Muito siso e pouco riso fazem de Jack um infeliz: pontos de confluência e de afastamento entre o filme de Stanley Kubrick e o romance O Iluminado de Stephen King

May 27, 2017 | Autor: A. Alegrette | Categoria: Horror Film, Stephen King
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*Doutor e Mestre em Estudos Literários. UNESP – Universidade Estadual Paulista. Faculdade de Ciências e Letras – Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. Araraquara – SP – Brasil. – [email protected] ou [email protected].

Muito siso e pouco riso fazem de Jack um infeliz: pontos de confluência e de afastamento entre o filme de Stanley Kubrick e o romance O Iluminado de Stephen King

Alessandro Yuri Alegrette*

Resumo: O presente artigo procura apontar pontos de confluência e de afastamento entre o filme de Stanley Kubrick e o romance que deu origem a ele: O Iluminado, de Stephen King. Enfatizamos que o cinema e a literatura apesar de estabeleceram uma relação de proximidade são linguagem diversas e, por isso, elas divergem em alguns elementos. Assim, analisamos as semelhanças e as diferenças entre o livro e sua adaptação cinematográfica, de modo a ressaltar os aspectos inovadores do texto de King, principalmente o tratamento dado pelo autor ao tema gótico da casa mal-assombrada e processo de loucura do protagonista, Jack Torrence – aspectos que atraíram a atenção de Kubrick durante a elaboração do roteiro de O Iluminado.
Palavras-chave: O Iluminado; horror; sobrenatural; gótico; Stephen King.

O grande problema para quem lê O Iluminado [The Shining, 1977], de Stephen King, depois de ter visto o filme de Stanley Kubrick que se tornou um clássico do cinema de horror, é não procurar estabelecer uma relação de proximidade entre o romance e o filme. É uma tarefa difícil, ainda mais porque as assustadoras imagens das irmãs gêmeas no corredor do hotel (que não aparecem no livro de King) e, principalmente, de Jack Torrence, encarnado por Jack Nicholson em uma atuação tão marcante que ele não conseguiu mais se desprender totalmente dela, voltando a encarná-la sucessivas vezes, ficam impressas na memória. Por isso, para que se possa apreciar melhor o romance de King, é necessário ter em mente que apesar de ambos, livro e filme, terem o mesmo ponto de partida, ou seja, a mesma trama, leitor e espectador estão diante de duas obras distintas e, por isso, precisam ser analisadas de forma diferenciada.
O filme de Kubrick aproveita somente alguns elementos da estrutura narrativa da obra de King. Sua parte inicial é bastante semelhante ao romance, mas a partir da metade, notamos que Kubrick altera drasticamente o enfoque da trama original. Uma das mudanças significativas ocorre na configuração do principal cenário da obra: o Hotel Overlook. No filme é proposta uma explicação para a existência dos fantasmas que assombram o lugar: o edifício foi construído sobre o terreno de um antigo cemitério indígena e, por isso, esse local sagrado foi profanado. Dessa forma, o que ocorre com Torrence e com a família do outro zelador é resultado da ação de espíritos vingativos que lançaram uma maldição sobre o Hotel Overlook. Com isso, o local mal-assombrado passa a exercer uma nefasta influência sobre os membros da família Torrence, sendo o mais afetado, o pai, Jack, o que resultará em trágicas e terríveis consequências.
Mas, a maior mudança na trama de O Iluminado feita por Kubrick e pela roteirista Diane Johnson – autora do romance gótico Shadow Knows, e que causou polêmica entre aqueles que leram a obra original é a inserção de um final diferente. Neste, que se passa nas imediações do Hotel Overlook, Jack persegue Danny dentro de um imenso labirinto e tenta matá-lo com um machado. No entanto, o garoto fazendo uso de um artifício que remete aos contos de fadas tradicionais (ele anda para trás dando a impressão a Jack que segue por um caminho, mas na verdade toma outra direção) engana pai e escapa.
Na cena final, Jack morre congelado tornando-se uma macabra estátua que se destaca na sinistra paisagem. O filme se encerra dentro de uma esfera do sobrenatural, com o close up em uma fotografia datada de 1920 que registrou um importante evento no Overlook, um baile de gala, na qual aparece um homem exatamente igual a Jack, o que reforça a exploração do tema gótico do doppelganger (duplo) no filme de Kubrick.
Em seus comentários sobre a elaboração do roteiro de O Iluminado, Johnson afirma que o que mais interessava Kubrick era justamente a abordagem inovadora de King das histórias de fantasmas, assim como a loucura de Jack. Johnson também afirma que Kubrick escolheu adaptar O Iluminado para o cinema porque ele queria tentar compreender o que assustava os espectadores e por que eles gostavam de sentir medo. Ainda de acordo com Johnson, a situação dramática da família Torrence também atraia muito Kubrick, que a considerava o aspecto mais forte do livro de King, embora o autor não tivesse a noção de que havia tocado em um assunto psicologicamente tão forte (apud CIMENT, p. 292, 2013).
Como se vê, O Iluminado não é uma simples e tradicional história de fantasmas que tem sua origem no pouco lembrado romance gótico O Castelo de Otranto (1864), de Horace Walpole (citado no livro por King). Quem lê essa obra de King irá descobrir que ela é bem mais complexa que sua adaptação cinematográfica assinada por Kubrick em vários aspectos, principalmente na maneira ousada e, até certo ponto inovadora como autor descreve o Hotel Overlook, sua casa mal-assombrada. Também podemos constatar que King nesse romance, procura ir muito além do susto fácil. Conforme já foi observado por aqueles que estudam sua produção literária, destacando-se dentre eles, Tony Magistrale que se tornou um especialista, o autor como ficcionista, se sobressai quando aborda os temores que fazem parte da vida cotidiana.
Gradativamente, o Hotel Overlook revela aos membros da família Torrence - com exceção de Danny, que por trás de sua aparente tranquilidade, se esconde um lado sinistro e ameaçador. Seu aspecto fantasmagórico também remete a explicação dada pelo autor sobre a provável origem do conceito de casa mal-assombrada. De acordo com King, o chamado "Lugar Ruim" – que é sua definição de mal-assombrada, se caracteriza a partir da presença em seu interior de resíduos psíquicos extremamente danosos, que foram deixados por seus antigos habitantes (KING, 2013, p. 375).
Assim, os fantasmas que apavoram a família Torrence, ao longo do desenvolvimento da narrativa de O Iluminado, encontram ressonância no mundo real – aspecto que diferencia o autor de outros inseridos na tradição gótica. Jack Torrence, o protagonista do romance é ameaçado por temores reais — como o alcoolismo, a violência doméstica, a instabilidade emocional provocada até mesmo pela sensação de fracasso na vida profissional. De acordo com King, Jack Torrence é uma "casa mal-assombrada psíquica", constantemente atormentado pela presença ausente do pai (ROGAK, 2013, p. 99). Essa afirmação feita pelo autor reforça o aspecto metaficcional de sua escrita. De acordo com King somente por meio da criação de suas histórias, ele consegue exorcizar seus próprios "demônios interiores". Assim como Jack, o autor sofreu com o misterioso desaparecimento de pai, que deixou uma lacuna emocional em sua vida. King também admite que durante muito tempo foi dominado pelo vício do álcool e sucumbiu a impulsos de violência durante à época em que escrevia O Iluminado (ROGAK, 2013, p. 99).
É a combinação explosiva das emoções intensas e negativas de Jack que enfraquece a frágil harmonia familiar dos Torrence e dá ensejo aos eventos assustadores do Hotel Overlook. Dessa forma, quando eles são inseridos no seu interior, este revela ser o cenário ideal, no qual o terror/ horror encontra o espaço ideal para existir e se manifestar em sua plenitude.
Assim, o Hotel Overlook revela aos membros da família Torrence - com exceção de Danny, que por trás de sua aparente tranquilidade, se esconde um lado sinistro e ameaçador:
Uma outra silhueta, surgindo gradualmente, empinada. Imenso e retangular. Um telhado íngreme. Brancura obscurecida pela escuridão de tempestade. Muitas janelas. Um edifício comprido, coberto de telhas de madeira. Algumas telhas de madeira eram mais verdes e mais novas. Seu pai as tinha colocado. Com pregos de ferragens de Sidewinder. A neve estava cobrindo tudo. Uma luz bruxuleante verde surgiu brilhante na frente do prédio, estremeceu e se transformou numa caveira brilhante e sorridente sobre dois ossos cruzados. – Veneno – disse Tony na escuridão – Veneno. (KING, 2012, p. 40

Um dos grandes méritos do livro é o modo como King conduz sua narrativa, sem apelar para artifícios fáceis para causar uma resposta imediata no leitor: o medo. Optando pela focalização onisciente, o autor permite que o leitor tenha livre acesso, às vezes, por meio de flashbacks aos pensamentos dos três protagonistas: Jack, Wendy e Danny, que se torna o eixo central da trama e "O Iluminado" que dá título ao livro. Este recurso é usado habilmente por King possibilitando ao leitor conhecer as nuances de cada personagem, assim como seus traumas e suas motivações.
Chama a atenção em O Iluminado a instauração de uma contínua atmosfera de terror, onde o leitor em alguns momentos é obrigado a preencher as lacunas soltas da trama, conforme demonstra a passagem (cortada no filme de Kubrick), em que Danny está preso em um buraco na neve e sente o que define ser "um toque gelado de dedos" tentando agarrar suas pernas. Dessa forma, King trabalha o terror de modo ambíguo, e o leitor não consegue saber exatamente se os eventos são reais ou se são delírios dos personagens — característica recorrente do universo gótico norte-americano, que remete aos contos de Edgar Allan Poe e H. P. Lovecraft, ambos considerados por King os grandes mestres do chamado "horror moderno".
Apesar da criação de eficientes elementos de terror, O Iluminado, se destaca por suas cenas de horror, algumas bastante assustadoras, tais como, a aparição fantasmagórica do misterioso quarto 217:
Ainda sorrindo maliciosa, os imensos olhos vidrados fixos nele, estava se levantando. As palmas das mãos mortas faziam ruídos na porcelana. Seus seios balançavam como sacos de pancada antigas e murchos. Houve o som minúsculo da quebra dos pedaços de gelo. Ela não respirava. Era um cadáver, e morto há anos. (KING, 2012, p. 235)

Outro momento, onde ocorre a manifestação do sobrenatural, é quando Jack tem contato com os antigos moradores do Hotel Overlook. Neste, é por meio de citações e, principalmente, pela presença de um sinistro relógio marcando o tempo, criando assim um clima de permanente tensão, que O Iluminado estabelece uma relação intertextual muito interessante com "A máscara da morte rubra" (1839), conto escrito por Poe, apontado pelo próprio King como uma referência constante em seus textos.

A redoma inteira estava manchada de sangue, podia ver pedaços de cabelo, mas nada mais graças a Deus, nada mais, e ainda assim achava que iria vomitar porque ouvia as pancadas, ouvia através do vidro assim como ouvia o Danúbio Azul. Mas os sons não eram mais os tique-taques mecânicos do taco mecânico atingindo uma cabeça igualmente mecânica e sim sons surdos do taco verdadeiro, dilacerando e golpeando destroços úmidos e esponjosos. Destroços que já tinham sido...
-RETIREM AS MÁSCARAS!
(... a Morte Rubra dominava tudo!)
Com o grito crescente e miserável, deu as costas para o relógio, tropeçando nos próprios pés como se fossem blocos de madeira, as mãos estendidas implorando que parassem, que levassem Danny, Wendy e ele, que levassem o mundo todo se quisessem, mas que parassem e deixassem nele um pouco de sanidade, um pouquinho só.
O salão estava vazio. (KING, 2012, p. 375-376)

É a ousada abordagem do universo gótico, principalmente focando no horror que não está apenas inserido na esfera do sobrenatural e, também, de modo mais sutil e, por isso, mais assustador, pode ter suas origens no terreno do subjetivo, e, até mesmo no plano do inconsciente, remetendo assim ao unheimlich freudiano. Assim, o Hotel Overlook evoca em Jack um sentimento de familiaridade, mas gradativamente torna-se um ambiente perturbador que está associado com a morte, aos cadáveres e assombrações. (CIMENT, 2013, p. 105).
O Iluminado é um dos melhores livros de Stephen King, que, assim como Poe e Lovecraft, é um dos grandes autores da literatura gótica de horror/ terror. Com certeza, quem se aventurar em entrar nos corredores do Hotel Overlook, ficará preso como imã a ele e, assim como Jack Torrance e sua família, será envolvido por seus mistérios fascinantes e terríveis ao mesmo tempo, de modo a sentir a sensação de "horror prazeroso", que somente King em suas boas obras é capaz de proporcionar.

REFERÊNCIAS

CIMENT, Michel. In: ______. Kubrick e o fantástico. Conversas com Kubrick. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
KING, Stephen. Dança Macabra: O fenômeno do horror no cinema, na literatura e na televisão dissecado pelo mestre no gênero. Rio de Janeiro: Ponto de Leitura, 2013.
______. O Iluminado. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
O Iluminado "The Shining". Direção: Stanley Kubrick. USA/ING. 1980.
ROGAK, Lisa. Stephen King, a biografia: Coração Assombrado. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2013.




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