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May 24, 2017 | Autor: Rosa Vieira Guedes | Categoria: Drama In Education
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Muito menos que um frango de AFONSO NILSON (Monólogo adaptado a dez jovens actrizes) Estreia 10 de Fevereiro de 2017 no Auditório da Escola Secundária Tomás Cabreira – Faro. Turma do 1º Ano do Curso Profissional de Artes do Espectáculo - Interpretação Intérpretes: Ana – Ana Ramos Beatriz – Beatriz Carvalho Britt – Britt Hardwick Carla – Carla Santos Carina – Carina Sousa Catarina – Catarina Angélico Carolina – Carolina Ferreira Cheila - Cheila Vermelhudo Rita – Rita Simões

Ana, Beatriz C, Britt, Diana, Carla, Carina, Catarina, Carolina, Cheila, Rita Carolina - Eu corto o pescoço a galinhas. É isso o que eu faço. Cheila – Todos os dias corto dois mil pescoços. Seguro-as pela cabeça e passo a faca, tendo o cuidado de não decepar totalmente. Ana - Ganho assim a vida. Este é o meu uniforme, sangue por todo o lado. Beatriz – O meu escritório é este. Uma esteira de galinhas a passar sem parar….enquanto eu as degolo de um só golpe (pausa) Diana - E eu nem gosto de carne de galinha. Carla - Quando um namorado me pergunta o que eu faço pra viver, digo: trabalho no setor das pitas. De pitos, pergunta ele. Não, de pitas, digo eu. Carina - Parecem mais pequenas, menos importantes, quando digo galinhas. Rita - Tirar a vida a um frango é muito mais grave do que a de uma galinha. A uma galinha não temos muita pena, mas um frango tem algo de nobreza que eu não consigo dizer o que é. Catarina - Trabalho no setor das galinhas. Britt – Mas o que fazes exatamente, pergunta ele. Trabalho na primeira etapa de embalagem. Quase nunca ficam satisfeitos com esta resposta. Carolina – Mas as galinhas precisam de estar mortas para serem embaladas, não é? Não percebo porque é que os homens são tão curiosos…

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Beatriz – e pergunta outra vez: Não, o que é que fazes mesmo, empacotas, limpas, administras a produção, fazes a distribuição? Cheila – Meu amor, respondo, eu mato galinhas. Diana – Eu degolo-as e faço com que todo o sangue escorra pelo pescoço cortado, rasgado pela minha lâmina. Rita – Ponho um ponto final naquela vidinha curta de merda. Corto em menos de meio segundo e tento evitar que o sangue me salpique os olhos.. (murmúrios de todas…claro, e daquela vez…e) Catarina – Sim, meu amor, eu mato galinhas. Dilacero-as com a minha faca, seguro-lhes as cabeças e num gesto mecânico, corto-lhes os pescoços. Ana – Estás feliz agora, com a minha resposta conclusiva e objetiva sobre a minha profissão, meu amor? (pausa) Carina – Assim vai ser difícil arranjar um homem. Bem, talvez um dono de um talho se apaixone por mim…Mas assim vai-me fazer perguntas sobre como se prepara toda a carne…e eu só mato galinhas! Britt – Frangos? Não, galinhas! Do tipo mais desprezível mesmo! (pausa) (todas em silêncio aborrecidas e a pensar) É claro que não tinha pensado nisto para a minha vida quando era criança. Ana – (interrompe) Mãe, mãe, quando crescer quero ser matadora de galinhas! Não, né?! Não era isso que imaginava para mim. Queria algo….maior Carolina – Vou confessar, quando era criança, não imaginava isto para a minha vida. Mãe, oh mãe, mãe, quando for grande quero matar galinhas. Ana – Não, né? Não imaginava isto para mim. Queria algo….sei lá, maior! Catarina – Matar porcos. Diana – Não, né? Não nesse sentido. Rita – Na verdade não tinha muitos sonhos. Beatriz – Nunca quis ser médica, por exemplo. Até porque tinha pavor de sangue. Britt – Advogada? Ná, prefiro tirar o sangue a galinhas. Carina – Não, não tinha grandes pretensões….. Carla – O que eu queria mesmo, mas mesmo, mesmo, era casar. Uma coisa modesta, sem luxos…podia ser um churrasco, bebidas, convidados…Não, nem por isso…Eu queria mesmo um homem só para mim, um casal de filhos e cuidar da casa. Não é pedir de mais, pois não? È tão poucochinho, tão singelo….e afinal o que faço? Mato pitas. Carina – Que homem é que vai querer uma mulher que mata galinhas? Oh querido compra-me um creme cheiroso para tirar o cheiro do sangue das mãos. Não é nada romântico…. Diana – Não é nada romântico! Mas eu não perco a esperança. Nunca se sabe, há que ter energia positiva… Rita – e há doidos para tudo. Por exemplo, um homem que não gozasse com a minha profissão Beatriz – Jamais toleraria piadinhas do género, “já mataste o nosso jantar hoje, querida?”, ou “querida podes emprestar-me a tua roupa para o carnaval? Vou mascarar-me de serial killer” Ana – Era capaz de matar alguém só por ouvir uma coisa destas.

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Carolina – Por que não vão gozar com os professores? Catarina - Sim, para que estudaram tanto se eu, a matar galinhas, ganho o dobro com metade da carga horária e uma faca? Britt – Não! Todas as profissões têm dignidade. Os professores, Carina – os maquilhadores de defuntos, Beatriz – os mergulhadores de esgotos Rita – as prostitutas Ana – os degustadores de cerveja Carla – os cirurgiões plásticos que reconstroem hímenes…. Carolina – e eu Cheila – que mato galinhas! (pausa) Ana – Ouvi dizer que as pessoas que trabalham nestas profissões de matança em escala industrial, em esquartejamento e evisceração de animais, acabam por ficar doentes. Acabam por ter problemas psicológicos…. Rita – Parece que alguns começam a testar técnicas de descarnamento e desossagem em pessoas. Perdem a noção do que é um animal e do que é uma pessoa. Carina – Eu sou alguém. Uma galinha não é ninguém. Os animais não são pessoas, não têm o mesmo valor e por isso são mortos para matar a nossa fome. A fome das pessoas que são alguém. Carolina – Não tenho remorso do que faço…De cada vez que mato uma galinha alguém vai comer! Isso é bom não é? Beatriz – Além de que é uma forma de gerar empregos!!! Diana - Eu mato galinhas, é verdade. Mas não preciso de fazer isto pra sempre. Posso começar a matar porcos. Brincadeirinha. Chega de sangue na minha vida. Quase tenho vontade de nunca mais comer carne… Carla – Penso muitas vezes em voltar aos meus sonhos…Eu quero ter um marido. Filhos. Muitas mulheres acham que isto é uma coisa antiga e tal…Mas acabam sempre por casar. E se não casam têm pelo menos um filho. Isto deve ser uma espécie de instinto… Catarina – Sim, como o instinto de um bicho, de uma galinha que se debate furiosamente como se fosse escapar à morte depois de eu lhe cortar o pescoço. Britt – Isto de matar galinhas talvez me tenha feito mal. Talvez demore esquecer tanto sangue nas minhas botas, debaixo das minhas unhas, nos meus poros. Cheila – Mas tudo pode ser curado pelo tempo! Rita – Quase tudo…… Beatriz – Não precisam de se ir embora!!!! Acho que se ficarem mais um bocadinho nos podemos entender melhor! Sabem, eu trabalho sozinha….. Diana – Também vivo sozinha! Quando não estou a trabalhar, fico no meu quarto, sózinha, a ver o dia passar…

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Carina – E só vejo comédias na televisão! Não gosto de filmes de violência! Estão a ver, sou assim, sensível. Muito sensível. Tão sensível como vocês…. Britt – Calma, não saiam ainda! Eu ainda não terminei! Carolina – As pessoas acham que porque mato centenas de milhares de galinhas por ano, não tenho sentimentos. Mas tenho! Tenho, como qualquer outra pessoa. Eu também sofro. Não sou uma máquina. Cheila – Aliás, a empresa até nos obriga a ter consultas com psicólogos como vocês, todos os meses…. Rita – Eu não escondo nada….conto tudo! Tudo mesmo! E não fiquem a pensar que se enlouquece ao ver tanto sangue! Dizem que se perde a sensibilidade. Mas eu não, não perdi a sensibilidade. Eu separo muito bem as coisas. Carla – Sim, estou sozinha, é verdade. Mas isso não significa que não seja capaz de amar. Até parece que posso pegar numa faca a qualquer momento e cortar a garganta de alguém…. Ana – Já disse, só mato galinhas Carolina – sim só mato galinhas Catarina – só galinhas Britt – mesmo, mesmo Carina – galinhas só Diana – pois, galinhas, mesmo Cheila – só, só, só, galinhas Carla – só pitas….elas não são nada Beatriz – Matar uma pessoa, um homem como você….eu nunca seria capaz. Seria como matar um frango! Eu nunca seria capaz! Nunca mataria um frango, nem um homem! Os frangos têm algo de nobre que me dá pena, já falei nisso, não falei? (pausa) Carla – Espere mais um bocadinho! Carolina – sim, espere Ana – mais um bocadinho Carina – por favor! Catarina – Não vá tão cedo Cheila – sim, ainda é cedo Diana – e eu estou tão só…..por favor, não me deixe! Rita – Contei-lhe toda a minha vida!! Beatriz – Fique comigo! (pausa) Carla – Chiça, você é menos que um pito! Adaptação de Rosa Vieira Guedes (2016)

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