MUDANÇAS CLIMÁTICAS E POVOS INDÍGENAS E TRADICIONAIS: DO

June 1, 2017 | Autor: Leo Hasenclever | Categoria: Climate Change
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MUDANÇAS CLIMÁTICAS E POVOS INDÍGENAS E TRADICIONAIS: DO CARBONO AO(S) MERCADO(S), PASSANDO POR REDD(+) E PSAs Uma contribuição do IEB (versão 2.0) Introdução e Contexto Esta nota discute alguns aspectos conflitantes entre a proposta (econômica) dos “mercados” e as realidades (socioculturais) que caracterizam a diversidade socioambiental amazônica, em especial a brasileira. São três as dimensões que mobilizam a atenção do IEB: a garantia e a salvaguarda dos direitos fundamentais formais e consuetudinários - reconhecidos aos povos e comunidades indígenas e tradicionais e suas organizações; as controvérsias distributivas (de direitos, rendas e liberdades); e as questões de conservação ambiental. Como é do conhecimento dos que estão inseridos no debate a redução de emissões por desmatamento e degradação florestal, e, mais recentemente, de ações de conservação e manejo florestal - conhecida pela sigla REDD(+) - visa promover fluxos de recursos para países em desenvolvimento e assim permitir uma mudança no sentido de práticas florestais sustentáveis. Este mecanismo1 reconhece que uma porção considerável das emissões de carbono à atmosfera advém do desmatamento e que as alterações nos padrões de uso dos solos responsáveis por tais emissões são dirigidas por considerações econômicas. Desse modo, comunidades florestais, povos indígenas e tradicionais, e @s que residem em áreas protegidas, que têm suas economias de suficiência fundadas na terra (Shiva, 1999), deveriam receber incentivos pelos - e/ou pagamentos para remunerar os - serviços que prestam ao conservar as florestas por meio de seus peculiares e variados regimes de apropriação dos recursos, que lhes asseguram bem estar, satisfação e dignidade. Esse contexto tem ensejado o surgimento de várias iniciativas e projetos de desmatamento evitado e controle da degradação florestal, tanto entre povos indígenas e tradicionais, como entre residentes em áreas protegidas - e outros ainda em áreas privadas - para serem ativados em “mercados”, por meio da venda de créditos de carbono, sob a égide do REDD(+). Desse modo, o REDD(+) emerge como uma nova metanarrativa, o novo esperanto que configura as condições de 1

REDD é um mecanismo de flexibilização das obrigações de redução de emissões de gases estufa. Tais obrigações estavam originalmente contidas no Protocolo de Quioto e atualmente são o foco das discussões que visam um acordo global acerca de um mecanismo alternativo e mais includente.

possibilidade de formulação e implementação dos projetos de futuro das comunidades florestais, dos povos indígenas e tradicionais, e d@s que residem em áreas protegidas. Já virou lugar comum ouvir de representantes e líderes desses grupos que as mudanças climáticas não são novidades para eles, pois há muito tempo percebem os efeitos do desmatamento, e que esse é um mercado com um potencial muito grande, sendo necessário coordenar discussões e organizar arranjos institucionais para responder aos desafios colocados por esse novo cenário. É com espírito de cautela diante dessa nova hegemonia discursiva que redigimos esta nota. Nosso foco maior aqui será nos povos indígenas e populações tradicionais. A participação do IEB em discussões sobre REDD(+) O IEB, recentemente, tem participado de algumas discussões no âmbito do desenvolvimento do arcabouço institucional, legal, político, sócio-cultural e técnicocientífico2 do regime para projetos de REDD(+) na Amazônia, entre as quais se destacam: a) Acompanhamos as consultas e oficinas regionais para a formulação de princípios e critérios socioambientais para projetos REDD(+) na Amazônia brasileira, iniciativa liderada por GTA, CNS e COIAB, com apoio do IPAM e do IMAFLORA (www.reddsocioambiental.org.br); b) Participamos dos trabalhos transnacionais de estruturação do Platinum Standards, que almeja se tornar um padrão de certificação de projetos REDD na Amazônia, numa iniciativa liderada pelo Center for Environment Economy and Society (CEES) da Columbia University (CU) em Nova York, por meio do Amazon Forest Carbon Partnership (AFCP), e que envolve, além do Brasil, o Peru, a Bolívia, a Colômbia e o Equador na construção de um framework preliminar constituído de quatro eixos temáticos: ciência e tecnologia, que cuida das métricas para medição e monitoramento do carbono florestal (STAT-science and technology advisory team); legal e regulatório, que cuida da compatibilização transnacional no limites das possibilidades existentes nos arcabouços legais dos cinco países (LRAT-legal and regulatory advisory team); econômico e financeiro, que trata de explorar e identificar as necessidades em termos de processos, mecanismos e instrumentos 2

Que todas essas dimensões se mesclem quando o assunto é mudanças climáticas (por definição) globais é, em si mesmo, muito significativo.

econômicos e financeiros para a viabilização segura, justa e sustentada dos projetos sob certificação (EFAT-economic and financial advisory team); e finalmente o sócio-econômico e cultural (SECAT-socio, economic and cultural advisory team). É neste último que o IEB tem participação formal e no qual se discutem as garantias, salvaguardas e as instituições que protegerão os direitos fundamentais, consuetudinários, tradicionais e difusos envolvidos e ameaçados por meio da ativação de projetos REDD(+), principalmente sob a lógica dos “mercados”; c) Somos membros fundadores e partícipes do Observatório do Clima (OC), iniciativa pluriorganizacional do terceiro setor que objetiva: acompanhar e influenciar as negociações internacionais e as posições do governo brasileiro sobre mudanças climáticas; promover a interlocução do próprio OC com a sociedade brasileira; propor e acompanhar a definição de políticas públicas e normas no país visando estabelecer o equilíbrio da concentração de gases do efeito estufa no Planeta; promover debates e amplas consultas públicas para auxiliar na definição de critérios e indicadores de sustentabilidade social, ambiental, étnica, cultural, econômica e de transparência e capacitação tecnológica, que se apliquem aos projetos que pretendam usufruir dos mecanismos financeiros de flexibilização de compromissos de redução de emissão dos gases de efeito estufa; acompanhar a implementação e verificação desses projetos; apoiar ou promover iniciativas de capacitação, treinamento, educação e disseminação de informações nos temas afetos às mudanças climáticas; promover o intercâmbio de experiências e informações e contribuir para o debate qualificado sobre os temas climáticos no Brasil e no exterior; e participar de forma qualificada de fóruns, instâncias, redes nacionais e internacionais de discussão, consulta e participação sobre mudanças climáticas. d) Além dessas inserções, temos sido convidados a participar de, e se manifestar em discussões pontuais em torno de outras iniciativas dispersas, principalmente nos territórios onde nós e nossos parceiros atuamos. Isso ocorreu recentemente em pelos menos três circunstâncias: (i) na reunião para apresentação do Projeto REDD Mosaico do Apuí; (ii) no seminário sobre PSA da TI Parque do Tumucumaque; e (iii) nas discussões sobre REDD(+) no sul do estado do Amazonas.

e) Promovemos também discussões internas em nosso escritório sede em Brasília, bem como, mais esporadicamente, em nossas bases de campo, sobre diversos temas relacionados direta e indiretamente com REDD(+), mudanças climáticas, pagamentos por serviços ambientais, populações tradicionais, indígenas, florestais e outras, como parte de nossa política interna de qualificação de qualquer posicionamento organizacional - alguns dos quais têm atraído parceiros e colaboradores nas discussões, e se encontram parcialmente consolidados aqui. f) O IEB participa das discussões mais recentes em torno do Regime Nacional de REDD(+), tanto convidado por Organizações parceiras (GTA, COIAB, CNS, ISA, TNC, IPAM entre outros) como por órgãos de governo (MMA, FUNAI). Destacam-se os esforços para consolidar sua participação nos GTREDD animados pelo MMA e aqueles envidados na colaboração com a FUNAI (e mais alguns parceiros) na discussão de diretrizes básicas para iniciativas de capacitação em REDD(+) para povos indígenas. Na percepção do IEB, as iniciativas supracitadas almejam com legitimidade fortalecer as salvaguardas dos direitos implicados em projetos REDD(+), porém elas não são suficientes para fazer gente às pressões advindas da participação dos agentes econômicos que compõem a oferta em “mercados” – populações tradicionais e povos indígenas, p. ex. Entendemos que sob o dossel da floresta amazônica, cuja alteração é mais facilmente detectada e monitorada por imagens de satélites, encontram-se outros patrimônios (sociais, culturais e étnicos) e uma diversidade de modos de vida dificilmente percebidos e\ou monitorados (em sua permanência ou alteração) por meio das tecnologias remotas disponíveis e que são tão importantes quanto as florestas na manutenção das condições necessárias à contenção das emissões válidas para REDD(+). Na medida em que REDD(+) é um mecanismo de flexibilização de compromissos3 de redução de emissões baseado em instrumentos financeiros (tributos pigouvianos, pagamentos por serviços ambientais, etc) concebidos fundamentalmente na economia ambiental neoclássica; e na medida em que esta mesma ciência deposita suas fichas na substitubilidade de capitais - ou seja, o acúmulo de capitais monetário, físico, tecnológico e outros seriam substitutos perfeitos para o capital natural (Mattos et. Alli, 2009. P.52) - é a partir do arcabouço teórico da economia ambiental, com aportes da antropologia 3

Idem Nota 1.

econômica, que partem os próximos comentários, pois na nossa visão importa ir além. É sobre o dilema entre as competências e as exigências dos “mercados”, por um lado, e as vantagens e limites que eles apresentam no caso dos projetos REDD(+) para as realidades socioambientais (florestais) amazônicas, por outro, que nos debruçamos a seguir.

MERCADOS Sobre mercados, eficiência e equidade Mercados não são novidades na história da humanidade, seja na condição de sítios e/ou arenas concretas onde se dão trocas de bens e serviços, seja na de instituição reconhecível em economias de sociedades situadas fora da órbita de influência do ocidente capitalista (ver p. ex. Bohannan e Dalton, 1965). Não obstante, os sujeitos das trocas nesses contextos não são indivíduos, muito menos se reconhecem como livres vendedores e/ou compradores e as coisas que trocam raramente são tidas exclusivamente como bens e serviços utilitários. Antes, são coletividades que “contratam” (clãs, linhagens, parentelas etc), que se reconhecem como obrigadas a fazê-lo (por laços multidimensionais simultâneos - de parentesco, religiosos, políticos, jurídicos etc) e o que trocam não são apenas coisas (mas também amabilidades, gentilezas, hospitalidade, festas, presentes etc). A economia como esfera autônoma da atividade humana e a mercadoria como a forma por excelência do bem (resultado da produção humana) se autonomizaram a partir de relações e fatos sociais que, em seu fundamento e origem, são/eram totais, envolvendo todas as dimensões da vida coletiva. A lógica da dádiva, reconhecida por Marcel Mauss (1924) na economia e no direito de várias sociedades arcaicas, ainda opera, se não em muitas sociedades em sua totalidade, em amplos setores dessas economias e mesmo da nossa. Assim sendo, ao falarmos em mercado aqui, estamos nos referindo a uma configuração histórica específica – o mercado formador de preços da sociedade capitalista – sem esquecer que há outras formas de valoração e engajamento com as “coisas” e vários caminhos para a circulação das riquezas, dos bens e serviços na sociedades indígenas. Desconsiderando a sua natureza histórica e cultural, mercados são definidos de diferentes formas nos vários livros de Introdução à Economia disponíveis (Mueller,

2007; Pindyk e Rubinfeld, 2002; Mankiw, 2001; Lindeman, 2002; Riani, 1998). Em síntese são definidos como os espaços ou a arena onde ocorrem as trocas de bens e serviços entre compradores e vendedores, famílias e empresas. Num senso puro, a função dos mercados seria alocar os recursos escassos da sociedade, sendo por meio do mecanismo de preços que se busca cumprir esta função. Os mercados não prescindem de certas premissas para funcionarem perfeitamente - ou em concorrência perfeita como preferem os economistas. Algumas destas premissas, no entanto, são muito fortes e comumente não atendidas pelos mercados.4 Algumas dessas, relacionadas ao funcionamento dos mercados são (Mankiw, 2001; Riani, 1998): 

Existência de muitos compradores e vendedores de modo que nenhum deles possa ter influência direta sobre a formação de preços (poder de mercado);



Informação simétrica e completa disponível para todos os agentes econômicos;



Produtos semelhantes e com informação sobre os mesmos disponíveis; e



Livre entrada e saída de compradores e vendedores.

Analisemos brevemente cada uma das premissas acima à luz dos mercados hipotéticos de créditos de carbono num ambiente REDD. No que concerne à “informação simétrica e completa disponível para todos os agentes econômicos”, é muito difícil imaginar um cenário de mercado de créditos de carbono em que as informações estejam disponíveis de forma completa e simétrica tanto para os compradores – corporações, firmas multi e transnacionais, governos – quanto para os vendedores – organizações de povos e comunidades tradicionais florestais, indígenas e outros entes privados. É claro que as informações disponíveis para corporações, firmas e governos são muito mais completas e profundas, profissionalmente analisadas, alinhadas com interesses e estratégias previamente pensadas, e convergentes com as demandas dos mercados, em que tais atores estão acostumados a operar. Já as informações disponíveis para as sociedades 4

Não obstante, a verdade por detrás de um “sistema de mercado”, como bolsas de valores, mercados de commodities e outros é relacionada àquela dos mercados em concorrência perfeita, respeitando, assim, suas premissas.

locais imbricadas nas realidades florestais a partir das quais os créditos de carbono serão primariamente gerados para um potencial ambiente REDD, são bem menos completas e profundas, por vezes recortadas de acordo com interesses externos nem sempre claros, configurando assim assimetrias de entendimento devidas à inexistência de arenas interculturais efetiva, à insuficiência de razão etnológica e ao tempo necessário para que tais informações sejam compreendidas e apropriadas em processos de tomadas de decisões. Sen (2000: 74) discute o papel e a relevância das informações em qualquer abordagem avaliatória. Ele ressalta que se pode caracterizar abordagens avaliatórias segundo a sua base informacional: a partir das informações que são incluídas para formar juízos e – não menos importante – das que são excluídas de um papel direto na avaliação. Neste sentido, torna-se muito relevante que as informações disponíveis para quem decidirá entrar ou não num mercado sejam completas e caracterizadas quanto à sua apropriação ou não nas abordagens avaliatórias em pauta: quem compra decidirá com base em quê e quem vende decidirá com base em quais informações? Sen vai além: Por exemplo, os princípios utilitaristas têm por base, em última análise, apenas as utilidades, embora os incentivos possam de fato ser levados em conta em seu aspecto instrumental, no final a única base considerada apropriada para avaliação de estado de coisas ou para avaliação de ações ou regras são as informações sobre utilidade... Questões potencialmente importantíssimas como a liberdade substantiva individual 5, a fruição ou a violação de direitos reconhecidos e aspectos da qualidade de vida não refletidos de forma adequada nas estatísticas sobre prazer (utilidade) não podem influenciar diretamente uma avaliação normativa nessa estrutura utilitarista (SEN, 2000). Para o autor, as duas primeiras limitações da perspectiva utilitarista – a que baseia as ações e condutas no sistema de mercado atual – são: (i) a indiferença distributiva e (ii) o descaso com os direitos, as liberdades e outras condições desvinculadas da utilidade. Nesta perspectiva os mercados ameaçam direitos, práticas e costumes tradicionais e nativos não expressos, ou medidos, em termos de suas utilidades.

5

As liberdades substantivas incluem, entre outras, capacidades elementares como estar livre da fome crônica, da subnutrição, da morbidez evitável e da morte prematura, bem como as liberdades associadas a saber ler, escrever e contar, ter participação política, liberdade de expressão e escolha etc.

Quanto à “semelhança de produtos com informação disponível” sobre os mesmos, esta pode até ser imaginada num mercado de créditos de carbono. De um ponto de vista estrita e pretensamente objetivo, olhando apenas para o carbono, tal possibilidade pode até ser ampliada, pois a molécula capturada muito pouco, se é que em algo, diferirá uma da outra. Considerando, todavia, o cenário sociocultural e ambiental megadiverso da Amazônia – as variadas características relacionadas a outras dimensões subjacentes aos vínculos entre tais moléculas e os locais, paisagens e gentes envolvidas em sua garantia – a semelhança dos produtos pode não ser tão óbvia. É nesta dimensão e na da assimetria informacional antes referida que se expressa de modo mais claro a ausência de razão etnológica no debate (como veremos a seguir). A “livre entrada e saída de agentes (compradores e vendedores)”, por sua vez, também constitui um desafio para uma realidade em que vendedores (a oferta) têm uma relação intrínseca de vida com os elementos geradores dos créditos em tela para a mercantilização - as florestas e seus processos. Não é difícil imaginar um cenário onde haverão falhas no mercado para gerar os incentivos econômicos no nível adequado para remunerar e compensar aquelas alterações nos padrões de uso dos solos que são dirigidas por considerações econômicas. Mais além, a permanência, elemento chave em projetos REDD(+), implica em contratos longos – 20 a 50 anos – nos quais obrigações contratuais estabelecerão limites na utilização de recursos florestais naqueles sítios objeto dos projetos. Os ofertantes de créditos, uma vez “dentro do mercado”, não poderão escolher sair a qualquer momento com liberdade. Finalmente, com relação ao poder de mercado, é possível imaginarmos um cenário em que hajam vários vendedores organizados de créditos de carbono e vários compradores para os mesmos créditos. Este cenário só seria possível a partir de alternativas organizacionais, institucionais e políticas que resolvam as controvérsias postas. Assim sendo, se considerarmos algumas6 das premissas para o perfeito funcionamento dos mercados, configura-se desde já uma série de desafios para a participação qualificada dos povos indígenas e tradicionais em mercados de créditos de carbono. Acreditamos que a qualificação da oferta de créditos de carbono, por 6

Existem outras premissas não discutidas neste texto (Mankiw, 2001; Riani, 1998).

meio de um diálogo intercultural simétrico – que transcenda a simples difusão de informações, se esforce para incorporar as “etnológicas” e se dê no tempo julgado necessário para o entendimento mútuo – pode contribuir para a diminuição das assimetrias iniciais e a participação mais qualificada e segura dos ofertantes. Uma breve e derradeira consideração sobre os mercados e sua capacidade de conservar a megadiversidade amazônica por meio de REDD(+), relaciona-se ao mecanismo por meio do qual eles desempenham sua função alocativa: os preços. Como os mercados REDD(+) basear-se-ão nos preços do carbono (toneladaequivalente de CO2), é de se esperar que tais preços reflitam o valor subjacente de todos os outros bens e serviços em jogo. Por exemplo, o que garante que após a emergência de mercados REDD(+) os rios das regiões em que há projetos desse tipo ainda conterão os peixes que são tão importantes na manutenção de contingentes populacionais humanos? Quem assegura que as florestas conservadas sob uma armadura REDD(+) não ficarão “vazias” – o fenômeno da “floresta vazia” (Redford, 19¿¿) – após alguns anos, causando necessidades de movimentação de pessoas ou até mesmo, no limite, colocando em risco a permanência dos próprios projetos REDD(+)?

Questões como

estas ainda

carecem de

reflexão

e

aprofundamento junto às gentes das florestas na busca de respostas, alternativas e posicionamentos. Como apontam Mattos et. Alli (2009): “a capacidade de julgamento dos indivíduos é socialmente condicionada pelos seus poderes econômicos e políticos e pelos interesses locais, e os preços de mercado refletem a escassez de cada recurso em particular, e não da escassez absoluta dos recursos em geral”. Isto quer dizer que a capacidade de julgamento dos indivíduos pode ser ultrapassada num contexto em que o preço dos créditos de carbono ao mesmo tempo em que representarão um incentivo claro á adesão a projetos e iniciativas REDD(+), também não traduzirão os demais benefícios e serviços ambientais subjacentes á conservação das florestas, levando a um equilíbrio sub-ótimo.

Eficiência e Equidade. Um dos trade off claros que as sociedades têm que enfrentar, quando toma decisões7, é aquele entre eficiência e equidade (Pindyk, 2002). Acontece que os 7

Toda decisão, numa realidade de recursos escassos, enseja algum nível de trade-off.

mercados, de forma geral, para alocarem “da melhor forma” os recursos de uma sociedade, utilizarão do critério eficiência econômica como balizador de suas “decisões”. Eficiência econômica significa o estado de alocação de recursos quando não é possível melhorar a condição de nenhum dos agentes econ ômicos envolvidos sem piorar a de algum outro - a eficiência ou o ótimo de Pareto. Em outras palavras, pode-se entender eficiência econômica como a situação em que se produz o máximo com os mínimos custos possíveis - eficiência alocativa. Eficiência econômica é muitas vezes desejável, principalmente quando não se tem incertezas quanto a direitos de propriedades, necessidades distributivas especiais, direitos e interesses difusos. Entretanto, as realidades amazônicas e seus habitantes estão embebidos em situações de indefinição de direitos de propriedades e serão desafiados, numa realidade REDD, a garantir direitos e interesses que são comumente difusos. Os mercados são incapazes, por si sós, de realizarem distribuição equânime de resultados, salvo em condições reguladas, monitoradas e com institucionalidades fortes - formais ou consuetudinárias. Variações de mercado são comuns e afetam profundamente os resultados para os agentes envolvidos, tanto do lado da demanda como da oferta, e neste sentido é ingênuo esperar que o “mercado” garantirá os direitos fundamentais, liberdades substantivas e dignidades em jogo quando se considera a megadiversidade socioambiental da floresta amazônica, principalmente quando o mercado se der pela comercialização de apenas um dos vários bens e serviços ambientais presentes nas florestas - o carbono. Direitos coletivos não podem ficar/estar a reboque das variações e dos humores dos mercados. Não obstante, reconhece-se a vantagem das trocas e, desse modo, dos mercados em melhorar ou oportunizar a melhoria da qualidade de vida das pessoas. O papel desempenhado pelos mercados tem de depender não só do que eles podem oferecer, mas também do que lhes é permitido fazer. Em uma realidade tão diversa como a amazônica é interessante, porém, atentar para os detalhes do funcionamento dos mercados, regulá-los ou até mesmo contê-los diante dos riscos e efeitos perversos que os mesmos podem apresentar. Como salientou Pareto, se “uma certa medida A representa a perda de um franco por pessoa para um grupo de mil pessoas e um ganho de mil francos para um único indivíduo, este último envidará esforços imensos enquanto os primeiros resistirão debilmente; e é provável que, no

final, a pessoa que está tentando assegurar os mil francos por meio de A venha a ter êxito” (Pareto apud Sen, 2000:147). Esta afirmação abarca questões de direitos e interesses difusos, institucionalidades e o funcionamento de mercados. Falhas de Mercado, Externalidades e Instrumentos Econômicos

Além dos conceitos anteriormente tratados, fundamentais pela centralidade de que desfrutam na abordagem econômica, é importante apresentar mais alguns conceitos. Todos por conta deste enfoque particular dado pela Economia às questões como o efeito que têm as atividades econômicas sobre a natureza e a exploração ótima dos recursos naturais incluindo os recursos naturais ditos “nãorenováveis” (ex: petróleo e minérios) e os ditos “renováveis” (ex: recursos florestais, bioquímicos, hídricos e atmosféricos).

Fundamental é assumir que nestes tratamentos que a Teoria Econômica dá às tais questões, produtos e serviços florestais sempre foram classificados na categoria de bens gratuitos.

Essa perspectiva corrobora a adoção de critérios técnico-financeiros na adoção de processos produtivos e/ou na utilização destes recursos, que tendem a depreciar a importância dos ecossistemas. Em suma: o mercado deprecia recursos e serviços naturais. Isso se dá, inicialmente, devido a dois problemas a serem considerados na relação entre mercado e meio ambiente. Estes são: 1º) a falta de mercados apropriados (ou “falhas de mercado”) e 2º) as “externalidades”.

O primeiro destes problemas diz respeito à alocação ineficiente dos recursos ofertado pelo meio ambiente. O uso inadequado e sem critérios dos recursos naturais, em muitos casos escassos, tem como uma de suas causas, a falta de um mercado para os mesmos. Nesse sentido, a ausência de um sistema de preços que expresse o valor depositado nesses recursos e serviços faz com que sua utilização resulte em distorções no comércio e na sociedade de modo geral, na medida em que os preços de mercado dos bens e serviços que se utilizam de recursos ou atributos do meio ambiente não incorporam os custos dessa apropriação.

Pode-se argumentar que uma das causas dos atuais índices de desmatamento registrados na Amazônia é a inexistência de mercados que remunerem os bens e serviços gerados e/ou prestados pelos recursos naturais. Esses serviços possuem valor econômico segundo a economia ambiental, porque existem consumidores que estariam dispostos, em princípio, a pagar por eles - mas não o fazem por que não há mercados. É o fenômeno descrito como “falha de mercado”. O segundo problema é o da chamada “externalidade”. Diz-se que há externalidade (negativa) quando um agente econômico, como parte de sua atividade produtiva, impõe um custo a outro sem que tenha de pagar por isso. A empresa poluidora não incorre em nenhum custo adicional pela diminuição de bem estar dos outros. A poluição industrial (emissora de carbono) é o caso típico, além da empresa pecuária que desmata uma floresta. Não tendo que pagar o custo imposto aos outros pela poluição, empresas poluidoras ou desmatadoras mantém atividades em escala além do que os economistas chamam de “ótimo social”.

Há também externalidades positivas. Nesse caso, serviços positivos gerados para os outros, ou para a sociedade como um todo, deveriam, ao contrário, ser estimulados e remunerados. A manutenção de floresta-em-pé mediante padrões de uso que permitem, ao mesmo tempo, retirada ou manejo de produtos, sem alterar significativamente sua estrutura ecológica, pode ser considerada um ótimo exemplo de externalidade positiva. Portanto, podemos pensar as externalidades como sendo custos ou benefícios sociais. Observe-se que as externalidades constituem um caso de ausência de mercados. Dito em outras palavras, o problema consiste em como corrigir as “falhas de mercado”.

Na linguagem econômica, a solução para o problema está em, de algum modo, “internalizar” as externalidades negativas de atividades danosas fazendo com que elas apareçam como um custo, e, por outro lado, “internalizar” as externalidades positivas de atividades como as prestadas pelos Povos Indígenas e Populações Tradicionais, fazendo com que elas apareçam como benefícios.

De certa forma, o que se desenha no mercado de carbono é reflexo deste raciocínio. Neste caso, fontes emissoras de carbono necessitam “internalizar” custos de sua emissão ao passo que, em outros contextos, populações florestais se vêm diante da possibilidade de receber por serviços prestados de manutenção de estoques de floresta – sem que tenham necessariamente uma visão utilitarista (via-de-regra, ocorre o contrário) desta relação.

Este debate remete ao conceito de Instrumentos Econômicos (ou Mecanismos de Mercado). O conceito de Instrumento Econômico (IE) diz respeito a um conjunto de mecanismos (taxas, créditos, etc) que alteram a relação custo-benefício dos agentes econômicos. Visam assim, por exemplo, fazer pagar quem impõe um custo a terceiros, ou remunerar quem proporciona um benefício a terceiros. Tais instrumentos têm sido usados para criar incentivos para o controle da poluição, alterar padrões de produção, tecnologia e consumo, além de viabilizar a criação de receitas para agências ambientais ou para dotação orçamentária geral.

O ponto a que chegamos aqui é a aplicabilidade de instrumentos semelhantes no caso de situações como as Mudanças Climáticas. Dito de outra forma, a mitigação pode se beneficiar de mecanismos de mercado? Neste sentido, o mercado de carbono seria, de modo sucinto, um encontro entre detentores de um passivo ambiental (excesso de carbono emitido) e detentores de ativos ambientais (carbono estocado). A decisão de criar este mercado deriva, em última instância, de cálculo (micro)econômico dos detentores de passivos onde, grosso modo, se compara custos de transição de matriz de produção e paradigma tecnológico (medida para alterar padrões de emissão vis-a-vis estruturas de custos) e compra de carbonos como ativos para diminuir ou neutralizar passivos. O que este cálculo comparativo nos sugere fortemente é que a segunda opção se mostra melhor posicionada em termos de um cálculo de custo-efetividade de curto prazo, ou seja, (o empresário se pergunta) qual medida “alivia” meu passivo e me permite continuar produzindo a um menor custo no curto prazo (ou “coloco um filtro na minha chaminé ou invisto em conservação florestal via REDD?”). A resposta a esta pergunta é clara: comprar créditos de carbono (!). Onde se encontra este carbono (estocado)? Nos últimos remanescentes de florestas do mundo. Estão aí lançados os balizadores financeiros, econômicos e políticos para a montagem de uma complexa engenharia institucional

que permita esta transação. A perspectiva ética deste processo (se é que há) é de, supostamente, gerar um cenário de “ganha-ganha”, ou seja, ganham os detentores de florestas (governos, comunidades etc) por receberem recursos financeiros para manter suas florestas-em-pé, com o adicional de evitar acréscimos da ordem de 25% sobre as emissões totais de carbono na atmosfera, e ganham as corporações que passam a garantir redução de seus passivos ambientais através de uma triangulação com “prestadores de serviços” que seqüestram carbono por elas. Aparentemente, um encontro lógico com vistas ao “ótimo social” já citado.

Não nos iludamos: os atores deste processo na sua ponta mercadológica - do lado da demanda (por créditos de carbono) - são aquelas corporações com enorme patrimônio

financeiro,

operando

em

mercados

oligopolistas,

quando

não

francamente monopolistas, e contam com o apoio de seus respectivos governos no compromisso compartilhado de sustentar taxas de crescimento elevadas em contexto de crise internacional. Recentemente, a união dos maiores produtores de gás natural do mundo anunciou a aprovação de sua metodologia para geração de créditos de carbono por meios de projetos florestais junto ao VCS (Voluntary Carbon Standard, sigla referente a uma iniciativa de certificação de projetos que opera em escala mundial). O VCS se orienta, portanto, por uma commoditização do crédito de carbono. Sob o argumento de que a aprovação de metodologias como esta têm “potencial real” de alterar o jogo na conservação das florestas, a medida facilita enormemente ajustes nas curvas de custos de produção do mercado emissor de carbono da União Européia até 2020, maior mercado de transações estruturado até o momento. Na lista de ofertantes de créditos, Brasil, Indonésia, República Democrática do Congo e Nigéria, são considerados os países produtores “top” para REDD. Os quatro países têm apoiado, em maior ou menor grau, a criação e desenvolvimento de mecanismos orientados para REDD e contabilizam emissões de mais de 900 milhões de toneladas de dióxido de carbono anuais. Pergunta-se: alguma alternativa real e viável para além destas coordenadas oferecidas por grandes clusters corporativos no horizonte de redução dos impactos negativos das Mudanças Climáticas, ou o setor ambientalista (entusiasta de primeira hora da discussão), escoltado por uma escatologia “cientificista” (muito pertinente,

diga-se, mas algo apressada em termos de escolha de opções) terá de influenciar o mercado de políticas, programas e projetos que lhe oferece margem de influência (e lhe sustenta) mediante decisões de planilha dos grandes poluidores internacionais? O REDD é tão sedutor que inverte a lógica da questão das Mudanças Climáticas, colocando como prêmio a redução de emissões de países sub-desenvolvidos no curto e médio prazo e deixando a necessária transição de padrões tecnológicos do capitalismo-mundo para as calendas gregas. Onde fica o papel do Estado? Há alguma perspectiva de regulação forte destes mecanismos de marcado? Qual o papel da sociedade civil mundial e de segmentos sociais fortemente impactados por estas questões como os Povos Indígenas e populações tradicionais – para nos limitarmos ao escopo desta reflexão? SOCIEDADE Direitos, equidade, responsabilidade e modos de vida Não faz muito, a sociedade mundial incorporou um novo termo em seu léxico diário: “mudanças climáticas”. O agravamento lento e contínuo da estabilidade climática do última século e meio (devidamente registrada) foi cedendo espaço para um crescente conjunto de episódios climáticos “fora da ordem”, de tal forma que nos últimos anos, a “enxurrada” (com conotação literal) destes fenômenos nos quatro cantos do mundo parece ter despertado de um longo sono uma sociedade prostrada em seu sonho “modernizante”. No caso específico dos Povos Indígenas, particularmente aqueles da América Latina, este novo léxico circula a uma velocidade espantosa. A “onda” do momento é saber “o que é este tal de REDD?” ou “o que é este tal mercado de carbono?”. Em trabalho datado de 2007 (“”RED””: Alerta Roja? La “deforestación evitada” y los derechos de los Pueblos Indígenas y las comunidades locales”), Griffiths, ligado ao Forest People Program,elenca um significativo conjunto de questões pendentes no trato da relação entre REDD e Povos Indígenas. Vamos aos pontos mais importantes deste esforço. Reconhecendo que há possíveis benefícios para os Povos Indígenas, Griffith salienta os riscos claros que estes bem como demais comunidades florestais correm

se passam a fazer parte de um sistema internacional para redução das emissões de gases de efeito estufa derivados do desmatamento. A maioria das propostas de REDD existente menciona a necessidade de “participação” das comunidades e de que haja “benefícios” locais para as comunidades florestais. O próprio “Relatório Stern”, bem como as propostas do Banco Mundial em torno de uma Aliança Mundial Florestal mencionam o apoio ao manejo comunitário das florestas. Porém, pergunta-se, que significa isso realmente na prática? Mesmo que as questões sociais e de redução da pobreza sejam mencionadas na maioria das propostas de desmatamento evitado, em geral têm muito pouco detalhe sobre como se respeitarão e salvaguardarão cabalmente os direitos dos povos, e como os sistemas de REDD poderiam assegurar benefícios equitativos e sustentáveis para as populações locais.

Políticas florestais verticais?

A esta altura, a maioria das propostas de desmatamento evitado provém do Banco Mundial, de governos e de grandes ONG´s conservacionistas. Há abundante evidência que demonstra que todo esforço de planejamento para salvar as florestas do mundo que tenha sido concebido sem o pleno conhecimento dos povos da floresta

está

condenado

ao

fracasso.

Ademais,

formas

verticalistas

(ou

tecnoburocráticas) de impor políticas reforçam o status quo da política florestal em escala local, nacional e internacional. Assim, não está claro se Povos Indígenas e outros povos das florestas têm sido consultados sobre os riscos e benefícios potenciais nos planos de desmatamento evitado.

Violação de direitos territoriais e risco de conflitos por terras

Em numerosos países com florestas tropicais os Estados não reconhecem direitos coletivos consuetudinários dos Povos Indígenas sobre suas florestas, ou apenas reconhecem pequenas extensões destas terras e transformando o restante em Parques Nacionais. Embora esta questão no Brasil não ganhe a dramaticidade que a questão tem, por exemplo, em países como Peru, Venezuela ou Guianas, este

tema é particularmente importante, porque presumivelmente o ordenamento territorial das florestas no marco de sistemas de pagamento por REDD e qualquer plano de distribuição de benefícios com base em contratos estaria em parte atrelado aos direitos de propriedade. Há portanto, um risco real de que REDD se converta num “driver” de ordenamento territorial, capitalizando territórios em detrimento de outros o que certamente orienta o processo de especulação fundiária e agrava conflitos entre o avanço da fronteira agropecuária e as Terras Indígena (sabidamente um “obstáculo” à expansão do agronegócio por se tratar de patrimônio da União, na medida em que, dentre outros fatores, “encarece” o mercado fundiário ao serem “subtraídas” – as Terras Indígenas – deste mercado).

Desigualdade e injustiça contratual

Os sistemas verticalistas de demarcação REDD das florestas podem gerar conflitos em torno dos limites e benefícios tanto no interior de comunidades como entre elas. Imaginemos um mercado REDD “correndo solto”, com atores ofertantes e demandantes buscando construir acordos e contratos, sem que algum mecanismo regulador opere neste contexto. Considerando todos os fatores característicos dos mercados e suas falhas já relatados aqui, que pode resultar de uma tal onda de compra e renda de créditos de carbono entre universos tão díspares? Em suma, a compensação por desmatamento evitado pode aumentar a desigualdade nas zonas rurais e florestais, gerar conflitos internos e entre povos e comunidades. Finalmente, mesmo que comunidades possam negociar direitos por sistemas de desmatamento evitado, não nenhuma garantia de que os termos de negociação sejam justos e equitativos. Há o perigo de que contratos de compensação sejm construídos de sorte a beneficiar empresas privadas (ou mesmo estados), impondo custos indevidos e deveres de conservação aos membros das comunidades locais. Exemplo de excessos deste tipo em agendas de certificação conduzidas por grandes

operadoras

neste

nicho

de

mercado

reforçam

este

raciocínio:

sobretrabalho, alteração de padrões de uso, assalariamento, enfim, são muitos os desafios que se apresentam. Cabe, por fim, responder se sistemas de estabelecimento de princípios e critérios são suficientes para barrar a reprodução destas assimetrias.

No Brasil, um conjunto de organizações e movimentos sócio-ambientais, trabalhadores e trabalhadoras da agricultura familiar e camponesa, agroextrativistas, quilombolas,

organizações

de

mulheres,

organizações

populares

urbanas,

pescadores, estudantes, povos e comunidades tradicionais e povos originários, “compartilhando a luta contra o desmatamento e por justiça ambiental na Amazônia e no Brasil”, reuniram-se no seminário “Clima e Floresta - REDD e mecanismos de mercado como solução para a Amazônia?”, realizado em Belém em 02 e 03 de outubro de 2009, para analisar as propostas em curso de Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD) para a região. . Em Carta publicada (“Carta de Belém, 2009), vieram a público manifestar sua reivindicação de que o governo brasileiro “rejeite a utilização do REDD como mecanismo de mercado de carbono e que o mesmo não seja aceito como compensação às emissões dos países do Norte”. Esta rede de organizações e movimentos sociais rechaçam os mecanismos de mercado como “instrumentos para reduzir as emissões de carbono, baseados na firme certeza que o mercado não é o espaço capaz de assumir a responsabilidade sobre a vida no planeta”. Em sua visão, a Conferência das Partes (COP) e seus desdobramentos mostraram que “os governos não estão dispostos a assumir compromissos públicos consistentes, transferem a responsabilidade prática de cumprimentos de metas, além do que notoriamente insuficientes, à iniciativa privada”. Para muitos grupos, porpulações e movimentos sociais que acompanham este debate, as propostas de REDD “permitem aos atores econômicos – que historicamente destruíram os ecossistemas e expulsaram as populações que vivem neles – encontrarem nos mecanismos de valorização da floresta em pé maneiras de continuar com e fortalecer seu poder econômico e político em detrimento dessas populações”. Segundo estas, as negociações internacionais sobre clima, para o Brasil, não podem estar focadas no debate sobre REDD e outros mecanismos de mercado e sim na transição para um novo modelo de produção, distribuição e consumo. O desafio central para o enfrentamento do desmatamento na Amazônia e em outros biomas do país seria “a solução dos graves problemas fundiários, que estão na raiz dos conflitos sócio-ambientais”.

CULTURA Etnologia e simetria Nas iniciativas de qualificação para o diálogo sobre mudanças climáticas e REDD(+) e nos processos de consultas em andamento visando o estabelecimento de critérios para projetos nessa área, sentimos falta não só de uma perspectiva mais cautelosa em relação aos mercados, mas também de uma abordagem mais simétrica entre os vários sistemas de conhecimento implicados nessa conversa. Tudo se passa como a ciência do clima, tal como expressa nos conhecimentos sistematizados pelo IPCC, tivesse um acesso privilegiado e não mediado à realidade objetiva dos fenômenos climáticos, enquanto que povos indígenas e tradicionais teriam apenas uma “representação” dessa mesma realidade; donde bastaria difundir tais conhecimentos de modos culturalmente adequados para que aqueles povos se posicionassem nessa arena de debates e negócios. São poucas e raras as tentativas seja de partir dos conhecimentos e experiências propriamente indígenas sobre o clima e suas mudanças (ver Cabalzar, 200), seja de reconhecer que nosso discurso contemporâneo sobre mudanças climáticas articula tanto uma narrativa de origem (visto que o carbono seria uma dos principais ingredientes da vida) quanto uma escatologia (posto que estaríamos tratando do destino final do gênero humano). É na dimensão do diálogo intercultural simétrico que as premissas mercadológicas relativas à “semelhança de produtos com informação disponível” e à “informação simétrica e completa disponível para todos os agentes econômicos” assumem especial

relevância.

É

forçoso

reconhecer

que

carbono

não

é

um/a

conceito/realidade transcultural e que a escala em que nós e os povos indígenas e tradicionais experimentamos e pensamos as mudanças do clima são diferentes, nada justificando que uma englobe a outra sob o argumento de que a nossa escala é a planetária e que vivemos em “um só mundo” – categoria colonial por excelência (Sachs, 19¿¿). Tal mundo comum – e, portanto, suas instituições, como o mercado – não é um dado objetivo que a ciência acessa diretamente e sem mediações, mas antes algo a ser construído coletivamente entre atores que se consideram e se tratam como iguais – os recursos formativos empregados nesse diálogo devendo estar pautados por esse reconhecimento. Que disposição temos para começar essa conversa ouvindo as nossas próprias narrativas de origem do mundo e da vida, ao lado e junto das narrativas equivalentes dos povos indígenas e tradicionais? Que

abertura temos para falar das ameaças que, segundo nossa compreensão de humanidade, as mudanças climáticas põem ao gênero humano e ouvir com igual atenção as escatologias indígenas sobre as suas respectivas humanidades, como a teoria Yanomami da xawara (Albert, 19¿¿)? Entendemos que antes de discutir com esses povos os critérios e os modos possíveis de integração com os mercados relativos às mudanças climáticas, convém construir uma compreensão coletiva partilhada dos fundamentos da emergência das mudanças climáticas como um problema global – para os brancos – e da institucionalide que surgiu para lidar com isso – na qual se situam os mercados de REDD(+). Decidir participar desses mercados não nos parece apenas uma opção pragmática fundada na possibilidade de auferir benefícios – com a potencial consequência perversa de tornar direitos coletivos e territoriais relativamente dependentes de mecanismos de mercado para que se efetivem. Significa, antes de tudo, se posicionar diante de distintas narrativas sobre a origem e o destino da vida, levando em consideração as questões etnológicas aí implicadas, sem o quê se restringem oportunidades para relações menos assimétricas – seja em relação ao(s) produto(s) (só carbono?), seja em relação à completude das “informações” em jogo. Em que podemos contribuir É nesse contexto complexo que acreditamos poder dar nossa parcela contribuição na formação e maturação de eventuais mercados para créditos de carbono baseados na redução de emissões por desmatamento, degradação florestal e, mais além, medidas de conservação e manejo florestal, atuando principalmente ao lado dos potenciais ofertantes de créditos: as associações, organizações, comunidades e povos indígenas e tradicionais na Amazônia brasileira. Qualificar a potencial oferta de créditos por meio do estabelecimento de diálogos interculturais simétricos que, respeitando

necessidades

temporais

de

apreensão,

amadurecimento

e

sedimentação de conceitos e experiências, permita uma compreensão densa dos mundos implicados nas chamadas mudanças climáticas. Acumulamos

alguma

experiência

na

implementação

de

programas

de

desenvolvimento social e fortalecimento institucional junto a grupos sociais de base florestal e vemos janelas de oportunidades e necessidades para atuar junto a esses mesmos grupos no surgimento – notadamente top-down, ou seja, de “cima pra

baixo” – de mercados REDD(+). Baseados nessa expertise, podemos e nos comprometemos a desempenhar um conjunto de atividades para viabilizar o alcance daqueles objetivos, qual seja: fortalecer paços de discussão sobre os fundamentos, as experiências, os princípios, os conceitos, os direitos e as liberdades substantivas que ancoram as instituições, as normas e as regras emergentes em uma eventual realidade de mercados para REDD(+); implementar oficinas, intercâmbios, diálogos interculturais e intersetoriais; promover debates entre atores econômicos potenciais (associações, empresas, comunidades etc) e outras formas de ativação e fortalecimento do capital social amazônico para a entrada qualificada em mercados REDD(+). * * *

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