Mudança Cultural e Sustentabilidade: Estudo de Caso em uma Ecovila no Brasil

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Este artigo está baseado em uma pesquisa de mestrado realizada no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, que deu origem a uma dissertação intitulada Ecovilas e a construção de uma cultura alternativa. Agradecemos o apoio recebido do CNPq (em forma de bolsa de estudos) para a realização da pesquisa que inspirou este artigo. Agradecemos também às observações de Marcel Bursztyn, José Augusto Drummond, Hans Carrillo Guach e Francisco Paolo V. Miguel sobre a versão original deste paper. Quaisquer erros remanescentes, no entanto, são de nossa inteira responsabilidade.
As citações em língua inglesa foram livremente traduzidas pela autora.
O nome da comunidade e de seus membros foram trocados para preservar as identidades dos sujeitos pesquisados.
Mudança Cultural e Sustentabilidade: Estudo de Caso em uma Ecovila no Brasil

Rebeca Roysen (UnB)
Mestre em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e Doutoranda em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília (UnB)



Resumo
Partindo do pressuposto de que a crise ecológica exige mudanças não apenas políticas e econômicas, mas também culturais, foi realizado um estudo de caso em uma ecovila. O objetivo foi explorar as possibilidades e dificuldades encontradas no processo de mudança cultural proposta pelo grupo. As principais dificuldades encontradas foram a modificação de automatismos corporais e disposições incorporadas e a criação de novos equipamentos culturais. A mudança das práticas não decorre diretamente da mudança de valores, mas envolve também uma mudança corporal. Descobriu-se que a vida em ecovila propõe a intensificação da experiência sensorial e promove uma redefinição das necessidades de seus membros. Este artigo sugere que a sensação de pertencimento a um grupo solidário e a existência de ideologias ou visões de mundo articuladas e compartilhadas são fatores que podem facilitar o processo de mudança cultural.


Grupo Temático 6: Sociedade, Ambiente e Educação



Introdução
A cultura é um campo importante de transformação social. Por mais que estejamos mergulhados em costumes e tradições culturais, nós não somos simples receptores de cultura, mas atores ativos e criativos. Nós avaliamos o mundo em que vivemos, imaginamos novas formas de vida e experimentamos novas maneiras de agir (BOSI, 1987; JASPER, 1997; OLIVEIRA, 2006). A possibilidade de mudança cultural é uma questão primordial que a crise ecológica levanta. Diversos são os indicadores de que mudanças políticas não serão suficientes para deter a atual crise se não se transformarem, também, os valores que norteiam nossas atitudes e estilos de vida (RASKIN, ELECTRIS, & ROSEN, 2010; RASKIN et al., 2002; STEFFEN et al., 2005).
Que a atual crise ecológica exige mudanças não apenas políticas e econômicas, mas também culturais, parece ser um fato cada vez mais evidente. Esse fato tem levado muitos pesquisadores a investigar temas como: percepções sobre o ambiente, níveis de preocupação ambiental e influência dos valores na adoção de comportamentos mais sustentáveis (DUNLAP, 1994; DUNLAP, LIERE, MERTING, & JONES, 2000; ESTER, VINKEN, & SIMÕES, 2004; ALIBELI & WHITE, 2011; GONÇALVES & GOMES, 2014). No entanto, muitos pesquisadores têm percebido que valores ecológicos, consciência ambiental e percepções favoráveis não se traduzem diretamente em comportamento ambientalmente responsável (ESTER et al., 2004; RODRÍGUEZ-BARREIRO et al., 2013; TANNER, 1999). "Paradoxalmente, o nível crescente de preocupação pública e de disposição para apoiar ações ambientais está crescendo simultaneamente com os níveis de consumo de energia e de uso de recursos escassos" (ESTER et al., 2004, p. 46).
Por que a preocupação com o meio ambiente não leva as pessoas a modificarem os seus hábitos cotidianos? Alguns autores atribuem esse fato a constrangimentos externos, tais como políticas públicas e infraestrutura, ou limitações de tempo e dinheiro (KAISER et al., 1999; TANNER, 1999). Argumentamos aqui que valores, percepções e sensibilidades pró-ambientais, bem como a ausência de constrangimentos externos, são fundamentais para impulsionar a adoção de comportamentos sustentáveis, mas não são suficientes. A mudança das práticas envolve, também, um elemento corporal: a modificação de hábitos e a criação de novas estratégias de ação. Segundo Swidler (1986), a cultura influencia a ação não pela definição de valores últimos, como no modelo weberiano. Mas por oferecer aos indivíduos um repertório ou "caixa de ferramentas", isto é, rituais, estórias e guias de ação diversos – e muitas vezes contraditórios - que eles selecionam para construir as suas próprias estratégias de ação. Essas estratégias tendem a ser mais persistentes do que os valores que os indivíduos estão buscando.
Para entender melhor esse fenômeno, realizamos um estudo de caso com um grupo reduzido de ativistas que fazem parte de uma ecovila. Ecovilas são comunidades intencionais sustentáveis, isto é, são grupos de pessoas que se unem para criar um estilo de vida de baixo impacto ambiental e relações interpessoais mais cooperativas e solidárias (CAPELLO, 2013; DAWSON, 2006; LOEZER, 2011; TRAINER, 2006). As ecovilas se baseiam em três dimensões interligadas. A dimensão ecológica se manifesta na busca por modelos de vida de baixo impacto e na utilização e pesquisa de técnicas como: bioconstrução, permacultura, tratamento ecológico dos resíduos domésticos, sistemas energéticos alternativos, entre outros. A dimensão social/ comunitária se dirige "ao desejo das pessoas em passarem mais tempo juntas, construindo relacionamentos e sendo parte de um ambiente de apoio" (LOEZER, 2011, p. 15). Para valorizar os relacionamentos, as comunidades devem se manter numa "escala humana", de forma que todos possam se conhecer e se relacionar, bem como participar nas tomadas de decisão de forma transparente. Já a dimensão cultural/ espiritual varia muito de grupo para grupo. No entanto, todas as comunidades apresentam algum tipo de busca espiritual ou de autoconhecimento e se alinham com uma visão ecológica e holística do mundo.
Diversos autores admitem que o conceito de "ecovila" se refere menos a um estágio de sustentabilidade já alcançado pelas comunidades e mais a "aspirações e metas para as quais elas se propõem a caminhar ao longo de toda a sua existência, em um processo que tem começo, mas não tem fim" (CAPELLO, 2013, p. 31). As ecovilas podem ser urbanas ou rurais. A ecovila estudada nesta pesquisa, a Comunidade Andorinha, é uma ecovila rural. Seus membros demonstram alto nível de conhecimento e preocupação ambiental e buscam colocar em prática os seus valores, assumindo deliberadamente uma mudança nos seus estilos de vida.
O objetivo deste estudo foi investigar os aspectos culturais dessa ecovila, procurando explorar as possibilidades e dificuldades encontradas nesse processo de mudança cultural. Para tanto, realizamos uma pesquisa de campo na ecovila, durante o ano de 2011, por meio de visitas semanais à comunidade. Nesse período, acompanhamos as reuniões, eventos e a vida cotidiana de seus membros. Foram realizadas, também, nove entrevistas qualitativas semiestruturadas com os membros mais efetivos, sendo cinco mulheres e quatro homens. Esta pesquisa não pretende analisar o movimento das ecovilas como um todo, limitando-se a investigar um grupo particular em um momento específico de sua história.
Na próxima seção, introduzimos a comunidade estudada, os seus valores, as suas propostas e os seus conflitos interpessoais. Em seguida, expomos o marco epistemológico que guiou este estudo, baseado nos trabalhos de Henri Bergson e Ecléa Bosi. Na quarta seção, exploramos as dificuldades de mudança cultural encontradas na ecovila, a partir da obra de Henri Bergson e Pierre Bourdieu. Na seção seguinte, partimos da análise da cultura da sociedade de consumo desenvolvida por Richard Sennett para destacar as mudanças propostas pelos sujeitos pesquisados. Em seguida, consideramos a influência do grupo nesse processo, apoiando-nos em autores clássicos da psicologia social como Kurt Lewin e Solomon Asch. Por fim, nas considerações finais, propomos alguns fatores que facilitam a mudança cultural, no contexto da pesquisa.

A Ecovila
A Comunidade Andorinha se iniciou em 2005 e tem recebido novos membros a cada ano. A maior parte é de classe média alta e vem de São Paulo ou Campinas. No final de 2011, a Comunidade Andorinha tinha 127 membros, 98 adultos e 29 crianças. No entanto, muitos membros compraram um lote na ecovila, mas não conseguiram se mudar para lá. Atrelados a seus trabalhos na cidade, o grau de participação e a disponibilidade de tempo variam entre os membros. São pessoas em momentos de vida e com condições financeiras diferentes. Somente oito pessoas moravam efetivamente na comunidade, na época da pesquisa. Alguns membros haviam se mudado para a cidade próxima para participar mais ativamente da vida na ecovila. Além disso, muitos membros que frequentam a comunidade apenas aos finais de semana se envolvem ativamente nos projetos desenvolvidos – ocupando cargos de gestão e participando dos grupos de trabalho – enquanto procuram organizar as suas vidas e os seus trabalhos para tentar se mudar para lá num futuro próximo.
Segundo alguns ecovilenses, os maiores entraves para que mais pessoas se mudem para lá são a falta de trabalho no local e a ausência de uma escola de qualidade nas proximidades. No entanto, mesmo com poucos moradores fixos, o grupo estimula as reuniões, festas, mutirões de plantio e adubação, meditações conjuntas e almoços comunitários. A proposta de formar uma comunidade implica numa tentativa de se criar relações interpessoais mais sólidas e solidárias. Por se tratar de um projeto de vida de longo prazo para seus membros, os laços sociais criados permitem o desenvolvimento da confiança e do compromisso mútuos. Ao contrário dos condomínios e vizinhanças atuais, nos quais ninguém "se torna testemunha a longo prazo da vida de outra pessoa", a vida em uma ecovila possibilita a construção de vínculos profundos com os vizinhos (SENNETT, 1999, p. 20).
Na ecovila, como em todo agrupamento humano, existem conflitos, fofocas, dificuldades de lidar com o outro. Um exemplo de conflito pode ser encontrado na discussão do grupo sobre como construir o centro comunitário. Esse centro é considerado pela comunidade como algo vital, pois será um espaço destinado à realização de atividades que gerem renda para a ecovila, tais como cursos, oficinas e alojamento de visitantes. Isso poderá, no futuro, possibilitar que mais pessoas possam morar efetivamente na ecovila. Diante disso, alguns ecovilenses propuseram que fosse feito um orçamento da construção desse centro e que o valor fosse dividido pelos moradores. Com isso, o centro seria construído o mais rapidamente possível. Outras pessoas defenderam que a construção do centro deveria ser algo participativo, envolvendo mutirões e ferramentas de economia solidária que permitissem que os membros pagassem a sua parte com trabalho. Nessa discussão vemos duas propostas distintas: uma que seria mais simples e rápida – comprar o material e contratar mão-de-obra externa –, e outra que procura valorizar o trabalho coletivo e a economia solidária, mas que exigiria mais tempo, possivelmente teria uma qualidade inferior e exigiria do grupo a formulação de ferramentas para organizar o trabalho voluntário.
Esses conflitos ocorrem, principalmente, por causa da diversidade do grupo. Cada ecovilense tem uma imagem pessoal de como gostaria que a comunidade se desenvolvesse, privilegiando determinados aspectos em detrimento de outros. Exemplo disso é o envolvimento da psicóloga Lilian no planejamento do centro comunitário, projeto que assumiu com muito entusiasmo e dedicação. Para ela, a construção do centro deveria ser prioritária para o grupo. No entanto, o seu envolvimento com o projeto não foi partilhado pelos outros membros. Em várias reuniões, Lilian queixava-se das pessoas que, após se voluntariarem para realizar determinada tarefa, logo perdiam o entusiasmo. Ela sentia-se constrangida de ficar "cobrando" um comprometimento dessas pessoas. Na reunião de setembro de 2011, seis meses após ter assumido o grupo de trabalho da construção do centro comunitário, Lilian disse ao grupo que não estava se sentindo apoiada nem acolhida em seu trabalho, e desistiu de liderar esse projeto que é tão importante para ela.
Já o engenheiro agrônomo Otávio sonha com um plano de manejo para a ecovila que inclua reflorestamento das matas ciliares, projetos de educação ambiental para visitantes, proteção das nascentes e dos cursos dos córregos etc. Ele considera de extrema importância, para uma ecovila, que haja um plano de manejo amplo e consolidado. No entanto, também não se sente acolhido em seus projetos. O que para ele deveria ser prioridade na ecovila, não o é para outros. Isso resulta em falta de recursos para levar adiante os seus sonhos.
Algumas pessoas não conseguiram lidar com esses conflitos e desistiram da ecovila. Os que ficaram buscam trabalhar os seus conflitos com a ajuda do grupo ou com técnicas específicas de partilha e comunicação não violenta. Segundo Sennett (1999, p. 171), confiança e compromisso mútuo não significam inexistência de conflitos, mas, sim, a articulação e negociação das diferenças. Mais do que a partilha superficial de valores comuns, na ecovila as pessoas precisam aprender a enfrentar com o tempo as suas diferenças, construindo o que Sennett chamou de "narrativa partilhada de dificuldade".
Trabalhar os conflitos interpessoais que surgem não é tarefa fácil. Mas tal esforço é recompensado quando surgem momentos de dificuldade, como no exemplo da ecovilense Lilian:
E quando eu estava doente, um dia eu estava ouvindo que começou chegar uma música... Eu ouvi que todo mundo da ecovila veio, com o Rodrigo tocando violão, vieram fazer serenata pra mim. E eu saí ali, e ele falou "entra, você tem que descansar". Todo mundo cantou as músicas que eu gostava. Cantando para mim, então, num momento difícil.
Além dos valores comunitários, existe ali uma forte sensibilidade ecológica, que se traduz em novas práticas cotidianas. Os ecovilenses procuram dar preferência aos materiais reutilizáveis (coador de pano, fraldas de pano, etc.). Nas construções, os membros dão preferência para pedras e outros materiais retirados do próprio lugar (deixando, assim, de consumir combustíveis fósseis no transporte de materiais), além de reaproveitar portas, janelas, e outros materiais usados. O uso de madeiras nobres, madeiras tratadas com produtos tóxicos ou madeiras não certificadas é explicitamente proibido. O uso do concreto é evitado, já que a sua fabricação consome grande quantidade de energia e libera grande quantidade de CO2, além de exigir matérias-primas extraídas por grandes mineradoras, que impactam o meio ambiente.
A ecovila acaba por se tornar, também, local de experimentação em bioconstrução, como as técnicas de tijolos de adobe e superadobe. Todas as casas têm sistema de captação de água das chuvas e painéis solares para o aquecimento das águas dos banheiros. A separação do lixo é obrigatória na ecovila. A maioria das casas tem as suas próprias composteiras, que fazem a decomposição controlada dos resíduos orgânicos, transformando-os em adubo. O esgoto das casas é tratado por biodigestores.
Outra característica da vida na ecovila é a busca de uma vida mais simples e menos consumista. Os ecovilenses dão preferência a atividades coletivas e que não consomem recursos naturais: almoços comunitários, meditações conjuntas, festas, etc. Na ecovila, a preocupação com o consumo se estende, também, à economia de água e à qualidade dos alimentos. Todos os ecovilenses, mesmo os que não plantam, dão preferência a alimentos orgânicos e produzidos localmente.
Todo mês ocorre uma reunião comunitária, na qual todos os participantes ficam a par do que está acontecendo na comunidade, discutem seus planos e criam novas demandas para a ecovila. Nessas reuniões, os ecovilenses exercitam a autogestão e o diálogo, buscando convergir as diversas opiniões e visões de mundo em um projeto comum. Além disso, na ecovila, as decisões tomadas nas reuniões são executadas pelos próprios membros, por meio da criação de grupos de trabalho, que assumem tarefas voluntárias.
Apesar da diversidade de visões e opiniões, existe algo que une o grupo. Trata-se de valores comuns, ou, nas palavras de Jasper, "sensibilidades morais" compartilhadas. Moralidade é entendida aqui não como regras instituídas de conduta, mas como intuições particulares a respeito do sentido da vida e de como devemos viver a vida. "Afinal de contas", afirma Jasper (1997, p. 376-7), "a moralidade não é simplesmente sobre nossas obrigações para com os outros. É também sobre a boa vida, sobre como cada um de nós deve viver". Esses valores compartilhados pelos ecovilenses incluem não só a construção de laços de solidariedade e de práticas ecológicas, mas também a busca do autoconhecimento e do contato com a natureza e com as experiências transcendentes.
Na ecovila existe um processo de construção que se dá na estrutura física e organizacional da comunidade: construção do centro comunitário, construção das casas, consolidação do sistema de gestão, acordos e tomadas de decisão coletivos, entre outros. Mas existe ali, também, um processo de construção de uma identidade coletiva e de transformação pessoal. Cada membro passa por um processo em que precisa se distanciar do estilo de vida individual e consumista e aprender a estar em um projeto coletivo: abrir mão de suas preferências para aceitar a decisão do grupo, trabalhar os conflitos interpessoais, abrir mão de certos confortos e comodidades, doar tempo e energia para a comunidade. Tudo isso exige um trabalho de mudança pessoal e coletiva, uma mudança cultural.

O olhar
A proposta epistemológica que guiou essa pesquisa de campo foi o exercício da simpatia. Segundo Bosi, a simpatia é uma "afinidade pré-categorial do sujeito com seu objeto" (BOSI, 2003, p. 116). Quando exercemos simpatia tornamo-nos mais sensíveis às coisas, evitando enxergá-las através de estereótipos. Negando os dados imediatos, passamos a não classificar ou descrever, mas habitar as coisas do mundo. Para Bergson (1974, p. 20), a simpatia corresponde à intuição "pela qual nos transportamos para o interior de um objeto para coincidir com o que ele tem de único e, consequentemente, de inexprimível". Enquanto a análise consiste numa diversidade de pontos de vista parciais que buscam completar uma representação sempre incompleta, a intuição é absoluta:
Quando falo de um movimento absoluto, é que atribuo ao móvel um interior e como que estados de alma, é, também, porque simpatizo com os estados e me insiro neles por um esforço de imaginação. [...] E o que experimentarei não dependerá nem do ponto de vista adotado em relação ao objeto, pois estarei no próprio objeto [...]. Em outros termos, compreendemos que conceitos fixos podem ser extraídos, por nosso pensamento, da realidade móvel; mas não há nenhum meio de reconstituir, com a fixidez dos conceitos, a mobilidade do real. [...] É relativo o conhecimento simbólico por conceitos preexistentes que vai do fixo ao movente, mas não o conhecimento intuitivo que se instala no movente e adota a própria vida das coisas. Esta intuição atinge um absoluto. (BERGSON, 1974, p. 19-39)
Dessa forma, procuramos adotar uma atitude aberta e desarmada, para poder entrar na interioridade dos sujeitos pesquisados, buscando captar melhor os desafios que enfrentam e podendo valorizar as pequenas mudanças que conseguem incorporar. Essa atitude desarmada e a simpatia pelos sujeitos pesquisados foram facilitadas por haver uma afinidade prévia com o tema e com o projeto das ecovilas. E também por se tratar de pessoas muito próximas da pesquisadora, não só em termos de classe social, mas também em suas inquietações, em suas buscas e desejos, em seu projeto de vida.
Não basta a simpatia (sentimento fácil) pelo objeto da pesquisa, é preciso que nasça uma compreensão sedimentada no trabalho comum, na convivência, nas condições de vida muito semelhantes. Segundo Jacques Loew, em Journal d'une mission ouvrière, é preciso que se forme uma comunidade de destino para que se alcance a compreensão plena de uma dada condição humana. Comunidade de destino já exclui, pela sua própria enunciação, as visitas ocasionais ou estágios temporários no locus da pesquisa. Significa sofrer de maneira irreversível, sem possibilidade de retorno à antiga condição, o destino dos sujeitos observados. (BOSI, 1994, p. 38)
Essa abordagem de pesquisa inviabiliza uma rígida separação entre sujeito e objeto. O olhar que surge daí deve, então, ser móvel, aproximando-se mais do "olhar feminino" benjaminiano do que do "ponto de vista" científico, conforme nos explica Olgária Matos (2006). Segundo ela, o olhar tem uma vantagem epistemológica sobre o ponto de vista. "O olhar é amplo, móvel, traz consigo uma intensidade própria que faz dele 'uma maneira de ver'. O ponto de vista, ao contrário, é fixo, imóvel como o da perspectiva geométrico-cartesiana: ele examina, compara, escruta, mensura, separa". O olhar móvel não faz uma distinção entre sujeito e objeto. "Se existe uma identidade, ela passa pelos caminhos internalizados da alteridade, aquela que assimilamos e que também nos assimila" (MATOS, 2006, p. 189).
Esta pesquisa não buscou, portanto, uma pretensa "neutralidade" científica, mas, sim, assumir as mútuas influências que ocorrem toda vez em que há interações sociais. De fato, a convivência com o grupo teve repercussões na pesquisadora, levando-a a repensar diversas atitudes pessoais e promovendo mudanças em sua forma de agir.
Oliveira faz uma importante ressalva: "Uma relação solidária, marcada pela simpatia não pode, porém, ser confundida com complacência". Na pesquisa é preciso dosar proximidade com distanciamento, para que as afinidades não sufoquem o olhar crítico, e nem deixem de levar em conta a existência de diferenças. "Proximidade e distanciamento se mesclam no desdobramento da pesquisa; um e outro são valiosos na exata medida em que capazes de promover o humano a patamares que ultrapassem o imediatismo [...] e, ao invés disso, possibilitem laços de crescimento mútuo entre pesquisados e pesquisadores" (OLIVEIRA, 2011, p. 15-21).

Mudança corporal
Por mais que haja na ecovila estudada uma intenção declarada de modificar comportamentos cotidianos, o grupo se depara com inúmeras dificuldades e contradições. Entre elas, a adaptação à vida no campo e a tendência a manter hábitos corporais da cidade. Por exemplo, a disposição automática a usar o carro, mesmo quando se vai a uma casa muito próxima. Apresentam dificuldades em realizar os projetos de forma coletiva. Por mais que procurem evitar o consumo de combustíveis fósseis, ainda dependem do uso frequente de carros. Ao mesmo tempo em que buscam uma vida mais autônoma, na qual o trabalho manual seja valorizado e na qual possam fazer as coisas com as próprias mãos, ainda dependem de empregados para os trabalhos de limpeza da casa. Os ecovilenses defendem a cooperação e a solidariedade, mas demonstram atitudes hierárquicas na relação com os funcionários e sitiantes do entorno.
Essas contradições acontecem por que se trata de uma mudança não apenas conceitual e valorativa, mas também corporal. Modificar as estratégias de ação cotidianas exige, mais do que uma decisão racional, a transformação de hábitos incorporados e não conscientes que tendem a persistir com o tempo. Dessa forma, o desafio que os membros da comunidade estudada encontram para a mudança não é a adoção de novos valores, pois eles já tinham valores ecológicos e comunitários antes de ir para a ecovila, sendo este o motivo que os levou até ali. O maior desafio que os ecovilenses encontram é o de vivenciar esses valores em sua vida cotidiana, o de encarnar essas sensibilidades na sua vida prática.
Quando repetimos certas formas de ação, criamos uma espécie de memória armazenada no corpo e que é distinta da memória-lembrança (BERGSON, 2010). Toda percepção provoca em nós movimentos motores nascentes e que, "ao se repetirem, criam um mecanismo, adquirem a condição de hábito, e determinam em nós atitudes que acompanham automaticamente nossa percepção das coisas" (p. 91). Estar adaptado ao ambiente em que vivemos é esboçar, a cada percepção, movimentos habituais. Consequentemente, para realizar uma mudança cultural é necessário romper com esses automatismos e criar novas conexões, novas respostas para as situações dadas, em uma mudança que é, portanto, também corporal.
Bourdieu (2012) desenvolveu o conceito de habitus para se referir a essa disposição incorporada, essa necessidade social convertida em esquemas motores e automatismos corporais, nos quais os condicionamentos associados a uma classe particular de condições de existência produzem princípios (naturalizados, não conscientes) geradores e organizadores de práticas e representações. O habitus
garante a presença ativa das experiências passadas que, depositadas em cada organismo sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento e de ação, tendem, de forma mais segura que todas as regras formais e que todas as normas explícitas, a garantir a conformidade das práticas e sua constância ao longo do tempo (BOURDIEU, 2009, p. 90).
Baseando-se no conceito de habitus de Bourdieu, Swidler demonstra como os indivíduos tendem a utilizar formas de ação com as quais estão acostumados e para as quais têm uma disposição incorporada, isto é, um "equipamento cultural". Segundo ela, as pessoas têm dificuldades em abandonar modos de vida estabelecidos não porque se prendem a valores culturais, "mas porque elas relutam em abandonar estratégias de ação familiares para as quais elas têm o equipamento cultural" (SWIDLER, 1986, p. 281).
Dessa forma, indivíduos da ecovila que tiveram boa educação escolar relutam em tirar seus filhos de escolas boas na cidade para colocá-los numa escola rural ou do interior, temerosos que eles deixem de ter o equipamento cultural que lhes proverá oportunidades na vida futura. Esses mesmos indivíduos também apresentam dificuldades em assumir trabalhos braçais e de limpeza para os quais não foram educados e para os quais não têm as habilidades necessárias.
Não basta modificar valores e percepções com relação ao meio ambiente. Para criarmos uma cultura sustentável, torna-se necessário modificar, também, movimentos corporais e estratégias de ação, o que é muito mais difícil. Para Swidler, no entanto, é possível aprender novas maneiras de organizar a ação individual e coletiva, e praticar hábitos não familiares até que se tornem familiares. Nesses casos, as ideologias e rituais têm um papel fundamental na construção e regulação de novos padrões de conduta. Isto é, quanto mais articulado e autoconsciente for um sistema de crenças, mais comprometimento haverá na adoção de novas práticas.
Apesar das dificuldades encontradas, os ecovilenses nos oferecem novas possibilidades de relação com o mundo e com os outros – isto é, novos modelos culturais. Tendo como referência a análise da cultura da sociedade de consumo de Sennett, destacamos duas propostas de mudança cultural que os ecovilenses nos oferecem: o resgate da experiência sensorial e a redefinição de suas necessidades.

Propostas de mudança cultural
A experiência corporal nas cidades contemporâneas é marcada pelo anestesiamento do corpo: os indivíduos perdem o vínculo com a experiência sensória, com o espaço pelo qual se deslocam e com pessoas ao redor (SENNETT, 2003). O espaço urbano se transforma em um simples corredor a ser atravessado pelo motorista. "O viajante, tanto quanto o telespectador, vive uma experiência narcótica; o corpo se move passivamente, anestesiado no espaço, para destinos fragmentados e descontínuos" (SENNETT, 2003, p. 18).
Distanciadas da vida coletiva, as pessoas buscam a felicidade por meio da aquisição e fruição de bens materiais, comodidades, viagens e pelo consumo das mass media (FRIEDMANN, 2001). Diante dessa privatização da vida nas grandes cidades, e do individualismo que ela gera, o consumo é a atividade mais segura e cômoda. Os indivíduos se mostram mais preocupados em consumir, em obter confortos que aliviem a fadiga do trabalho "do que com qualquer outro propósito mais complexo, poético ou comunitário" (SENNETT, 2003, p. 305). Hannah Arendt (1972) chega a comparar o homem moderno com um astronauta: preso em sua cabine, cercado de instrumentos e tecnologias, mas impossibilitado de estabelecer qualquer contato físico com o meio ambiente.
Uma das propostas da vida em ecovila é a de reabilitar a experiência sensível do mundo, estreitando os laços entre as pessoas e entre elas e o lugar. Isso é feito por meio de uma postura contemplativa diante da natureza, buscando a satisfação que esse modo de percepção proporciona: a beleza de uma lua cheia, o som dos pássaros, caminhar pela noite estrelada, observar as plantas. Um ecovilense relata sua nova relação com a natureza:
O silêncio, o vento, os ritmos, acordar mais cedo, dormir mais cedo. Até você começar a entender essas dinâmicas da natureza, você tem que se acostumar. Depois você começa a ficar mais sensível e você fala: 'Olha! Aquela plantinha nasceu, não estava aqui!' 'Aquela formiga apareceu.' 'Olha, aquele passarinho é novo porque eu não me lembro desse som'. [...] E não tem internet, não tem televisão. [...] Então a gente procura vivenciar muito mais as relações do que a gente teria em São Paulo, por exemplo, que eu moro em prédio e muitas vezes eu não conheço o vizinho de porta, não é?
A vida na ecovila procura, também, resgatar práticas artísticas comunais, incentivando a participação de todos, ao invés de formas passivas de entretenimento. Exemplo disso ocorreu quando a nova caixa d'água chegou na comunidade e um membro propôs de todos se reunirem para pintá-la. Levou diversas tintas e pincéis, e todos entraram na brincadeira desenhando árvores, flores e bichos. A intenção não era a de fazer uma pintura "perfeita", mas, sim, de ser uma criação coletiva – o fazer junto era mais importante do que o resultado final.
Os ecovilenses aqui estudados têm boas condições financeiras. Poderiam, facilmente, usufruir de todos os confortos do estilo de vida consumista. Poderiam passar os finais de semana em condomínios fechados, com toda a infraestrutura pronta, onde não precisariam interagir com os vizinhos, nem tomar decisões de forma coletiva. No entanto, essas pessoas optaram por um estilo de vida diferenciado, em busca de uma nova forma de convivência. São pessoas que se propuseram a sair de sua zona de conforto: levam uma vida mais simples, interagem mais com os vizinhos, participam de atividades comunitárias, diminuem o consumo de bens materiais e midiáticos, discutem e tomam decisões de forma coletiva e trabalham pela comunidade.
Os ecovilenses também procuram se tornar conscientes, a cada ato de consumo, do processo de produção que existe por trás das mercadorias. Procuram não só dar preferência para produtos que julgam ambientalmente corretos e socialmente justos como, também, diminuir o consumo em si, por meio da redefinição de suas necessidades e da busca de novas formas de gratificação.
Na cultura de consumo, existe uma alienação não só na produção de bens (pela divisão do trabalho), mas também no consumo (BOSI, 1987; BOSI, 2003). Fica mais difícil perceber que, por trás de cada produto, existe um desperdício de matéria-prima e de esforço humano. As novas tecnologias e mercadorias vão se tornando "necessárias" no cotidiano e as pessoas passam a acompanhar o ritmo vertiginoso das inovações técnicas: celulares, televisões e outros aparelhos cada vez mais sofisticados. O homem-consumidor carece do que Friedmann (2001, p. 119) chamou de "arte de dominar as técnicas", isto é, a capacidade de servir-se dos instrumentos e máquinas para seus próprios fins, ao invés de ser subjugado por elas (FRIEDMANN, 2001).
Essa multiplicação do consumo promove ainda outra consequência importante, no interior dos próprios indivíduos: afeta a sua percepção do mundo. Geram um "esvaziamento da percepção [...] acerca dos homens, das coisas e do mundo [...] e dificulta o discernimento das coisas belas, dignas de serem vistas, amadas e preservadas" (OLIVEIRA, 1999, p. 50). O regime da mercadoria não só é ambientalmente e socialmente insustentável como, também, acaba por contribuir para o anestesiamento do corpo.
Os ecovilenses procuram viver com menos "bugigangas" elétricas e eletrônicas. Ao valorizar uma vida mais simples, eles colocam em segundo plano a busca incessante pelos produtos disponíveis no mercado, para que outras fontes de satisfação possam aflorar: a convivência, o lazer ativo e comunal, o relacionamento sensível com a natureza, a criação de novos projetos e ideias para a comunidade. Isso não significa que excluam completamente a utilização de tecnologias. Quase todos os ecovilenses possuem carro, máquina de lavar, perfil no facebook, site na Internet, além das tecnologias "verdes": aquecimento solar, captação de água da chuva, tratamento ecológico dos resíduos. Para eles, o que muda é que essas tecnologias são utilizadas para a preservação da vida e não para escravizar o homem. Elas não recebem mais atenção do que as plantas, a lua ou o pôr-do-sol. Ou seja, as tecnologias são entendidas como meios e não como fins em si, apontando para outras possibilidades de sua utilização.
As pessoas na ecovila propõem, assim, uma redefinição das suas necessidades materiais. Não se trata, porém, somente de uma privação: não consumir as coisas, se sentir culpado ao comprar os produtos, ou se sentir forçado a uma vida simples. Trata-se, ao contrário, de uma reinvenção: abrir espaço para outras formas de satisfação e de busca da felicidade. Todos os ecovilenses entrevistados sentem que as suas vidas melhoraram, que eles ganharam mais do perderam com essa redefinição. Eles demonstram satisfação de estar vivendo de acordo com as suas sensibilidades morais, e de compartilhá-las com um grupo com valores semelhantes.
Segundo Jasper, o ativismo traz um senso de dignidade e propósito raros na sociedade moderna: "o prazer de estabelecer nossa própria conduta pessoal no curso correto: a recompensa intrínseca que acompanha uma vida que percebemos como moral" (JASPER, 1997, p. 135-6). Diversas pesquisas sobre comportamento ambiental também têm sugerido que condutas pró-ambientais geram satisfação intrínseca e sensação de bem-estar (ver AMÉRIGO, GARCÍA, & SÁNCHEZ, 2013).
Encontramos também na ecovila um forte senso de responsabilidade pelo mundo. São pessoas que rejeitam o discurso conformista e se esforçam para assumir mudanças concretas em seu cotidiano. Buscam problematizar as questões ambientais globais e traduzir esses desafios em sua vida cotidiana, assumindo a responsabilidade por suas ações no mundo. Esse fato converge com um número crescente de pesquisas que indicam que o senso de responsabilidade é forte indicador de comportamentos ambientalmente responsáveis (KAISER; SHIMODA, 1999; TANNER, 1999).

Influência do grupo
A ecovila reúne, como mencionamos, pessoas com sensibilidades morais parecidas. Esse compartilhamento reforça o senso de grupo, e o senso de grupo reforça essa forma de pensar. O sentimento de pertencimento ao grupo é fator importante na mudança cultural, pois as nossas posições tendem a se alinhar com a opinião majoritária do grupo em que estamos inseridos (ASCH, 1977). Dessa forma, pode ser muito mais difícil manter hábitos "ecológicos" quando eles não são compreendidos ou compartilhados pelas pessoas ao redor. Ao mesmo tempo, quando as pessoas estão numa comunidade que pensa de forma semelhante, é mais fácil manter essas posturas. A comunidade reforça e encoraja essas práticas. "O resultado indica uma diferença fundamental entre a situação de isolamento e a de ter alguma fonte de apoio humano" (ASCH, 1977, p. 403).
Para Kurt Lewin (1983, p. 75), a presença de um grupo solidário facilita o processo de mudança cultural. Pois ao
ancorar sua própria conduta em algo grande, substancial e supraindividual, como a cultura de um grupo, é que o indivíduo pode estabilizar suas novas crenças o suficiente para mantê-las imunes das flutuações diárias de estados de ânimo e de influências a que ele está sujeito como indivíduo.
Estar enraizado em uma comunidade, isto é, participar ativamente de suas decisões e destinos, estimula as pessoas a querer se destacar e a afirmar uma conduta exemplar. Por mais que os indivíduos já tivessem preocupações ecológicas ou comunitárias antes de ingressar no grupo, ao se identificarem com esse "nós", eles tendem em sua direção. Um dos ecovilenses, por exemplo, largou o seu emprego como administrador de empresas para trabalhar com educação na área da sustentabilidade.
Por outro lado, quando alguém se afasta do grupo e as novas formas de ação ainda não foram completamente habitadas, os costumes prevalecentes podem voltar a exercer sua força. Exemplo disso foi vivenciado pela própria pesquisadora. Como dissemos, a pesquisa de campo provocou mudanças na pesquisadora, especialmente a adoção de algumas práticas ecológicas promovidas pelos ecovilenses. No entanto, quando a pesquisa de campo foi concluída e ela ficou um longo tempo sem visitar a Comunidade Andorinha, a pesquisadora abandonou muitas práticas novas que havia adotado. Isso ocorreu, talvez, porque o seu modelo de identificação e comparação deixou de ser a ecovila e voltou a ser o seu grupo de convívio na cidade. Quando comparado com a vida habitual de seu grupo de convívio, tais ações parecem até descabidas e exageradas. O grupo não estimula – pelo contrário, tende a inibir essas ações. Consequentemente, manter certas práticas diferenciadas longe de aliados – isto é, longe de um grupo com valores semelhantes – torna-se uma tarefa muito mais difícil.
Pertencer ao grupo não significa aceitar cegamente a opinião majoritária nem abafar a diversidade de opiniões. Como vimos, os ecovilenses têm visões e prioridades muito diversas, e as decisões sempre envolvem conflitos. No entanto, a ecovila mantém espaços para que esses conflitos sejam expressos e trabalhados. Sennett afirma que o "nós" pode ser fictício quando enfatiza uma falsa unidade e teme que os laços sociais sejam ameaçados pelo conflito interno. Mas o "nós", esse pronome perigoso, também pode significar "destino partilhado", quando os indivíduos manifestam suas diferenças e permitem que o conflito interno crie laços sociais, tornando-se o fundamento da própria comunidade (SENNETT, 1999).

Considerações finais
A preocupação com o meio ambiente não leva, automaticamente, à modificação de hábitos cotidianos. A mudança das práticas envolve a modificação de automatismos corporais, de formas de ação e representação inscritas em nossos corpos e que tendem a ser persistentes. Mesmo quando adotamos novos valores, tendemos a manter estratégias de ação com as quais estamos familiarizados. Isso não significa que a mudança seja impossível. Significa, sim, que a mudança cultural é um processo "incerto, irregular, muitas vezes contraditório, que demanda persistência, paciência e tempo" (OLIVEIRA, 2006, p. 113). Trata-se de um processo gradual e singular para cada indivíduo.
Este estudo restringiu-se a estudar um reduzido número de ativistas que procuram realizar uma mudança cultural. Os resultados obtidos neste estudo de caso não podem ser generalizados para a sociedade mais ampla, nem mesmo para o movimento das ecovilas como um todo. Cabe ressaltar também que não defendemos a necessidade de se morar em uma ecovila para a mudança de comportamento e valores. A ecovila foi estudada como um espaço em que as mudanças são explicitamente defendidas por seus membros e no qual essas tentativas de mudança ficam mais visíveis.
As propostas defendidas pelos ecovilenses são experimentações feitas por sujeitos sociais concretos e que podem nos oferecer novas possibilidades culturais.
Uma contribuição dos ativistas é que eles criam controvérsias, e controvérsias são importantes porque levam a pesar e testar perspectivas e valores. [...] É a proliferação de pontos de vista que nos ajuda a separar reivindicações melhores das piores, ou as reivindicações morais que são consonantes com nossos valores básicos das que não o são. A existência de pontos de vista alternativos avança nosso conhecimento. (JASPER, 1997, p. 368-374)
Apesar dos evidentes limites desta pesquisa, gostaríamos de sugerir, de modo provisório, alguns fatores que podem facilitar a mudança cultural. O primeiro deles é a presença de um grupo solidário, com sensibilidades morais comuns. Quando o indivíduo sente que o seu novo modo de vida é compreendido e compartilhado, ganha apoio moral para manter essas novas práticas, ainda que não sejam práticas majoritárias na cultura dominante. Para isso, é preciso desenvolver o sentimento de pertencimento. Na ecovila estudada, isso é feito por meio de atividades comunitárias, reuniões, mutirões, festas etc. Na sociedade mais ampla, isso poderia ser feito por meio de uma maior divulgação de comportamentos ambientalmente responsáveis na mídia ou nas escolas, por exemplo.
Outro fator é o tempo. Mudanças bruscas muitas vezes não se sustentam. É preciso tempo para que as novas práticas se tornem hábitos, para que se transformem antigos automatismos corporais e para que novos "equipamentos culturais" sejam desenvolvidos. A existência de ideologias ou visões de mundo articuladas pode ser um elemento importante na construção e manutenção desses novos padrões de conduta. Daí a importância que adquirem os movimentos sociais e os pensadores militantes que dão forma a essas sensibilidades morais, construindo significados cognitivos e expressando-as em visões de mundo distintas (JASPER, 1997). Quanto mais explícitas e articuladas forem essas tentativas de mudança, e quanto mais compartilhadas pelo grupo, maiores serão as chances de sua efetiva incorporação no cotidiano dos indivíduos. Formas de ação que não são conscientemente examinadas tendem a seguir hábitos familiares e internalizados pelas experiências passadas.
Este estudo traz, portanto, duas contribuições relevantes para a discussão sobre mudança cultural e sustentabilidade: a importância do fator corporal e a influência do grupo. Pesquisas quantitativas sobre comportamento ambiental abundam. No entanto, a discussão sobre o tema poderia se beneficiar de mais pesquisas qualitativas interdisciplinares. Observações e entrevistas em profundidade, em outros contextos de mudança cultural e com diferentes subgrupos, podem oferecer novos insights sobre a relação entre valores e percepções, de um lado, e ação prática, do outro.



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