realidade primária e fundamental de toda a orgânica nacional», na qual se fundava a «ordem política e social da nação». (Idem, Ibidem: 35) De acordo com a moral corporativista, a mulher teria então de voltar a ser enquadrada na ordem “natural das coisas”, sendo sujeita a uma rigorosa “política do espírito” que visava formar as futuras esposas e mães. Esta configuração do papel feminino foi levada a cabo pelas novas leis da constituição de 1933 e por várias organizações estaduais (Rosas, 1994: 308). Entre 1936 e 1937 surgiram duas instituições

que

procuraram

assegurar

a

difusão

da

doutrina

tradicionalista/corporativista no seio das raparigas e das mulheres. Em 1936 foi criada a OMEN (Obra das Mães pela Educação Nacional) à qual cabe «estimular a acção educativa da Família», «assegurar a cooperação entre esta e a Escola» e «preparar melhor as gerações femininas para os seus futuros deveres maternais, domésticos e sociais.». Já a MCF 27 (Mocidade Portuguesa Feminina) foi uma organização de raparigas que surge como contraponto feminino da Mocidade Portuguesa, criada por influência da OMEN e de Carneiro Pacheco 28, que propendia a «formação do carácter, o desenvolvimento da capacidade física, a cultura do espírito e a devoção ao serviço social, no amor de «Deus, da Pátria e da Família» (Pimentel, 2001:199). Convém explicitar que a visão tradicionalista/corporativista sobre o papel feminino não se apresentou uniformemente. Com efeito, Salazar afirmou que era ” necessário distinguir entre a mulher solteira, que vivia sem família ou com a família a seu cargo, à qual deveria ser pragmaticamente facilitado o emprego, e a mulher casada.” (Idem, 2011: 35). Para a mulher casada (que constituía a maior parte das A criação de grupos de carácter paramilitar dá-se em particular por causa da ameaça exterior da Guerra Civil Espanhola. A Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa Feminina não deixam no entanto de causar desagrado à Igreja nacional. 28 Membro da União Nacional, do Conselho de Ministros e criador da Mocidade Portuguesa (1936). 27

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mulheres portuguesas) estava no entanto reservado um papel de subalternidade económica e social. 29 Este afastamento da mulher da esfera pública, e do contacto masculino, foi corroborado pelo regime de separação de sexos que se registou a nível educacional. Com as reformas educacionais (1937) de Carneiro Pacheco, a escola também se incumbiu de remeter “cada um para seu lugar”. Estas reformas efectivaram o regime de separação de sexos por escola, e instituíram a cooperação entre as escolas e as mocidades portuguesas, masculina e feminina, respectivamente. O diploma que decretou estas medidas especificava “que a aplicação dos métodos de educação física teria em conta o sexo”, e instituiu a obrigatoriedade de frequência, no 1º ciclo dos liceus femininos e das turmas femininas dos liceus mistos, de aulas de lavores femininos, que foram acrescentadas ao curso de higiene geral e de puericultura. Nos liceus femininos, foi também criado, um curso de educação familiar para as alunas não destinadas a estudos superiores, que foi no entanto, pouco frequentado (Idem, 2001: 77-79). O ideal de mulher preconizado pela ideologia vigente remetia-a para um lugar geralmente afastado da vida pública, salientando as virtudes femininas de “mãe”, “boa esposa” e “chefe moral da família”. Tanto na esfera social, quanto jurídica, a mulher encontrava-se num papel de claro recalcamento, ao estar vedado o seu acesso (salvo raras excepções) às principais actividades públicas (eleições, cargos administrativos, actividades desportivas). No campo laboral, ela encontrava-se limitada a um leque restrito de profissões que envolvem contacto social: professora primária ou enfermeira, concisamente. É neste quadro, de verdadeira subalternidade social e intelectual, que a mulher chegou à Universidade.

7.2 - A estudante universitária De um modo geral, VL a propugna ideias relativas ao papel da mulher na sociedade que se assemelham às concepções conservadoras e tradicionalistas preconizadas pelo regime (Pires, 1994: 47). E se alguns artigos salientaram as virtudes de uma educação superior feminina subordinam os mesmos à finalidade da mulher: a maternidade e a vida doméstica (VL, 1941, 3; VL, 1959, 85). Foi com a Exemplos: Uma mulher só poderia votar caso fosse solteira ou tivesse obtido o estatuto de “chefe de família”, ou seja, se fosse viúva ou se o marido estivesse incapaz; Era legal para o marido violar a correspondência da esposa. Em casa de adultério, o homicídio da esposa pelo marido estava passível de ser punido com pena branda. 29

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lista de Carlos Candal, que a VL operou uma alteração à abordagem do papel da mulher na Universidade e na sociedade, fazendo com que “questão feminina” adquirisse contornos mais complexos, ao apresentar ideias que propõem uma reconceptualização do papel da mulher na sociedade e pretendem desmistificar vários preconceitos inerentes à sua concepção tradicionalista. Alguns destes artigos revelaram-se bastante controversos, ao abalarem a consciência pública universitária, da cidade e até do país, em alguns casos particulares (Bebiano, Silva, 2004: 442443).30 Esta reconsideração do papel feminino que foi difundida através de artigos – e conversas pessoais, nas quais os membros dirigentes da AAC tentaram fomentar uma participação empenhada das raparigas na vida académica - pela VL durante o período de Carlos Candal, não correspondia aos conceitos partilhados pelo estudante universitário vulgar. A mentalidade que assolava o mesmo ia de encontro aos preceitos defendidos pelo regime (Namorado, 2015). O estereótipo dominante remetia a mulher para o lar e para o trabalho daí decorrente, resignando-a a este “destino biológico” e alertando-a para os perigos do intelectualismo, que, de acordo com este pensamento, seriam prejudiciais para a função maternal e que poderiam até provocar uma perda de feminilidade na mulher. Sob a égide desta mentalidade, é natural que a mulher não se sentisse compelida à discussão de determinados problemas de índole mais complexa, e que, perante uma presença masculina, se sentisse inferiorizada. No princípio da década de 60, em Coimbra, era frequente os estudantes após a saída das aulas, deslocarem-se ao “curro” (entrada da FLUC), para verem as universitárias que passavam com os olhos cravados no chão. “Deste modo, as jovens eram criadas numa atmosfera de ignorância, sob pretexto de que não podiam ser boas esposas ou mães se se dedicassem às lides intelectuais” (Pires, 1994: 48-49). Uma grande percentagem das estudantes universitárias estava alojada em lares. Pois sendo uma grande parte destas filhas de famílias católicas, eram enviadas para estes estabelecimentos, congregações de freiras que asseguravam um modo de vida coincidente com os códigos inerentes à moral católica.” Constituíam uma forma de as famílias se manterem despreocupadas” (Namorado, 2015). Sem embargo, os horários dos lares ofereciam alguma flexibilidade. Após as aulas, que ocorriam durante a manhã, as raparigas tinham a tarde toda por sua conta. Todavia, a partir da

30

Refiro-me ao escândalo provocado pela “Carta a uma jovem portuguesa”.

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hora do jantar tinham de comparecer obrigatoriamente no lar, e durante a noite nunca poderiam deixar a instituição, salvo em raras excepções. Uma entrevista concedida pela Madre do Lar do Sagrado Coração de Maria (o seu nome não é identificado) ao número 83 da VL confirmou estas regras: “O espírito feminino é mais susceptível nestes assuntos do que o vosso. Admitam que autorizávamos uma rapariga finalistas, por exemplo, a ir a um cinema, à noite. Nada de mais natural… Mas que pensaria uma caloira, uma recém chegada…de um tratamento de diferenciação face a ela? A não ser que autorizássemos indiscriminadamente essa saída (….)E é preciso muito cuidado de certos casos. Poderíamos, em cada caso concreto, avaliar se a rapariga tem ou não formação moral que nos levasse a confiar nela inteiramente (….) Mas as outras não se sentiram lesadas por não usufruírem desses mesmos direitos? E a igualdade de todas dentro desta casa é um princípio que nunca poderemos pôr de lado….” (VL, 1959, 83).

Os regimes dos lares providenciavam um sistema de horários nocturnos intransigente, tanto para as caloiras como para as estudantes mais velhas, reflectindo a rigidez da própria educação católica, ao assumir que as mulheres adolescentes seriam inaptas para lidar com sua própria condição biológica. Sendo logicamente necessário manter as estudantes afastadas da cobiça das tentações masculinas. As várias opiniões expressadas pelas estudantes residentes no lar atestam a defesa de uma conduta restrita ao afirmarem que “os pais sentem-se sempre mais sossegados quando a rapariga está num lar, a não ser quando tenha família ou pessoas conhecidas que [lhe possam ceder guarida] ” (Idem, Ibidem). Para além destas restrições, convém salientar que no plano lúdico as raparigas estavam também limitadas no que toca a divertimentos. Apenas podiam passear e frequentar pastelarias, para além das actividades culturais promovidas pelos órgãos autónomos da AAC. Uma rapariga suscitava reprovação pela comunidade caso frequentasse bares (Gersão, 2006: 30). A rapariga foi assim remetida para um ambiente fechado sobre ela e as suas congéneres, onde não podia usufruir do contacto masculino com naturalidade e descontracção.

7.3 - A estudante universitária na VL (1958-1960) Como foi referido anteriormente, as opiniões expressas nas páginas da publicação face à condição feminina procuraram ir ao encontro da finalidade 97

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fundamental apregoada pela moral vigente: o papel de mãe e boa esposa. Este discurso é transversal a todos os artigos publicados no período compreendido entre 1941 e 1959. Porém, é-lhes patente um discurso adverso às concepções mais atávicas da época, que defendiam o afastamento das mulheres do ensino superior. Estas vozes escudaram a sua opinião no argumento de que a educação superior despojaria as mulheres das suas capacidades maternais e familiares. Apesar de ser bastante anterior ao período sobre o qual este estudo incide, um artigo de Maria Juliana de 1941, sintetiza estes pareceres, de acordo com os quais, as práticas intelectuais femininas não serão prejudiciais à sua função maternal, como pelo contrário, serão uma benesse e contribuirão para uma maior harmonia na sua função futura: “Se ela utiliza o “diploma” e faz concorrência aos empregos públicos, salvo raras excepções, é por necessidades idênticas as das outras – das não diplomadas. Cria espírito de independência, é certo, mas não perde feminilidade e, no momento em que venha a entregar-se ao lar, saberá formá-lo mais conscientemente, educando os filhos, ensinando-os encarinhando-os” (VL, 1941, 3).

Todos os textos procedentes assumiram uma posição semelhante à apresentada. Através dos quais se tenta proceder a uma conciliação entre a actividade intelectual e a maternal, estando a primeira inexoravelmente subordinada à última. Ou seja, atesta-se um discurso primordialmente conservador que compromete toda a existência feminina à sua suposta finalidade biológica. Veja-se agora um artigo inserido na baliza cronológica que este estudo engloba. Em “A Vocação da Mulher e da Universitária”, de Manuel Formigal, a autora encarou a chegada da mulher à Universidade como um fenómeno multidimensional, ao serem vários os condicionalismos que compelem a rapariga a enveredar pelo ensino universitário, tais como o seu desenvolvimento intelectual e as suas aspirações profissionais. A complexidade com a qual a autora abordou a questão, já muito debatida nas páginas da VL, é no entanto muito superior à anteriormente estabelecida pelos seus pares. Manuela Formigal entabulou uma equiparação entre homem e mulher (em termos de igualdade de oportunidades e formação), mas, salientou as assimetrias de carácter físico e psicológico, ao entregar-se à explicação do dimorfismo sexual. No entanto, a autora reduz o homem e a mulher ao mesmo denominador comum no âmbito intelectual: 98

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“Se encararmos o desenvolvimento intelectual, a cultura e a realização de vida em si, não são nem especificamente femininos, nem especificamente masculinos, porque são neutros (…) Toda a parte, dita intelectual, é uma actividade do espírito, ou seja, da alma, e esta feita à imagem e semelhança de Deus. Portanto não diferencia sexos (…) No entanto, a mulher tem algo que a torna única. O facto de ser mãe (…) À nossa volta há uma série de círculos em que estamos inseridos e deles não podemos nem devemos desintegrar-nos. Esses círculos são a família, a universidade, o pais, o mundo inteiro. Em cada um deles, a mulher tem um papel especialíssimo a desempenhar, insubstituível. Aqui se vê bem a coroação da sua vocação na maternidade – Mãe, em sentido físico, na Família, e Mãe, sem sentido espiritual, que não é menos real, por este abraço do mundo inteiro” (VL, 1959, 85).

Independentemente

de

as

aspirações

intelectuais

femininas

serem

apresentadas como naturalmente legítimas, procurando deitar por terra as concepções que reprovam a ambição escolar/académica feminina, depreende-se uma sujeição à sua finalidade maternal que encara a mulher como um ser sacralizado e inelutavelmente subordinado à família. Apesar de os últimos dois artigos citados se inserirem em espaços cronológicos bastante afastados, evidenciam a defesa do mesmo ideal. As opiniões perfilhadas nas páginas da VL face ao papel da mulher, até aos inícios da década de 60, podem ser encaradas como essencialmente conservadoras (Pires, 1994: 47). Uma vez que, para além de serem bastante escassos os artigos sobre a condição feminina, apresentam todos considerações semelhantes às apresentadas. No entanto, num outro artigo de Manuela Formigal, que reincide sobre a virtude da maternidade, a autora coloca algumas questões que parecem subrepticiamente criticar a organização universitária da época: “Cada sexo tem traços fundamentais que o definem para além das características inerentes à pessoa humana – assim a mulher está mais perto do humano do que o homem, porque vive a camada mais profunda das coisas; mais próxima da natureza que o homem, porque apreende através do seu corpo e especialmente através a maternidade, que o homem não aprende, mais dentro da linguagem do símbolo, porque para além do imediato e do útil, olha para o alcance último de todas as coisas, a mulher é na verdade a salvaguarda dos valores essenciais (…) A Universidade está estruturada

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Mudança Cultural e Política na Academia de Coimbra: O Caso da Via Latina (1958-1962) em princípios fundamentalmente masculinos. A Universidade é grandemente frequentada pelo sexo feminino. A Universidade tem em vista a formação integral do Homem (ainda que esta ideia não possa ser atingida absolutamente). Como suprir esta desconexão?” (VL, 1959, 101).

Como é manifesto, a autora evidencia as “virtudes” femininas que são apregoadas pela moral corrente, contudo, sobressaem certas questões que colocam em dúvida os alicerces estruturais da organização universitária, afirmando que esta é primordialmente masculina e que, assim sendo, entra em confronto com determinadas particularidades femininas. O que quererá dizer a autora? É impossível precisar, é apenas notório um certo descontentamento face à universidade. Poucos meses depois deste artigo de Manuela Formigal, surgiu na VL, um escrito referente a uma conferência dada por Helena Linhares, intitulada de “Humanismo e Feminismo”, na qual a conferencista procurou definir o valor e a responsabilidade da mulher na sociedade, apontando a missão “própria e especifica da mulher”: a educação e a assistência. Outros temas abordados na conferência foram: a escolha de profissão e rendimento das qualidades femininas; preparação das universitárias vista à sua futura acção de educadoras; profissões “menos femininas” e o lugar da mulher no seu exercício. Helena Linhares demonstra engajamento para com a moral vigente, fazendo assim com que o conceito “feminismo” presente no título da sua conferência perca o seu genuíno significado etimológico: “Ora bem sabemos, que por sua organização e até mesmo tradição, a Universidade se dedica especialmente à formação intelectual, e nos nossos dias cada vez mais, a uma formação especializante. O que mutila aquela formação integral, que em principio, é o seu fim próprio (…) Ora no caso das raparigas, aquela mutilação de que eu falava é sentida dum modo especial, já que elas são por natureza, mais propensas ao equilíbrio e ao desenvolvimento harmónico, e por outro lado, têm necessidades que ultrapassam de longe, uma cultura intelectual especializada. Em certo sentido a mulher é mais humanista, por estar mais perto do humano e por ser mais apta para abarcar conjuntamente, vários aspectos da cultura. Numa palavra: por estar mais perto da vida” (VL, 1960,106).

Ao afirmar que as mulheres têm necessidades que “ultrapassam de longe, uma cultura intelectual especializada”, a autora estava-se claramente a referir ao carácter geral da actividade feminina pretendido, ou seja, as lides domésticas. 100

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7.4 - Um novo papel para as mulheres O período que este estudo compreende, engloba sete direcções da AAC e cinco da Via Latina. Se até à direcção de Carlos Candal o director da VL era o mesmo da lista que então presidia a AAC, é durante o seu mandato que a separação de cargos se efectua. Apesar de Candal continuar a presidir a AAC, é Avelãs Nunes que fica encarregue da direcção da VL. Destas sete direcções é a de Candal que mais destaca. Tanto por ser a primeira direcção de esquerda desde o mandato de Salgado Zenha mas também pela tentativa de efectivar mais solidamente a renovação cultural e associativa que Coimbra sofria desde o final da década de 1950. As três direcções de esquerda após o mandato de Candal seguem o mesmo modus operandi por ele traçado (Namorado, 2015, Nunes, 2015). Dentro destas inovações estava a missão de cativar as estudantes universitárias a compenetrarem-se com os assuntos académicos, a participarem nas actividades promovidas pela AAC, enquanto simultaneamente desenvolviam uma atitude crítica perante o seu papel universitário e social. Era prática comum dos membros da lista de Carlos Candal (e do próprio, inclusive) irem fazer trabalho de propaganda aos lares femininos: “Os lares eram um antro de votos de direita, devido às ligações da Igreja Católica com o regime. E uma das coisas que a malta de esquerda fazia, era ir fazer campanhas aos lares. Simplesmente, havia uma tentativa de consciencializar as raparigas e de as empenhar na actividade associativa. Até porque uma grande parte das raparigas iam para os lares, onde tinham uma educação religiosa altamente conservadora. A direita ganhou muitas direcções da AAC graças aos votos femininos. A nossa tentativa foi a de elucidar as raparigas e de as tentar trazer para a esquerda. Daí o Carlos Candal (e outros) ir aos lares fazerem propaganda política. Tentávamos quebrar a hegemonia que a direita tinha sobre as raparigas universitárias” (Namorado, 2015).

Infere-se consequentemente, com base no depoimento de Rui Namorado, que a principal razão que levou a direcção de Candal a se deslocar aos lares seria a de granjear a confiança e o apoio das raparigas, e conjuntamente, quebrar a influência massiva que as listas de direita (ligadas ao regime) tinham sobre as estudantes. Sintomaticamente, é durante a permanência da lista de Carlos Candal na DG que a questão feminina passou a adquirir um destaque gradual, através do qual se intentou abalar o quadro das relações entre rapazes e raparigas e iniciar um novo 101

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paradigma na relação entre ambos. Como foi explicitado, havia uma grande clivagem comportamental no meio estudantil. Para o homem era usual divertir-se sem grandes preocupações, podendo passear pela madrugada fora, embebedar-se, envolver-se em tunas ou entregar-se a outro tipo de práticas lúdicas associadas aos chamados bon vivants. Em suma, o estudante universitário de Coimbra, tinha (e tem) uma reputação no imaginário colectivo que o retrata essencialmente como um boémio. Este padrão básico era partilhado tanto pelos habitantes da cidade como pelo resto país, inclusive pelos estudantes das outras universidades portuguesas. Correspondendo no entanto a uma visão excessivamente romantizada da vida universitária (Lopes, 1982:79; Bebiano, 2007:130-131). Já a rapariga universitária, tinha um papel muito mais comedido a nível social. Após o cair da noite, teria de regressar ao respectivo lar, onde se albergava. Durante o dia, para além das aulas, os únicos locais que ela frequentava eram as pastelarias ou os jardins, sempre inserida num grupo de amigas. Esta separação dos sexos, já vinha do ensino liceal. O contacto entre rapazes e raparigas era praticamente impossível, a não ser que se efectuasse entre familiares ou caso estivessem na presença de adultos. “Não [havia contacto] entre rapazes e raparigas, no liceu só havia mulheres. Os rapazes nem sequer se podiam aproximar do liceu. Uma rapariga que aparecesse com um rapaz era chamada à reitora” (Gersão, 2001: 29). Esta profunda diferenciação comportamental teria obviamente repercussões a nível social, particularmente nas relações inter-humanas. Enquanto o estudante universitário se entregava às lides académicas e lúdicas ao organizar-se em listas concorrentes à presidência da AAC, ao participar em assembleias magnas e colóquios, ao integrar em grupos artísticos, a rapariga universitária encontrava-se geralmente refreada da esfera pública. É sobre esta apatia que a DG, durante os anos de 1960-1962 procurou intervir. Estimulando as raparigas universitárias a participarem nas mais diversas actividades. Desde a sua integração no seio da AAC, até à produção de textos para a VL, organização de actividades, promoção de colóquios relativamente a temas como “A Mulher No Romance Contemporâneo” ou “O Papel da Mulher na Sociedade”. Durante esta época, como já foi referido, era habitual os membros da lista de Carlos Candal deslocarem-se aos lares, onde realizavam sessões de esclarecimento relativos à organização da AAC e a determinados paradigmas associativos. Todavia, estas visitas foram empreendidas com o principal intuito de granjear a confiança das raparigas na actual DG e de as integrar mais eficazmente na vida associativa, convencendo-as a participarem nas 102

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votações e a darem o seu contributo nas mais variadas áreas (Namorado, 2015, Nunes, 2015). Entretanto, o Conselho Feminino (CF) (já existente há cerca de dez anos) é potenciado, promovendo debates, actividades e até numa ocasião um colóquio de educação sexual. As páginas da VL, contêm vários artigos que manifestam este clima de agitação e de redefinição do papel feminino. As polémicas em questão sustentaramse na condição da mulher portuguesa e nas suas privações, conectadas com a reidentificação do feminino de que o período pós-segunda guerra mundial foi testemunha. Lembremo-nos de Simone De Beauvoir e do seu manifesto feminista Le Deuxiéme Sexe (1949), do aparecimento da mini-saia ou da popularidade de estrelas de cinema como Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot. A despeito de os exemplos apresentados serem estruturalmente diferentes revelam uma rejeição da figura clássica feminina, obediente e submissa, optando pelo amparo de uma mulher livre, consciente e completamente independente (Bebiano, Silva, 2004: 426-228) Um entendimento contemporâneo que foi assaz grassado pela cultura de massas. O primeiro artigo presente na VL que evidencia reivindicações de género imbuídas de um pendor mais contestatário intitula-se “Relações Entre Rapazes e Raparigas”, da autoria de Joaquim Cantante Garcia. No entanto, apesar de ter sido publicado sob a tutela de uma lista de direita -presidida José Manuel Cardoso da Costa - revela preocupações que condenam uma “educação tradicionalista ultrapassada”, que se exterioriza através de três características principais: A) “Uma malévola e decrépita sociedade que dificulta, e perturba a convivência entre rapazes e raparigas.” B) “Uma educação tradicionalista ultrapassada, que ainda para mais esquece a educação sexual.” C) “Não se filosofar, tranquilamente o que é o amor” (VL, 1960, 111). O autor ergue-se contra uma sociedade antiquada que não aceita que um rapaz e uma rapariga possam ser simples amigos, vendo em cada relação entre pessoas do sexo oposto um potencial casal. Depois de veemente condenar este preconceito atávico, Joaquim Garcia referiu que é “necessário fomentar o aparecimento de lugares mais sadios, de modo que os contactos entre rapazes e raparigas universitários se multipliquem, se banalizem e daí se normalizem, já que as ruas e os jardins estão-nos interditos, pelas razões atrás apontadas…”, e sugere que rapazes e raparigas se encontrem livremente nas “salas de convívio, que desgraçadamente, foram omitidas nas três faculdades já edificadas ou reconstruídas.” 103

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Para além da defesa do convívio livre entre rapazes e raparigas, o autor defende a necessidade de uma educação sexual, dado que esta será benéfica e saudável ao contribuir para a supressão de tabus que provocam infelicidade e um certo mal-estar social geral.” “Não esqueçamos o papel que o sexo é chamado a representar no amor, humanizando, aprofundando, as relações ente homem e mulher e estabelecendo uma consolidação do par, através dos filhos e da comunidade de interesses que estes trazem (…)Pelos dramas e profundas alegrias que trás e pelo valor incontestável na pela realização do amor, é verdadeiramente catastrófico que muitos responsáveis (pais, médicos, professores), ainda hoje o ignorem na educação integral, considerando-o tabu e não forneçam dele, no momento mais oportuno, um conhecimento natural, tranquilo e pleno de dignidade e sentido de responsabilidade….” (Idem, Ibidem).

O texto assumia que o amor só pode ser encarado com a devida maturidade quando o indivíduo conhecer bem as características fisiológicas do ser humano. Ao afirmar que “o amor só pode nascer com pujança, altruísmo e grandeza com que aspiramos a senti-lo, quando tivermos já um encontro connosco próprios. Se não limitamo-nos a amar o amor.” É necessário, no entanto, alertar o jovem comum para concupiscência de alguns indivíduos pois há que “prevenir a juventude deste logro por vezes agravado pela falta de carácter de certos “caçadores profissionais” de um e outro sexo.” O artigo termina com um agradecimento da parte do autor ao CF, pela realização de conferências e colóquios sobre o tema versado (Idem, Ibidem). No número 122 da VL, surgiu uma continuação do texto de Joaquim Garcia, com o título de “Ainda o Problema do Convívio entre Rapazes e Raparigas”, porém, o autor do texto já não é o mesmo. Sendo o artigo assinado por Carlos Horta (possível pseudónimo). O texto denunciava a apatia dos estudantes face ao artigo antecedente, referindo que “é cada vez mais grave e acentuado o isolamento e frustração do nosso homem e mulher” perdendo “boa parte das esperanças de se libertarem e serem profundamente felizes através do amor.” Todavia, o descontentamento que perpassa pelo artigo, não se restringe somente às relações rapaz/rapariga e entronca pelos problemas de índole económica que subordinam a vida em casal e portanto extra-universitária. “Homem e mulher, já fragilizados pelas actuais e prementes necessidades de sobrevivência económicas, e daí, mentalizados para uma vida oportunista (…) não têm assim [outras possibilidades] de se 104

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conhecerem, a não ser superficialmente, convencionalmente.” Interpretando os condicionalismos de ordem económica como um dos principais bloqueios à felicidade conjugal, Carlos Horta conclui o artigo, afirmando que é necessário “combater também sem medo, tenazmente, por que a mulher ganhe amplo acesso à independência económica, que lhe empreste serenidade na escolha do companheiro único” (VL, 1961: 122). Este artigo foi evidentemente mais impugnante que o antecedente. Enquanto Joaquim Garcia se limitou a abordar o problema sobre o convívio universitário entre estudantes de ambos os sexos, Carlos Horta denunciou o papel de subalternidade económico-social a que a mulher estava condicionada pela legislação estado-novista. Na VL nº 120, está presente um artigo da autoria de Carlos Pereira de Carvalho, apelidado “A Universitária e a Vida Associativa” que convida as estudantes a participarem nas actividades promovidas pela AAC e revela o desinteresse geral que a estudante universitária tem pelas actividades associativas: “Numa academia de que relevante parte é composta por raparigas – talvez 40 %, que não para menos – é extraordinário o desapego da universitária pelos assuntos e movimentos emanados da sua associação. “à parte meia dúzia de raparigas com cargos dirigentes em algumas secções, a presença da Mulher, não se faz sentir na AA (…)Há quase completo alheamento, por parte das raparigas, das Assembleias Magnas, poucas praticam desporto, raríssimas colaboram na Via Latina, as realizações do Conselho Feminino são pouco frequentadas, enfim o estado actual é desanimador e pouco propicio a que, após este longo período de desinteresse, as justas pretensões das colegas sejam acolhidas com aquela seriedade a que têm jus” (VL, 1960: 120).

Carlos Pereira de Carvalho atribuiu as causas do desinteresse da estudante a diversos factores: “desde o instintivo temor feminino até aos moldes em que está estruturada a sociedade, passando pela legislação de lares e pais de família, condicionalismos de vária ordem, atraso mental de uma sociedade que não que uma rapariga [tenha vontade própria]. Afirmando que “é preciso que a mentalidade burguesa seja ultrapassada: a mulher, no actual momento histórico, abrem-se as mesmas perspectivas que, durante séculos se proporcionaram exclusivamente ao homem.” Por fim, o autor procurou familiarizar a estudante com a AAC, integrando a rapariga na sua composição orgânica e afirmando que esta é parte indissociável da instituição:

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Como é claro, este texto tem uma base política reivindicativa sem precedentes na VL. Expressões como “mentalidade burguesa” revelam um cunho evidentemente de esquerda, que se insurge contra as normas sociais vigentes, procurando combatelas ao consciencializar a mulher e ao procurar integra-la na vida associativa. Esta renovação de pensamento aparentava defender uma ruptura com modelo social vigorante, em particular, com o que pontuava a conduta feminina. Um renovação que clama pelo reconhecimento da mulher como um individuo livre, tanto no prisma social quando jurídico. Esta nova perspectiva universitária sobre a mulher surge em convergência com a época -finais de 1950, princípios de 1960- em que a mulher começa a ganhar uma maior exposição na vida pública, nomeadamente através da via laboral. Em “Breve Apontamento Sobre a Rapariga Universitária”, Eveline Nicolau, afirmou que “a novas condições de vida, correspondem novos conceitos”, pois “assistimos a uma alteração radical do modus vivendi da Mulher (…) De todas as mulher, as que têm uma vida inteiramente nova, sãos as que desempenham uma profissão, sobretudo as que desempenham as chamadas “profissões liberais.” Contudo, a autora via nas raparigas universitárias, o potencial para alterar a condição social da mulher: “Nós, raparigas universitárias, na medida em que nos preparamos para esse futuro, constituímos também uma novidade na História da Mulher (…) Por isso, em relação a todos os conceitos que se opõem às nossas legitimas aspirações, às nossas legitimas necessidades de mulher conscientes e responsáveis, a nossa atitude não deve ser de submissão, mas, pelo contrário, de recusa, por tal forma que sejamos nós a influenciar o ambiente, e não este a dominar-nos” (VL, 1961, 128).

A autora referiu que existem na Academia muitos sintomas que manifestam “preconceitos ultrapassados” em relação à estudante universitária e às mulheres em geral. Aceitando algumas das “piadas das latadas” e certos “dichotes que alguns rapazes universitários se consideram no direito de dizer à passagem das colegas” 106

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como “vestígios de um passado, em que o homem e a mulher eram dois estranhos (…) para ele havia a rua, a boémia (a célebre boémia coimbrã) (…) para ela o acolhimento do lar, a tímida admiração pela irreverência e liberdade dele.” O artigo conclui com um apelo à actividade e impulsiona as raparigas a participarem nos eventos públicos e sociais, nas decisões do quotidiano. “À, em que nós [caminhamos] lado a lado com os rapazes, os tais conceitos que subsistem no nosso ambiente (…) irão desaparecer, e sobre ele erguer-se-ão definitivamente as ideias e perspectivas que hoje coincidem com aquilo que verdadeiramente somos.” (Idem, Ibidem)

7.5 - A polémica de “Carta a Uma Jovem Portuguesa” De todos os artigos publicados na VL relativos ao comportamento feminino o que mais se salientou e gerou controvérsia foi “Carta a Uma Jovem Portuguesa”. A sua repercussão ressentiu-se na imprensa nacional, com vários jornais académicos e/ou católicos a mencionarem a famosa “Carta”, enquadrando-a como uma afronta à moral e à organização social vigente. À luz do presente, a “Carta” é um texto aparentemente inocente, desprovido de conteúdo passível de suscitar reprovação no leitor vulgar, contudo, não nos esqueçamos que a mesma se inseriu num contexto social no qual a mulher se encontrava numa posição recalcada. A família, na qual a mulher ocupava um papel de completa subalternidade – sendo mulher ou filha – apesar de ser considerada o “centro moral” da organização. As principais qualidades da mulher, de acordo com os critérios da época, reduziam-se a dois conceitos: “boa esposa” e “boa mãe” (Pimentel, 2001: 30-34). Em suma: “boa dona de casa.” Uma “boa mulher” seria portanto aquela que se dedicasse ao seu “papel” imposto pela norma dominante e que não procurasse sair deste quadro de subordinação. O sexo seria um mero acessório subjugado à maternidade e o seu carácter de prática fisiológica natural era reprovado pela moral oficial. A virtude estava na castidade. 31 O debate de temáticas de carácter sexual era portanto impermeável à opinião pública, o que talvez explique a razão pela qual “Portugal tenha sido um dos países da Europa

De acordo com a legislação em vigor, o matrimónio estava passível de ser anulado caso o marido descobrisse que a esposa não era virgem. 31

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que no inicio dos anos 60 tenha tido uma das taxas mais elevadas de crianças nascidas fora do casamento” (Gersão, 2015). É justamente dentro dos problemas de carácter sexual que a “Carta a Uma Jovem Portuguesa” se inseriu. Não sendo contudo estritamente dedicada a essa temática. Na senda de artigos inovadores anteriormente publicados na VL, como “A Universitária e a Vida Associativa” ou “Relações Entre Rapazes e Raparigas”, a “Carta” vai mais longe. Partindo do mesmo principio que os outros artigos – que inferiam que a sociedade tradicionalista “arcaica” seria a razão das contradições de carácter sexual presentes no meio académico e na sociedade em geral – a “Carta” debateu problemáticas de cariz sexual, defendendo uma sexualidade espontânea: “Veio o teu impulso para mim e o meu impulso para ti – o que interessa se eram ou não verdadeiros? Eles estavam certos pois tinham acontecido nessa altura.” (VL, 1961, 130). Os artigos anteriores não tinham ousado discutir assuntos relativos à intimidade sexual, referindo apenas uma ou outra vez a necessidade de uma educação sexual. A polémica gerada pela Carta perfaz-se porque a mesma “levanta problemas de moral sexual, e na academia os debates relativos às relações entre sexos não se encaminhavam nesse sentido. Apenas se discutiam temas relacionados com a participação feminina no meio associativo e social” (Gersão, 2015). O artigo assinado por um incógnito A. – que mais tarde se assumiu como Artur Marinha de Campos – principia com uma denúncia da sociedade tradicionalista, responsável pelo fosso existente entre rapazes e raparigas: “A minha liberdade não é igual à tua. Separa-nos um muro, alto e espesso, que nem tu nem eu construímos. A nós rapazes (…) onde temos uma ordem social que em relação a vós nos favorece. Para vós, raparigas, o lado de lá desse muro; o mundo inquietante da sombra e da repressão mental. Do estatismo e da imanência” (VL, 161, 130). Para Marinha de Campos, o dogmatismo social para além de condicionar o comportamento das jovens é também responsável pelas incertezas morais e sentimentos de culpa que nestas surgem durante qualquer tipo de relação com um indivíduo do sexo masculino. “Sonhas com uma rapariga livre e tens a inquietante sensação que isso te não permitido por ti mesmo. Continuas a pensar intimamente numa prisão gloriosamente segura. È essa imagem que repudias, que negas para poder afastá-la.” Fala-se primordialmente, de uma recusa física que é uma necessidade inalienável do ser humano e do jovem em particular, que está numa fase de descoberta. As regras morais vigentes serão as principais responsáveis por este 108

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flagelo que inviabiliza ou incapacita as relações quotidianas, e mesmo amorosas, entre rapazes e raparigas. Já nos parágrafos finais o autor pediu para que os jovens lutassem pela “libertação, através de uma mútua liberdade”, todavia, para isso, as jovens teriam de “trilhar os caminhos da compreensão e da aproximação e não os do afastamento desconfiado.” Colaborando em tudo o que “os rapazes elaborem e realizem, sempre num plano de igualdade.” As jovens têm portanto de “participar na mesma frente”, na “frente das reivindicações para a construção de uma melhor realidade juvenil. (Idem, Ibidem). A controvérsia gerada pelo artigo foi incendiária e imediata, tendo repercussões não só a nível académico mas também fora deste. Através de artigos de imprensa, comunicados, panfletos a “Carta” ficou famosa, e não pelas melhores razões (Garrido, 1996: 110-114). As organizações institucionais juvenis (MP e MPF) em conjunto com outras organizações de carácter católico (como a Juventude Católica e a Juventude Católica Feminina) questionaram o conteúdo da carta. Para além destas organizações de maior notoriedade, muitos jornais católicos regionais atacaram violentamente a “Carta”, reagindo com “nojo” e “indignação”, face a um texto que, de acordo com a sua lógica, defendia “uma imoralidade arvorada em norma de conduta.” Paralelamente, outros agrupamentos juvenis de extrema-direita acusavam o autor de ser um “profissional da subversão”, estando ao serviço de “Praga e de Moscovo”. O jornal conservador diário A Voz afirmou que na “Carta” “insidia o programa do comunismo internacional” (Bebiano, Silva, 2004: 442-443). Já um outro jornal católico, o Novidades, afirmara que era preciso ter “cautela com os convívios!” [entre rapazes e raparigas] (Cardina, 2008: 46). Ao inteirar-se da controvérsia que se generalizada, a VL dedicou o número seguinte, na íntegra, ao debate de questões não só relacionadas com as reacções à “Carta” (provenientes dos mais variados espectros), mas também a temáticas de teor feminino. Artigos como “Inquérito à Jovem Portuguesa”, “Encontro do Homem e da Mulher na Universidade” e “A Universitária e a Vida Associativa” revelam a diversidade de temas que foram abordados no número cento e trinta e um da VL. Quanto às reacções à “Carta” presentes na revista emergem artigos em tom condenatório, laudatório e outros que salientam aspectos positivos e negativos. Da autoria de três estudantes masculinos (certamente católicos) surgiu uma carta que afirma que “depois de tudo o que ouvimos dizer (…) nas Assembleias Magnas, acerca dos panfletos anónimos que todos deplorámos por ofenderem os nossos 109

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princípios morais académicos (…) muitos nos surpreendeu que a VL, órgão que devia ser o defensor moral da Academia, se pusesse do lado deles, publicando o artigo “Carta a Uma Jovem Portuguesa”, um ultraje às normas morais e humanas.” (VL, 1961: 131). Uma outra carta, da autoria da Natividade Figueiredo acusava o autor da carta de cobardia por não ter assinado com o nome verdadeiro, e afirmou que a jovem portuguesa “não vive oprimida e com tendências recalcadas, nem vive um triste sonho como o senhor afirma na sua carta.” Já o artigo “Conversando Contigo Jovem Portuguesa”, aparenta ter sido concebido com o propósito de defender a “Carta” contra as acusações que lhe imputavam uma suposta defesa do amor livre. O autor deste texto assumiu que se “uma certa barreira existe entre nós [é porque] tu e eu temos a culpa, na medida em que colaboramos para que ela continue” e que, se essa barreira tem que ser quebrada “não é para possuir-te física e unicamente, mas sim para melhor nos conhecermos (…) Assim procedo pois creio que tu desejas alcançar a liberdade numa mais ampla escolha que te é perfeitamente legítima e não ser escrava dos que só desejam possuirte” (Idem, Ibidem). O Conselho Feminino também publicou considerações sobre a Carta, onde estão presentes as seguintes cláusulas: “1 – A sociedade hodierna, para progredir, precisa do contributo do homem e da mulher, numa participação consciente e responsável. A cada um destes compete um papel específico, urgente e igualmente necessário. 2 – E porque pessoa humana – ser inteligente e livre (e consequentemente responsável) – implica a existência de uma dignidade inalienável, impõem-se que a integração social se faça com referência a uma axiologia que a tenha em conta. 3 – Dada a individualidade da mulher – que lhe permite assumir o papel específico que perante a sociedade lhe compete – exige-se que não seja erigida como válida qualquer escala de valores que negue este realidade. 4- Perante a tendência para emancipar destes valores a mulher (tendência concretizada em tentativas paulatinamente surgidas e desenvolvidas, que podem conduzir a um desequilibro ontológico), urge que se processe, como reacção, o desenvolvimento harmónico conforme os valores éticos.5-A rapariga universitária, porque universitária, compete uma mais esclarecida correspondência das exigências sociais (…) 6 – Daqui, a necessidade de respeito por qualquer posição conscientemente assumida e honestamente defendida, sem que tal tolerância implique a abdicação dos princípios erigidos como válidos” (Idem, Ibidem).

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Estas alocuções revelaram uma procura de convergência com os valores tradicionais femininos como a terceira cláusula bem evidencia. Todavia, como Eliana Gersão revelou mais tarde no livro de entrevistas sobre o movimento estudantil de Coimbra Anos Inquietos, quem escreveu estes estatutos foi o Padre Miguel Baptista Pereira, professor de Filosofia da Faculdade de Letras. O CF era, aquando da publicação deste texto, apenas constituído por duas estudantes (Eliana Gersão e Glória Padrão), que se encontravam numa posição delicada. Durante este período conturbado, no qual os debates sobre a moralidade feminina assolavam a academia, a Assembleia de Raparigas acusou o CF de ser demasiado “independente” e não representar a estudante comum. O CF ficou automaticamente no meio de dois fogos. “Apoiar a carta era sujeitarmo-nos a ser crucificadas na praça pública, mas criticá-la era trair a AAC, o que nós não podíamos nem queríamos fazer. Estando numa situação de aperto, o CF recorreu então à ajuda do professor e padre Miguel Baptista Pereira (Gersão, 2001: 40). O “Inquérito À Jovem Portuguesa” presente no mesmo número da VL, fornece também depoimentos esclarecedores que se traduzem numa síntese barométrica das opiniões das raparigas face ao seu papel na sociedade. O “Inquérito” feito a raparigas envolvidas em diversas secções da AAC desdobra-se em três perguntas: 1 – Como encaras o teu papel dentro da secção a que pertences? 2 – Qual é o maior obstáculo para o seu desenvolvimento? 3 – Qual a tua opinião sobre o papel a desempenhar a mulher no século XX. A terceira pergunta é obviamente a mais importante. Das 9 raparigas inquiridas, quase todas atribuíram à mulher o papel preponderante da maternidade, apesar deste se consubstanciar uma superior educação e formação intelectual. Do universo das inquiridas, apenas uma é que deu uma resposta mais complexa ao afirmar que tanto o rapaz como a rapariga “participam ambos de modo directo na vida social e devem, portanto, ambos, receber da sociedade e serem vistos por ela num plano de igualdade, não devendo, um mais que o outro, possuir direitos ou privilégios especiais” (VL, 1961, 131). “Carta A Uma Jovem Portuguesa” foi escrito por Artur Marinha de Campos, como o próprio veio a reconhecer, sob a influência da leitura fresca da obra de Simone de Beauvoir (Bebiano, Silva, 2004: 442) e da escola filosófica existencialista (Cardina, 2008: 45). Na visão de Eliana Gersão o autor da Carta não era o estudante comum, pois pertencia a uma família burguesa de grandes posses, viajava bastante, e tinha acesso a livros que muito dificilmente se encontrariam numa livraria ou 111

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biblioteca vulgar de Portugal (Gersão, 2001: 39). A “Carta” revela estes sintomas de distanciamento que demarcam o autor do estudante banal. Ao falar sem tabus de uma sexualidade espontânea, o autor chocou os leitores mais conservadores, que tomavam as concepções e identificações sociais tradicionalistas como verdades absolutas e inquestionáveis. Contribuindo inadvertidamente para que estes vissem na “Carta” uma mera apologia do amor livre. Todavia, o texto não se restringe somente ao debate sobre a sexualidade, esta surge apenas como uma partícula que se insere na integralidade do comportamento inter-sexual. A ideia principal que se encontra espelhada no texto é a da opressão das mulheres em todos os aspectos da sua condição social – a sua incapacidade de acção, de amar ou de se deixar amar. A “Carta” é portadora por um certo ímpeto poético, e argumenta a impossibilidade de se alcançar um genuíno amor se os homens e as mulheres continuarem “separados”. Apesar de, como é evidente, o acto sexual não ser tomado como um fim nele mesmo pelo autor da “Carta”, a opinião pública estudantil, os sectores mais à direita, e as organizações católicas, utilizaram a apologia a essa mesma “sexualidade espontânea” para condenar impetuosamente tanto o autor da Carta como a VL, pelo simples facto de a ter publicado. A VL defendeu-se dizendo que como órgão da AAC, devia ser pluralista e portanto, publicar todos os artigos, independentemente de concordar ou não com estes. “A consequência mais importante da carta, é que serviu para demarcar campos, e ver quem era a favor da AAC – mesmo que não concordasse com uma boa parte do conteúdo da carta – e quem era contra, e condenava quer a carta, quer quem contribuiu para a sua publicação. Acabou por servir também para ver quem era a favor da liberdade de imprensa e quem era contra” (Gersão, 2015).

7.6 - A rapariga e o desporto universitário O desporto feminino foi assumido como uma prática útil e saudável pela VL excluindo algumas opiniões particulares - desde as direcções de direita da AAC até à presidência da lista de Carlos Candal. Atribuiu-se à prática desportiva uma importante utilidade na optimização das aptidões físicas da mulher, preparando-a fisicamente para a sua principal função social, a maternidade. No entanto, a participação feminina no âmbito desportivo consubstancia-se também com a nova dinâmica feminina então emergente. O desporto representou uma das múltiplas

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actividades na qual a mulher se deve envolver, para melhor se integrar na sociedade e no meio académico. De acordo com os padrões sociais da moral vigente, a adesão da mulher às práticas desportivas suscitava nas elites do poder uma polarização de opiniões. Alguns sectores, viam na mulher desportista um importante contributo para o “aperfeiçoamento da raça” tornando-a apta para gerar filhos fortes, enquanto outros assumiam que uma mulher sujeita às práticas desportivas se “masculinizava” excessivamente (Pimentel, 2001: 209-211). A MPF integrou inicialmente no seu programa sobre educação física e desporto feminino, uma cláusula que arrogava a mulher desportista como um elemento indissociável do “aperfeiçoamento da raça” e da “regeneração da nação”, entrando assim em concordância com os objectivos do Estado Novo provenientes da Constituição de 1933. Todavia, a Igreja, acusou a campanha pelo desporto feminino de ser um invólucro de uma certa “cultura física depuradora, racionalmente e cientificamente errada que quer fazer da mulher, um puro animal atlético.” O poder católico defendeu que no desporto, o papel da mulher devia ser o de espectadora e não o de exibicionista, ao atacar as noções de equiparação e igualdade entre os dois sexos. Independentemente destes sectores mais conservadores ligados à Igreja terem uma visão negativa do desporto, em 1937 foi criado o Ginásio Feminino Português que estabelecia o seu programa numa “educação feminina assente na trilogia incidível de “Deus, Pátria e Família””. A campanha empreendida pelo Ginásio Feminino Português, acabou por “forçar a Igreja, preocupada com o monopólio estatal da educação das raparigas, a apoiar pragmaticamente a criação de uma organização feminina pelo Estado, com o qual partilhava inimigos ideológicos: o liberalismo, o comunismo e o feminismo” (Idem, Ibidem: 212). Independentemente de o desporto feminino institucional se cimentar a partir do final da década de 30 e princípios de 40, alguns sectores masculinos da Igreja e do Estado Novo continuaram a olhar para o desporto e para a educação física como práticas que masculinizavam as raparigas. Estas concepções arcaicas perduraram até à década de 1960 em forma de nicho, não sendo consensuais nas elites e estruturas dirigentes. Durante a década de 1950, o desporto feminino tornou-se numa prática mais valorizada a nível geral, ao ser obrigatória para as estudantes de liceu a disciplina de Educação Física. De acordo com Eliana Gersão, as raparigas eram encorajadas a praticar desporto, e no caso de Coimbra, dispunham de instalações que lhes 113

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permitiam praticar várias categorias desportivas, tais como a ginástica, o voleibol e o basquetebol. (Gersão, 2015). No entanto, apesar de se registar uma maior adesão às práticas desportivas femininas, os sectores mais conservadores continuavam a difundir ideias que se erguiam contra estes costumes. Vejamos um artigo presente numa edição Menina e Moça (revista da MPF, que constituía uma das leituras de eleição das jovens da época) do princípio da década de 1960: “Tens um belo maillet de banho de seda azul claro e preferes ficar estendida na areia a molhá-lo. És mais coquette que desportiva! Jogar ao ténis tomando atitude pretensiosa. Dás-te em espectáculo…não jogas! Tens mais tendência para o teatro do que para o desporto. Procura jogar a horas em que não tens espectadores. Quando ganhas, mostras uma alegria excessiva, quando perdes, choras. É um excesso. Talvez futilidade. Defeitos muito pouco desportivos (…) ” (Menina e Moça, 1961, 160).

O objectivo deste texto, parece claro, foi o de desmoralizar a rapariga que ambicionasse praticar desporto. Estereotipando-a como excessivamente inapta para as práticas desportivas. A despeito de ser impossível de precisar o que a rapariga comum da época pensava relativamente ao desporto. Podemos separar as raparigas em dois grupos: as que praticavam desporto e as que concordavam com este preconceito dogmático difundido pelos sectores mais conservadores do próprio regime. Sucintamente, é viável admitir que como resultado das concepções sobre o papel da mulher na família e na sociedade, esta foi também, de certa maneira, alvo de repressão no plano desportivo. A VL insere-se na posição que procurava democratizar o acesso da mulher às práticas desportivas. Num texto de 1959, da autoria de Margarida Frias, campeã de natação, foram reveladas preocupações sobre a decadência do desporto feminino. O artigo procurava salvaguardar que não será por timidez que as raparigas não se procuram entregar às práticas desportivas. Mas antes por preguiça. A autora alerta também para a recente criação de um Organismo Cultural e Desportivo recentemente concebido pelo conselho feminino, encorajando as leitoras a praticarem desporto com “energia” e “vontade”, pois ficarão “engrandecidas física e moralmente” (VL, 1959, 83). As referências ao desporto feminino são no entanto escassas. E após este artigo da autoria de Margarida Frias, só no número 125 (já durante a presidência de 114

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Carlos Candal) é que o desporto feminino volta a ser mencionado. O artigo em questão refere-se a um derby de basquetebol entre a equipa feminina da AAC e o Paris Université Club, no qual é obtido um resultado bastante desigual: 70-17. O Paris Université Club alcançou uma vitória esmagadora. A causa que levou esta pesada de derrota foi a insuficiente preparação das jogadoras da AAC e a superioridade táctica das oponentes. Nas palavras de uma das jogadoras da equipe: “Quando entrámos em campo, notou-se logo a nossa inferioridade física, não

contando com a saúde abalada de quase todas. No estado em que estávamos e lutando contra “montanhas” não podíamos ter feito melhor” (VL; 1961, 125). Ainda no mesmo número, está presente um artigo intitulado “A Mulher e o Desporto” que visou incentivar a rapariga universitária a pratica-lo, devidos às benesses físicas e psicológicas. O artigo menciona a recente criação da secção de voleibol da AAC, que só virá a entrar em real actividade no presente ano lectivo. Por fim, a reportagem é concluída com uma entrevista à jogadora Maria Alcina dos Anjos Dias, da equipa de Voleibol da AAC na qual a mesma refere que “o desporto é um dos factores fundamentais para o desenvolvimento das qualidades físicas e morais da Mulher.” Salientando que de “entre as varais modalidades, entendo que a mais completa é, precisamente o Voleibol, não só pela facilidade com que pode ser jogado, como por não haver inconveniência de idade e sexo à sua prática...” Maria Dias finalizou a entrevista, subordinando a prática desportiva à maternidade: “A Mulher necessita de fazer exercícios físicos que lhe proporcionem a robustez necessária para bem desempenhar, no futuro, a elevada missão que lhe cabe perante Deus e o Homem – a da maternidade! No campo desportivo, a mulher é pouco mais que uma “massa morta”! Ora, é preciso lutar contra essa falta ideia, é preciso despertar, uma vez que o desporto dá, precisamente, saúde, força e beleza!..”( Idem, Ibidem).

No número 126 da VL, foi noticiado um outro jogo entre a AAC e o Paris Université Club, realizado no campo de Santa Cruz. O resultado revelou-se outra vez bastante desproporcional, 74 – 22 para o Paris Université Club. No artigo, foi salientada a grande diferente entre as atletas de cada equipa, quer nas competências técnico-tácticas, quer na altura das oponentes. O Paris Université Club foi uma grande equipa de basquetebol a Nível europeu, uma das três melhores em França e uma das melhores a nível da Europa Central (não tendo no entanto hipótese contra as 115

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equipas de leste, como é admitido por uma das jogadoras numa entrevista ao VL). A AAC justificou o seu fraco desempenho devido a uma falta de preparação técnica e a um certo amadorismo. (VL, 1961, 126). O último artigo que se encontra na VL alusivo às vantagens do desporto feminino intitula-se “Desporto - À jovem desportiva universitária”, onde são destacadas as virtudes das práticas desportivas, mas também uma tentativa de despertar o interesse da rapariga pelo desporto, sublinhando todos os contributos da prática desportiva, quer a nível físico quanto moral. Existe ademais uma diferenciação entre o desporto masculino e feminino. “O que o desporto feminino tem de leveza, graciosidade, feminilidade, digamos mesmo fragilidade, tem o desporto masculino de força, violência e virilidade.” A autora exemplificou a presença do dimorfismo sexual na ginástica, referindo que um exercício praticado por um homem “dá a sensação de força, poder virilidade” enquanto que o mesmo exercício feito pela mulher torna-se gracioso, leve, cheio de harmonia e feminilidade”. Procurando não levar o leitor a confundir “duas coisas completamente diferentes: desporto feminino e desporto masculino.” Por fim, a autora rematou o artigo com seguinte questão “Não é maternidade o fim último da mulher? Em que é que a sua participação nos Jogos Olímpicos a impede de realizar? (…) Medita bem, e não esqueças que te falo na prática desportiva feminina orientada portanto, de maneira a favorecer em tudo a mulher (VL, 1961, 136). Para além desta posição geral que advoga a prática desportiva feminina, no número 122 da publicação, encontram-se considerações que assumem as práticas desportivas como contrárias à natureza da mulher. Ramiro Correia afirmou que “a actividade desportiva deve estar vedada à mulher”, pois esta “não se encontra nem anatómica nem mentalmente fadada para essa actividade (…) que exige e desenvolve qualidades que nela não (…) [existem] nem são necessárias (VL, 1961, 122). Este autor voltou a publicar outro artigo no seguimento do anterior, no qual, radicalizando-se ainda mais, defende que as provas femininas deveriam desaparecer dos Jogos Olímpicos, pois as competidoras não passavam “doentes hormonais” completamente masculinizadas (Idem, Ibidem). Entre 1958 e 1962 a VL veiculava primordialmente uma posição face ao desporto feminino: A defesa da liberalização do desporto às participantes que neles quiserem integrar. Todavia, como é patente, este apelo ao desporto tem sempre a mesma finalidade: o de melhorar as capacidades orgânicas da mulher, para que 116

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cumpra a sua derradeira missão maternal. A posição que defendia o bloqueio do acesso da mulher ao desporto certamente que provinha de autores alinhados com os sectores mais conservadores ou católicos, mas que, dado a liberdade de opinião – não nos esqueçamos que a VL pretendia ser a “voz dos estudantes” – ser um dos valores defendidos pela lista de Candal, é natural que tenha sido publicada.

7.7 - Conselho Feminino O Conselho Feminino foi criado em 1950. Ano em que as estudantes universitárias constituíam 29% do número total de estudantes inscritos na UC. O que representa uma subida de 5% face à década anterior (Ferreira, 1987: 93). Dentro dos objectivos deste organismo, pretendia-se facultar informação sobre “economia e arranjos domésticos, noções gerais de enfermagem e puericultura, culinária, corte e costura.” Os cursos de puericultura e enfermagem foram logo postos em prática em 1951 e 1952. O CF era constituído por uma representante de cada Faculdade. Existindo na UC cinco faculdades (Direito, Letras, Medicina, Farmácia e Ciências), o grupo era composto por cinco raparigas. Cada faculdade elegia a sua representante, e depois, o próprio CF distribuía os cargos (Gersão, 2015). A criação do CF esteve portanto indubitavelmente comprometida com o conceito tradicional de mulher, tal como a VL e a DG da época. É só após a chegada de Carlos Candal à presidência da AAC, que o CF procura compelir as estudantes a um maior compromisso para com a actividade associativa. Através da dinamização de colóquios e da criação actividades que diferem por vezes, de modo radical, das inicialmente promovidas pelo CF. Dentro das actividades que procuravam integrar as raparigas na vida associativa destaca-se a pressão que o CF fez junto da DG, para que este alterasse o horário a que normalmente se realizavam as Assembleias Magnas, pois ao ocorrerem após a hora do jantar, tornava-se impossível a que a maioria das estudantes pudesse comparecer. Não nos esqueçamos dos inflexíveis horários dos lares. A VL é testemunha destes ventos de mudança dentro do CF. Apesar das alterações ocorridas no princípio da década de 1960, o CF manteve um conjunto de actividades aparentemente comprometidas com o conceito tradicional da mulher, “embora procurando transformar o seu conteúdo (por exemplo, a tradicional “puericultura” foi sub-repticiamente um curso de informação

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e educação sexual) 32 , mas pretendeu sobretudo contribuir para a integração das raparigas na vida normal da AAC, nas suas secções e actividades (…) ” A ligação entre o CF e a direcção de Candal acabou por gerar grande controvérsia e um percurso atribulado. “As raparigas dos sectores mais conservadores reagiram de várias formas e convocaram uma assembleia-geral de raparigas, para censurarem o CF por esta colaboração (…) Dentro do próprio conselho houve divergências e rupturas (Gersão, 2015). As menções ao CF e às suas actividades pela VL são, no entanto, escassas. Entre 1958 e 1962, registam-se cinco artigos directamente ligados ao CF. Uns são comunicados da autoria da organização enquanto outros são relatos de actividades promovidas. No número 80 da VL um artigo intitulado “Actividades Femininas” foi proposto manter os estudantes a par das novas actividades realizadas. E colaborar com a AAC na campanha conjunta de tentar motivar as estudantes a participarem na vida associativa “ [pedindo] à DG que as magnas se realizem a tarde, pois de noite as estudantes não conseguem comparecer” (VL, 1958, 80) Em 1961, já após a Tomada da Bastilha pela lista de Carlos Candal, o CF emitiu um comunicado no qual afirmava já ter em funcionamento as seguintes actividades: Curso de Ginástica, Curso de Artes Decorativas, Colóquio de Puericultura Pré-Natal e Pós-Natal. (VL, 1961, 124) Estes cursos inauguram um novo período no CF, que actua em pareceria com a recente lista presidida por Candal. O curso de Ginástica é a primeira actividade de carácter desportivo a ser promovida pelo CF. E já o Colóquio de Puericultura Pré-Natal e Pós-Natal, é na realidade um curso de educação sexual33 (Gersão, 2015). Já em 1962,o CF organizou um colóquio relacionado com a mulher e a vida profissional, intitulado de “Carreiras Abertas À Mulher”. O artigo presente na VL referia que o evento contou com uma adesão notória e que se registou um elevando número de estudantes à “Faculdade de Medicina para o colóquio inaugural do ciclo (…) Este número é particularmente significativo e bem comprova o segundo aspecto apontado se compararmos ao que se apresentava há dois anos, perante colóquios sobre temas idênticos, organizados também pelo CF.” Para além de uma comparência masculina considerável o colóquio contou a presença da Dra. Maria José Moura Santos, assistente da FLUC. Como já foi referido, o colóquio visava o

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Como o comprova um documento encontrado no Museu Académico.

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debate do papel da mulher na Família e forma de como este condiciona o exercício profissional. Posteriormente deu-se um debate no qual se prestaram depoimentos provenientes de estudantes de ambos os sexos. Apesar de todas as questões não terem sido debatidas com a devida profundidade, o CF salienta que “o que sobre eles foi exposto e discutido contribui para um maior esclarecimento de todos, para uma visão mais lata do problema, visto que ele foi encarado sobre vários ângulos, e deverá ainda servir de base ao estudo e meditação mais profundos que o tema merece” (VL, 162, 140). O CF surgindo como uma instituição que procurava integrar as raparigas dentro da AAC, esteve sujeito às mudanças de política desta última. Ao perfilhar ideias, colóquios e actividades que se subjaziam aos novos ideais políticos então em afloramento. Após a crise de 1962, a progressiva feminização do ambiente académico acabou por transformar o CF num organismo anacrónico: “Com a sucessão dos acontecimentos desse ano e as transformações profundas do meio estudantil e a própria cidade, a integração da rapariga na AAC tornou-se natural e espontânea e, lá para o fim do ano, já se questionava se tinha sentido existir na AAC um órgão dedicado especificamente às raparigas. Penso que a partir de então o CF perdeu relevância” (Gersão, 2015).

A questão feminina estabeleceu-se nas páginas da VL, acima de tudo, como um leimotiv da profusão das estudantes pelo meio universitário de Coimbra. Como uma boa parte destas provinham de meios católicos e moravam em lares, era natural que não apresentassem um posicionamento combativo ou contestatário. As direcções de esquerda da AAC (a começar com Carlos Candal em 1961) dedicaram-se assim a tentar sensibilizar as jovens universitárias, movendo-as para a sua esfera de influência político-associativa e compelindo-as a participarem nas mais variadas actividades associativas (desporto, teatro, escrita, redacção da VL). Contudo, “a questão feminina não era uma prioridade política” e a exposição dada às questões femininas no VL não foram propositadamente deliberadas, foram artigos que simplesmente surgiram com naturalidade e espontaneidade” (Nunes, 2015.) Como se pode constatar, as posições presentes na VL não reflectem as aspirações e opiniões da massa universitária comum, sendo uma visão restrita a uma certa “elite intelectual” que, consubstanciada a uma praxis associativa que procurava fazer frente ao regime, perfilhava. O combate à submissão da mulher foi sobretudo 119

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um combate político. Independente do esforço feito pela DG e pela “elite estudantil”, os esforços não se revelaram muito eficazes. Já que uma grande parte das raparigas permaneceu desinteressada face às actividades da AAC. Como o provam o CF (que nunca passou da cinco raparigas, estando em períodos mais críticos com apenas duas constituintes) e as suas actividades, mas também as escassas contribuições femininas para as páginas da VL. A questão feminina tem no entanto que ser enquadrada num determinado contexto espaço-temporal. Para além dos debates teóricos existentes a nível nacional, há que evidenciar a própria reconfiguração que a persona feminina sofria no imaginário popular colectivo. Metamorfose da qual a cultura de massas e em particular o cinema foram baluartes.

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Conclusão O ambiente político e cultural no qual Portugal se encontrava durante o período considerado neste trabalho restringia em larga medida o acesso dos diversos públicos, do mais comum ao intelectual, às inovações teóricas, políticas e artísticas que se desenvolviam na Europa e no mundo. Não obstante, as transformações efectuadas conseguiram de algum modo penetrar no caldo político-cultural nacional. Os meios universitários representaram alguns dos terrenos mais férteis para embolsar e difundir as ideias, pensamentos, conceitos e gostos que, através de processos e influências várias, se foram instalando, contribuindo para um refluxo da hegemonia cultural e moral propalada pelo Estado Novo. De facto, o movimento estudantil nacional durante a sua maturação e radicalização política foi-se relacionado com grupos políticos da oposição salazarista (MUD, PCP) e bebendo influência de organizações e movimentos artísticos, não só portugueses como internacionais. No caso dos movimentos cine-clubistas e neorealistas, apesar de serem em sim categorias completamente diferentes, podemos constatar que eram círculos intelectuais já bastante enraizados na cultura clandestina portuguesa, levando todavia bastante tempo até estenderem a sua influência aos grupos artísticos dos estudantes universitários. Esta propagação ideológica, só se estabeleceu efectivamente a partir da intensificação das reivindicações académicas relacionadas com o decreto 40.900 e a autonomia das academias universitárias. A defesa da autonomia académica é acompanhada de um interesse crescente para com o consumo, produção e difusão cultural. A cultura, em todas as suas vertentes, é valorizada e assumida com um elemento indispensável da formação intelectual do jovem académico. No caso de Coimbra, a criação dos organismos culturais anda quase sempre de mão dada com a crispação das relações entre a AAC e o governo. Basta atentar ao carácter estatutário que caracterizou as organizações culturais da Academia de Coimbra. O TEUC, o CITAC, o CEC e o CEL foram todos considerados grupos autónomos da AAC. Será descabido questionar se para além dos ensejos artísticos que levaram à criação destes organismos, estes tenham também sido concebidos com o propósito de preservar alguma autonomia estudantil no caso de a AAC ficar totalmente subordinada aos ditames governamentais?

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A própria cena cultural da cidade de Coimbra, onde se destaca o papel da revista Vértice ou do Ateneu, terá dado um importante contributo para a propagação dos interesses culturais no meio estudantil. No entanto, as concepções artísticas vinculadas aos neo-realistas e aos intelectuais do PCP (ou por este em parte influenciados), radicadas numa certa ortodoxia estética não impediram que os autores existencialistas, em particular Albert Camus e igualmente Sartre, fossem recebidos com grande entusiasmo. Também no caso das práticas teatrais, o CITAC sintomatizou a descoberta de um novo tipo de teatro que até à data, excluindo a actividade do Teatro Experimental do Porto, era absolutamente desconhecido em Portugal. O gosto pelo avant-garde não era de todo alheio ao estudante de Coimbra, como se pode constatar. Relativamente às preferências cinematográficas, a VL transparece mormente uma fidelidade para com o cinema italiano neo-realista, mas igualmente para com algum cinema de autor internacional, sobretudo aquele que se compromete com causas de natureza política ou social. Já a nouvelle vague francesa foi mal recebida, em parte devido a alguma intransigência para com os seus experimentalismos formais, parecendo denotar alguma cumplicidade com os dogmas neo-realistas que perfilhavam por alguns cine-clubes. O objectivo da difusão cultural feita pelos estudantes que compuseram a AAC foi sobretudo o de tentar levar a bom termo uma prática de inclusão que se estendesse a todos os estudantes, assumindo as actividades culturais como elementos de qualificação e democratização de uma sociedade ensimesmada. Se o derradeiro propósito ambicionado por estes estudantes foi o de alcançar um clima democrático de livre discussão de pensamentos ideias, o mesmo não foi possível, pelo menos num futuro imediato. Porém, as actividades e debates por eles promovidos foram responsáveis por alterações significativas na sociedade portuguesa, não só no plano cultural como a nível social. A crescente importância que a AAC e a VL foram atribuindo às estudantes universitárias e ao lugar ocupado pela mulher na sociedade portuguesa contribuiu para que um aceso debate se estabelecesse. Os direitos da mulher foram revistos e debatidos, bem como as relações intra-sexuais e suas decorrentes implicações. A transformação cultural e social pela qual a AAC passou teve de facto na revista Via Latina um importante instrumento e testemunho. Não só porque as mudanças foram noticiadas na publicação mas principalmente pela importância que a VL teve na comunicação e discussão entre os estudantes da Academia e os 122

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organismos exteriores. Recorde-se os pedidos feitos à AAC para a criação de organismos autónomos (como o CEL), os apelos feitos à administração e ao reitor da Universidade de Coimbra e à Fundação Calouste Gulbenkian, mas principalmente o espaço de livre (dentro dos constrangimentos existentes) debate que as páginas da VL proporcionaram.

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Bibliografia Publicações periódicas: Via Latina (1941-1962) Quadrante (1958-1962) Encontro (1958-1962) Menina e Moça: Revista da Mocidade Portuguesa Feminina (1958-1962) Dia do Estudante (1962) Diário de Coimbra (1958-1962) Vértice (1958-1962) Seara Nova (1958-1962) O Badalo (1963-1965) Diário de Coimbra (1958-1962) Almanaque (1958-1962) A Voz (1958-1962) Obras consultadas: ADEGAS, Filipe Alexandre Almeida, Ateneu de Coimbra: para a história da actividade política e cultural do Ateneu entre 1940 e 1974 (Dissertação de Mestrado em História Contemporânea, especialização em estudos internacionais comparativos), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2011. ALCARÃO, Rui e outros, Via Latina: 100 Anos Ad Libitium, Suplemento da Revista Via Latina, Coimbra, 1989. AZEVEDO, Natália, Práticas De Recepção Cultural e Públicos De Cinema Em Contextos Cine-clubísticos, Universidade do Porto, 1997. BARATA, José Oliveira O Teatro e a Universidade de Coimbra, Revista de História das Ideias nº12 pp.375-393, Universidade de Coimbra, 1990. BARATA, José Oliveira, Máscaras da Utopia: história do teatro universitário em Portugal 1938-1974, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2009. BEBIANO, Rui, SILVA, Alexandra, A reidentificação do feminino e a polémica sobre a “Carta a uma Jovem Portuguesa, Revista de História das Ideias nº25, Universidade Coimbra, 2004. BEBIANO, Rui, O Poder da Imaginação: Juventude, Rebeldia e resistência nos anos 60, Coimbra, Angelus Novus, 2003. BEBIANO, Como Se Faz Um Povo – “«Povo pop», mudança cultural e dissensão pp. 441-453, coordenação de José Neves, Lisboa, Tinta da China, 2010. 124

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Anexos Anexo 1 Manifesto Juvenil – Manuel Sando (VL, 1960, 120) Ouçam rádio Tecendo histórias e projectos Em conversas banais (Tudo em família) Vão pelos parques Apanhar os bocados de domingo Que o vosso Deus Lançou à terra Vão aos cinemas Sonhar por 10 escudos, Viajar, Rir, Chorar, Por outras vidas Que ninguém viveu Façam tudo isso, Tudo isso com método Cheios desse pedaço de felicidade De rolarem em paz No meio as coisas. Podem viver todos assim, Enforcados de mediocridade, Mastigando longamente O bafio das tradições. 130

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Mas não venham Depois Desenhar caminhos, Agitar bandeiras E pregar destinos Aos jovens que começam. Afundem-se nesse espasmo de tédio Mas deixem-nos buscar Os nossos sonhos Anexo 2 Bi- Dimensão PsicoBurguesa – Carlos Pinhal Verde (VL, 160, 120) Vocês não sabem a história Mas eu conto As coisas aconteceram naturalmente Sem complicações estranhas com a simplicidade dum nascer do sol Na nossa vida há sempre um momento de encruzilhada onde nós ou valemos tudo ou nada -eu vali nada Ou talvez não, talvez esteja equivocado, e isto que eu julgo ser nada seja no fundo uma posição Chatice! Mas é esta dúvida precisamente 131

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Que me fustiga Rasgando-me em dois pedaços certos Um pé no infinito Outro na realidade - e eu que resista heroicamente A esta tortura bárbara De decepar de membros!... Mas no fim a questão é sempre a mesma: Nós…. nós não – eu! (basta de armar em procurador da opinião alheia) eu tenho psicologia complexa E a história apaixonante e comovente dum individuo já morto ou que não nasceu Vivo demasiado for de mim ou então excessivamente dentro de mim para que possa de verdade Ser eu! Anexo 3 Poema de César de Oliveira (VL, 136, 1962) “No Natal os miúdos da minha terra não têm brinquedos nem árvores do Natal Nem comem bolos pela tarde têm antes que ir aos gravetos nos pinhais e aos quintais verdes às laranjas e à noite 132

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dormem tranquilos julgando que foram meninos.” Anexo 4 Como se houvesse festa – Manuel Alegre (VL, 1961, 123) “Trago um país de música nas mãos sem nada Meu nome são três sílabas salgadas começa exactamente onde começa uma nação vestida de tristeza as notícias que trago são proibidas venho contar a história verdadeira duma pátria viúva de si mesma venho acender no coração do povo um canto como uma espada Venho dizer que ainda estamos vivos e as palavras ainda não morreram venho escrever no coração dos homens a palavra esperança e a palavra liberdade São homens que não sabem o tamanho De suas mãos curvadas sobre a terra, são mulheres pálidas e magras que não sabem desse povo que trazem na barriga. São meninos com vidros para os olhos E paredes para os poemas, meninos tristes, cujo destino é lentamente envelhecer No meu país só os pássaros são livres, o meu país é triste, triste Eu venho dar a todos uma espada, venho dizer que a pátria somos nós E que amanhã há festa, a grande festa 133

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onde as mãos terão exactamente o tamanho das mãos do homem. Como se houvesse festa algures dentro de mim eu venho para a rua e canto com minha voz descalça e livre, em meu cantar como se fora um povo deserdado que cantasse. Meu nome são três sílabas salgadas, Venho escrever no coração dos homens a palavra esperança e a palavra liberdade.”

Anexo 5 Poemas de César de Oliveira – (VL, 1961,130) Repto “De que servem canhões Se em gestos brandos A paz pode vir ao mundo? De que servem ódios e rancores Se numa luz calma e doce Vem o amor? De que servem guerras? De que serve, opressões, Tiranias, Hipocrisias, Mentiras ocas, Hipócritas, Gregarismos de fachada? De que serve tentar homens Que seguem caminhos seus Por eles escolhidos livremente? Andem. 134

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Digam-me. Não fujam ao desafio. Justifiquem-se. De que serve tudo isso, Tudo, Se os homens, Todos os homens, São irmãos?” Libertação Ah! A libertação dos homens Que presos às grades da secularização Do passado Estão manietados Ah! A liberdade do mundo, universal do homem Ainda a conquistar, Ah! Os ricos que num banquete ceiam Os bocados melhores dos despojos da batalha de todos os homens. Ah! Os ferros agudos e recurvados Que todos os dias arrancam e revolvem o que cada homem tem de próprio e universal Desesperante, atrofiante Assim o mundo de todos nós. Homens! A mansidão faz parte de vós Até ao âmago de vosso ser. Ao Diabo e aos mansos que não lutam por eles próprios. Homens, todos os homens: Lutemos por um mundo melhor Com esperança, Com amor, Compreensão, E liberdade.”

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