Mulher, judia, feiticeira: cristãs-novas e práticas \"mágico-religiosas\" na documentação do Santo Ofício português.

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Mulher, judia, feiticeira: cristãs-novas e práticas mágico-religiosas na documentação do Santo Ofício português Angelo Adriano Faria de Assis Universidade Federal de Viçosa; Cátedra de Estudos sefarditas “alberto Benveniste” da Universidade de Lisboa Marcus Vinícius Reis Universidade Federal de Minas Gerais

Vocês, não eu, têm necessidade dos dados de fato, dos documentos, para afirmar ou negar. Eu não saberia o que fazer com isso porque, para mim, a realidade não consiste nisso. LUiGi PiRadELLo, Assim é (se lhe parece)

Criado em 1536, durante o reinado de dom João iii, o tribunal do santo ofício da inquisição português funcionou durante quase três séculos, sendo aniquilado apenas em 1821, quando o vento liberal que varria a Europa chegou, embora com certa tardança, ainda com evidenciada força a Portugal. ao longo dos duzentos e oitenta e cinco anos em que funcionou em terras lusas, foi a inquisição um importante instrumento de disciplinamento de costumes e perseguição a tudo e a todos que fugissem ao que era entendido como boa norma católica. Enfrentou detratores, sofreu críticas 1 e encarou discordâncias com a Coroa e mesmo com setores da própria igreja, aí incluído o próprio Papado, mas foi, sem dúvida, o Mattos, Yllan de, A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681), Rio de Janeiro, Mauad / FaPERJ, 2014. 1

Cadernos de Estudos Sefarditas, vol. 14, 2014, pp. 1-44.

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apoio que recebeu de considerável parcela da sociedade que ajuda a explicar sua existência e o poder que exerceu na longa duração. dentre os principais motivos que justificariam a implementação do tribunal estaria o problema cristão-novo, ou seja, dos antigos judeus batizados à força ao cristianismo, bem como seus descendentes, geração após geração, suspeitos de permanecerem na crença judaica e de repassá-la aos filhos, ferindo a pureza e os interesses católicos, ameaçando o monopólio da fé implementado em fins do Quatrocentos, em tempos do Rei Venturoso, dom Manuel (1495-1521) 2. de fato, a comunidade neoconversa representava números significativos, estimando-se em cerca de cem a cento e cinquenta mil almas do total de um milhão de habitantes da Lusitânia no início do Quinhentos, totalizando de dez a quinze por cento da população. Por si só, estes números ajudam a compreender a contribuição judaica para a cultura portuguesa, tanto na metrópole quanto em seus domínios – e o Brasil, que recebeu extensa leva de cristãos-novos, é um destes exemplos –, seja na língua, na alimentação, na escrita, nas artes e ciências, nos costumes, em geral. Embora fossem os mais denunciados, não foram os cristãos-novos de origem judaica, como era óbvio, os únicos a sofrerem com a perseguição do santo ofício: vários tipos de heresias e culpas poderiam ser motivo para cair nas garras inquisitoriais: práticas sexuais condenadas pela igreja; crenças em outras religiões; desrespeitos, ofensas ou desconhecimento das normas, liturgias e símbolos cristãos; acusações de feitiçarias e pactos demoníacos; solicitações... Enfim, todo um extenso rol de atitudes, ideias e comportamentos tidos como desviantes ou equivocados foram vasculhados, analisados, questionados, perseguidos e punidos, com 2 sobre o impacto dos neoconversos para a criação da inquisição protuguesa ver, dentre outros: saRaiVa, antónio José, Inquisição e Cristãos Novos, 6.ª ed., Lisboa, Estampa, 1994; NoViNskY, anita W., Cristãos Novos na Bahia: 1624-1654, são Paulo, Perspectiva/Ed. da Universidade de são Paulo, 1972; assis, angelo adriano Faria de, Macabeias da Colônia Criptojudaísmo feminino na Bahia, são Paulo, alameda Editorial, 2012.

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maior ou menor gravidade e constância, pelos representantes da Misericórdia e Justiça. os códices processuais depositados no arquivo Nacional da torre do tombo, que reúne vastíssima coleção dos documentos produzidos pelo santo ofício em sua incessante luta pela pureza da fé, dão mostra da riqueza e variedade das práticas religiosas e comportamentais vivenciadas em Portugal e seus domínios de aquém e além-mar: acusações, confissões, processos, listas de autos da fé, correspondência interna ou externa do tribunal, regimentos – tudo a dar conta da minúcia persecutória, da insistência em procurar culpados, do esforço pelo triunfo da “verdade” católica... Em geral, os cristãos-novos denunciados perante o tribunal eram vítimas da desconfiança de que mantinham o judaísmo resistente, a correr pelas veias e a repetir-se no dia–a–dia, praticado na intimidade, de forma discreta e dissimulada, o que lhes deu a pecha de judeus ocultos ou criptojudeus. se, de fato, é possível perceber, nas entrelinhas dos processos do santo ofício indícios desta continuidade judaica, é também perceptível o rigor exagerado de denunciantes e inquisidores no julgamento de quaisquer indícios não cristãos como evidência inquestionável de prática judaica. Necessidade irrefutável, assim, do cuidado do historiador em filtrar as informações não raro tendenciosas existentes nos documentos inquisitoriais. Mas, se alguns neoconversos foram condenados por um judaísmo que, nem sempre seguiam conscientemente, o fato é que, por outro lado, não foram poucos os neoconversos que perseveraram na antiga fé. Quanto mais próximos do momento inicial de conversão forçada, maiores as probabilidades de encontrarmos antigos judeus batizados ao catolicismo que insistiam em celebrar a Moisés e renegar a Cristo. Com o passar do tempo e o distanciamento do período de judaísmo livre, mais crescia o desconhecimento do significado de muitas das práticas judaicas, tornando os cristãos-novos desconhecedores, em boa parte, da religião que lhes fora proibida. No limite, é possível afirmar que, nenhum neoconverso, judaizante 3

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ou não, era igual a outro. Entre aqueles que aceitavam por completo o catolicismo imposto e abandonavam a herança mosaica e, de um outro lado, os que insistiam em se manter judeus nos mínimos detalhes, negando-se a integrar o rebanho do Nazareno, há uma infinidade de possibilidades de crença e de comportamentos, impossíveis de serem compreendidas e desveladas pelo santo ofício: cristãos-novos que aceitavam, em parte ou no todo, o catolicismo; judaizantes; laicos; que adotavam costumes e práticas religiosas dos locais em que viviam... Crédulos ou incrédulos do que eram por origem e do que se tornaram por força de lei. Enfim, uma disparidade de crenças e formas de se relacionarem com a fé. Neste labirinto de negativas (e por que não dizer, de possibilidades) com relação ao que eram, como eram vistos e o que queriam ou podiam ser, variaram as estratégias de adaptação à nova realidade, criando crenças particulares que misturavam, para além de elementos que interagiam entre o judaísmo e o catolicismo, outras crenças... Nesse sentido, focamos nosso interesse nas práticas religiosas de neoconversos que, de algum modo, mantiveram contatos com as (ou foram acusados de) práticas mágico–religiosas – estas, também fortemente perseguidas pela inquisição. ancorando-se na relação entre a existência do delito da feitiçaria e a presença de cristãs-novas no cerne dessas práticas, foi possível identificar, no contexto de atuação do tribunal do santo ofício lisboeta e com base nos estudos de Francisco Bethencourt 3, a existência de dois processos construídos com base nas acusações voltadas ao delito da feitiçaria: são os casos de Brites Borges 4 e Clara de oliveira 5, ambos no século XVi. avançando para o século seguinte, apoiando-se nos trabalhos destacamos, em especial, sua principal obra referente à temática das práticas mágico-religiosas no Portugal Quinhentista: BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004. 4 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 2902. Processo de Beatriz Borges. 1541. 5 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 12607. Processo de Clara de oliveira. 1578. 3

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de José Pedro Paiva 6, somente o processo de antónia Fonseca 7 emerge, datado de 1671. Por fim, em relação ao século XViii, o levantamento do historiador português indicou a existência dos processos de sebastiana Maria de Jesus 8, Leonor Francisca 9 e Maria Lourenço 10. Em contrapartida, os tribunais de Coimbra e Évora não revelaram nenhum indício de que processos foram promovidos no século XVi a partir da relação destacada. Quanto aos séculos seguintes, Paiva, em obra já citada, identificou no âmbito da inquisição de Coimbra, os processos de isabel Rodrigues 11, teresa dias 12, Clara de almeida 13, isabel henriques 14 e ana soares 15. Em Évora, por sua vez, a inquisição se debruçou nos processos de Maria dias 16 e Margarida Barreta 17, sem, contudo, aprofundarmo-nos no levanta6 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774, Lisboa, Editorial Notícias, 1997. 7 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 8861. Processo de antonia Fonseca. 1671. 8 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 11488. Processo de sebastiana Maria de Jesus. 1710. 9 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 9535. Processo de Leonor Francisca. 1727. 10 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 2238. Processo de Maria Lourenço. 1759. 11 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processos 689 e 689-1. Processo de isabel Rodrigues. 1694 e 1701. 12 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 3371. Processo de teresa dias. 1737. 13 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 4222. Processo de Clara de almeida. 1664. 14 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 4686. Processo de isabel henriques. 1660. 15 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Coimbra, Processo 5934. Processo de ana soares. 1655. 16 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Évora, Processo 502. Processo de Maria dias. 1750. 17 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 1131. Processo de Margarida Barreta. 1628

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mento por conta da limitação existente nas fichas catalográficas existentes na homepage no arquivo Nacional da torre do tombo à época da pesquisa que deu origem à produção deste artigo, em que diversos processos não acompanham a informação referente ao estatuto social dos réus – é o caso, à guisa de exemplo, de uma certa inês Vizoa, processada por feitiçaria, mas sem apresentar o estatuto na ficha relacionada ao seu processo 18. Ressaltamos, enfim, que os objetivos aqui mencionados aproximam-se mais da seara dos estudos de caso do que de objetivos totalizantes, visto que possuem limitações tanto pela ausência de levantamentos sistemáticos mais atualizados quanto de análises por menorizadas voltadas exclusivamente para a presença da figura da cristã-nova enquanto agente ativa ou mesmo indireta na interação com as práticas mágico-religiosas. Limitações que nos levaram a selecionar algumas dessas trajetórias de modo a não perdermos a especificidade dos processos, sem, contudo, impedir-nos de construir algumas considerações, mesmo que breves, a respeito desses relatos inseridos em um contexto de dominação patriarcal, ao mesmo tempo em que espaços de negociação e autonomia eram construídos por essas mulheres. além disso, buscaremos, também, apresentar um breve painel voltado para a relação da figura da cristã-nova para com a religiosidade que a cercava, prevalecendo a deturpação e a ressignificação de símbolos nem sempre católicos, resultando, por sua vez, nas mais diversas interações com o sobrenatural. Visamos, assim, atrelar o interesse pelos estudos voltados à religiosidade em torno do que se considerava por feitiçaria aos olhos da inquisição portuguesa, juntamente com o esforço em pensar como esse campo simbólico se articulou diretamente com os espaços em que nos situaremos. Focando no século XVi, propomos um olhar tanto para Portugal quanto para a américa portuguesa, diluindo disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2371099. acesso em: 11 de abril de 2015. 18

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fronteiras quando do interesse em desenvolver uma análise comparativa das trajetórias de mulheres que se enredaram nas malhas inquisitoriais. o delito já fora mencionado, feitiçaria, tornando-se ponto de partida para problematizarmos as atitudes de cristãs-velhas e cristãs-novas frente ao sobrenatural, assim como o posicionamento das autoridades em relação a essa interação diante do estabelecimento de processos. Nos debruçaremos, portanto, não somente nas trajetórias das já mencionadas Beatriz Borges e Clara de oliveira, mas igualmente nos processos de Maria Gonçalves 19 e Felícia tourinho 20, cristãs-velhas sentenciadas durante a Primeira Visitação do santo ofício à américa portuguesa (1591-1595) por conta do delito em questão, a fim de dar continuidade ao estudo comparativo. * * * a diversidade de debates voltados para o campo da interação entre indivíduos e o que é dado por sobrenatural, espaço povoado por entidades, espíritos ou divindades, conforme a crença religiosa, nos leva obrigatoriamente a recortar o próprio eixo de discussão teórica em torno dessa problemática, bem como em delimitar os conceitos que aqui serão trabalhados objetivando uma melhor compreensão do debate. Não se trata, é bom frisar, de reduzir nosso trabalho a uma possível história dos Conceitos, propondo uma limitação do campo de análise para com o social a partir da construção de esquemas rígidos de interpretação. trata-se, na verdade, de pensar os conceitos como ferramentas de análise crítica das fontes, capazes de promover uma “perspectiva sincrônica de análise”, capaz de conjugar 19 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593. 20 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 01268. Processo de Felícia tourinho. 1593-1595.

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tempo e espaço 21. Procuramos, assim, vislumbrar as diversas manifestações voltadas para as relações diretas ou indiretas com o sobrenatural para além do isolamento das mesmas, o que nos possibilitará percebê-las em um movimento maior de interação com o próprio trânsito de práticas e crenças presentes no contexto em que o debate se situa e que, por vezes, são comuns a diversos espaços e temporalidades. sendo assim, três conceitos serão aqui utilizados: práticas mágico-religiosas – com a variante ritual mágico-religioso –; bruxaria e feitiçaria. ancorando-se nas proposições de Marcel Mauss, o uso do conceito de magia religiosa deriva diretamente da noção de “rito mágico” delimitada pelo autor. Em outras palavras, essa noção é entendida por se tratar de “atos de tradição”, ou seja, aponta para a repetição em diversas culturas, mesmo se focarmos em tempos e espaços distintos. destaque, também, para o fato de evidenciar, de acordo com Mauss, a crença na eficácia da magia por parte de dada sociedade, além de revelar um contrato que se estabelece entre o individuo que pratica e o interessado no rito. deste modo, a presença de um “rito mágico” evidencia “todo rito que não faz parte de um culto organizado, rito privado, secreto, misterioso, e que tende no limite ao rito proibido” 22. No contexto português da circulação de práticas e crenças voltadas a esse âmbito “mágico”, Francisco Bethencourt também se debruçou nos estudos de Marcel Mauss, contribuindo, assim, para aprofundarmos o debate em torno do conceito que apresentamos: os atos de magia implicam, como vimos, um conjunto de gestos e de palavras não casual, regulado de uma forma sistemática e transmitido por tradição, de cuja repetição estrita, ritual, depende sua eficácia. daí podemos falar

21 kosELLECk, Reinhart, Futuro/Passado. Contribuições à semântica dos tempos históricos, Rio de Janeiro, Contraponto, Ed. PUC-Rio, 2006, pp. 103-104. 22 MaUss, Marcel, Sociologia e Antropologia, trad. de Paulo Neves, são Paulo, Cosac & Naify, 1950, pp. 55-57 e 61.

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de ritos mágicos, que revelam uma grande capacidade de abstração, patente na atribuição de propriedades especificas aos materiais utilizados 23.

Essa diversificação gestual, abstrata, que acompanha as atitudes dos indivíduos frente ao sobrenatural nos impede, enfim, de cairmos na armadilha de simplesmente homogeneizar todo o rol de crenças de uma dada cultura, mesmo se esta se apresentar fragmentada – tal iniciativa coube, conforme salientou Carlo Ginzburg, aos estratos “eruditos” diante da noção de pacto demoníaco ou, em alguns casos, do sabá 24. desse modo, a utilização da noção de práticas mágico-religiosas é adequada ao presente ensaio por abarcar toda uma religiosidade que se encontrava impregnada de estereótipos inquisitoriais, sem desconsiderar a possibilidade de sua diversificação no que diz respeito à manipulação e deturpação de uma dada religião – catolicismo ou mesmo judaísmo –, revelando toda uma sofisticação resultante de uma gama de gestuais e simbolismos religiosos que foram apropriados ao bel prazer dos indivíduos, longe da coerência pensada pelas autoridades. Com relação à definição de bruxaria e feitiçaria, nossas análises se basearão nas discussões desenvolvidas por Julio Caro Baroja, definindo a primeira enquanto fenômeno de caráter essencialmente maléfico, relacionado à intervenção diabólica, assumindo, contudo, um caráter coletivo, cerimonial, que sustentaria todo o discurso das autoridades a respeito da realidade do sabá. Embora também assuma uma intervenção do diabo, a feitiçaria não é, por sua vez, condicionada ao caráter coletivo, nem sempre voltada para o interesse maléfico, interessada, também, no alcance de determinados objetivos predominantemente individuais 25. BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 131. 24 GiNzBURG, Carlo, História Noturna: decifrando o Sabá, 2.ª ed., são Paulo, Companhia das Letras, 2001. 25 BaRoJa, Julio Caro, As bruxas e seu mundo, tradução de Joaquim silva Pereira, Lisboa, Editora Vega, 1978, pp. 108-109; 118. 23

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Vale complementar, enfim, que entre os letrados e autoridades portuguesas, o delito da feitiçaria, além de apresentar um histórico voltado para o foro misto – já que não somente o âmbito religioso se debruçou sobre a temática, mas, também, o civil – aos poucos se consolidou sobre duas formas de pacto diabólico, aspecto essencial para sua existência: segundo José Pedro Paiva, predominou a noção de “pacto expresso”, em que se entendia a existência de um contrato entre indivíduo e diabo a fim de determinado objetivo, desde que algo fosse oferecido à criatura; e o “pacto tácito”, prevalecendo o interesse em alcançar algum objetivo, como, por exemplo, o destino de outrem ou mesmo o paradeiro de alguém, tendo a intermediação dos diabos para a concretização do objetivo, sem a presença de um caráter contratual 26. * * * o século XVi traz poucas informações a respeito do objeto de análise no qual este trabalho se situa. situar as possíveis motivações para essa timidez quanto à presença de processos entre cristãs-novas é necessário ainda mais se levarmos em consideração que o volume de mulheres processadas pelo delito da feitiçaria foi maior entre as identificadas pelo estatuto social de “cristãs-velhas” 27. as hipóteses que serão aqui debatidas juntamente com os processos que mencionamos tentarão lançar, portanto, algumas questões iniciais a respeito dessa discussão. Não podemos negligenciar, assim, a problemática em torno das PaiVa, José Pedro, Práticas e crenças mágicas: o medo e a necessidade dos mágicos na diocese de Coimbra (1650-1740), Coimbra, Minerva-história. 1992, pp. 39-40. 27 Com relação ao século XVi, por exemplo, Francisco Bethencourt identificou somente duas cristãs-novas processadas pelo delito em questão contra 67 processos de cristãs-velhas envolvidas com acusações de feitiçaria. Cf. BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, pp. 364-368. 26

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conversões envolvendo os cristãos-novos, questionando em que medida o catolicismo, que se tornou religião oficial entre esses indivíduos, foi verdadeiramente aceito pelos neoconversos. ainda mais no que diz respeito ao século XVi, momento em que o processo de conversão forçada era ainda episódio recente. o que nos interessa, em especial, é perceber se, de fato, o catolicismo imposto se tornou minimamente sólido entre essa população. a historiografia sobre o tema já deu mostras de que a sinceridade da conversão não atingiu a todos os neoconversos, e mesmo dentre os que aceitaram a fé cristã, o fizeram de formas e intensidades variadas. Posteriormente, buscaremos problematizar a que ponto os delitos da bruxaria e feitiçaria, aos moldes do que foram delimitados pelo catolicismo, alcançaram essa população no espaço e tempo citados. avançando nas hipóteses, talvez uma das explicações que também nos sejam mais coerentes esteja relacionada à trajetória que a feitiçaria, bem como a demonologia na Época Moderna, em especial, no ocidente, adquiriram ao se consolidarem como fenômenos intimamente relacionados ao próprio desenvolvimento do catolicismo nesse contexto. a emergência da figura do diabo no Novo testamento acompanhou a própria atmosfera de ruptura presente em uma Europa já nos finais do medievo. Crises não apenas econômicas, mas também políticas e religiosas compuseram esse quadro, discutido, por exemplo, nas análises de Robert Muchemblend. segundo o autor, o nascimento dessa figura aos moldes católicos, e dos que eram considerados seus agentes, se atrelou diretamente ao processo de reforço da autoridade da monarquia perante os seus súditos e, claro, da igreja frente aos seus fiéis 28. Partindo para o campo teológico, Carlos Roberto Nogueira apontou para a relação entre a emergência do diabo com a própria

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MUChEMBLENd, Robert, Uma história do Diabo, Rio de Janeiro, Bom texto, 2001,

p. 116.

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sofisticação da doutrina cristã existente a partir do século i d.C., o que teria contribuído para aprimorar a noção da queda de um “anjo Rebelde” bem como do homem a partir do pecado original. o autor ainda afirma que já havia no âmbito “erudito” um processo de institucionalização e da construção de uma hierarquia presente no inferno, sem desconsiderar a contribuição decisiva que a Baixa idade Média trouxe para esse processo ao uniformizar dogmaticamente esse personagem, listando e classificando diversos “subdemônios” que passaram a integrar a doutrina católica e a literatura demonológica 29. Com o avançar dos séculos, este processo ganhou mais nitidez, não somente pelo aumento progressivo de relatos que registravam as possíveis ameaças demoníacas nas regiões de Mainz, salzburg e Bremen, e daqueles interessados em contar com tais heterodoxias, mas, também, por conta de iniciativas das autoridades religiosas interessadas em ampliar a atmosfera de temor entre os cristãos. a publicação da bula papal Summis desiderantes affectibus, em 1484, durante o pontificado de inocêncio Viii, é exemplo desse interesse da igreja em exortar toda a cristandade de então a combater quaisquer indícios da presença do diabo. o que também nos chamou a atenção em torno da bula diz respeito à própria preocupação das autoridades com relação aos desvios existentes entre os fiéis instigados ao combate. Em outras palavras, a ameaça também era endógena. ainda no meio letrado, não devemos desvincular a ascensão desse personagem ao advento da imprensa e, por conseguinte, à proliferação de inúmeros tratados que se voltaram a delimitá-lo, bem como àqueles que eram nomeados seus agentes. Um dos pioneiros, neste sentido, foi o texto publicado em 1376 sob autoria de Nicolau Eymerich, o Directorium inquisitorum. trata-se de importante NoGUEiRa, Carlos Roberto, O Diabo no imaginário cristão, 2.ª ed., Bauru, EdUsC, 2008, pp. 29, 51. 29

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exemplo da construção de um discurso voltado para a afirmação da realidade do fenômeno da bruxaria e da feitiçaria 30. Para Julio Caro Baroja, o ponto máximo da interação entre clérigos, juristas e inquisidores se deu com as publicações do Malleus Maleficarum, de heirnrich kramer e James sprenger, e do Formicarius, de Johanes Nider, ambos publicados no século XV. a segunda obra, por exemplo, apresenta importantes indícios da crença na existência de seitas de indivíduos que se relacionavam coletivamente com os diabos, aspecto essencial para a crença no sabá 31. Logicamente, mesmo com os diversos movimentos em torno da maior consolidação da figura do diabo, não significa afirmar que esse processo se deu sob a mesma ótica, pelo contrário, o posicionamento não somente das autoridades, mas, também, da população comum em relação a esse personagem, pode ser considerado como aspecto importante para se pensar a heterogeneidade em torno da demonologia enquanto ferramenta para se pensar a história da perseguição à feitiçaria 32. Nesse caso, embora também tenha vivenciado um contexto de produção em torno dos fenômenos aqui citados, como, por exemplo, a publicação de domingos Barros Pereira, Arte de conhecer e con-

dELUMEaU, Jean, História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, são Paulo, Companhia das Letras, 1996, p. 352. 31 BaRoJa, Julio Caro, As bruxas e seu mundo, tradução de Joaquim silva Pereira, Lisboa, Editora Vega, 1978, pp. 128;131. segundo Carlo Ginzburg, nas páginas de Nider “se desenha também a imagem ainda desconhecida de uma seita de bruxas e feiticeiros, bem distinta das figuras isoladas dos invocadores de malefícios ou dos encantadores registradas na literatura penitencial ou homilética medieval. É uma imagem ainda em vias de elaboração”. Cf. GiNzBURG, Carlo, História Noturna: decifrando o Sabá, 2.ª ed., são Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 76. 32 trata-se de um recorte, posto que a demonologia abarca discussões que não se restringem apenas ao delito apontado, conforme destaca stuart Clark ao listar os debates em torno da magia, das superstições como alvos também dos estudiosos. Cf. CLaRk, stuart, Pensando com Demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna, trad. de Celso Mauro Paciornik, são Paulo, EdUsP, 2006, p. 15. 30

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fessar feiticeiras 33, já no tardio século XViii, pode ser considerada como exceção, visto que, conforme destaca, José Pedro Paiva, a literatura religiosa portuguesa que prevaleceu, principalmente nos séculos XVi e XVii, se restringiu aos manuais de confessores, catecismos e tratados de teologia moral 34. Com relação aos Quinhentos, o autor aponta para a inexistência de produções, em especial, tratados, voltados para a questão da feitiçaria. Faz, todavia, uma ressalva, sobre a suposta existência de um manuscrito intitulado Tractatus de superstitionibus, escrito no mesmo século por Frei Bartolomeu dos Mártires, então arcebispo de Braga. a centúria seguinte apresenta um cenário de mudança, porém tímida, pois somente duas obras foram listadas pelo autor: “o volumoso De incantationibus seu ensalmis, aparecido em Évora, no ano de 1620, pela pena de Manuel Vale de Moura e o Memorial e antidoto contra os pos venenosos que o Demonio inventou (...), escrito por Manuel Lacerda, no ano de 1613” 35. além disso, é importante frisar que a presença da literatura religiosa encontrou nas teologias de santo agostinho e são tomás de aquino as principais referências para os estudiosos lusitanos, contribuindo decisivamente para que as epidemias de perseguição que marcaram França e alemanha, por exemplo, não tenham encontrado ressonância também em Portugal. Não se tratava de negar que entre as autoridades religiosas havia o entendimento de que era necessário combater as ameaças do diabo. o que diferenciava em suas atitudes residia no olhar desses indivíduos em relação aos poderes dessas criaturas e de seus agentes, considerados limitados, o que tornava inviável acreditar fidedignamente na existência de alguns elementos clássicos ao sabá – voo noturno, metamorfoses etc. 33 PEREiRa, domingos Barroso, Arte de conhecer e confessar feiticeiras, Évora, Biblioteca Pública de Évora, Códice CXXiii/2-8. 34 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774, Lisboa, Editorial Notícias, 1997, pp. 81-82. 35 Idem, p. 19.

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dessa forma, mesmo com a tendência pelo ceticismo, havia em Portugal um corpo civil, representando por leis, regulamentos e ordenações, que já possuía uma importante circulação no âmbito da demonologia, além de posicionamentos a respeito da definição dos delitos relacionados à interação com o diabo, bem como das sentenças que deveriam ser efetivadas. destaque, ainda, para a circulação de uma literatura interessada em discutir esse fenômeno, embora não tivesse tamanho peso como em outros espaços europeus, mas que se inclinava a discutir as noções de pacto “tácito” e “expresso” em detrimento da crença na realidade dos sabás. avançando para a legislação civil, ainda em Portugal, é possível perceber com maior nitidez que a preocupação para com indivíduos que atuavam ilicitamente no sobrenatural percorria os círculos letrados antes mesmo do estabelecimento do santo ofício em 1536. No caso das Chancelarias 36, é possível identificar como a preocupação para com a presença ilícita de indivíduos no sobrenatural integrava o cotidiano das autoridades civis. inúmeras cartas de perdão foram assinadas pelo monarca d. Manuel tendo por endereço diversos indivíduos acusados de feitiçaria, em especial as mulheres, interessadas na absolvição, a fim de evitar até mesmo prisões motivadas por esse crime. além disso, Pedro d’azevedo demonstra como a circulação de cartas de permissão concedidas pelo Rei também eram presentes de modo que alguns indivíduos adquirissem autorização oficial para algumas práticas curativas, destacando uma verdadeira “classe de peritos” no entender do autor 37. 36 as Chancelarias “tiveram sempre, pois, a primordial função de garantir a vida político-administrativa, em primeiro lugar do condado, e depois da cúria régia, das dioceses, das câmaras, dos tribunais, das casas particulares, nobres ou não”, ou seja, tratava-se de uma função que exigia “além das indispensáveis condições materiais de escrita (V. sCRiPtoRia), uma mão-de-obra especializada”. Cf. azEVEdo, Carlos Moreira (dir), “Chancelaria”, in Dicionário de História Religiosa de Portugal, Rio de Mouro, Círculo de Leitores, 2000, p. 331. 37 d’azEVEdo, Pedro a, Benzedores e Feiticeiros do tempo d´El Rei D. Manuel (séculos XV-XVI), Revista Lusitana, Porto, volume iii, 1894-1895, p. 1.

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as Ordenações Manuelinas, por sua vez, trazem consigo o avanço das preocupações civis frente aos crimes de feitiçaria, revelando um caráter mais sistemático das práticas que deveriam ser censuradas em Portugal. dessa forma, em seu Livro V, o título XXXiii, intitulado, Dos feiticeiros, e das vigílias que se fazem nas Igrejas, apresenta todo um rol de heterodoxias passíveis de punição aos olhos da Monarquia. Elementos, enfim, que nos levam a também acreditar na existência de todo um aparato erudito português que se encontrava ciente da existência do diabo e que contribuía para que circulasse em Portugal, mesmo sem tamanha efervescência, a atmosfera de preocupação para com a bruxaria e feitiçaria 38. afinal, como bem questiona Robert Mandrou, como uma autoridade poderia negligenciar denúncias e confissões envolvendo possíveis pactos demoníacos diante de uma igreja que conferia e legitimava a existência dessas práticas, de um corpo jurídico que adensava a perseguição, e da própria população que compartilhava de inúmeras crenças para com o delito de feitiçaria 39? Não se trata de desconsiderar, por sua vez, os diferentes movimentos em torno da delimitação desse processo, vide os exemplos de Portugal e do espaço que atualmente conhecemos por alemanha. ainda, assim, sua afirmação, embora generalizante, nos é válida a partir do momento em que a figura do católico, ou do que viria a ser chamado de “cristão-velho”, esteve tradicionalmente envolvida em um debate demonológico de viés erudito, mas que encontrava eco entre essa população. diferente, por exemplo, da própria tradição judaica em torno do diabo que não possuiu tamanho alcance se comparado à produção católica e que pode ter contribuído para a pouca presença de cristãos-novos em processos envolvendo a participação desse personagem. 38 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774, Lisboa, Editorial Notícias, 1997, pp. 19-20. 39 MaNdRoU, Robert, Magistrados e feiticeiros na França do século XVII, são Paulo, Perspectiva, 1979, pp. 73-74; 76-77.

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além disso, diferente do peso assumido pela participação das cristãs velhas no contexto mágico-religioso português, no âmbito dos cristãos-novos acusados pelo delito da feitiçaria, há um certo equilíbrio nos números de homens e mulheres processados 40. a nosso ver, esse equilíbrio se justifica, entre outros fatores, não apenas no fato de que qualquer prática dos descendentes de judeus que fugisse da norma católica fosse vista como suspeita de continuidade na antiga fé e de maior predisposição neoconversa a assumir comportamentos nocivos ao cristianismo, mas ainda pela possibilidade dessas mulheres não terem se apropriado de forma considerável do discurso misógino 41 que esteve atrelado diretamente à delimitação da demonologia, não se restringindo somente ao âmbito letrado, percorrendo, assim, todo o cotidiano das populações, principalmente católicas. as expressões citadas por Jean delumeau, “medos espontâneos” ou “refletidos”, foram por ele utilizadas a fim de identificar e problematizar a abrangência dos temores individuais e coletivos inseridos nos quinhentos anos de recorte temporal presentes em sua obra. a encarnação desses temores abrangeria tanto a maior delimitação da figura do diabo quanto a presença das mulheres, encaradas como principais agentes, sendo nomeadas de “feiticeiras”. Em linhas gerais, toda a sua discussão associou diretamente o “medo” da mulher às repressões promovidas pelas instâncias civis e religiosas na Modernidade, ou seja, constituindo todo o fenômeno em torno da “caça às feiticeiras” e, também, de um intrincado contexto misógino que o sustentaria no âmbito do discurso 42.

Francisco Bethencourt identificou três processos de cristãos-novos acusados pelo crime de feitiçaria. Cf. BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, pp. 364-368. 41 a abordagem do termo em itálico evidencia, assim, o interesse em trata-lo enquanto conceito que será debatido adiante. 42 dELUMEaU, Jean, História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, trad. de Maria Lúcia Machado, são Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 523. 40

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a ampliação deste encontraria ressonância privilegiada nos debates que circulavam no âmbito das ciências médicas, principalmente àquelas voltadas à anatomia dos corpos e às teorias construídas em torno desse estrato. Uma relação em que também prevaleceu a posição hegemônica masculina a respeito de quais funções sociais caberiam especificamente a homens e mulheres, respaldada por estudiosos que até o século XVii sustentaram a teoria do sexo único, baseada, de acordo com thomas Laqueur, em categorias sociológicas, sem tamanha necessidade de refletir a respeito do próprio corpo. sua obra parte, em síntese, da noção de que houve um discurso mais bem organizado entre a figura masculina na Modernidade por dispor de vários mecanismos que possibilitaram a difusão da ideia de que o homem deveria ser um padrão a ser seguido em todos os setores da sociedade. a submissão feminina era justificada, portanto, pela própria anatomia entendida na época: a história da representação das diferenças anatômicas entre o homem e a mulher é extraordinariamente independente das estruturas desses órgãos, ou do que se conhecia sobre elas. a ideologia, não a exatidão da observação, determinava como eles eram vistos e quais eram as diferenças importantes 43.

aproximando-se do contexto português, o desenvolvimento de todo um código moralista fundamentado por argumentos religiosos e jurídicos também adquiriu ressonância entre as autoridades. Frei heitor Pinto nos fornece em sua Imagem da vida cristã 44 importantes indícios de como predominava a visão de que o papel das mulheres estava relacionado diretamente à sua participação na vida matrimonial, ou, em outras palavras, em manter a condição de “submissão social” ao homem:

43 LaQUEUR, thomas, Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud, trad. de Vera Whately, Rio de Janeiro, Relume dumará, 2001, p. 111. 44 PiNto, Frei heitor, Imagem da vida cristã (1563-1572), 2.ª ed., Lisboa, Livraria sá da Costa, 1958.

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verdade é que, ainda que a mulher quanto ao matrimónio seja igual ao marido, contudo, no que toca à disposição e governação da casa e fazenda, o marido é a cabeça da mulher, como o diz s. Paulo na Primeira aos Coríntios. [...] a mulher não há-de dominar sobre marido: por isso não foi formada da cabeça de adão: nem deve ser desprezada dele como escrava: por isso não foi formada dos pés: mas há-de ser companheira do marido: por isso foi formada da costa, que está no meio do corpo 45.

Buscava-se, assim, nas palavras do Frei, resguardar as garantias para que o papel do homem na sociedade, nomeado provedor da família e como àquele em que a mulher devia respeito e lealdade, fossem mantidas, já que as próprias escrituras bíblicas corroboravam essa condição. Vale destacar, por sinal, que o desenvolvimento de todo esse contexto ao longo da Modernidade alcançou maior profundidade teórica muito por conta da apropriação de um discurso religioso que corroborava tanto no interesse em reafirmar a condição inferior das mulheres ou mesmo a predisposição da figura feminina a se relacionarem com o diabo. Exemplo que pode ser retirado do próprio trecho acima, em que Paulo, o apóstolo, é evocado a fim de corroborar para a natural submissão das mulheres aos homens. Conforme salientou Jean delumeau, o olhar do apóstolo foi categórico, por exemplo, para consolidar a exclusão das mulheres na vida clerical, justificando que a sexualidade feminina estava impregnada do pecado original 46. stuart Clark, por sua vez, ainda afir ma que a “bruxaria” só conseguiu ser alçada à condição de crime, e não mais como um vício comum, por conta da doutrina paulina, responsável, também, por justificar as ações dos magistrados frente à perseguição a este tipo de delito 47. Idem, p. 38. dELUMEaU, Jean, História do medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada, trad. de Maria Lúcia Machado, trad. de notas de heloísa Jahn, são Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 470. 47 CLaRk, stuart, Pensando com Demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna, trad. de Celso Mauro Paciornik, são Paulo, Editora da Universidade de são Paulo, 2006, p. 699. 45 46

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o teor moralista a nível civil também encontrou, por sua fez, forte ressonância entre os juristas. Conforme aponta adelina arrión, as questões envolvendo a linha sucessória das famílias bem como a transmissão do patrimônio estavam diretamente relacionadas ao papel das mulheres na sociedade portuguesa; relações de poder pautadas na imposição de um domínio para com a figura feminina 48. o que se viu, portanto, foi o prevalecimento de toda uma legislação endereçada aos assuntos domésticos, incluindo-se o casamento nestas preocupações, além de abarcar assuntos como a viuvez, o adultério, a bigamia, bem como a política de patrimônios mencionada pela autora. a delimitação do papel social da mulher, em específico para o contexto português, se conjugava diretamente com as ações da igreja e do Estado. as Ordenações Afonsinas são, por exemplo, importante conjunto documental que retrata a necessidade das autoridades lusitanas em aprimorar e moldar os limites referentes ao papel da mulher na vida conjugal. Caberia aos pais, assim, a decisão sobre o futuro de suas filhas nos casamentos 49. Já nas Ordenações Manuelinas, é notável a ausência do direito feminino em participar ativamente de todo o processo envolvendo a herança patrimonial, salvo a existência de alguma doação especial ou, em último caso, uma mercê conferida pelo Rei 50. além disso, ambos os conjuntos legislativos revelam, no entender de Raquel Patriarca, o gritante lado desigual das relações masculinas e femininas como nos casos envolvendo o adultério, visto que, quando a mulher era alvo das acusações por este delito,

saRRióN, adelina, Beatas y Endemoniadas. Mujeres heterodoxas ante la Inquisicion. Siglos XVI a XIX, Madri, alianza Editorial, 2003, p. 29. 49 PatRiaRCa, Raquel, “a presença das mulheres nas ordenações afonsinas, Manuelinas e Filipinas: uma visão evolutiva”, in ViLas Boas E aLViM, Maria helena; CoVa, anne; MEa, Elvira Cunha de azevedo, Em torno da história das mulheres, Lisboa, Universidade aberta, 2002, p. 127. 50 Idem, p. 35. 48

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sua morte pelo cônjuge era interpretada como questão de direito a ser praticado pelo mesmo 51. tamanha tradição misógina que se articulou entre Estado e igreja no âmbito lusitano pode nos levar a pensar na viabilidade de considerar que o discurso em questão esteve mais próximo do cotidiano da população cristã-velha do que entre os que ainda vivenciavam precocemente uma religião que nem sempre lhes era tão familiar, principalmente se levarmos em conta o passar das décadas após a conversão forçada dos judeus em Portugal. Essa proximidade sustentou com maior peso as atitudes das cristãs velhas em se apropriar desse discurso e, assim, contar com o sobrenatural a seu bel prazer, bem como das autoridades, que se voltaram em maior número para essas mulheres quando da necessidade de estabelecer processos inquisitoriais. talvez a assertiva se torne mais evidente ao trazermos à tona as trajetórias de Maria Gonçalves e Felícia tourinho 52. Com a chegada da Visitação inquisitorial na américa portuguesa no último decênio do Quinhentos, fato até então inédito naquele espaço, as ações das autoridades, encabeçadas pela presença do visitador heitor Furtado de Mendonça, também percorreram o âmbito da feitiçaria na medida em que a população local se dispôs a denunciar esse delito, previsto no Monitório do Inquisidor Geral de 1536. sua função, por sinal, procurava abarcar um extenso rol de crimes para os quais a inquisição portuguesa deveria se atentar. É nesse contexto que os processos de Maria Gonçalves e Felícia tourinho se inserem na medida em que revelam o funcionamento da engrenagem inquisitorial, dependente direta dos que compareciam Ordenaçoens do Senhor Rey D. Manoel, livro V, título XVi, Coimbra, Real imprensa da Universidade, 1797, p. 60. 52 Para uma análise mais pormenorizada destes casos, bem como das práticas mágicoreligiosas e a perseguição inquisitorial no mundo luso-brasílico, ver: REis, Marcus Vinícius, “descendentes de Eva: religiosidade colonial e condição feminina na Primeira Visitação do santo ofício à américa portuguesa (1591-1595)”, dissertação de Mestrado em história. Universidade Estadual do Rio de Janeiro, 2014. 51

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à mesa da Visitação a fim de concretizar o ato da denúncia ou mesmo da confissão e, por se voltarem ao crime da feitiçaria, são importantes por nos indicar como homens e mulheres se inseriram no contexto misógino da época. Podemos analisar as atuações de heitor Furtado de Mendonça em dois principais momentos: sua visita à Capitania da Bahia e a posterior chegada à Capitania de Pernambuco 53. Entre os anos de 1591 a 1593, durante o estabelecimento da comitiva em salvador, sua presença como representante oficial do santo ofício português naquele espaço acarretou em um diversificado número de denúncias e confissões que, embora tenham se voltado largamente para a ameaça judaizante 54, também abarcaram outros delitos, como o da feitiçaria, muito por conta da fama que uma certa cristã-velha, de nome Maria Gonçalves, adquirira entre a população local. todo o rol de denúncias praticado contra a acusada se concentrou no mês de agosto, ainda em 1591: Margarida Carneira, isabel antunes, isabel Monteira sardinha, Catherina Fernandes, Catherina Quaresma, Maria da Costa, teresa Rodrigues e Violante Carneira; mulheres que durante esse período se interessaram em comparecer às autoridades inquisitoriais a fim de afirmar que Maria Gonçalves era responsável por se relacionar com o diabo. Quanto ao conteúdo dos relatos, foi possível identificar como a

53 Conforme apontou Ronaldo Vainfas, suas atribuições também estavam previstas para se estender para as regiões de são Vicente e Rio de Janeiro, na luso-américa, além das ilhas de Cabo Verde e são tomé. Entretanto, como bem aponta o autor, ao se apropriar do “vício das autoridades coloniais”, o Visitador atuou na américa a seu bel prazer, abandonando as ordens do Conselho Geral, no qual promoveu até mesmo processos e procissões de autos-de-fé, o que teria motivado seu retorno ao Reino após a passagem da comitiva inquisitorial por Pernambuco. “introdução”, in Santo Ofício da Inquisição de Lisboa: Confissões da Bahia (organização Ronaldo VaiNFas), são Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 5-36. 54 Luiz Mott afirma que, das mais de trezentas pessoas denunciadas na Bahia durante a Visitação, a maioria esmagadora era de cristãos-novos acusados de judaizarem. Cf. Mott, Luiz, Bahia. Inquisição e Sociedade, salvador, EdUFBa, 2010, pp. 23-24.

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proximidade dessas mulheres, não somente da suposta feiticeira, para com o personagem em questão revela uma consonância próxima à própria construção delimitada pelo catolicismo a respeito do diabo. Violante Carneira, ao delatar Maria Gonçalves – mencionando-a como “mulher vagabunda” – afirmando que a acusada tinha o costume de manter relações com o diabo, principalmente mediante a oferta de parte de seu corpo como forma de sacrifício, bem como de obtenção de quaisquer pedidos feitos ao mesmo. Na denúncia de isabel antónia, por exemplo, temos a afirmação de que Maria Gonçalves ia a um local descampado, utilizando-se de um signo de salomão e colocando azeite na boca, a fim de se comunicar com o diabo, fazendo arribar até mesmo um navio saído de salvador para Portugal. isabel ainda relatou que, certa vez, teria encontrado um móvel de sua casa com os pés para cima, além de candeias sob os mesmos, o que a teria assustado, creditando à Maria Gonçalves a responsabilidade por esse feito 55. o tal signo de salomão a que faz referência isabel antónia, deve tratar-se do escudo ou estrela de david – maguen David, em hebraico –, estrela de seis pontas, ou hexagrama, composta por dois triângulos entrelaçados. Embora seja bastante conhecido atualmente, não parece ter desempenhado papel tão fulcral no judaísmo de outrora. Por não ser tão difundido na Modernidade, quiçá pudesse, em determinados casos, servir como elemento de identificação judaica entre os criptojudeus, visto que não despertava maiores desconfianças na população em geral, que o desconhecia. de todo modo, durante a idade Média, o símbolo aparece em peças ornamentais, amuletos cabalísticos e outros padrões de desenhos mágicos judaicos 56. talvez, por isso, se levarmos em conta a possibili-

55 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 13 e 14. 56 UNtERMaN, alan, Dicionário judaico de lendas e tradições, Rio de Janeiro, Jorge zahar Ed., 1992, p. 161.

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dade da denunciante ter, de fato, visto o signo de salomão em posse da feiticeira, Maria Gonçalves utilizasse o símbolo por seus supostos poderes mágicos em suas práticas. Entretanto, mesmo apontada de forma torpe nos relatos anteriores, sendo mencionada, também, como “feiticeira diabólica” em ambas as denúncias, é importante mencionar, por sua vez, como sua fama de mediadora entre o mundo dos homens e o sobrenatural se tornou notável naquele espaço. Na exposição de Catherina Fernandes, a acusada é vista como uma mulher que possuía relações de proximidade com os mais diversos estratos daquela sociedade. segundo a denunciante, Maria Gonçalves teria lhe dito que perdera “uns papéis que iam embrulhados uns pós”, no qual pudesse estar em posse de um francês chamado João Rolim 57. seriam nove papeis confeccionados pela própria acusada e que teriam sido vistos pela denunciante também nas mãos de salvador da Maia, cristão-novo, de um homem conhecido por “Granada”, além de Gonçalo Fernandes. Foram também citados os nomes de Pero Godinho, Cristóvão de Barros, um ouvidor Geral além do bispo dom antônio Barreiros, que supostamente teriam utilizado os mesmos papeis. denunciada por domyngas Jorge durante a visitação à Capitania de Pernambuco, a filha do clérigo João tourinho, conhecida por Felícia tourinho, esteve no alvo do Visitador supostamente por ter se envolvido com práticas mágico-religiosas de caráter adivinhatório. Estas teriam sido por ela praticadas durante o período em que estivera presa na cadeia pública de olinda, por conta de uma agressão. Estando juntamente com a denunciante nesse local, Felícia tourinho teria utilizado um chapim 58 e uma tesoura, segurando-o com a dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 05. 58 No dicionário de Rafael Bluteau, o significado de chapim se refere a uma espécie de calçado composto de quatro ou cinco solas, o que, atualmente, pode ser considerado como um salto. Cf. BLUtEaU, Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino (1713), Rio de Janeiro, UERJ, s.d [Cd-RoM], p. 276. 57

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mesma, levantando-o para, em seguida, completar o ritual: “eu te esconjuro por sam Pedro e por sam Paulo e pelo diabo felpudo e guedelhudo que tu me digas a verdade que te quero perguntar [...] [e] respondeu-lhe ela então que se o que perguntava era verdade havia de se andar à roda a tesoura e se era mentira, não se havia de mover [...]” 59. Em um primeiro momento, voltado às análises dos respectivos processos, interessa-nos destrinchar o código simbólico, percorrendo o rol de crenças e práticas que se atrelaram tanto à fama de feiticeira de Maria Gonçalves como à suposta capacidade de adivinhação apontada à Felícia tourinho. todo o aparato mágico-religioso relacionado a Maria Gonçalves – baseando-nos nos relatos aqui apresentados – partiu de uma construção inicial voltada para a necessidade da existência de uma fonte externa que conferisse sentido aos demais ingredientes utilizados nas práticas: através da conjuração ou da comunicação direta, essa fonte se encarnava na figura do demônio, configurando-se, assim, o “pacto expresso” e o consequente estabelecimento de um contrato. sua invocação possibilitava, assim, a presença de toda uma pluralidade de instrumentais bem como a constituição de uma variedade de combinações que compunham os rituais supostamente relacionados à acusada e que se delimitaram em torno da sua fama. Referente a essa variedade, o uso do azeite, por exemplo, nas supostas comunicações praticadas pela acusada, pode ser encarado não somente pela significação de “luz e pureza ao mesmo que de prosperidade” 60, mas por sua condição de sacralidade presente na tradição hebraica e que fora repassada ao cristianismo. Essa diversi-

dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo no 01268. Processo de Felícia tourinho. 1593-1595, fl. 06. 60 ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, “azeite”, in ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, trad. Vera da Costa e silva, Raul de sá Barbosa, angela Melim e Lúcia Melim, 26.ª ed., Rio de Janeiro, José olympio, 2012, p. 106. 59

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ficação ainda é maior quando nos debruçamos sobre as arguições, no qual a acusada justificou a utilização de ingredientes tanto para um viés amoroso como para pessoas interessadas em “matar a seu marido e a outros para ganharem jogando”, reafirmando que distribuíra diversos papeis entre mercadores e outras pessoas interessadas 61. ainda afirmou que fizera uso de um “solimão” 62 como ingrediente principal para o preparo de perfumes que algumas mulheres lhe pediam. destaque, também, para o uso de animais em algumas de suas práticas, ao menos segundo o que relatou, afirmando que, quando não eram os fígados de galinha utilizados nos rituais, dispunha tanto de sapos ou ratos que serviam para a confecção dos tais pós citados nas denúncias, dizendo às pessoas que a procuravam que conseguiriam a afeição de alguém se os lançassem no chão por onde essa pessoa caminhasse 63. Nota-se, portanto, o forte simbolismo que o uso de animais em práticas mágico-religiosas possuiu naquele período, muito por conta da aproximação com a complexa religiosidade de matriz africana, como o uso da galinha e do sapo que, segundo Jean Chevalier e alain Gheerbrant, estão presentes também em ritos sobrenaturais provenientes de diversas tribos na áfrica 64. Essa interação esteve presente, por sua vez, também em Portugal, revelando a profundidade na circulação simbólica dessas práticas, conforme apontou daniela Calainho, citando o caso de Maria ortega, que dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 21 e 24. 62 segundo Raphael Bluteau, “solimão” seria algo próximo ao sal amoníaco ou salitre, de origem arábica, e que, de acordo com seu manuseio, poderia variar entre o veneno ou mesmo atrativo ao paladar. BLUtEaU, Raphael, Vocabulario Portuguez e Latino (1713), Rio de Janeiro, UERJ, s.d [Cd-RoM], p. 707. 63 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 10478. Processo de Maria Gonçalves. 1591-1593, fl. 27-28. 64 ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, Galinha; Sapo. Dicionário de Símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números, trad. Vera da Costa e silva, Raul de sá Barbosa, angela Melim e Lúcia Melim, 26.ª ed., Rio de Janeiro, José olympio, 1995, pp. 457 e 803. 61

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ensinava diversos ritos para “unir homens e mulheres” a partir do uso de um coração de frango ainda vivo, fervendo-o com vinagre. Já uma certa Catarina Maria, que era escrava e moradora de Évora, teria utilizado um sapo assado, dizendo “assaste sapo, e pingaste pão para cegar os olhos deste cabrão”, com o objetivo de que seu cônjuge não descobrisse suas traições 65. Quanto ao processo de Felícia tourinho, o primeiro ponto a ser levado em consideração diz respeito à invocação dos santos católicos Pedro e Paulo, como componentes da referida prática de adivinhação e que nos levam a afirmar que sua trajetória integrava um contexto luso-brasileiro no qual a familiaridade com os santos foi bastante recorrente, fazendo parte da vivência cotidiana 66. No mundo português, duas características principais são apontadas por Francisco Bethencourt a respeito das práticas mágico-religiosas que tinham, como um dos elementos principais, o uso dos santos pertencentes ao catolicismo: “se, em alguns casos, é visível certa ‘flexibilidade’ nas referências, surgindo narrativas hagiográficas confundidas e misturadas, em outros torna-se surpreendente o rigor de identificação entre a lenda do santo evocado, as características do rito no qual é inserido e os objetivos que se têm em vista” 67. Já em relação ao cotidiano dos indivíduos na américa portuguesa, a prática religiosa vivenciada pela população foi analisada por Luiz Mott, apontando também para esse aspecto de intimidade com os santos católicos. Citou, por exemplo, a presença do oratório como espaço privilegiado de construção por parte das famílias de 65 CaLaiNho, daniela, Metrópole das mandingas: religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime, Rio de Janeiro, Garamond, 2008, p. 103. 66 Com relação à religiosidade vivenciada na américa portuguesa, ver os estudos clássicos de Ronaldo Vainfas e Laura de Mello e souza. VaiNFas, Ronaldo, Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997; soUza, Laura de Mello e, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colonial, são Paulo, Companhia das Letras, 1986. 67 BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 144.

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um ambiente sacralizado na vida privada, servindo, inclusive, como relicário, reunindo, assim, as mais diversas relíquias de santos, desde fragmentos de ossos, resquícios do lenho da cruz em que Jesus foi crucificado e até mesmo o leite em pó com o qual foi amamentado por Nossa senhora 68. a irreverência ou vulgarização do diabo, denominando-o de “felpudo”, “orelhudo” e “guedelhudo” 69, também vale menção por nos indicar a quase infinidade de representações que a “cultura popular” promoveu durante a Época Moderna diante desse personagem. tais atitudes que essas mulheres construíram frente ao considerado grande inimigo da cristandade merece destaque por evidenciar como esta intimidade se delimitou diante do próprio discurso católico vigente, endereçado a seus fieis. dessa forma, as tentativas de se destrinchar todo o código simbólico que se arquitetou nas trajetórias de Maria Gonçalves e Felícia tourinho se dispuseram, portanto, a corroborar com uma das hipóteses que aqui apresentamos, em que a figura do diabo se tornou tão cotidiana entre a população, tanto cristã velha quanto neoconversa, mesmo na américa portuguesa – distante de maiores debates relacionados a essa figura – a ponto do discurso demonizador ter se azeitado entre aqueles interessados em contar com outra forma de intervenção no sobrenatural para além do rol de potências legitimadas pela igreja. Complementando com as demais hipóteses que foram aqui apontadas, o objetivo da discussão acima residiu em trazer à tona alguns apontamentos iniciais relacionados à presença das cristãs velhas e cristãs-novas frente às práticas mágico-religiosas, mas que

Mott, Luiz, “Cotidiano a vivência religiosa: entre a capela e o calundu”, in soUza, Laura de Mello e (org), História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa, são Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 167. 69 de acordo com o dicionário houaiss, o termo “guedelhudo” significa: “que tem guedelhas; cabeludo, gadelhado, gadelhudo”. Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa, 1.ª reimpressão, Rio de Janeiro, objetiva, 2004, p. 1495. 68

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merecem maiores problematizações a partir de uma ótica comparativa. as trajetórias das cristãs-novas Beatriz Borges e Clara de oliveira buscam ampliar esse debate. ainda na segunda década de atuação efetiva da inquisição portuguesa, Beatriz Borges, então moradora, com seu marido henrique Gomes, da Ribeira de Peniche, pertencente à diocese de Lisboa, foi citada em um despacho da mesa inquisitorial 70 por dois eventos ocorridos em meados de 1541. de acordo com o que fora citado, a acusada compartilhou entre suas vizinhas uma visão peculiar a respeito de como a alma de um indivíduo saía de seu corpo no momento da morte do mesmo. Esse entendimento ficou claro na descrição a respeito da morte de Fernão Gomes Monteiro, em que, ao visitarem o mesmo, as mulheres presenciaram a afirmação de Beatriz Borges de que a alma do enfermo não conseguia sair de seu corpo por conta de uma cruz pregada no teto do quarto em que estava. diante do problema levantado, os parentes do enfermo optaram em transferi-lo para outro cômodo de sua casa, resultando, enfim, na partida de sua alma, conforme declarou a acusada. Foi também afirmado que, estando na casa de Leonor Fernandes, cristã-velha, juntamente com outras mulheres, a acusada teria sido instigada pelas demais a contar sobre uma “feitiçaria ou cerimônia de judeus” – atenção, aqui, para a identificação de práticas de feitiçaria com cerimônias judaicas! – 71 que estaria relacionada diretamente à quem estivesse grávida, ou, conforme consta na documentação, “que andava de parto”, como estava a própria dona da casa. ainda no âmbito da inquisição lisboeta, apareceu espontanea-

Nesse caso, a própria indexação do documento na homepage da torre do tombo acompanha a observação de que não se tratou necessariamente de um processo, mas de um “auto de Beatriz Borges mulher de henrique Gomes de Peniche”. disponível em: http://digitarq.dgarq.gov.pt/details?id=2302834. acesso em: 12/01/2015. 71 dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 2902. Processo de Beatriz Borges. 1541, fl. 03. 70

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mente Clara de oliveira, interessada em se confessar ao inquisidor diogo de souza um episódio que presenciara ainda no tempo em que era moça, antes de se casar com Baltazar de oliveira, que se encontrava falecido. a respeito do relato, este descreveu o diálogo ocorrido na casa de dom afonso de Mafra entre a confessante e um físico, em que teria lhe ensinado algumas práticas para “se entender da mão e das estrelas” 72. Em pouco tempo, de acordo com o informado, algumas pessoas cientes desse diálogo começaram a procurar Clara de oliveira de modo que a própria lhes respondesse se “teriam algum perigo de fogo ou agua, ou lhe perguntavam alguma mulher se havia de casar ou não”, enfim, toda uma série de questionamentos voltados para a adivinhação do futuro. o ritual utilizado por Clara no intuito de suprir a demanda que lhe era dirigida, consistia em olhar para o rosto do indivíduo que, em seguida, teria a resposta: e que agora, depois que foi o sucesso da guerra da áfrica, lhe vieram algumas senhoras desta cidade, honradas e conhecidas, perguntar se sabia que seus maridos ou filhos eram vivos ou mortos, e ela confidente, se lhe perguntavam por marido, olhava para o rosto da mulher, e se por filho, olhava para o rosto da mãe, e segundo o que entendia, lhes respondia se eram vivos ou mortos 73.

Confessou, igualmente, que, mesmo na dúvida se o que praticava era de fato lícito às normas da igreja e aos olhos da inquisição, algumas mulheres continuaram a procurá-la diante da fama que adquirira. Citou, assim, a procura de dona antônia, interessada no paradeiro de seu cônjuge, dom Rodrigo de Mello, e de dona Maria, mulher de dom Francisco de Moura, no qual a confessante “pelo que entendeu de sua estrela e de seu signo [disse para que]

dGa/tt. tribunal do santo ofício, inquisição de Lisboa, Processo 12607. Processo de Clara de oliveira. 1578, fl. 1a. 73 Idem, fl. 1a. 72

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confiassem em deus que lhes veria bom mandado dos ditos seus maridos” 74. a associação entre os praticantes do judaísmo e a presença de rituais maléficos não surgiu no Portugal Moderno tampouco se restringiu ao século XVi. Com o Concílio Lateranense iV, ocorrido em 1215, quando inocêncio iii ocupava o Papado, era determinado aos judeus a obrigação de andarem com roupas capazes de identificá-los juntos aos demais; prescrição também endereçada aos leprosos, tornando-os dois grupos deslocados para a margem das sociedades 75. Mas é no século XiV que a problemática em torno dos judeus alcançaria maior substância, catalisada pelo avanço das pestilências em diversas regiões europeias, sendo apontados nestas áreas como os grandes responsáveis pelas inúmeras mortes provadas pelo bacilo da peste. No entender de Carlo Ginzburg, esse avanço correspondia a um movimento maior, tornando-se um dos alicerces que sustentariam todo o complô no mundo europeu em relação à necessidade de se perseguir indivíduos acusados de dar vida às cerimônias do sabá 76. a presença do termo “feitiçaria” quando do despacho de Beatriz Borges é forte indício de como também é possível enxergar em Portugal rastros desse complô ao associar determinado rito judaico à presença do delito da feitiçaria. Entre a população judia, Rafael Martín soto nos fornece importantes argumentos em torno da interação desta com o campo simbólico, citando, por exemplo, algumas anedotas e discursos provenientes do Talmud fazendo referência às ações de “demônios malignos masculinos (scedim) ou femininos (lilith)” ou até mesmo provocadas por “palavras mágicas [...] pelo olhar de uma terceira pessoa” 77. afirma,

Idem, fl. 2. GiNzBURG, Carlo, História Noturna: decifrando o Sabá, 2.ª ed., são Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 57. 76 Idem, p. 103-104. 77 soto, Rafael Martín, Magia e Inquisición en el Antiguo Reino de Granada. Séculos XVI-XVIII, Málaga, arguval, 2000, p. 297. 74 75

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ainda, a importância que a “simbologia mágica do mundo ocidental” deve ao judaísmo, já que muitos símbolos caros a essa cultura foram apropriados por diversos indivíduos para além da religião judaica no intuito de invocar espíritos ou mesmo de utilizá-los com o significado da proteção, como foi possível observar no processo de Maria Gonçalves 78. ao se debruçar na documentação do santo ofício de Granada, por sua vez, o autor transitou por diversos relatos, segundo ele, de caráter “supersticioso”, delatados às autoridades por indivíduos que conviviam com judeus. havia, por exemplo, a crença na relação entre a ingestão de determinados tipos de carne e seus efeitos no juízo de algumas pessoas, além de todo um instrumental voltado para o período de menstruação das mulheres – proibição de fazerem orações apontando para o céu, de dormir com seus maridos etc. – bem como de episódios de caráter messiânico que também circularam entre os judeus espanhóis 79. Já em 1606, as autoridades inquisitoriais da região se depararam com uma série de acusações contra indivíduos, conversos, reconhecidos na região de Ronda, por praticarem rituais mágico-religiosos voltados ao interesse em se descobrir tesouros: utilizavam-se geralmente de um cordeiro que era imolado em um altar similar ao das igrejas, incluindo a imagem de Jesus e o uso de hóstias; o instrumental se completava com uma oração invocando não somente a deus, mas, também, a “moura zabaibel” 80. Retornando à documentação de Beatriz Borges e Clara de oliveira, a simbologia de ambos os processos não foge muito aos casos apresentados por Rafael soto, apontando para a necessidade de observamos esses fenômenos mágico-religiosos para além do catolicismo como única matriz, até para nos resguardarmos de um olhar Idem, p. 299. Idem, p. 303-304. 80 soto, Rafael Martín, Magia e Inquisición en el Antiguo Reino de Granada. séculos XVi-XViii, Málaga, arguval, 2000, p. 308. 78 79

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enviesado. o que não significa, contudo, cair na armadilha de nos afastarmos tanto dessa religião como influência nas práticas aqui citadas a ponto de isolá-las em outra referência, como o judaísmo. ao presenciarem Beatriz Borges compartilhar uma crença em torno de como a alma se comportava quando da morte de determinado indivíduos, essas mulheres acabaram por se integrar em um contexto em que “cultura erudita” e “cultura popular” interagiam também no âmbito da discussão endereçada à presença dos espíritos. o debate católico que se construiu em relação ao mundo sobrenatural, principalmente no que toca aos espíritos ou mesmo como se comportavam as almas nos indivíduos, teve grande importância nos escritos de agostinho, em especial nas suas discussões sobre as tentações da carne e de como a vida sexual – ou a “concupiscência da carne” – alterou drasticamente a harmonia entre corpo e alma, tendo na experiência de adão e Eva o palco inicial dessa dicotomia 81. Para Jean delumeau, duas noções a respeito do corpo e da alma coexistiram ao longo da Época Moderna, resultante de posições nem sempre fixas provenientes dos estratos populares e de longos debates entre os letrados: a primeira posição compartilhava da crença de que ambos retornavam ao seu lugar de origem terrena quando da morte do indivíduo, enquanto a segunda noção, teológica, principalmente, partia do entendimento de que havia um jogo de forças espirituais, no qual os espíritos somente apareciam em determinados contextos 82. No contexto português, a produção teórica foi tímida no que tange ao tema em questão, como afirma Francisco Bethencourt, que identificou, na obra de Frei Manuel de azevedo, Correcção de abusos introduzidos contra o verdadeiro methodo de medicina, publicada em 1680, um dos poucos escritos que mencionam a relação entre corpo

VEYNE, Paulo, História da Vida Privada. Do Império Romano ao ano Mil, trad. de hildergard Feist, são Paulo, Companhia das Letras, 2009, p. 278. 82 dELUMEaU, Jean, El Miedo en Occidente, Madri, taurus, 1978, pp. 247-248. 81

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e alma. ao discorrer a respeito do “mau-olhado”, o tratadista afirmou que sua causa deveria ser explicada por uma ordem natural, posto que o espírito maligno saía da boca e olhos de quem provocava esse malefício, sendo caracterizado por um “vapor delgado e sutil que resulta da perturbação e levantamento, pela inveja, dos humores podres, corruptos e malignos existentes no corpo do fascinador” 83. os espíritos poderiam assumir, assim, uma condição material que acabaria por influenciar nos humores dos indivíduos. talvez seja viável afirmar que a riqueza maior a respeito das relações entre corpo e alma tenha alcançado maior notoriedade no âmbito da religiosidade presente na população comum, revelando, também, como essa discussão não se restringiu somente às influências do catolicismo, na medida em que a própria escravidão contribuiu nesse processo. Vide o exemplo dos calundus, analisados por Laura de Mello e souza, e que circularam com relativa amplitude na américa portuguesa, principalmente em Minas Gerais. de acordo com a autora, embora os diversos relatos em torno dessas práticas apontem para uma complicada fragmentação dos aspectos culturais a elas relacionados, é possível identificar uma unidade capaz de caracterizar o que eram esses calundus: “a possessão ritual – os ventos de adivinhar –, a evocação de espíritos (em geral de defuntos), as oferendas feitas a eles, os trajes de inspiração africana, a adivinhação, às vezes o curandeirismo, a música cantada e marcada pelos instrumentos de percussão, o caráter coletivo” 84. atravessando o atlântico, a diversidade de crenças sobre a função dos espíritos no plano terreno também se refletiu na documentação inquisitorial referente ao espaço lusitano. Essa fluidez entre o mundo dos vivos e a seara dos mortos não circulava, portanto, somente no ambiente letrado, já que inúmeros relatos frente às auto83 BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 162. 84 soUza, Laura de Mello e, O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial, são Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 268.

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ridades do santo ofício apontam para a variedade de olhares da população, das mais variadas posições sociais, classes e origens para com o sobrenatural. José Pedro Paiva menciona, por exemplo, a resposta de Maria Fernandes, moradora de Braga, às autoridades aquando perguntada do que seria a doença denominada “ar”, afirmando que se tratava de defuntos que circulavam pelo ar e que perturbavam as pessoas 85; relato próximo ao que mencionamos a respeito de Frei Manuel de azevedo e que revela os complexos laços culturais relacionados às práticas mágico-religiosas. Essa breve digressão teve por objetivo levantar a hipótese de que, no âmbito das simbologias que compuseram a trajetória de Beatriz Borges, é problemático afirmar não somente que o catolicismo e sua ideia de diabo foram a matriz primordial das crenças e práticas, mas, ainda, que o judaísmo tenha sido a essência do que foi relacionado à cristã-nova. Embora as menções a cerimônias judaicas, endereçadas à gravidez, demonstrem sua proximidade para com alguns laços culturais pertencentes à tradição judaica, suas supostas visões a respeito da interação entre corpo e alma também revelam sua inserção em um contexto de forte circulação de símbolos pertencentes às mais variadas tradições, mesclando crenças e tradições religiosas as mais diversas. Reafirmam, assim, o que apontamos no início deste ensaio: cada neoconverso, judaizante ou não, vivencia suas crenças e práticas de maneira singular, ao seu modo, de acordo com a realidade e espaço que em que está inserido, com suas devoções de fé, com as possibilidades que encontrava e com o que acreditava. Era, na essência, como muito bem caracterizou anita Novinsky, um “homem dividido” 86. Quanto ao que fora relatado em relação à Clara de oliveira, a invocação das estrelas e o uso de um signo que, juntamente com a 85 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774, Lisboa, Editorial Notícias, 1997, p. 138. 86 NoViNskY, anita W., Cristãos Novos na Bahia: 1624-1654, são Paulo, Perspectiva/Ed. da Universidade de são Paulo, 1972.

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menção a deus, compunham parte do instrumental referente às adivinhações, nos levam a apostar na hipótese da intrínseca relação que esses símbolos mencionados possuem com a importância que o antigo testamento, em sua influência no judaísmo, confere a esses astros. Em um dos tópicos voltados ao item “Estrela/astro”, Jean Chevalier e alain Gheebrant apontam para a importância que algumas passagens do antigo testamento bem como o judaísmo conferem às estrelas, não sendo “criaturas inanimadas”, mas dependentes da vontade de deus, sendo veladas por anjos 87. No apocalipse, por exemplo, é retratada a existência de estrelas caídas do céu tal qual a presença dos anjos caídos. Já no livro de daniel, as estrelas são encaradas como símbolos da justiça, da eternidade: “os que são esclarecidos resplandecerão, como o resplendor do firmamento; e os que ensinam a muitos a justiça hão de ser como as estrelas, por toda a eternidade” 88. Em contrapartida, o mesmo relato envolvendo Clara de oliveira é capaz de apontar para a possibilidade de uma circulação de crenças e práticas naquele período que não assumiu, por sua vez, uma conexão tão somente com o judaísmo, mas uma interação visível com tradições astrológicas já presentes em épocas anteriores; tanto é que o suposto ritual de adivinhação praticado por Clara de oliveira teria sido ensinado por um físico. Conforme apontou José Pedro Paiva, o âmbito das práticas de adivinhação no contexto português não se restringiu apenas às camadas iletradas da população, tampouco ao ambiente rural, apresentando uma diversidade de situações em que o interesse em ajustar o futuro conforme os anseios dos indivíduos se combinava com a intervenção ilícita no sobrenatural 89. ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, Diccionario de los Simbolos, Barcelona, Editorial herder, 1986, p. 484. 88 dn 12,3. A Bíblia de Jerusalém, são Paulo, Edições Paulinas, 1985, p. 1709. 89 PaiVa, José Pedro, Bruxaria e superstição num país sem “caça as bruxas”: 1600-1774, Lisboa, Editorial Notícias, 1997, p. 119. o autor ainda nos apresenta (p. 120-121) alguns exemplos das principais práticas utilizadas no contexto português referentes à adivinhação 87

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ampliando o olhar para além da realidade vivenciada no mundo português, stuart Clark afirma que mesmo nos escritos de Calvino, a preocupação com a presença de “bruxas e bruxaria” também era recorrente, incluindo aí a menção às práticas divinatórias em alguns de seus sermões, mencionando principalmente o Livro do deuteronômio. Já no Von hexen und Unholden, de heinrich Bullinger, o mesmo interesse em discutir fenômenos maléficos emerge, analisando “o uso de bênçãos, conjurações e exorcismos [além das] profissões astrológicas [...] e as artes da necromancia e adivinhação” 90. Enfim, um debate em torno da manipulação dos destinos que não se restringia somente ao ambiente de uma única religião. Mesmo no contexto lusitano, os debates voltados para a astrologia percorriam os espaços letrados, segundo o que apontou Francisco Bethencourt, ao citar a trajetória do famoso médico português ambrósio Nunes, defensor da noção de que os astros eram os maiores responsáveis pelas influências no mundo interior 91. seria, quem sabe, ambrósio Nunes, como tantos físicos, cirurgiões, boticários e estudiosos da época, ele próprio cristão-novo, influenciado pela tradição judaica em sua visão de mundo? No campo da religiosidade para além do âmbito letrado, a diversificação desses rituais divinatórios, inserindo-se aí, da mesma forma, a manipulação de signos caros à astrologia, também são capazes de complementar nossa afirmação a respeito do painel diversificado em torno dessas práticas. Retornando ao contexto português, o interesse no paradeiro não somente de objetos, mas, ainda, como, por exemplo, a crença na relação entre a fisionomia das mãos e do rosto para com a possibilidade de se adivinhar a vida de alguém, tal qual é presente nos relatos de Clara de oliveira. 90 CLaRk, stuart, Pensando com Demônios. A ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna, trad. de Celso Mauro Paciornik, são Paulo, Editora da Universidade de são Paulo, 2006, p. 583. 91 BEthENCoURt, Francisco, O imaginário da magia: feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI, são Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 142.

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de familiares, esteve por diversos momentos relacionado, como fator intrínseco, ao próprio período de expansão ultramarina que Portugal vivenciava. Nesse sentido, duas vertentes principais emergiram nas práticas mágico-religiosas voltadas para a manipulação dos astros: a primeira delas dizia respeito à importância conferida aos ciclos tanto solar quanto lunar e a suposta influência desses quanto à eficácia dos rituais praticados pelas “feiticeiras” – o pôr-do-sol, por exemplo, era, de acordo com Francisco Bethencourt, o clico ideal para muitas praticantes, por se tratar de um “período delicado de passagem entre o dia e a noite, a luz e as trevas”; a segunda vertente, voltada, de fato, à manipulação astrológica, apresenta, no entender do autor, uma influência sensível desse debate erudito, apontando para o clima, a natureza e o homem como elementos que dependem do “jogo dos corpos celestes” 92. somado à importância do olhar para a concretização da prática divinatória – lembrando que esse ato emerge como “símbolo e instrumento de uma revelação” 93 em diversas culturas –, a prática supostamente relacionada à acusada se completaria, assim, enquanto resultado de um amálgama de simbologias coerentes ao contexto em que se inseria, principalmente diante da clientela que a procurava. dessa forma, os elementos associados aos relatos anteriores – a presença de deus e da estrela como responsáveis pelo resultado do que poderia ser adivinhado, ou mesmo a relação do parto com cerimônias de caráter judaico, embora não tenham sido detalhadas – podem evidenciar, de certo modo, alguma proximidade com essa doutrina, mesmo se considerarmos de forma tímida, na tentativa de se manipular destinos a partir das práticas mágico-religiosas. são simbologias que revelam a possibilidade de pensar que o diálogo dos cristãos-novos para com o sobrenatural não esteve totalmente Idem, p. 134 e 143. ChEVaLiER, Jean; GhEERBRaNt, alain, Olhar. Diccionario de los Simbolos, Barcelona, Editorial herder, 1986, p. 714. 92

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intrincado ao catolicismo, corroborando com a assertiva de que a maior proximidade com o judaísmo tenha contribuído não somente para a pouca intimidade ou interesse no diabo aos moldes católicos, mas, também, para a pouca presença desses indivíduos no seio das práticas mágico-religiosas. Em outras palavras, podemos sugerir que o cristão-novo estava mais próximo de – em variados graus de intensidade e sentido – resgatar ou manter – conscientementee ou não – algumas tradições de seus antepassados, e estas não tinham tamanha força em relação à presença do diabo, do que necessariamente se interessar ativamente pelo sobrenatural através do era conhecido por feitiçaria, seja por seu pacto “tácito” ou “expresso”. Consoante ao que já fora debatido, a visão da presença do Mal na sociedade se encarnou de forma mais expressiva no catolicismo do que na doutrina judaica, incluindo toda uma hierarquia do inferno e de seus habitantes, bem como dos responsáveis por interagir com esses no mundo terreno. se retomarmos os processos de Maria Gonçalves e Felícia tourinho e os signos que se relacionaram à trajetória das acusadas, é possível perceber como os esquemas culturais em torno do pacto diabólico, da concretização deste por meio de práticas de feitiçaria, parecem consolidados de forma mais nítida entre as cristãs-velhas, seja no momento da acusação ou até mesmo antes da heresia se constituir, como forma de interação com o sobrenatural e de alcance a determinados fins. os componentes que sustentaram as acusações bem como inquirições por parte das autoridades apontam para a íntima relação que todo o rol de simbologias e atitudes voltadas para as práticas mágico-religiosas possuiu em torno da tradição católica voltada para a delimitação e definição dessas a partir das noções de feitiçaria e bruxaria. Mesmo em um contexto no qual esse processo não foi tão marcante, conforme destacado anteriormente, ainda, assim, os diálogos relacionados ao sobrenatural, principalmente aos delitos citados, também percorreu, embora com contornos nem sempre fieis ao “erudito”, o cotidiano da população comum, em especial, entre as mulheres cristãs-velhas. 39

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todavia, se a pouca intimidade com o rol de simbologias católicas, em especial, a presença do diabo, talvez possa servir como uma da chaves de explicação tanto para a raridade de processos relacionados ao gênero em questão como para a possibilidade de pensarmos que nem sempre a intervenção no sobrenatural se apropriava somente dessa religião, não significa afirmar, por conseguinte, que as práticas mágico-religiosas presentes nas trajetórias dessas cristãsnovas tiveram como matriz fundamental o judaísmo. as simbologias que foram possíveis de decodificar a partir da documentação aqui utilizada nos levam a tomar uma posição mais inclinada a enxergar um amálgama de crenças e práticas que adquiriu novos contornos para além da presença do diabo como maior alicerce das práticas entre essas cristãs-novas, revelando outros fragmentos de uma “cultura popular” interessada em uma visão mágica do mundo que não se sustentava somente no binarismo deus/diabo ou mesmo em alguma religião específica. * * * Mesmo apontando para as diferentes interpretações dessas mulheres em relação à religiosidade, em que nem sempre o predomínio do catolicismo se dava, muito por conta da proximidade com referenciais caros ao judaísmo ou pela ampliação no uso de símbolos que circulavam no período, também é importante salientar as similaridades existentes entre suas histórias, complementando o quadro comparativo ao qual nos propusemos a construir. a construção dos espaços de autonomia por elas criados a partir do diálogo com o sobrenatural e que, a nosso ver, integram um movimento maior em torno da história das mulheres para além da simples submissão feminina ao patriarcalismo vigente, é um primeiro item que merece relevância. Para além de todo o quadro moralista que permeou as relações de gênero em Portugal, é importante considerar como a consolidação 40

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de um universo sobrenatural acessível à população acabou por se tornar, também, ferramenta importante entre as mulheres, fossem cristãs novas ou velhas, na tentativa de se estabelecer relativa autonomia frente a essa normatização vigente. Vale lembrar o complexo painel apontado por Mary del Priore no contexto da américa portuguesa e que combinou vários ritos católicos juntamente a um diversificado conjunto de simbologias religiosas entre as vivências femininas 94. Entre o cotidiano dessas mulheres, como o apresentado nos relatos a respeito de Beatriz Borges, mesmo circunscrito a um espaço reduzido de sociabilidades, é possível observar como o universo mágico compunha suas vivências, no qual muitas vezes uma mulher adquiria protagonismo entre as demais por ser encarada como mediadora frente a esse âmbito. seja compartilhando interpretações voltadas ao campo simbólico ou mesmo ensinando as chamadas “feitiçarias ou cerimônias de judeus”, é lícito apontar para existência de esferas em que as mulheres possuíam relativa liberdade em ressignificar visões de mundo ou mesmo intervir em um campo que oficialmente deveria ser acessado somente pelo clero católico. a complexidade dessas relações, leva-nos a considerar a possiblidade de espaços de autonomia feminina, embora circunscritos e obviamente limitados, espécie de ilhas de resistência ao sistema opressor em que estavam inseridas. impede-nos, em consequência, de cairmos na armadilha de definir as interações entre homens e mulheres no período em que esse trabalho se insere como reflexo simplório de um “patriarcado universal”, conforme apontou Judith Butler 95. além dessa autonomia pretendida, independentemente da trajetória que seja aqui evocada, tanto no contexto da américa portu94 PRioRE, Mary del. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidades e mentalidades no Brasil Colônia, 2.ª ed., são Paulo, Editora UNEsP, 2009, p. 95. 95 BUtLER, Judith, Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade, trad. de Renato aguiar, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003, pp. 20-21.

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guesa ou mesmo no Portugal Quinhentista, percebemos como a própria (má) fama dessas mulheres – enquanto mediadoras do sobrenatural – por vezes não dependia somente das agentes ativas desse processo, como destacou Marcel Mauss 96. Não podemos desconsiderar que a imagem daquele que é encarado como mediador entre mundos poderia se produzir fora do próprio indivíduo, resultante principalmente das crenças que a sociedade direciona a ele. as fontes inquisitoriais estão recheadas de exemplos desta lógica. Um processo que é nítido na medida em que aumentava progressivamente o número de mulheres interessadas em saber das cerimônias judaicas relacionadas ao parto ou mesmo em conhecer o paradeiro de seus filhos ou maridos; aspecto também evidente no diversificado círculo de indivíduos que procuravam Maria Gonçalves para resolver seus problemas pessoais ou conseguir benefícios através do contato que acreditavam que esta mediava com o mundo dos mortos. Entretanto, esse mesmo reconhecimento alcançado por meio das práticas mágico-religiosas não anula a possibilidade de pensarmos na existência de todo um jogo de ambiguidades relacionado à trajetória dessas mulheres, em que todas são apontadas como capazes de sanar os mais diversos problemas, mas, também, acusadas de relacionarem-se ilicitamente com o sobrenatural, seja mencionando a participação do diabo ou até mesmo nomeando-as “feiticeiras”; uma condição ambígua capaz de revelar as diferentes formas com que a misoginia foi apropriada por essas mulheres. Conforme ressaltou Ronaldo Vainfas, é importante lembrar que havia um limite nessas solidariedades femininas, impossibilitando considerarmos a existência de toda uma consciência grupal 97; levando-nos a crer, igualmente, que esse discurso foi apropriado, em 96 MaUss, Marcel, Sociologia e Antropologia, trad. de Paulo Neves, são Paulo, Cosac & Naify, 1950, p. 70. 97 VaiNFas, Ronaldo, Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997. p. 182.

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grande parte, em seu caráter negativo, da demonização das mulheres não somente entre os homens. as relações de gênero não devem ser utilizadas, assim, como ferramentas para o isolamento das mulheres nas análises do pesquisador ou simples reflexo de uma necessidade de dominação por parte dos homens, mas como conceito capaz de possibilitar-nos enxergar as legitimações e construções sociais entre sociedade e essas relações, bem como as diferentes formas e níveis de inserção de homens e mulheres ocorrem nesses espaços de poder 98. destarte, não é equivocado afirmar que o modo como esse discurso circulou entre a “cultura popular” não atingiu um eixo apenas de apropriação, já que a visão a respeito da predisposição feminina ao sobrenatural fora encarado entre essas mulheres tanto pela possibilidade de se intervir nos destinos para além da religião oficial como ferramenta de acusação ante o santo ofício. Neoconversas? Judaizantes? Cristãs devotas? Feiticeiras? Praticantes de pactos demoníacos? impossível de reduzir a uma possibilidade única. talvez o todo; de fidúcia (caso a caso), a parte... se não há respostas efetivas para tudo isto, serve ao menos a certeza de que, ao seu modo, mostraram que era possível resistir e construir espaços numa sociedade dominada pelos homens.

sCott, Joan Wallach, Gênero: uma categoria útil de análise histórica, Educação & Realidade, Porto alegre, vol. 20, n.º 2, jul./dez, pp. 71-99, 1995. p. 89. 98

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