Mulheres de Avintes - padeiras, barqueiras… e amas de criação de enjeitados do Porto (séc. XVII)

August 2, 2017 | Autor: António Conde | Categoria: História Local
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Mulheres de Avintes - padeiras, barqueiras… e amas de criação de enjeitados do Porto (séc. XVII)

António Adérito Alves Conde

2014 1

Apresentação Ao longo do séc. XVII, em pleno período filipino e no período pós-Restauração foram muitas as mulheres de Avintes que, pagas pelo município portuense, se dedicaram à aleitação, mas sobretudo à criação de crianças desafortunadas da sorte que passaram à história sob a classificação de enjeitados, expostos, ou mais comummente por “meninos da Roda”. No estudo será feita a contextualização desta problemática e das suas implicações demográficas, sociais, morais, religiosas, políticas, etc. num fenómeno que é transversal a todos os tempos e sociedades, presente desde o bíblico Moisés, ao mítico Édipo ou ao mais recente caso de abandono de crianças acontecido, aqui ou ali, nos dias de hoje. Queremos aqui trazer à colação o resultado desta investigação, que julgamos inédita, que relata um lado mais humano das mulheres de Avintes, no seu relacionamento com a grande cidade do Porto, no assumir do duplo papel de mães e de “segundas-mães” a que não é alheia uma lógica economicista. Fazemos votos que este estudo da micro-história, na sua vertente local, apresentado no 24º Fórum Avintense e que a Abientes em boa hora vem agora publicar, abra um novo capítulo na já longa e plurifacetada história da mulher de Avintes. Parafraseando Alberto Pimentel “As padeiras de Avintes, que vão ao Porto vender a broa, são, de um modo geral, belos exemplares de mulher, capazes de tombar um homem com uma bofetada. Basta dizer que têm o braço acostumado ao manejo do remo e quando chegam a Avintes trocam o remo pela pá do forno”. Pela nossa parte com

a presente investigação, cujos

resultados

aqui

se

apresentam, pretendemos demonstrar que a mulher de Avintes do século XVII, no seu papel de ama, foi também a mão(e) que embala o berço, para usar a figura do título de uma película que passou entre nós há duas décadas.

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Introdução

A figura da mulher de Avintes, mulher bela e robusta, é por demais conhecida, ao longo dos séculos, nas profissões de padeira, barqueira, vendedeira de biscoitos, camponesa ou carniceira e foi muito bem retratada pelos nossos artistas1 e pelos nossos escritores2, os quais as resgataram do contexto e conhecimento meramente local e regional e as guindaram a figuras anónimas de âmbito nacional. Na monografia “De Abientes a Avintes”3, os seus autores fizeram um levantamento exaustivo desses artistas e escritores, bem assim dos quadros e dos trechos das suas obras que se referem à mulher de Avintes, nomeadamente “Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Júlio Dinis, Alberto Pimentel, Júlio César Machado, Maria Angelina Brandão e Raul Brandão, Armando Gonçalves, Columbano Bordalo Pinheiro, Silva Porto, Alberto de Sousa e pelos avintenses Henrique Moreira e João Alves Pereira”. Constitui nosso propósito, no presente estudo, dar a conhecer uma outra figura da mulher de Avintes até aqui desconhecida, na sua função de ama de leite e de criação de enjeitados do Porto, na centúria de Seiscentos. A curiosidade desta investigação reside no facto de trazer a lume a notícia da existência de cerca de oito dezenas de mulheres de Avintes, que, pagas pela Câmara do Porto, aqui aleitaram e/ou criaram cerca de duas centenas e meia de enjeitados que foram recolhidos nas ruas do Porto. Como adiante veremos com mais pormenor, o período cronológico deste processo encerra-se no ano de 1689, o ano da inauguração da chamada “roda” do Porto, criada pelo Pe. Baltazar Guedes. Refira-se que o presente estudo utilizou como fonte história principal os assentos de pagamentos feitos às amas pela Câmara do Porto, devidos pela criação de enjeitados, os quais, regra geral, contêm o nome e residência das amas, o nome do enjeitados, os locais onde foram encontrados, assim como as importâncias pagas pelo funcionário municipal.

1

Refira-se

o quadro de Columbano, intitulado Mulher de Avintes, publicado em 1885 ou F. Augusto

Schenck, no seu quadro, datado de 1857, das “Vendedeiras de fruta de Avintes”. 2

Da mulher de Avintes e da sua relação com a cidade do Porto, nos falam vários escritores portugueses,

com especial destaque para Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e Ramalho Ortigão. Este último refere que “Na sua aldeia ribeirinha ela sacha e monda a horta, espadela e fia, bota a teia, engorda o porco, deita a galinha, forneia, e faz barreia. Mas, propriamente de profissão, barqueira é que ela é”. 3

COSTA, Barbosa; VAZ, José; COSTA, Paulo – De Abientes a Avintes, Avintes, Audientis, 2009, pp. 582-

593.

3

O presente estudo visa assim analisar a problemática da assistência pública às crianças abandonadas no Porto do séc. XVII e do papel que o município portuense assumiu no combate a este flagelo social, pondo naturalmente o enfoque no papel desempenhado pelas mulheres de Avintes, as quais nas funções de amas de leite e amas secas, cumpriram o papel de segundas-mães conseguindo, paralelamente, amealhar um pequeno pecúlio que em muito contribuiu para o sustento das suas famílias.

1. O abandono ou exposição de crianças ao longo dos tempos A questão do abandono, ou “exposição”4

de crianças é transversal a todas as

sociedades e a todos os tempos e na sociedade actual esta questão, sob outras “roupagens”, continua a ser motivo de grande preocupação das famílias, dos poderes públicos, das instituições de solidariedade social e das organizações internacionais, nomeadamente a O.N.U. No âmbito do presente estudo vamos ocupar-nos dos enjeitados ou expostos, vulgarmente também conhecidos, em razão da sua ilegitimidade, por adulterinos, bastardos, bastardinhos, fornezinhos, espúrios, filhos de gança, filhos das ervas, ganhadiços, apanhadiços, naturais, etc. Esses desafortunados da sorte, no período cronológico em apreço, eram abandonados pelas ruas, junto aos conventos e outros lugares públicos, ou, mais tarde na chamada “roda”, sendo confiada à assistência pública a sua criação. Esta questão do abandono de crianças remonta aos primórdios da civilização. Todos conhecemos a história bíblica de Moisés 5, o “exposto” mais conhecido da Antiguidade que escapou à ira do faraó do Egipto, sendo este mentor de uma das primeiras matanças dos inocentes visando a aniquilação dos filhos machos de Israel, sujeitos à escravidão. A mãe de Moisés ocultou a gravidez e quando este nasceu colocou-o numa cesta e expô-lo no rio, esperando que fosse encontrado e criado por outra mãe que dele se compadecesse. A criança, por intercessão divina, já que Moisés estava destinado a liderar a revolta dos filhos de Israel e fazê-los retornar à sua pátria, foi salva das águas e levada à presença da esposa do faraó, 4

O termo “exposição”, considerado como o acto de “expor”, ou abandonar anoninamente em lugar

público uma criança, era muito usado na Idade Moderna e daí os termos “exposto” ou “enjeitado”.

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No livro dos “Actos dos Apóstolos” – Actos, 7, 19 e 20 vem referido “esse rei [do Egipto] perseguiu os

nossos pais, até ao ponto de os fazer expor os recém-nascidos para os privar da vida. Nessa altura nasceu Moisés, que era agradável aos olhos de Deus. Foi criado durante três meses em casa de seu pai. Depois, tendo sido exposto, a filha do Faraó recolheu-o e criou-o como seu filho”. (Cf. Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica, 15ª edição, 1991, p. 1445).

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que, incapaz de conceber, o adoptou como seu filho. A criança Moisés rejeitou o leite de todas as amas que foram convocadas a alimentá-lo até que alguém trouxe, clandestinamente, ao palácio, uma nova ama e os resultados foram brilhantes pois, sem o faraó saber, juntavam-se mãe e filho. A nossa literatura oitocentista é fértil em obras que tecem duras críticas às “rodas” e às crianças que lá iam parar, quantas vezes fruto de amores ilícitos que interessava esconder, em nome da defesa dos discutíveis valores morais de uma sociedade profundamente religiosa e conservadora. Apontamos aqui, a título de exemplo, a novela “Maria Moisés”6, de Camilo, em que uma criança, fruto dos amores proibidos do morgado de Cima de Vila e de Josefa, filha de um lavrador de Santo Aleixo do Tâmega, foi encontrada, por Francisco Bragadas, num cesto que boiava nas águas do rio Tâmega, não muito longe da ponte de Cavês. A enjeitada foi adoptada pelo Bragadas, que a baptizou sob o nome de Maria Moisés, no mesmo dia em que descia à sepultura o corpo da mãe, afogada nas águas do mesmo Tâmega, pouco depois de ter dado à luz. Registe-se, também, o romance “O Selo da Roda”, de Pedro Ivo, em que a criança exposta - uma menina - é o fruto dos amores proibidos de filhos de duas famílias do Douro, ricas e brasonadas, uma liberal e outra miguelista. Para ilustrar até que ponto se tornou comum a exposição de crianças refira-se o caso do filósofo Jacques Rousseau que abandonou os seus cinco filhos na “roda”, consciente que estava a fazer o melhor por eles.

2. Os enjeitados do Porto no século XVII Desde cedo a Câmara do Porto teve a preocupação de acolher as inúmeras crianças que eram abandonadas nas ruas da cidade ou à porta das igrejas e conventos, à mercê dos rigores do tempo, da fome, da doença ou dos animais que vadiavam pela cidade. Foi no Porto que, em 1535, terá nascido, pela primeira vez, a figura do “Pai dos meninos”, criada por Provisão Régia com a responsabilidade de recolher os enjeitados e levá-los até ao Juiz dos Órfãos para serem tomadas as providências necessárias, nomeadamente a sua distribuição pelas amas-de-leite e de criação, pagas pelos cofres do município. Paralelamente foi criada a figura do “Pai dos

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BRANCO, Camilo Castelo – Maria Moisés, in Novelas do Minho, Lisboa, Parceria António Maria Pereira,

4ª edição, 1923.

5

Velhacos” com o encargo de “dar titores a todolos enjeitados que passarem dos sete anos”. Para fazer face a essas despesas a Câmara foi autorizada a cobrar um real por cada rasa de sal, bem assim eram retirados do cofre das sisas cem mil reais por ano destinados à criação dos enjeitados. Estas providências foram importantes para ajudar a minorar o flagelo das crianças abandonadas mas havia necessidade de um hospício onde fossem recolhidas e tratadas, no imediato, as crianças enjeitadas. E assim sob o patrocínio, entre outros, do Padre Baltazar Guedes, nasceu, em 1685, a Casa da Roda do Porto. Esta casa que ficou conhecida por “Roda Velha”, localizava-se junto ao Hospital de D. Lopo, com entrada pela rua da Ferraria (actual Rua dos Caldeireiros). Houve um contrato entre a Câmara do Porto e a Mesa da Misericórdia em que a Câmara financiava a Casa da Roda e a Misericórdia garantia a sua administração. O nome derivava do facto de a caixa onde os expostos eram abandonados ter a forma de um cilindro giratório e no seu tampo era colocada a criança sem que se ficasse a saber a identidade de quem o fazia. Ao lado havia uma campainha ou sino para dar sinal à rodadeira. A Casa da Roda foi inaugurada em 6 de Julho de 1689, data que em termos cronológicos corresponde ao termo do nosso estudo sobre as amas de Avintes.

ADP – Registo de uma exposta de nome Antónia (1827.06.20)

Face à exiguidade da primeira “Casa da Roda”, mais tarde, em 1838, este estabelecimento de assistência passou para uma casa na Rua dos Fogueteiros, junto à Cordoaria, no lugar onde hoje se encontra o Tribunal da Relação do Porto. A Roda do Porto foi extinta em 1865, mas as crianças expostas continuarão neste edifício até 1913, numa casa com novas normas de funcionamento mais consentâneas com a filosofia liberal de apoio à criança.

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ADP – Bilhete que foi entregue na roda aquando da exposição de Júlia (19.06.1827)

Damos aqui uma breve descrição da criação e funcionamento da Roda de Expostos do Porto, de modo a melhor perceber a questão da assistência aos enjeitados a nível regional e nomeadamente o contexto de actuação das amas de Avintes.

3. As amas de Avintes no século XVII A identificação das mulheres avintenses que, há mais de 300 anos, se tornaram amas dos enjeitados do Porto foi feita a partir da documentação existente no Arquivo Histórico Municipal do Porto. Esta consta de assentos dos pagamentos feitos às amas, pelo escrivão da Câmara do Porto, tendo sido identificados cerca de 500 pagamentos devidos pela criação de enjeitados. Existiam dois tipos de amas: as amas-de-leite e as amas de criação. A ama-de-leite amamentava as crianças recém-nascidas e, obviamente, era uma mulher que tinha dado à luz há pouco tempo e partilhava o leite com o seu filho e com o enjeitado ou enjeitados. Podia também tratar-se de uma mãe que tinha perdido o seu filho, ou, em alguns casos, ela própria, sem grandes recursos, abandonou o seu filho na via pública na esperança de ser paga para o amamentar. Estas amas eram pagas ao dia, à razão de 20 reis por dia. Os assentos consultados revelam, regra geral, pagamentos muito fraccionados, por períodos muito curtos, o que denota que a mortalidade, nos primeiros anos de vida, era elevadíssima. As amas de criação tinham a seu cargo a criação de um enjeitado, a partir do desmame que em condições ideais ocorria pelos dois anos de idade, e o processo de criação durava até aos 7 anos.

A documentação encontrada refere-se a dois períodos de tempo, ao longo do século XVII. O primeiro decorre entre 1626 e 1631 e diz respeito a 17 amas de Avintes; o segundo decorre de 1670 a 1689 e diz respeito a 55 amas de Avintes. Adiante trataremos, em pormenor, de um e outro caso.

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Que razões terão levado estas mulheres a assumir, entre portas, a criação dos enjeitados? Qual a razão de as autoridades lhe terem confiado essas tarefas? Avintes, no século XVII é, essencialmente, uma freguesia cuja população se dedicava em grande parte à agricultura, à pesca e à moagem de cereais. Contudo, há muito que existe um contacto estreito com a cidade do Porto com recurso aos barcos que sulcavam o rio Douro. Para uma população rural, habituada a criar muitos filhos, alimentar um ou mais enjeitados não era problema. Era uma boa maneira de aumentar o rendimento familiar com dinheiro vivo que lhe permitia comprar na grande cidade, aquilo que a terra não produzia; por outro lado poderia ainda usar a mão-de-obra do enjeitado para os trabalhos agrícolas seguindo a velha máxima “Trabalho do menino é pouco, quem não aproveita é louco”. Em certas situações a vinda de um enjeitado supria a perda de um filho recentemente falecido. É também certo que as autoridades municipais davam preferência, sempre que havia oferta, à entrega de enjeitados para ser criados nas freguesias rurais. Por um lado a cidade, ou o meio urbano, estava sujeito a vários focos de doenças pelo que não fazia sentido uma grande concentração de crianças no estado de debilidade física que a maioria dos enjeitados apresentava. Por outro lado os ares do campo, e o acesso a uma alimentação mais equilibrada propiciava melhor saúde às pessoas que neles habitavam e nesse caso seria mais favorável aos enjeitados.

Como se processava a adopção destes enjeitados? Estas mulheres mais não tinham que dirigir-se ao solicitador dos enjeitados da Câmara do Porto para receber e levar consigo um ou mais enjeitados mediante a aceitação da oferta financeira correspondente. Havia fiscalização sobre as amas para evitar abusos e havia um certo número de exigências sobretudo em relação às amas-de-leite, as quais enquanto amamentavam estavam interditadas de qualquer relação mais íntima com os seus maridos por se acreditar que isso seria prejudicial para a qualidade do leite e, por outro lado, para evitar qualquer hipótese de nova gravidez durante o período da amamentação. A amamentação durava até aos dois anos, quando era possível, sendo depois o enjeitado entregue aos cuidados da ama de criação com quem ficava até à idade de sete anos. Findo esse período as crianças que escapavam (e eram muito poucas) eram de novo entregues ao solicitador dos enjeitados que, sob a alçada do Juiz dos Órfãos, lhes arranjava tutores que as encaminhavam para o mundo do trabalho, com soldada.

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3. a) As amas de Avintes no período de 1626 a 1631 Neste período foram recenseadas 17 amas a quem foram distribuídos 30 enjeitados, sendo 11 meninas e 19 meninos. Metade dessas crianças chegaram a Avintes recém-nascidas já que as amas foram pagas pela aleitação e criação. A maioria das amas, ao contrário do que se vai verificar perto do final do século, só tem em casa uma criança, havendo um ou outro caso de quem tem duas ou três. Alguns dos assentos fazem referência aos locais onde as crianças foram abandonadas, como sejam as igrejas da Vitória, de S. Francisco, de Santa Clara, de S. Domingos, S. João Novo e capela da Batalha. Curioso é o facto de, por vezes, o enjeitado tomar o nome homónimo do orago da igreja onde foi exposto (exemplos, Clara, Domingos, Francisco).

3. b) As amas de Avintes no período de 1670 a 1689 Neste período, de cerca de duas décadas, correspondente ao reinado de D. Pedro II, foram recenseadas 55 amas de Avintes a quem foram distribuídos 212 enjeitados, em representação proporcional por sexo. A maior parte das amas são amas de criação, devendo algumas delas ter ultrapassado a meia-idade já que há algumas viúvas e uma com a alcunha de “Idosa”. De algumas delas registámos o correspondente registo paroquial de óbito que, infelizmente, não regista a idade, mas pela lei natural deverá tratar-se de mulheres de idade. Cerca de 2/3 das amas criaram um só enjeitado e se em algumas situações se trata de amas que aceitaram uma criança que faleceu pouco depois e não repetiram a experiência, na grande maioria estes enjeitados tiveram melhor qualidade de vida completando alguns deles o ciclo dos 7 anos de criação. Há um caso paradigmático de uma ama, de nome Águeda Ferreira, que começou inicialmente por ser ama de aleitação e acabou por se tornar, ao longo de 11 anos, ama de criação de cerca de 94 enjeitados. Curioso é o facto de a aleitação da maior parte dessas crianças ser feita por dezenas de amas, de outros lugares, de Valbom à Feira e a Ovar, passando também por amas da cidade do Porto. Muito provavelmente

Águeda

Ferreira

era

uma

verdadeira

profissional

que

“subcontratava” com amas-de-leite de outros destinos e depois do desmame assumia a criação dos enjeitados. Em determinada fase chegou mesmo a vencer um ordenado ou propina da Câmara do Porto. Porém, entre essas dezenas de enjeitados aparecem vários nomes iguais em anos algo distantes, ou uma enorme variedade de nomes, por pouco tempo, o que pode significar que muitos desses enjeitados viveram pouco, o que é mais provável, ou alguns deles foram entregues a outras amas.

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São também frequentes os casos de amas, de média dimensão, que criaram entre cinco e catorze enjeitados. Em relação a algumas amas conseguimos apurar a sua morada sendo dez de Campos, três de Quintã ou Quinta, duas de Febros, duas de Outeiro, e uma de cada um dos lugares de Ponte, Moinhos, Espinhaço, Areias e Montes. Em relação a 2/3 delas não é referido o local. A título de curiosidade registamos as alcunhas por que eram conhecidas algumas delas: Amarela, Amarela, Baloa, Busca, Búzia, Búzia, Cachana, Camona, Galega, Idosa, Mariquita, Mariquitas, Moleira, Morena, Pega. Refira-se que a assistência pública prestada pelas mulheres de Avintes, no âmbito da criação destes enjeitados foi responsável pela entrada em Avintes de razoáveis importâncias em dinheiro que, por certo, animaram a economia local, bem assim teve implicações temporárias na demografia local, embora à falta de fontes, não possamos aqui dar conta da quantidade de enjeitados que por aqui organizaram as suas vidas.

3. c) Um exposto de Avintes que se libertou “da lei da morte” É por demais conhecido, em Avintes, o cruzeiro ou “ermida” do Senhor do Padrão, sito junto ao Rio Febros, a curta distância do lugar da Mata que pertence à freguesia de Vilar de Andorinho.

Avintes – cruzeiro/ermida do Senhor do Padrão (foto do autor, Maio de 2014)

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Este cruzeiro terá sido construído por Ventura da Costa, como se pode ver na inscrição do mesmo, do seguinte teor: ANNO 1709 MANDOV FAZER ESTE PADRAM VENTVRA DA COSTA POR SVA DEVOSAM P.R. PELAS ALMAS I PADRE NOSSO I AVE MARIA As gerações mais velhas de avintenses conhecerão, por certo, a designação do “Poço do Ventura” que se refere a um sítio existente no rio Febros. Provavelmente tratar-se-á do mesmo Ventura que mandou construir o cruzeiro do Senhor do Padrão. Quem era então Ventura da Costa? De acordo com Osório Gondim7 “Este Ventura da Costa era enjeitado”. Tal facto pode ser por nós comprovado pela investigação do registo paroquial de casamento e óbito cujas datas são também apontadas por Osório Gondim8.

Registo paroquial de casamento de Ventura da Costa

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GONDIM, Inocêncio Osório Lopes – Avintes e Suas Antiguidades, Avintes, Junta de Freguesia de Avintes, 1990, p. 91. 8 A primeira visita que efectuámos ao cruzeiro do Senhor do Padrão e suas inscrições ocorreu na visita a “Sítios com História”, patrocinada pela Abientes, destinada a visitar os sítios da escolas de Avintes, que teve lugar em Maio de 2014. Posteriormente procurámos saber mais sobre este cruzeiro e na consulta da obra de Osório Gondim encontrámos a referência ao Ventura da Costa que foi enjeitado, criado em Vilar de Andorinho, provavelmente ali perto na margem do Rio Febros. Tal facto ocorreu depois da apresentação deste estudo no 24º Fórum Avintense, que decorreu em Março do corrente ano. Daí resolvermos investigar mais sobre Ventura da Costa e considerarmos que fazia todo o sentido incluir no presente estudo a história de um exposto de Avintes que deixou marcas da sua presença para a posteridade.

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De acordo com o registo paroquial de casamento Ventura da Costa foi criado em Vilar de Andorinho, na casa de Pedro Gonçalves. Casou, na igreja de Avintes, em 11 de Outubro de 1711, com Isabel Antónia, do lugar da Pousada, filha legítima de Manuel António e de sua mulher Isabel Antónia. Faleceu Ventura da Costa, que era morador no lugar do Rio Febros, em cinco de Dezembro de 1725, “com o sacramento da confissão e comunhão e não recebeu a extrema unção porque morreu sem se esperar que assim o disse o mestre que lhe assistia que ainda não morria e se achou morto quando vieram chamar”. De acordo com o mesmo documento Ventura da Costa “Fez testamento em que deixou uma missa a cada imagem do Senhor desta Igreja e ao Senhor Jesus da Boa Morte diz que é altar privilegiado”.

Registo paroquial de óbito (parte) de Ventura da Costa .

E desta forma aqui damos conhecimento da história de vida de Ventura da Costa, um enjeitado que foi confiado pela Câmara do Porto a uma ama de Vilar de Andorinho, no período cronológico que faz parte do nosso estudo, e que por aqui se fixou, casando com uma mulher de Avintes e deixando para a posteridade o seu nome ligado à fundação ao cruzeiro do Senhor do Padrão, de Avintes. 3. d) Uma ama de leite, de Avintes, caída nas malhas da Inquisição? Uma das amas aqui tratadas (com o nº 38, referida no anexo II) foi Maria Gonçalves, de alcunha a Camona. Foi ama de criação, paga pelos cofres da Câmara do Porto, no período de 1678 a 1683, tendo recebido a importância de 10 760 réis (cf. Anexo III) referentes à criação da enjeitada Domingas (em 1678) e Isabel (de 1680 a 1683).

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Julgamos tratar-se da mesma pessoa que em 3 de Julho de 1709, tendo já mais de 50 anos, foi presa nos Cárceres da Inquisição de Coimbra, sob a acusação de superstição e feitiçaria. Trata-se de Maria Gonçalves, filha de João Fernandes, moleiro e de Maria Francisca, residente no lugar de Febros, em Avintes. Era viúva de Domingos Fernandes, moleiro e canastreiro. Maria Gonçalves, a Camona, de alcunha “A Casa Aberta”, morava na cidade do Porto, na Rua Escura, em casa de sua filha e genro de nome Teixeira. Foi presa em 3 de Abril de 1709 sob a acusação “de a irem consultar muitas pessoas sobre vários achaques e logo pede as mesmas retalhos dos vestidos de que usam e depois os benze e diz que o mal que padecem é procedido de espíritos e que certas almas necessitam de missas para estarem à volta de Deus e as dá a conhecer no assinalar das vozes e na parecença que tiveram e declara algumas promessas e sufrágios que deixaram de se cumprir e muitas circunstâncias por onde as pessoas que a consultam vem saindo no conhecimento de tais almas e diz mais que estas lhe falam no corpo”9. Maria Gonçalves, a Camona, faleceu nos cárceres da Inquisição em 11.03.1710. Será que a ama de leite Maria Gonçalves, no “Outono” da sua vida, já viúva, resolveu dedicar-se às artes da feitiçaria? São meras suposições que aqui apresentamos a merecer uma investigação já encetada.

Conclusão Pretendemos aqui dar a conhecer uma valência praticamente desconhecida da mulher de Avintes ao longo da História. É por demais conhecida a figura da mulher de Avintes, nas profissões de padeira, barqueira ou carniceira, a qual foi tão bem retratada pelos nossos artistas e pelos nossos escritores. Fica, aqui, um novo registo da mulher de Avintes, no seu papel de criadeira dos enjeitados, estudo a merecer, por certo, um maior aprofundamento, por ser um caso único, pela quantidade de casos, nas freguesias de Vila Nova de Gaia. Aqui

demos

a

conhecer

um

exposto

deste

período,

bem

assim,

muito

provavelmente, a suposição de uma ama de leite de Avintes, aqui estudada, cuja pessoa parece coincidir com uma das vítimas da Inquisição, nascida em Avintes. São duas personagens reais que ganharam um lugar nos anais da história local avintense. 9

PT/TT/TSO-IC/025/08625 – Processo de Maria Gonçalves - Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc. 8625

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Bibliografia e fontes: . ADP (Arquivo Distrital do Porto) – Registos Paroquiais de S. Pedro de Avintes (casamento, óbito)- várias consultas. . AHMP (Arquivo Histórico Municipal do Porto) – Série Despesas com enjeitados (Assentos de pagamentos feitos pelo tesoureiro da Câmara – consultado em: http://gisaweb.cmporto.pt, de 1 a 31 de Janeiro de 2014 e 1 a 18.08.2014. . ANTT - PT/TT/TSO-IC/025/08625 – Processo de Maria Gonçalves - Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Coimbra, proc. 8625. . Bíblia Sagrada, Lisboa, Difusora Bíblica, 15ª edição, 1991, p. 1445). . BRANCO, Camilo Castelo – Maria Moisés, in Novelas do Minho, Lisboa, Parceria António Maria Pereira, 4ª edição, 1923. . COSTA, Barbosa; VAZ, José; COSTA, Paulo – De Abientes a Avintes, Avintes, Audientis, 2009, pp. 582-593. . FONTE, Teodoro Afonso da – No limiar da honra e da pobreza. A infância desvalida e abandonada no Alto Minho (1698-1924), Braga, Universidade do Minho/Instituto de Ciências Sociais, 2004 (Dissertação de doutoramento). . GONDIM, Inocêncio Osório Lopes – Avintes e Suas Antiguidades, Avintes, Junta de Freguesia de Avintes, 1990, p. 91.

. GUEDES, Joana Margarida Carvalho – Cofre dos Enjeitados do Município do Porto (16231689), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2013. . LOPES; Maria Antónia Lopes – As mulheres e as famílias na Assistência aos Expostos. Região de Coimbra (Portugal), 1708-1839, in Caderno Espaço Feminino - Uberlândia-MG - v. 26, n. 2 - Jul/Dez. 2013, pp. 290-322. . MACHADO, Maria de Fátima – Os órfãos e os enjeitados da cidade e do termo do Porto (1500-1580), Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto/Departamento de História e de Estudos Políticos e Internacionais, 2010. (tese de doutoramento). . MOURA, Francisco António Marques de – Algumas considerações sobre a escolha das amas de leite, Porto, Tipografia de Manuel José Pereira, 1864.

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. NEVES, António Amaro – Filhos das ervas. A ilegitimidade no norte de Guimarães (Séculos XVI-XVIII), Braga, NEPS – Universidade do Minho, 2001 (dissertação de mestrado). . SÁ, Isabel Cristina dos Guimarães Sanches e - A assistência aos expostos no Porto. Aspectos institucionais (1519-1838). Porto [s. n] 1987. Dissertação de Mestrado em História Moderna e Contemporânea, apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, p.69. . SÁ, Isabel Guimarães – Abandono de crianças, Infanticídio e Aborto na Sociedade Portuguesa Tradicional através das Fontes Jurídicas, in Penélope – Fazer e Desfazer a História, nº 8, 1992, pp. 75-89. . SÁ, Isabel Guimarães – Trabalho de mulheres e economia familiar: o caso das amas de expostos da Roda do Porto no século XVIII, Boletin de la Associación

de Demografia

Histórica, XII, 2/3, 1994, pp. 233-250.

. Por opção do autor o texto não respeitou o Acordo Ortográfico vigente. . Versão reformulada da comunicação apresentada ao XXIV Fórum Avintense (Fevº 2014), sob o título de “As amas de Avintes e a criação dos enjeitados do Porto no séc. XVII”,

publicada após reformulação em “Cadernos de História” – Abientes,

2014. O autor: . Mestre em História Contemporânea pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto. .Técnico Superior da Administração Local. . Investigador na área da História Contemporânea, da Biografia Histórica, da História Local e da Genealogia.

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ANEXOS ANEXO 1 Nº ordem 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17

AMAS DE LEITE E CRIAÇÃO DE AVINTES DE 1616 A 1631 Nome da Ama (Alcunha e Datas extremas Nº de enjeitados localidade) por ama Ana Gonçalves 1626 1 Antónia Gonçalves 1626 2 Catarina Gonçalves 1626-1631 2 Francisca Antónia 1631 1 Francisca Gonçalves, de Febros 1626 1 Guiomar Gonçalves 1626-1631 4 Isabel Dias 1626-1631 2 Isabel Francisca 1626 1 Isabel Gonçalves 1631 1 Isabel Tomé 1626 1 Maria Antónia 1631 2 Maria Dias 1626 1 Maria Fernandes 1626-1631 3 Maria Francisca 1626-1631 3 Maria Gonçalves 1626 2 Maria Manuel 1631 1 Verónica Gonçalves 1626-1631 2

Período: 1626-1631 Total de amas: 17 Total de enjeitados: 30 ANEXO 2 AMAS DE LEITE E CRIAÇÃO DE AVINTES DE 1670 A 1689 Nº ordem 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23

Nome da Ama (Alcunha e localidade) Águeda Ferreira Águeda Gonçalves Ana Dias, da Rua Nova Andreia Francisca Antónia Francisca Antónia de Oliveira, a Búzia Benta Rodrigues Catarina Francisca Catarina Gonçalves Conceição Gonçalves, de Outeiro Domingas Fernandes, de Campos Isabel, de Campos Isabel Antónia Isabel Dias Isabel Francisca Isabel Francisca, a Pega Isabel Gomes, de Campos Isabel Gonçalves, de Campos Isabel Gonçalves, a Baloa Isabel Gonçalves, a Busca, de Febros Isabel Gonçalves, a Búzia Isabel Pais Isabel Pereira, de Campos

Datas extremas 1670- 1680 1673-1677 1672-1679 1672-1688 1673-1674 1681 1674-1678 1674-1677 1671-1673 1685 1675-1682 1672-1673 1670-1688 1670-1689 1674 1681 1673-1675 1687-1689 1678 1675-1685

Nº de enjeitados por ama 94 1 (5 anos) 1 (7 anos) 14 1 (1 ano) 1 (1 ano) 2 1 (3 anos) 2 1 (1 ano) 1 (7 anos) 1 (1 ano) 2 3 4 1 (1 ano) 1 (3 anos) 3 1 (1 ano) 4

1677-1681 1680-1686 1685

1 (5 anos) 3 1 (1 ano)

16

24 25 26 27 28 29 30 31 32 33 34 35 36 37 38 39 40 41 42 43 44 45 46 47 48 49 50 51 52 53 54 55

Luísa da Rocha Madalena Dias Maria Álvares, de Quintã Maria Álvares, a Morena Maria André, de Moinhos Maria Colaça Maria Dias Maria Dias, a Amarela, de Quintã Maria Dias, a Amarela, de Montes Maria Dias, a Cachana Maria Dias, a Idosa, mulher de Manuel Gonçalves, de Campos Maria Domingues, de Campos Maria Duarte Maria Fernandes, de Campos Maria Fernandes, a Mariquitas Maria Ferreira Maria Francisca Maria Gonçalves, Maria Gonçalves, a Camona Maria Gonçalves, de Campos Maria Jorge, de Espinhaço Maria Lopes, a Galega Maria Lopes, viúva, de Febros Maria Lopes, de Quintã Maria Manuel, de Areias Maria Manuel, de Campos Maria Martins, de Campos Maria Nunes, de Campos Mariquita Natália Gonçalves, a Moleira Polónia Polónia Gonçalves, de Outeiro

1678-1684 1670-1674 1676-1682 1678-1681 1681-1685 1670-1681 1672-1685 1680-1683 1679-1684 1680 1684-1685

1 1 1 1 1 6 2 2 1 1 3

(6 (5 (7 (3 (5

anos) anos) anos) anos) anos)

1687-1688 1671-1681 1672-1688 1679-1680 1672 1670-1685 1670-1684 1678-1683 1672-1689 1678-1685 1682-1683 1677-1684 1682-1688 1677-1688 1688 1670-1675 1687 1675 1673-1679 1670-1677 1674-1688

1 3 5 1 1 6 2 2 5 1 2 3 2 2 1 1 1 1 1 1 4

(2 anos)

(6 anos) (1 ano)

(3 anos) (1 ano)

(7 anos)

(1 ano) (6 anos)

(7 anos) (7 anos)

Período: 1670 a 1689 Total de amas: 55 Total de enjeitados: 212 Média de enjeitados/ano: 11 ANEXO 3 Assentos de pagamento feitos à ama Maria Gonçalves, a Camona, de Avintes, pela criação de Domingas e Isabel Data 1678.03.26

Importância 1500 réis

1680.03.30

1760 réis

1681.04.02

1500 réis

1682.04.12

3000 réis

1683.03.10

3000 réis

Cota no AHMP A-PUB/3504 - f. 183 A-PUB/3504 - f. 281 v. A-PUB/3504 - f. 330 v A-PUB/3505 - f. 7 A-PUB/3505 - f. 56

Descrição Pagamento devido pela criação de Domingas, enjeitada Pagamento devido pela criação de Isabel, enjeitada Pagamento devido pela criação de Isabel, enjeitada Pagamento devido pela criação de Isabel, enjeitada Pagamento devido pela criação de Isabel, enjeitada

Funcionários pagadores: . tesoureiro da Câmara João Pinheiro da Silva (1678-1679) . tesoureiro Francisco da Cunha Ribeiro (1680-1681) . escrivão Lopo de Andrade Freire (1681) . tesoureiro Pedro de Freitas Vieira (1682-1683)

17

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