Muito além da matemática

June 2, 2017 | Autor: Antonio Candido | Categoria: Midiatização
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Muito além da matemática
No final da década de 1950, o norte-americano Claude Elwood Shannon, secundado por Warren Weaver, apresenta ao mundo a teoria matemática da comunicação, que pode ser compreendida neste esquema:

O processo comunicacional é visto como um fluxo linear e unidirecional que cessa quando a mensagem chega a seu destino. A fonte a produz; um aparelho transmissor a codifica em sinais e envia por um canal (meio) até um aparelho receptor; este decodifica os sinais e a reconstrói, possibilitando que o destinatário receba o que lhe foi passado. Embora sua grande importância esteja em dar origem a um conceito quantitativo de informação, uma magnitude física extensiva, esse pensamento ganhou força e atravessou diferentes escolas e linhas de pesquisa em ciências humanas.
Shannon era matemático e engenheiro elétrico, funcionário da Bell Systems — filial da American Telegraph e Telephone (AT&T) — , e suas bases encontram-se em pesquisas de engenharia de telecomunicações. Seu trabalho, também conhecido como teoria da informação, foi divulgado pela primeira vez em 1948, numa monografia impressa nas publicações de pesquisas dos laboratórios da empresa. No ano seguinte, publicada pela Universidade de Illinois, foi complementada por comentários de Warren Weaver, coordenador, durante a Segunda Guerra Mundial, de pesquisa sobre grandes máquinas de calcular.
Conforme Shannon, comunicação é "reproduzir em um ponto dado, de maneira exata ou aproximativa, uma mensagem selecionada em outro ponto" (Mattelart, 1999, p. 58). Seu objetivo era projetar um quadro matemático que possibilitasse transmitir o máximo de informação com o mínimo de distorção, no menor tempo e a maior economia possível de energia, levando em conta a possibilidade de perturbações contingentes — os ruídos. Seus estudos não estavam voltados às relações e interações humanas. Para ele, o conteúdo da mensagem não tinha importância. "Sua teoria absolutamente não leva em conta a significação dos sinais, ou seja, o sentido que lhe atribui o destinatário e a intenção que preside a emissão" (Mattelart, 1999, p. 60).
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Se os estudos de Shannon tinham origem nas ciências exatas e levaram a uma abordagem da comunicação do ponto de vista técnico, reduzindo-a um instrumento, como foi tão incorporada pelas humanas? Não é porque não houvesse outras ideias em sentido oposto.
Já em 1937, por exemplo, bem antes da divulgação da teoria matemática da comunicação, o sociólogo americano Herbert Blummer apresentou o interacionismo simbólico. Seu foco estava nos processos de interação social mediados por relações simbólicas, tudo acontecendo a partir das interpretações que as pessoas fazem do que lhes acontece. Uma visão antagônica à trazida por Shannon.
Pesquisadores da Escola de Palo Alto, cientistas de diversas áreas reunidos na cidade de mesmo nome na Califórnia nos anos 1940 — contemporâneos do engenheiro —, também se opunham. Combatiam a ideia de tudo se resumir a um fluxo linear. Sustentavam que a teoria da informação não servia para analisar a comunicação, que esta deveria ser estudada pelas ciências sociais a partir de modelo próprio. Propunham o circular retroativo, concebido por Norbert Wierner (curiosamente, também matemático, um dos fundadores da Cibernética), em que o receptor tem um papel tão importante quanto o do emissor.
A ideia central dos integrantes de Palo Alto é a de que as pesquisas devem basear-se nos níveis de complexidade da interação, de contextos múltiplos e sistemas circulares, conforme Winkin, (1981), citado por Mattelart (1999, p.67). "Segundo eles, a complexidade da menor situação de interação que seja é tal que é inútil querer reduzi-la a duas ou mais 'variáveis' trabalhando de maneira linear".
No entanto, o texto publicado por Shannon continuava influenciando diferentes disciplinas. As noções de informação, codificação, decodificação, ruído e liberdade de escolha na emissão foram adotadas pelas ciências humanas e levaram à ideia de neutralidade na emissão e na recepção. O esquema da teoria matemática, tão simples, tornou-se a representação geral da comunicação, ultrapassou largamente os limites da área em que havia surgido.
Apoio massivo da Communication Research
A concepção foi encampada por uma forte corrente nos Estados Unidos, a Mass Communication Research — conceito que começou a ser construído a partir do livro Propaganda Techniques in the World War, lançado em 1927 por Harold D. Lasswell. Consagrava a onipotência da mídia e entendia o público como "um alvo amorfo que obedece cegamente ao esquema estímulo-resposta" (Mattelart, 1999, p. 37).
O próprio Lasswell, em 1948, avançando no raciocínio sugerido pela teoria matemática e, ao mesmo tempo, ratificando-o, propõe que "um modo apropriado de descrever um ato de comunicação é responder às seguintes perguntas: quem diz o quê/por qual canal/a quem/com qual efeito? O estudo científico do processo de comunicação tende a se concentrar numa ou noutra dessas interrogações" (1948), citado por Wolf (2008, p. 12). Essa fórmula, em estreita relação com a de Shannon, logo dominou as pesquisas na área. E alimentou, por décadas, a concepção de que o público dos meios de massa se deixaria manipular com facilidade, sendo passivo e homogêneo.



A interrogação sobre os efeitos era a mais importante para a Mass Communication Research. Saber o que a transmissão de uma mensagem provocava no grande público era essencial para essa escola, voltada à propaganda e baseada em sistemáticas pesquisas quantitativas para atender às suas demandas comerciais. Como diz Mattelart, "a atenção aos efeitos da mídia sobre os receptores, a constante avaliação, com fins práticos, das transformações que se operam em seus conhecimentos, comportamentos, em suas atitudes, emoções, opiniões e em seus atos são submetidas à exigência de resultados formulada por acionistas preocupados em pôr em números a eficácia de uma campanha de informação governamental, de uma campanha publicitária ou de uma operação de relações públicas das empresas" (1999, p.40).
Mesmo a Escola de Frankfurt, que se opunha à Communication Research, não problematizou os fundamentos da teoria matemática. O conceito de indústria cultural, criado por Theodor Adorno e Max Horkheimer nos anos 1940, estabelecia que produtos culturais homogeneizados lançados em larga escala dominavam o público, que os consumia passivamente. Uma força de coerção sobre a sociedade. Ou seja, também considerava o processo de comunicação como um fluxo linear em que o receptor não tinha capacidade de reação.
Mais tarde, mais um outro campo de estudos também reforçou o trabalho de Shannon. O russo Roman Jakobson propôs integração e caminhos paralelos entre lingüística e a teoria matemática, legitimando-a. "É preciso reconhecer que, sob certos aspectos, os problemas da troca da informação encontraram por parte dos engenheiros uma formulação mais exata e menos ambígua, um controle mais eficaz das técnicas utilizadas, junto às possibilidades de quantificações significativas" (1961), citado por Wolf (2008, p. 116).
Ao fazer isso, Jakobson ameniza o caráter técnico e referenda um modelo de comunicação que se resume ao modo como a informação é difundida segundo um código comum e uniforme, numa relação funcional da emissão à recepção, que restringe a mensagem ao seu sentido literal. Em outras palavras, um conteúdo semântico fixo a ser transmitido entre dois polos determinados, responsáveis pela codificação e decodificação a partir de um código igualmente estipulado. Essa postura ajudou bastante o "sucesso" da visão matemática como uma teoria de comunicação apropriada e difícil de contestar.
Sinais contrários
Ao longo do tempo, outras tendências surgiram para analisar a comunicação social, mas a interpretação de Shannon manteve-se presente, com maior ou menor força. Aos poucos, novas visadas trazem abordagens mais diferenciadas. Já em 2011, o sociólogo francês Dominique Wolton, em seu livro Informar não é comunicar, define que os estudiosos devem pensar informação e comunicação em conjunto, sendo esta mais complexa do que aquela por envolver aspectos da relação, da alteridade e do receptor. E completa, "nada mais simples do que os incontáveis discursos mais ou menos hostis à comunicação que desvalorizam o estatuto do receptor, sempre sob suspeita de ser meio estúpido e facilmente manipulável. De qualquer maneira, é sempre o outro que é influenciável, jamais a gente" (p.18).
Essa condição do receptor começa efetivamente a ser tratada de forma diferente quando a comunicação deixa de ser vista pelos pesquisadores como um processo instrumental dominado pelos veículos. Nos anos 1980, Jesús Martín-Barbero, semiólogo, antropólogo e filósofo colombiano, nascido na Espanha, observa que o eixo dos estudos deveria ser mudado. O objeto está em como as pessoas se comunicam entre si. Fala de uma esfera mais complexa, em que os meios não seriam nem veiculadores nem gestores isolados das operações de sentido, mas em interação com outras dinâmicas socioculturais. "Então, a noção de comunicação sai do paradigma da engenharia e se liga com as "interfaces", com os "nós" das interações, com a comunicação-interação, com a comunicação intermediada" (2009).
Esse pensamento sacode os estudos nessa área, mudando o foco da análise das comunicações de massa, passando às mediações. Ultrapassa a compreensão positivista dos meios — de que estes, ao enviarem suas mensagens, causam apenas efeitos previsíveis no público —, e propõe que a comunicação passe a ser estudada a partir das inter-relações que surgem em seus processos. Ao mesmo tempo, joga luz nas mediações culturais, especialmente em como acontecem e em seus resultados com relação à mídia e seus produtos. Para Braga, essa percepção é importante porque revela o receptor integrado em seus ambientes e, mais ainda, sinaliza os processos midiatizados (2012).
Midiatizado, midiatização: termos que, embora já fossem citados nos 1990, ganham força neste século. Mas são conceitos ainda em formação por tratar-se de um fenômeno técnico, social, e discursivo. Técnico porque a sociedade industrial possibilitou o desenvolvimento de suportes tecnológicos de comunicação que permitem às pessoas ter acesso a muitas e diferenciadas fontes de informação e, ao mesmo tempo, receber e difundir mensagens sem depender dos veículos tradicionais. Social porque essa realidade constitui e desenvolve fluxos e relações que alimentam e dinamizam o funcionamento de um novo modo de organização. Discursivo porque essas narrativas, os modos de dizer, de apresentar, são transversais e afetam as práticas sociais, ainda que de maneiras distintas.



A mídia passa a operar como condição de novos processos. São práticas incorporadas ao cotidiano graças a avanços tecnológicos que possibilitam autonomia pessoal em processos comunicacionais e estabelecem relacionamentos que, até não muito tempo atrás, pareciam ficção científica. Como define Fausto Neto, "a midiatização articula essas duas dimensões, transversalidade e relacionalidade. Pois tanto técnica quanto linguagem são dispositivos mais complexos agindo e construindo a própria vida social, diferentemente da noção em que os meios são entendidos como instrumentos a serviço de uma causa" (2005).
São mudanças que alteram todo o entendimento dos processos comunicacionais que a visão matemática de Shannon alimentou. O fluxo das mensagens não é linear, é fragmentado, nem é causal, é relacional. Os sentidos são produzidos pelo contato entre a produção e a recepção, pelas diferenças entre uma e outra. Se a teoria da informação buscava a homogeneidade, a midiatização baseia-se nas heterogeneidades que atravessam todos os discursos e fazem a comunicação.


Referências bibliográficas
BLUMER, Herbert. A natureza do interacionismo simbólico. In: MORTENSEN, C. D. (Org). Teoria da Comunicação: textos básicos. São Paulo: Mosaico, 1980, pp. 119-138.

BRAGA, José Luiz. Circuitos versus campos sociais. In: MATTOS, Maria Ângela; JANOTTI JUNIOR, Jeder; JACKS, Nilda (Org.). Mediação e Midiatização: livro da Compós 2012. Salvador: EDUFBA, pp. 31-52, 2012. Disponível em . Acesso em: 08 abr. 2016

FAUSTO NETO, Antonio. Midiatização — Prática social, prática de sentido. Encontro da rede Prosul "Comunicação e Processos Sociais", 2005, UNISINOS/PPGCC.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Uma aventura epistemológica. In: Matrizes, Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 2, n. 2, pp. 143-163. 2009. Disponível em: . Acesso em: 04 abr. 2016.
MATTELART, Armand e Michèle. História das Teorias de Comunicação. Edições Loyola: São Paulo, 1999.
WOLF, Mauro. Teorias das Comunicações de Massa. Martins Fontes: São Paulo, 2008.

WOLTON, Dominique. Informar não é comunicar. Sulina: Porto Alegre, 2011.









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