Mulheres de revista: representação de identidade de gênero e sexualidade na edição brasileira da revista Glamour

June 15, 2017 | Autor: Jéssica Sbardelotto | Categoria: Gênero E Sexualidade, Identidade De Gênero, Jornalismo Impresso, Imprensa Feminina
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

JÉSSICA ENDERLE SBARDELOTTO

MULHERES DE REVISTA: REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA EDIÇÃO BRASILEIRA DA REVISTA GLAMOUR

Porto Alegre 2015

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JÉSSICA ENDERLE SBARDELOTTO

MULHERES DE REVISTA: REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA EDIÇÃO BRASILEIRA DA REVISTA GLAMOUR

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Orientador: Profa. Dra. Ana Carolina Escosteguy

Porto Alegre 2015

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JÉSSICA ENDERLE SBARDELOTTO

MULHERES DE REVISTA: REPRESENTAÇÃO DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA EDIÇÃO BRASILEIRA DA REVISTA GLAMOUR

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Jornalismo pela Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Aprovada em ____ de _____________ de _______. BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________ Profa. Dra. Ana Carolina Damboriarena Escosteguy ___________________________________________ Profa. Dra. Ivone Maria Cassol ___________________________________________ Dra. Lírian Sifuentes dos Santos

Porto Alegre 2015

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AGRADECIMENTOS

À minha família, em especial minha mãe, Celoi, pelo apoio de sempre e por acreditar que tudo daria certo durante esses quatro anos. Obrigada por me acalmar sempre que foi necessário, me ouvir e acreditar em mim, mesmo quando eu não acreditava. À Ana Carolina, minha orientadora, por dividir um pouco do seu conhecimento comigo, pelas ideias, dicas e por me mostrar novas possibilidades. Aos meus amigos e ao Lucas, meu namorado, por estarem comigo durante todo esse tempo, acompanharem cada conquista e dificuldade, e por me apoiarem sempre que as coisas ficavam difíceis. À Famecos por me fazer crescer enquanto indivíduo e profissional durante toda a faculdade, pelas oportunidades e pelos professores incríveis que fizeram toda a diferença para que este se tornasse um período de construção e aprendizado.

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RESUMO

Esta monografia tem o intuito de analisar a forma como as identidades de gênero e sexualidade são representadas pela edição brasileira da revista Glamour, publicação voltada ao público feminino. A escolha do título se deve à importância no mercado editorial do Brasil, onde foi lançada a apenas três anos e já desponta como a que mais cresce em vendas. Tendo em vista sua relevância e a necessidade de saber como tais assuntos são tratados atualmente, optou-se por observar 12 edições da revista, no período entre outubro de 2014 e setembro de 2015. Foram delimitados como foco, matérias que abordam identidade de gênero, sexualidade e relacionamentos. A metodologia utilizada engloba pesquisa bibliográfica e documental e, posteriormente, análise de conteúdo, sob a perspectiva de Laurence Bardin. A pesquisa inicia pela contextualização histórica dos conceitos de gênero e sexualidade, para compreender sua trajetória. Posteriormente, a realização de uma revisão bibliográfica permite conhecer pesquisas já feitas que se aproximem do objetivo deste estudo, além de descobrir como o campo acadêmico trata de gênero e sexualidade. Com a análise de conteúdo foi possível perceber que o material produzido pelo jornalismo feminino, especificamente a revista Glamour, colabora para a manutenção de padrões impostos socialmente de gênero e sexualidade, limitando a representatividade de comportamentos desviantes.

Palavras-chave: Identidade. Gênero. Sexualidade. Imprensa feminina.

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ABSTRACT

This paper aims to examine how gender and sexuality identities are represented by the brazilian edition of Glamour magazine, aimed at women. The choice of title is due to the importance in the publishing market in Brazil, which was launched just three years and has emerged as the fastest growing in sales. Given its importance and the need to know how these issues are currently treated, it was decided to observe twelve issues of the magazine in the period between October 2014 and September 2015 were delimited focus, materials that address gender identity, sexuality and relationships. The methodology includes bibliographical and documentary research, and later, content analysis, from the perspective of Laurence Bardin. The research begins with the historical context of gender and sexuality concepts, to understand its history. Later, conducting a literature review allows to know research has made that approach the scope of this study, as well as find out how the academic field comes to gender and sexuality. With the content analysis it was revealed that the material produced by the female journalism, specifically Glamour magazine, contributes to the maintenance of standards imposed socially gender and sexuality, limiting the representation of deviant behavior.

Keywords: Identity. Gender. Sexuality. Women's press.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................8

2 IDENTIDADE: GÊNERO E SEXUALIDADE ....................................................11 2.1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DE GÊNERO ..................................................11 2.2 CONSTRUÇÃO SOCIAL DE GÊNERO ........................................................13 2.3 A TEORIA QUEER E OS COMPORTAMENTOS DESVIANTES ..................17 2.4 IDENTIDADE TRANS....................................................................................25

3 MÍDIA E CONSTRUÇÃO SOCIAL ...................................................................27 3.1 SEXUALIDADE E GÊNERO NA PRODUÇÃO MIDIÁTICA ...........................28 3.2 A LINGUAGEM DO JORNALISMO NA ABORDAGEM DE GÊNERO E SEXUALIDADE ...................................................................................................37

4 ANÁLISE DE CONTEÚDO DA REVISTA GLAMOUR BRASIL ......................47 4.1 CORPUS DA ANÁLISE .................................................................................47 4.2 JORNALISMO DE REVISTA NO BRASIL .....................................................49 4.3 REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA EDIÇÃO BRASILEIRA DA REVISTA GLAMOUR ...............................................52

5 CONCLUSÃO ..................................................................................................67

REFERÊNCIAS ................................................................................................71

ANEXO A - A vingança do clitóris (02/2015) ....................................................75 ANEXO B - Trans fever (07/2015) ...................................................................78 ANEXO C - Lésbica depois dos 30 (01/20015) ................................................79

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ANEXO D – Amor & rock ‘n’ roll (06/2015) .......................................................80 ANEXO E – As regras do amor em 2015 (06/2015) .........................................81

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1 INTRODUÇÃO

A presente monografia visa descobrir como a mídia impressa voltada ao público feminino representa identidades de gênero e orientações sexuais das mulheres, discutindo se há abordagens referentes àquelas que desviam da normatividade vigente. A escolha do tema se deve à importância da imprensa na construção de significados em diferentes campos sociais, bem como a compreensão sobre a necessidade de que ela seja espaço de aceitação da diversidade. A definição do segmento voltado às mulheres baseia-se no histórico de padronização estético e comportamental, como pode ser visto no decorrer do primeiro capítulo. Desde seu surgimento, a imprensa voltada para o público feminino mostra determinados perfis aprovados socialmente, de mulheres que viviam para cuidar de casa e agradar ao marido, àquelas com corpos perfeitos, em busca da disseminação de um padrão ideal. Tais estereótipos não são apenas relativos a definições estéticas e valores, mas passam também por questões que envolvem raça, classe, gênero e orientação sexual. As primeiras revistas voltadas ao público feminino foram criadas no século XIX, por homens. À época, a alfabetização das mulheres ainda era algo incipiente e o conteúdo trazia assuntos do cotidiano e da vida doméstica, permanecendo assim por um longo tempo até chegar à abordagem de temas de maior profundidade, considerados tabus na época, como a vida íntima, inserção no mercado de trabalho e na política. A quebra de estigmas relativos à orientação sexual e questões estéticas ganhou força apenas recentemente. A ampliação da discussão relativa ao feminismo, no final do século XX, fez com que o questionamento quanto a padrões de beleza e preconceitos contra homossexuais, bissexuais e transexuais aparecesse nos debates e na mídia, mesmo que de forma ainda tímida. Todavia, ainda hoje revistas femininas exibem em suas páginas modelos e textos feitos para mulheres inseridas em um padrão que não contempla parte desse público, limitando-se a mulheres brancas, de classes abastadas, cisgênero e heterossexuais como também pode-se constatar ao longo desta pesquisa. Assim, este estudo analisa de que forma identidades de gênero e sexualidade são representadas no conteúdo vendido pela edição brasileira da revista Glamour,

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publicada pela editora Globo. Lançada há três anos no Brasil, ela é a que mais cresce no País em volume de circulação paga. A investigação foi realizada mediante pesquisa bibliográfica e documental, além de análise de conteúdo, para averiguar quais são as diferentes identidades de gênero e sexualidade contempladas nas temáticas referentes à sexualidade, relacionamentos afetivos e identidade de gênero. Desse modo, pretende-se detectar como esses conteúdos são tratados, considerando o espaço dedicado, as pessoas mostradas e a frequência com que é feita a abordagem de cada assunto. O estudo tem como base as seguintes questões norteadoras: a maneira que a revista trata temáticas voltadas às diferentes identidades de gênero e sexualidade, com que frequência tais assuntos aparecem nos textos publicados e de que forma o conteúdo produzido pode contribuir para a manutenção de um padrão normativo. A análise contempla 12 edições da revista, distribuída mensalmente, que abrange o período de um ano. Foi selecionado para compor o corpus o material jornalístico, excluindo as colunas de opinião e os editoriais. A escolha do tema se deve à necessidade de debater a inclusão do público LGBT na mídia, com foco no jornalismo feminino impresso. A bibliografia consultada no decorrer da pesquisa indica a presença limitada de diferentes orientações sexuais, como lésbicas e bissexuais, bem como de personagens que não se identificam como cisgênero. Ainda que o segmento se proponha a falar sobre e para mulheres, ele exibe apenas uma parcela limitada desse público. Considerando o histórico do jornalismo feminino brasileiro, percebe-se a evolução no que tange a liberdade e direitos do gênero, mas ainda é constatada a presença de padrões normativos que limitam e excluem quem não se encaixa neles. Em termos de estrutura, o primeiro capítulo trará conceitos fundamentais para embasar a análise de conteúdo, tratando historicamente da questão de identidade de gênero, do surgimento à contemporaneidade. Para isso, será importante a obra de Joan Scott (1990), que contraria a visão polarizada relacionada ao sexo, usada para definir as diferenças entre homem e mulher. O trabalho realizado por Nicholson (1999) também será relevante para observar a busca pelo rompimento da divisão entre homens e mulheres com base em características biológicas, o que é parte primordial na teoria de gênero. Mediante tal recuperação teórica, Michel Foucault (2015), contribui para compreender como a relação entre gênero e poder, no

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contexto social, pode influenciar a maneira como tais questões são tratadas. Por fim, Louro (2001) explica a teoria queer, que reforça a necessidade de reconhecer e representar as diversas identidades de gênero e sexualidade, diretamente vinculada à perspectiva foucaultiana. No segundo capítulo, Berger e Tavares (2014) servem como base para compreender o papel dos jornalistas na construção da notícia a partir de suas perspectivas individuais, interferindo, assim, na maneira como transmitem as informações, ao mesmo tempo em que Freire Filho, Herschmann e Paiva (2004) abordam como estereótipos são reforçados pelo jornalismo. Nesse capítulo faz-se ainda uma revisão bibliográfica centrada em pesquisas já realizadas sobre as temáticas delimitadas e assuntos relacionados a elas, destacando-se a perspectiva da produção e da linguagem. A última parte deste relatório traz o resultado da análise de conteúdo realizada de acordo com as premissas metodológicas de Bardin (2009), após contextualizar a historia do jornalismo feminino brasileiro com base na obra de Scalzo (2011) e Buitoni (2009), que tratam do jornalismo de revista e da imprensa feminina, respectivamente. Adianta-se que foi constatado o predomínio de mulheres heterossexuais nas matérias da revista, seja em pautas sobre sexualidade, relacionamentos ou constituição familiar, vinculadas frequentemente a parceiros masculinos - maridos e namorados. Da mesma maneira, a presença de identidades não-cisgênero se resume a casos específicos sobre transexuais, com espaço restrito e desenvolvimento superficial.

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2 IDENTIDADE: GÊNERO E SEXUALIDADE

Este capítulo abordará o surgimento do conceito de identidade de gênero e sexualidade. As questões de gênero vêm diretamente vinculadas ao movimento feminista e à busca pelo rompimento de padrões pré-estabelecidos. A militância é antiga e ainda está longe de atingir plenamente seus objetivos, todavia, avaliando o contexto na qual surgiu, vem ampliando gradativamente sua presença e suas conquistas, ganhando cada vez mais visibilidade. Nas próximas páginas, os teóricos que participam do processo construtivo - e desconstrutivo – tratam de todos os pormenores relativos ao tema e contexto no qual estão inseridos, mostrando como a sociedade e a cultura são fundamentais para o desenvolvimento do que atualmente compreende-se por gênero e referente à identidade sexual. Será abordada ainda a teoria queer, que abrange os comportamentos considerados socialmente como desviantes e a maneira como o binarismo vigente exclui tais indivíduos.

2.1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO GÊNERO

Os questionamentos sobre o que se costumava tratar por sexo e o conceito de gênero surgiram vinculados diretamente ao movimento feminista ocidental, com início no século XIX. A primeira onda feminista teve como principal reivindicação o sufrágio1, além de objetivos “ligados ao interesse das mulheres brancas de classe média” (LOURO, 2003, p. 15), como o acesso ao ensino e a profissões até então de exclusividade masculina. O termo “gênero” surge junto à segunda onda feminista, nos anos 1960, quando o movimento “além das preocupações sociais e políticas, irá se voltar para as construções propriamente teóricas” (LOURO, 2003, p. 15). Nesta fase começa a

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O sufrágio, movimento voltado a expandir o direito do voto às mulheres, marcou o que denominou-se primeira onda do feminismo, no início do século XX. A segunda onda, entre os anos 1960 e 1970, buscava combater as desigualdades referentes às mulheres – quando então foi cunhado o termo “gênero”. Nesta fase, especificamente o ano de 1968 passou a ser “um marco de rebeldia e contestação” quando militantes de países da Europa e América – como França e Estados Unidos – passam expressar sua inconformidade em relação “aos tradicionais arranjos sociais e políticos, às grandes teorias universais e ao vazio formalismo acadêmico” (LOURO, 2003). Por fim, a terceira etapa do movimento teve início na década seguinte trazendo, em sua maioria, uma interpretação pós-estruturalista ao gênero e à sexualidade.

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haver uma oposição à argumentação biológica na definição de “sexo”. Segundo Joan Scott (1990), “o gênero sublinhava também o aspecto relacional das definições normativas das feminilidades” (SCOTT, 1990, p. 3). Para Heleieth Saffioti2 (1999), as primeiras aparições do conceito de “gênero” haviam surgido anos antes, com o livro O Segundo Sexo, de Simone Beauvoir, lançado em 1940. A mais famosa frase de O Segundo Sexo é, inegavelmente, “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” [...] Creio que aí reside a manifestação primeira do conceito de gênero. Ou seja, é preciso aprender a ser mulher, uma vez que o feminino não é dado pela biologia, ou sociedade. Evidentemente, Beauvoir não possuía o arsenal de conceitos e teorias com que contamos na atualidade, mas se dirigiu certeiramente ao ponto essencial. (SAFFIOTI, 1999, p. 160)

O livro de Beauvoir, se não era o primeiro com pretensões científicas, mas era o primeiro e mais completo questionamento dos valores que subsidiavam a construção social do feminino (SAFFIOTI, 1999, p. 160). Nesse sentido, Louro (2003), aponta outras obras, como The feminine mystique, de Betty Friedman (1963) e Sexual politics, de Kate Millett (1969), tendo participação na construção de um novo panorama, com a inserção da temática no ambiente acadêmico. “Os estudos iniciais se constituem, muitas vezes, em descrições das condições de vida e de trabalho das mulheres em diferentes instâncias e espaços” (LOURO, 2003). O uso do termo gênero aparece entre as feministas americanas que visavam contrapor a polarização entre homens e mulheres. “A palavra indicava uma rejeição ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual”‘ (SCOTT, 1990)”. O gênero era um termo proposto por aquelas que defendiam que a pesquisa sobre as mulheres transformaria fundamentalmente os paradigmas no seio de cada disciplina. As pesquisadoras feministas assinalaram muito cedo que o estudo das mulheres acrescentaria não só novos temas como também iria propor uma reavaliação crítica das premissas e critérios do trabalho científico existente. (SCOTT, 1990, p. 3)

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A menção à socióloga Heleieth Saffioti é de grande relevância. Militante feminista, ela é considerada a pioneira a pesquisar questões voltadas aos estudos da mulher no Brasil, tendo publicado cerca de 80 artigos no País e nos Estados Unidos (OBSERVATÓRIO BRASIL DA IGUALDADE DE GÊNERO, 2010).

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A ebulição do feminismo e a negação frente ao determinismo sexual configuraram a motivação para uma revisão de conceitos teóricos voltados ao papel de homens e mulheres, tendo como base a nova definição de gênero, que será abordada de maneira mais ampla na próxima seção.

2.2 O CONCEITO SOCIAL DO GÊNERO

A

abordagem

de

gênero

diz

respeito

não

apenas

ao

indivíduo,

particularmente, mas a suas relações e o contexto no qual está inserido, sendo essas peças fundamentais para compreender sua construção (SCOTT, 1990). O aspecto cultural está presente, como destaca Roque de Barros Laraia (2003, p. 19). A espécie humana se diferencia anatômica e fisiologicamente através do dimorfismo sexual, mas é falso que as diferenças de comportamento existentes entre pessoas de sexos diferentes sejam determinadas biologicamente.

Da mesma forma, Teresa Lauretis (1994) atribui diretamente à cultura o que passou a denominar “sistema de gênero”, na qual a “representação de uma relação” de pertencimento a determinado grupo ou classe também faz parte da formação da identidade do indivíduo.

As concepções culturais de masculino e feminino como categorias complementares, mas que se excluem mutuamente, nas quais todos os seres humanos são classificados, formam, dentro de cada cultura, um sistema de gênero, um sistema simbólico ou um sistema de significações que relaciona o sexo a conteúdos culturais de acordo com valores e hierarquias sociais. (LAURETIS, 1994, p. 211)

Para Louro (2003), identidade sexual e de gênero estão conectadas uma à outra, mas a abordagem errônea sobre cada uma, por vezes, invertendo ou confundindo seus significados, acaba por dificultar a análise em torno de cada uma. “Sujeitos masculinos ou femininos podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais (e, ao mesmo tempo, eles também podem ser negros, brancos ou índios, ricos ou pobres, etc)” (LOURO, 2003, p. 26, 27). Ou seja, o sujeito, enquanto tendo sua orientação sexual (homossexual, bissexual ou heterossexual), ainda podem

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conter outras características, sejam elas físicas ou sociais, diretamente ligadas umas às outras. Assim como Louro, Linda Nicholson (1999) acredita ser fundamental analisar separadamente,

além

dos pontos

compartilhados

socialmente,

substituindo

“propostas sobre mulheres como tais, ou até sobre mulheres nas “sociedades patriarcais” por propostas sobre mulheres em contextos específicos” (NICHOLSON, 1999, p. 26)3. Scott (1990) também corrobora com o papel indissociável das interrelações para a compreensão do gênero, que é construído também na esfera econômica e política. Minha definição de gênero tem duas partes e várias sub-partes. Elas são ligadas entre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição baseia-se na conexão integral entre as duas proposições: o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma de significar as relações de poder. (SCOTT, 1990, p. 21)

Nicholson (1999) aponta que há pelo menos dois vieses em que o gênero é tratado. “De um lado, o gênero foi desenvolvido e é sempre usado em oposição a “sexo”, para descrever o que é socialmente construído, em oposição ao que é biologicamente dado” (NICHOLSON, 1999, p. 1). Nesta interpretação, o termo tem como finalidade distinguir-se do significado de “sexo”. De outro lado: “Gênero” tem sido cada vez mais usado como referência a qualquer construção social que tenha a ver com a distinção masculino/feminino. Incluindo as construções que separam corpos “femininos” de corpos “masculinos”. Esse último uso apareceu quando muitos perceberam que a sociedade forma não só a personalidade e o comportamento, mas também as maneiras como o corpo aparece. (NICHOLSON, 1999, p. 1).

Para Nicholson (1999), não é possível dissociar ambos os termos, pois um nasceu como complemento do outro4. Dessa forma, compreender como biologia, comportamento e personalidade interagem foi fundamental para que o movimento 3

Nicholson (1999) define como “fundacionalismo biológico” a abordagem de critérios comuns para associar um único significado ao que se compreende por “ser mulher”. Tal expressão pode ser exemplificada às tentativas de estudar as mulheres baseados em um intervalo histórico “facilitado pela ideia de que há algo em comum à categoria “mulher” em todos esses períodos: que todas compartilham, num determinado nível básico, alguns aspectos biológicos (NICHOLSON, 1999, p. 26). 4 Linda Nicholson (1999) faz uma analogia sobre o corpo, o qual, segundo ela, “pode ser descrito como uma espécie de noção “porta-casacos” da identidade: o corpo é visto como um tipo de cabide de pé, no qual são jogados diferentes artefatos culturais, especialmente relativos à personalidade e ao comportamento” (NICHOLSON, 1999,p. 4).

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feminista se voltasse às diferenças entre as mulheres, além de seus aspectos em comum. Como elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos, o gênero implica quatro elementos relacionados entre si: símbolos culturalmente disponíveis, que evocam representações múltiplas5; conceitos normativos – como doutrinas religiosas, científicas ou jurídicas - que visam conter a interpretação dos símbolos, a posição dominante, que passa a ser tratada como a única possível e, por fim, a identidade subjetiva 6. (SCOTT, 1990, p. 21). Corroborando Laraia (2003), as diversas representações e interpretações relativas às diferentes culturas são apontadas como um dos elementos que compõem tal construção, assim como a normatividade implícita em áreas como a religiosidade e a ciência. A temática de gênero, segundo Scott (1990), interfere diretamente nas relações de poder e nas desigualdades sociais, à medida que “as estruturas hierárquicas se baseiam em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino” (SCOTT, 1990, p. 26). A autora exemplifica tal hierarquia remetendo à Idade Média Islâmica, na qual o papel do homem já era predominante, enquanto a mulher era anulada do contexto social. O estudo do gênero também é uma maneira de compreender a organização – concreta e simbólica – da sociedade, segundo Amílcar Torrão Filho (2003). Porém, a maneira como são definidas as formas de pesquisa, das fontes consultadas à abordagem escolhida, precisam ser reavaliadas e, “nisso os estudos de gênero também podem contribuir para uma renovação da epistemologia da história e das ciências, não apenas humanas, mas de todas as chamadas ciências do homem” (TORRÃO FILHO, 2003, p. 138). Para Louro (2003), a aceitação quanto à polarização entre masculino e feminino é mantida pelo senso comum, mediante o qual “revestido por uma linguagem “científica”, a distinção biológica, ou melhor, a distinção sexual, serve para compreender e - justificar – a desigualdade social” (LOURO, 2003, p. 21). O 5

Como exemplo de símbolo com diversas e contraditórias representações, Scott (1999) cita Eva e Maria, símbolo da mulher na tradição cristã ocidental, mas também opostas, “mitos da luz e da escuridão, da purificação e da poluição, da inocência e da corrupção” (SCOTT, 1999, p. 21) 6 Scott (1999) aponta a relação direta entre o gênero e a construção do poder que, distribuído oferece um controle ou um acesso diferencial aos recursos materiais e simbólicos (SCOTT, 1999, p. 22).

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mesmo argumento é ainda reforçado no âmbito histórico, sob o ponto de vista dos papeis até então exercidos por homens e mulheres. Ao dirigir o foco para o caráter “fundamentalmente social”, não há, contudo, a pretensão de negar que o gênero se constitui com ou sobre corpos sexuados, ou seja, não é negada a biologia, mas enfatizada, deliberadamente, a construção social e histórica produzida sobre as características biológicas. (LOURO, 2003, p. 22)

A oposição entre masculino e feminino é constantemente criticada por Scott (1999, p. 17), segundo a qual “se o antagonismo é sempre latente, é possível que a história não possa oferecer uma solução, mas unicamente a reformulação e a reorganização permanente da simbolização da diferença e da divisão sexual do trabalho”. O comportamento de cada um tem origem no que Laraia (2003) denomina endoculturação. “Um menino e uma menina agem diferentemente não em função de seus hormônios, mas em decorrência de uma educação diferenciada" (LARAIA, 2003, p. 19, 20). A polarização traz, intrinsecamente, o reforço sobre a “superioridade do primeiro elemento” (LOURO, 2003), acabando por reiterar a inferiorização feminina.

Aprendemos a pensar e a nos pensar dentro dessa lógica e abandoná-la não pode ser tarefa simples. A proposição da desconstrução das dicotomias – problematizando a constituição de cada pólo, demonstrando que cada um, na verdade, supõe e contém o outro, evidenciando que cada pólo não é uno, mas plural, mostrando que cada pólo é, internamente, fraturado e dividido – podendo se constituir uma estratégia subversiva e fértil para o pensamento. (LOURO, 2003, p. 31)

Scott (1990) aponta seu incômodo quando à visão antagonista dos gêneros percebida nas teóricas feministas do final do século XX, a qual reforça a dicotomia mediante o uso simplificado de dados históricos que acabam por colaborar na manutenção do que pretendem coibir. “Precisamos rejeitar o caráter fixo e permanente da oposição binária, precisamos de uma historicização e de uma desconstrução autêntica dos termos de diferença sexual” (SCOTT, 1990, p. 18). O “fundacionalismo biológico” trazido por Nicholson (1999) também é uma crítica à maneira como o feminismo trata questões voltadas às mulheres e traz como

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sugestão “que pensemos no sentido de “mulher” do mesmo jeito que Wittgenstein7 sugeriu pensarmos o sentido de ‘jogo’”. Palavra cujo sentido não é encontrado através da elucidação de uma característica específica, mas através de uma elaboração de uma complexa rede de características. Essa sugestão leva certamente em conta o fato de que deve haver algumas características – como a posse de uma vagina e uma idade mínima – que exercem um papel dominante dentro dessa rede por longos períodos de tempo. (NICHOLSON, 1999, p. 27)

Assim como ocorre frente à definição de gênero, que contraria o determinismo biológico, a herança cultural recusa comportamentos e pensamentos considerados fora dos padrões.

As diferentes orientações sexuais são um exemplo de não-

aceitação social, algumas, como a homossexualidade, já tendo sido considerada doença e até mesmo crime em alguns países. Para Laraia (2003, p. 67, 68), é “por isso (que) discriminamos o comportamento desviante. Até recentemente, por exemplo, o homossexual corria o risco de agressões físicas quando era identificado numa via pública e ainda é objeto de termos depreciativos”. O gênero, por vezes tratado como similar ao sexo, é também confundido com a orientação sexual. Mais do que o primeiro, esta encontra discriminação às suas posições ainda hoje, incluindo agressões, como mencionado anteriormente por Laraia (2003). Tal temática será abordada na próxima seção.

2.3 A TEORIA QUEER E OS COMPORTAMENTOS DESVIANTES

Não é apenas o gênero que traz consigo um histórico de normatização. A sexualidade, no decorrer dos séculos, também vem acompanhada de regras internalizadas socialmente, que buscavam instituir o que poderia ser considerado aceitável ou não. Ao estudar a história da sexualidade, Michel Foucault (2015)8 encontrou vínculo direto entre sexualidade e poder. Se antes o assunto era proibido, posteriormente passou a ser abordado frequentemente, ainda que de maneira 7

Opondo-se à ideia da fixação de sentido defendida pela linguagem, Ludwig Wittgenstein se volta ao termo “jogo” argumentando “ser impossível imaginar qualquer aspecto que seja comum a tudo quando se trata de jogo” (NICHOLSON, 1999, P. 26). A ideia se baseia na constatação de que, apesar de ser possível encontrar semelhanças, os jogos nunca têm algo igual em todos. Nicholson defende tal posicionamento mencionando o fato de que transexuais também são mulheres, mesmo não tendo vagina. 8 O texto original de Foucault data de 1979

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cuidadosa, trazendo a falsa sensação de liberdade. “Há dezenas de anos que falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a ordem estabelecida, tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em conjurar o presente e aclamar um futuro”, (FOUCAULT, 2015, p. 11). Conforme conceitua o filósofo: A sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder (FOUCAULT, 2015, p. 115).

O que Foucault (2015) denomina como “incitação política, econômica, técnica a falar sobre sexo”, surge no século XVIII, quando a sexualidade passa a ser tratada de forma analítica, buscando torna-lo, mais do que um assunto voltado à moral, também algo racional. Nessa mesma época, “o sexo se torna questão de polícia, mas não no sentido pleno e forte que se atribuía então a essa palavra – não como repressão da desordem e sim como majoração ordenada das forças coletivas e individuais” (FOUCAULT, 2015, p. 27, 28). Ou seja, ao invés de reprimir, como até então era feito, passa-se a um discurso regulador. Para Tania Navarro Swain, se antes a visão era da mulher enquanto “locus” – o sexo em si, enquanto substantivo – e o homem, de fato, o detentor da ação, agora o tema se concentra no binarismo, como apontam outros autores. Além disso, Swain (2001) questiona a ordem intrínseca a essa organização, onde tudo o que está fora dos limites de seu domínio passa a ser tratado como perversão. Dessa maneira, se torna local de “domesticação e de controle social, locus também de fixação do afeto e da emoção, cadinho de todas as significações, chave de uma ordem que se alega divina, racional, biológica” (SWAIN, 2001, p. 90). Mais do que uma denominação, uma classificação, a autora aponta a sexualidade como algo que faz com que o indivíduo se sinta parte de um grupo, de uma classe e reconheça seu papel no contexto em que se encontra. Guacira Lopes Louro (2001), corroborando a visão foucaultiana, aponta que a sexualidade, nos últimos dois séculos, “tornou-se objeto privilegiado do olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores, passando a se constituir, efetivamente, numa ‘questão’”.

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Se, nos dias de hoje, ela continua alvo da vigilância e do controle, agora ampliaram-se e diversificaram-se suas formas de regulação, multiplicaramse as instâncias e as instituições que se autorizam a ditar-lhe as normas, a definir-lhe os padrões de pureza, sanidade ou insanidade, a delimitar-lhe os saberes e as práticas pertinentes, adequados ou infames. Ao lado de instituições tradicionais, como o Estado, as igrejas ou a ciência, agora outras instâncias e outros grupos organizados reivindicam, sobre ela, suas verdades e sua ética (LOURO, 2001, p. 541).

O termo “minorias” passou a ser usado para denominar grupos como gays e lésbicas, por exemplo, porém, mais do que uma denominação numérica, a palavra revela uma forma de tentar reforçar a inferioridade e o estigma de tais grupos, que ganham cada vez mais espaço. Sua visibilidade tem efeitos contraditórios: por um lado, alguns setores sociais passam a demonstrar uma crescente aceitação da pluralidade sexual e, até mesmo, passam a consumir alguns de seus produtos culturais; por outro lado, setores tradicionais renovam (e recrudescem) seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos valores tradicionais da família até manifestações de extrema agressão e violência física (LOURO, 2001, p. 542).

Foucault abrange um período maior, de três séculos, durante o qual vê a mudança relativa ao sexo, sobre o qual passa-se a falar insistentemente, aquilo que ele denomina ser uma “verdadeira explosão discursiva” (FOUCAULT, 2015). Talvez tenha havido uma depuração – e bastante rigorosa – do vocabulário autorizado. Pode ser que se tenha codificado toda uma retórica da alusão e da metáfora. Novas regras de decência, sem dúvida alguma, filtraram as palavras: polícia dos enunciados. Controle também das enunciações: definiu-se de maneira muito mais restrita onde e quando não era possível falar dele, em que situações, entre quais locutores, e em que relações sociais; estabeleceram-se, assim, regiões, se não de silêncio absoluto, pelo menos de tato e discrição. (FOUCAULT, 2015, p. 19,20)

Tal perspectiva teve forte influência no movimento que veio a seguir. Os estudos queer9 tinham como sua base a teoria desenvolvida Foucault, sobre a relação entre sexualidade e poder, segundo o qual a heterossexualidade e a homossexualidade são resultados de um discurso normativo e naturalizado, que acaba por reforçar o binarismo existente, trazendo, novamente, comportamentos e indivíduos que se opõem.

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Alguns autores apontam que o termo foi usado pela primeira vez por Teresa Lauretis, em 1990.

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Conforme Louro (2001), o termo queer pode ser traduzido como estranho, ridículo, também empregado de forma pejorativa para se referir a indivíduos homossexuais, sejam homens ou mulheres. Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse grupo, queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier.[...] Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e perturbadora (LOURO, 2001, p. 546).

A

teoria

queer

surge

para

desconstruir

a

polarização

entre

hetero/homossexual, apontando que cada um possui algo do outro, sendo interdependentes entre si, passando a questionar o que era conhecido como essencialmente masculino ou feminino, Sara Salih (2012) aponta que o surgimento da teoria vem “de uma aliança (às vezes incômoda) de teorias feministas, pós-estruturalistas e psicanalíticas que fecundavam e orientavam a investigação que já vinha se fazendo sobre a categoria do sujeito” (SALIH, 2012, p. 19). O termo é usado como forma de resistência, após ser utilizado como insulto aos que agora dele se apropriam para designar um novo movimento que vai de encontro ao que se conhecia até então. Ela reforça que por mais que possa parecer atrativo ver a homossexualidade como forma de manter a coerência da heterossexualidade, esse é, na verdade, um problema, à medida que “traz o risco de patologizar a homossexualidade e de relegá-la a uma posição secundária

em

relação

á

heterossexualidade

-

um

produto

da

lei

heterossexualizante” (SALIH, 2012, p. 85). Mais do que tratar unicamente da sexualidade, o queer concentra forças na quebra do padrão denominado por Louro (2001) de “heteronormatividade compulsória” da sociedade. As condições que possibilitam a emergência do movimento queer ultrapassam, pois, questões pontuais da política e da teorização gay e lésbica e precisam ser compreendidas dentro do quadro mais amplo do pósestruturalismo. Efetivamente, a teoria queer pode ser vinculada às vertentes do pensamento ocidental contemporâneo que, ao longo do século XX, problematizaram noções clássicas de sujeito, de identidade, de agência, de identificação (LOURO, 2001, p. 547).

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O que muitos autores chamam de heteronormatividade, para Miskolci (2009) “expressa as expectativas, as demandas e as obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade” (MISKOLCI, 2009, p. 5). Dessa maneira, todo o comportamento e todos os que não corresponderem a tais expectativas, tornam-se parte da massa desviante. A construção social que segue o padrão binário também é uma forma de reforçar o poder, à medida que sempre haverá um indivíduo inferiorizado perante o outro. Em um período em que começa a haver oposição à heteronormatividade, Miskolci (2009) relata o início da desconstrução nas mais diversas áreas, como a imprensa e a teledramaturgia, mas, além disso, também em outras formas de discurso, como na ciência e na religião. Comportamentos que ainda hoje são considerados “fora do padrão”, vêm de um longo processo de exclusão. A homossexualidade já foi considerada pecado pela igreja10, para, posteriormente, passar a ser crime. Quanto aos tribunais, podiam condenar tanto a homossexualidade quanto a infidelidade, o casamento sem consentimento dos pais ou a bestialidade. Tanto na ordem civil quanto na ordem religiosa o que se levava em conta era um ilegalismo global. Sem dúvida, o “contra natureza” era marcado por uma abominação particular. Mas era percebido apenas por uma forma extrema do “contra lei”, também infringia decretos tão sagrados como os do casamento e estabelecidos para reger a ordem das coisas e dos seres . (FOUCAULT, 2015, p. 42)

A inserção da medicina nas questões relativas à sexualidade colaborou para o “desenvolvimento” de teorias patológicas vindas do campo da saúde relativas às práticas sexuais, retomando o conceito principal de Foucault (2015) sobre o poder, o qual passa, ao invés de reprimir, a controlar o sexo mediante o discurso. A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora o homossexual é uma espécie (FOUCAULT, 2015, p. 47, 48).

No Brasil, de acordo com Peter Fry e Edward MacRae (1983), a luta pela causa homossexual teve início em 1978, junto surgimento do Movimento Negro Unificado, paralelamente ao desenvolvimento do feminismo. O lançamento do jornal 10

Segundo Foucault (2015), a homossexualidade que, à época, era denominada “sodomia”, listava entre os crimes graves, junto ao adultério, estupro e o incesto.

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Lampião, formado por artistas e intelectuais incomodados com a situação periférica na qual os homossexuais estavam isolados. Dentre as primeiras manifestações, protestaram contra “a forma difamatória com que a “imprensa marrom” apresentava a homossexualidade” (FRY; MACRAE, 1983, p. 22) Mais do que na imprensa, a desconstrução passou também pela “análise da heteronormatividade em romances, filmes, programas de televisão, revistas mas também de discursos legais, científicos, religiosos e pedagógicos” (MISKOLCI, 2009, p. 7). Dessa forma, Ao invés de priorizar investigações sobre a construção social de identidades, estudos empíricos sobre comportamentos sexuais que levem a classificá-los ou compreendê-los, os empreendimentos queer partiram de uma desconfiança em relação aos sujeitos sexuais como estáveis para focar nos processos sociais classificatórios, hierarquizados, em suma, nas estratégias sociais normalizadoras do comportamento (MISKOLCI, 2009, p. 7).

A teoria queer estuda, com cada vez mais profundidade, as práticas sociais, tendo como base a relação entre poder e sexo apontada por Foucault (2015), incluindo áreas como a educação, as ciências sociais e a política. Em concordância com Foucault (2015), a teoria aponta que, aquilo que Souza (2008) chamou de “proliferação de novas identidades sexuais”11, bem como o fortalecimento das mesmas, são, na verdade, a reprodução das posições hegemônicas, tendo em vista que surgem como “oposição a”, “diferente de”, ou seja, o múltiplo gira em torno do eixo unificador do mainstream, polarizando a relação entre estas identidades e uma outra, detentora do poder” (SOUZA, 2008, p. 20). O homossexual passa a ser categorizado como sujeito desviante, definição que vem acompanhada da segregação, mediante a qual passa a ser considerado presença incômoda12 (LOURO, 2001). Se o estigma perante homossexuais já existia por si só, ele é ampliado quando são analisadas outras características. Os privilégios de classe e raça eram detectados fortemente também nesses grupos. O poder, então vinculado à sexualidade, atinge também pessoas pobres e negras, que nesse contexto, são novamente excluídas, assim como aqueles que estão fora do sistema polarizado da sexualidade. 11

Além de homossexuais, Souza (2009) inclui aqui também bissexuais e transexuais. A homossexualidade deixou de ser classificada como patologia pela Associação de Psiquiatria Americana no ano de 1973, devido à forte pressão feita por grupos do movimento. 12

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Para muitos (especialmente para os grupos negros, latinos e jovens), as campanhas políticas estavam marcadas pelos valores brancos e de classe média e adotavam, sem questionar, ideais convencionais, como o relacionamento comprometido e monogâmico; para algumas lésbicas, o movimento repetia o privilegiamento masculino evidente na sociedade mais ampla, o que fazia com que suas reivindicações e experiências continuassem secundárias face às dos homens gays; para bissexuais, sadomasoquistas e transexuais essa política de identidade era excludente e mantinha sua condição marginalizada (LOURO, 2001, p. 544).

Assim, além de suas prioridades individuais, as posições passam a ser contra a singularização da identidade homossexual que, silenciosamente, vinha se estabelecendo. A presença maior do discurso em relação ao gênero e à sexualidade, não é, essencialmente algo positivo do ponto de vista de ter sua identidade respeitada, ou estar incluído socialmente com suas particularidades. O discurso político e teórico que produz a representação ‘positiva’ da homossexualidade também exerce, é claro, um efeito regulador e disciplinador. Ao afirmar uma dada posição-de-sujeito, supõe, necessariamente, o estabelecimento de seus contornos, seus limites, suas possibilidades e restrições. Nesse discurso, é a escolha do objeto amoroso que define a identidade sexual e, sendo assim, a identidade gay ou lésbica assenta-se na preferência em manter relações sexuais com alguém do mesmo sexo (LOURO, 2001, p. 544).

A abordagem das diferentes sexualidades de forma a tentar mostra-las como algo “aceitável” passa pela normatização apontada por diversos autores, na qual sua presença é classificada pelo seu comportamento que deve, obrigatoriamente, seguir padrões vigentes, como por exemplo relações estáveis e a constituição de uma família. Todavia, precisa-se lembrar de que, junto e, até mesmo antes da opressão contra a orientação sexual, já havia a opressão feminina, e mesmo dentro do movimento, onde lutavam por um objetivo em comum, essa diferença perdurava. Mais do que a identidade, as pessoas passam a ser “classificadas” pelo seu comportamento. Em algumas sociedades, como apontam Fry e MacRae (1983), enquanto a passividade é vinculada à mulher, a atividade representa o homem. “O que existem nestas culturas são identidades sociais e sexuais construídas de combinações do sexo biológico e papeis sexuais” Fry e MacRae (1983, p. 39). De tal modo, era feita uma associação na qual homens gays eram efeminados, enquanto mulheres lésbicas agiam de maneira masculinizada.

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Em uma época em que o foco do estudo homossexual estava nos gays, Fry e MacRae (1983) apontam de forma crítica o médico Havelock Ellis como um dos poucos nomes a se voltar ao lesbianismo, trazendo consigo toda a carga de conceitos biologizantes. Com a dose de estigma vinculada à medicina no que tange os estudos de gênero e sexualidade, Ellis renegava a associação imediata de traços femininos em gays, ao mesmo tempo em que, ao contrário, “atribuía uma natureza masculinizada à lésbica, acreditando existir profundas diferenças biológicas entre a sexualidade feminina e a masculina”: Para ele, o elemento de auto-afirmação na sexualidade lésbica seria masculina, já que, de acordo com sua perspectiva biologizante, considerava que as mulheres eram por natureza passivas e receptivas às investidas sexuais masculinas. (FRY; MACRAE, 1983, p. 84)

Se antes o caráter homossexual de parte das mulheres integrantes do movimento feminista era usado apenas como forma de exclusão para enfraquece-las dentro do grupo, causando até mesmo repulsa, agora, de acordo com Fry e MacRae (1983) já começa-se a reconhecer que elas são grande parte da militância e têm participação fundamental nas reivindicações. Ainda no que se refere à heterogeneidade sexual, além das lésbicas, bissexuais também se tornam grupo excluído das demais “classificações”. Esse modo de tratar a sexualidade – classificando indivíduos – resulta em uma nova forma de segregação, conforme relata Swain: Os movimentos homossexuais, adotando a diferença que lhes é imposta, constrói igualmente um núcleo identitário ser lesbiana ou gay, no sentido ontológico – e criam assim um novo espaço de exclusão: os bissexuais seriam assim os queers dos homossexuais, da mesma maneira estes últimos seriam os queers dos heterossexuais. A bissexualidade seria esta nova forma de amor que “não ousa dizer seu nome. (SWAIN, 2001, p. 94)

Ao mesmo tempo, a bissexualidade acaba inserida na padronização polarizada, como se unisse homo e heterossexualidade, eliminando, assim, seu potencial subversivo (SWAIN, 2001). Todavia, em suas diversas abordagens, incluindo os diversos perfis, o queer “não é somente uma sexualidade alternativa, mas um caminho para exprimir os diferentes aspectos de uma pessoa, um espaço

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também, para a criação e a manutenção de uma polimorfia ou um discurso que desafia e interroga a heterossexualidade” (SWAIN, 2001, p. 95). A próxima seção mostra que, mesmo que façam parte dos estudos queer, transexuais ainda formam atualmente um grupo que passa por dificuldades de ter sua identidade aceita e, mais do que isso, a transexualidade ainda é vista como uma patologia pela área médica.

2.4 IDENTIDADE TRANS

Assim como acontece com homossexuais e bissexuais, transexuais também são vistos como desviantes, porém, com o agravante de que, diferente dos primeiros, ainda têm sua identidade diagnosticada como patologia13. Sob o ponto de vista dos estudos de gênero, o termo transgênero14 “se refere a uma pessoa que sente que ele ou ela pertence ao gênero oposto, ou pertence a ambos ou nenhum dos dois sexos tradicionais” (ÁVILA; GROSSI, 2010, p. 2), ou seja, aqueles (as) que não reconhecem sua identidade de acordo com seu sexo. A patologização da transexualidade tem início nos anos 1950, quando as primeiras publicações passam a usar a expressão “fenômeno transexual” e buscar diferenças em comparação à homossexualidade. O termo foi cunhado para designar um grupo que, mesmo integrando o movimento LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais), possui causas exclusivamente trans, e é usado para “dar voz a todos os “transgressores do corpo, gênero e sexo”, que desconstroem e reconstroem seus corpos e seus gêneros” (ROBALO, 2014, p. 19). Atualmente, mesmo com questões específicas, o movimento trans e o movimento homossexual têm como pontos comuns a oposição ao binário homem/mulher, que utiliza a biologia como argumento normativo, e à matriz heteronormativa. A problemática envolvendo a não aceitação da identidade trans faz parte da cultura sexualizante que tem início ainda no nascimento. 13

Na Classificação Internacional de Doenças (CID), lista editada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) que orienta a área da saúde em âmbito mundial, encontra-se o termo “transexualismo”, classificado como um transtorno mental e de comportamento. 14 Simone Ávila e Miriam Pillar Grossi (2010) também apontam que o termo “trangênero” inclui travestis, intersexuais drag queens e drag kings.

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Ao vermos um recém-nascido e sentenciarmos “é uma menina”, não estamos apenas descrevendo uma situação social, mas produzindo concepções de feminilidades ligadas ao órgão genital. Dentro dessa categorização, estamos também falando de toda uma constituição social, cultural, histórica e moral da mulher, mãe que amamenta, que protege, que cozinha e costura, e alimenta, é dotada de delicadeza, de inocência, de fragilidade. (ROBALO, 2014, p. 31)

O gênero, uma vez construção social e não definição biológica, não é estático, mas sim, identidade construída. Como tal definição ainda encontra oposição daqueles que seguem com uma visão biologizante sobre gênero, quando se trata de transexuais, ainda há a tentativa de encontrar nesses indivíduos o padrão de homem e mulher que corroborem com o sexo. No entanto, nem sempre o resultado corresponde àquilo que é definido e aceito socialmente como atos próprios a um homem /uma mulher. Se as ações não conseguem corresponder às expectativas estruturadas a partir de suposições, abre-se uma possibilidade para se desestabilizarem as normas de gênero, que geralmente utilizam a violência física e/ou simbólica para manter essas práticas às margens do considerado humanamente normal. (BENTO, 2006, p. 93)

Diferente de outros estudos sobre gays e lésbicas, a teoria queer abordada anteriormente tem como diferencial tratar de identidades que estão além dos pólos homossexual e heterossexual. Assim, trata também de “culturas sexuais nãohegemônicas, caracterizadas pela subversão

ou rompimento com normas

socialmente prescritas de comportamento sexual e/ou amoroso” (ÁVILA; GROSSI, 2010, p. 11), onde estão incluídos, por exemplo, transexuais e intersexuais15. Se a teoria queer traz questionamentos no que se refere à identidade sexual, da mesma maneira que o feminismo trazia sobre binarismos de gênero, em outros contextos – como na medicina e na religiosidade -, tais comportamentos continuam sendo estigmatizados e excluídos. No próximo capítulo serão apresentados estudos já realizados, que analisam a maneira como homossexuais e transexuais são representados pela mídia brasileira.

15

A intersexualidade, já tratada como similiar ao hermafroditismo, possui interpretações variadas em diferentes campos de estudo e culturas. Conforme Ana Karina Figueira (2012), na medicina, a intersexualidade é denominada Anomalia do Desenvolvimento Sexual (ADS), “situação em que não há acordo entre os vários sexos do indivíduo” (FIGUEIRA, 2012, p. 54), ou seja, o sexo genético e o sexo hormonal. Já para a sociologia a intersexualidade representa uma diversidade de sexo\gênero, não uma patologia. “Tanto a subjetividade como a corporalidade são inscritas pelos discursos cirúrgicos de normatividade e não normatividade. (FIGUEIRA, 2012 p. 59).

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3 MÍDIA E CONSTRUÇÃO SOCIAL

Os estudos sobre a temática LGBT são realizados sob o ponto de vista da produção, observando os critérios dos profissionais envolvidos no processo; e também na análise da linguagem utilizada. Neste capítulo é feito um mapeamento sobre pesquisas já realizadas sobre tal grupo nos dois vieses mencionados, abrangendo mídia impressa e audiovisual. As informações divulgadas no jornalismo e o conteúdo produzido na área dependem, fundamentalmente, da interpretação feita pelos jornalistas, seja por critérios institucionais ou pessoais. Christa Berger e Frederico de Mello Brandão Tavares (2014) questionam o que é, exatamente, a interpretação no fazer jornalístico, assinalando um ponto de encontro desse com as ciências sociais. Cabe aos jornalistas, assim como aos legisladores e juristas (em relação às leis), aos tradutores (em relação às línguas), compreender e expressar o que acontece no mundo. No movimento reverso, essa mesma ideia de interpretação, que vem como um tipo de resultado do processo jornalístico, coloca em evidência o seu próprio fazer, expondo as “ferramentas” propriamente ditas do jornalístico, que compõem seu bem elaborado processo de falar sobre o mundo (apuração, redação, edição etc) e o inserem em uma cadeia interpretativa sucessiva, da qual fala o autor, também reveladora de seus limites e de suas lacunas. (BERGER e TAVARES, 2014, p. 7).

Ao mesmo tempo, é importante observar os variados contextos englobados no ambiente social e os interesses inseridos em cada seleção feita por um profissional da imprensa, cuja posição enquanto indivíduo passa a ser relacionada e questionada em detrimento ao “conhecimento que ele produz (e sobre quem produz), o que traz efeitos não apenas do pensamento sobre sua narrativa, mas também pelos modos de constituição dessa narrativa, historicamente situada” (BERGER; TAVARES, 2014, p. 8). A linguagem utilizada (seja texto, fotografia ou a composição do conteúdo) também implica na maneira como a informação é passada ao público, pois a forma como cada indivíduo é inserido na narrativa faz parte da visão do autor ou veículo de imprensa. No campo jornalístico, a representação pode ser compreendida pelo “uso dos variados sistemas significantes disponíveis (textos, imagens, sons) para “falar por” ou “falar sobre” categorias ou grupos sociais, no campo de batalha simbólico das

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artes e das indústrias da cultura” (FREIRE FILHO; HERSCHMANN; PAIVA, 2004, p. 1). As críticas quanto à forma como a imprensa trata do que passou a chamar-se de “minorias” ocorrem desde a década de 1960, quando os estudos culturais e os movimentos sociais apontam para a forma deturpada e desfavorável como a identidade desses grupos eram exibidas, quando se passou, então, a vincular tais representações ao “estereótipo”. Ao tratar do estereótipo, Freire Filho; Herschmann; Paiva (2004, p. 3) utilizam uma das concepções cunhadas por Walter Lippmann16, para o qual o termo implica “construções simbólicas enviesadas, infensas à ponderação racional e resistentes à mudança social”. Além disso, essa abordagem estereotipada de classes sociais e sexualidades “desviantes”, é considerada pelos autores um problema na ordem democrática, tendo em vista que reverbera na construção da opinião dos cidadãos no que tange a vida social e política. Portanto, sendo o jornalismo parte de tal constituição, a próxima seção trará a forma como as escolhas são realizadas no processo de produção da notícia, desde a escolha da pauta até sua forma de abordagem.

3.1 SEXUALIDADE E GÊNERO NA PRODUÇÃO MIDIÁTICA

Este capítulo será direcionado a conhecer quais foram os estudos realizados até então relacionados à temática de identidade de gênero e sexualidade na mídia brasileira sob duas perspectivas: a produção e a linguagem do conteúdo jornalístico envolvendo lésbicas, bissexuais, gays, travestis e transexuais. Na primeira seção, o foco será na produção, na forma como sexualidade e gênero estão presentes no desenvolvimento do conteúdo, no ambiente profissional e, ainda, o modo como as escolhas feitas por jornalistas interferem na abordagem de cada assunto. Tendo em vista a escassez de estudos sob a perspectiva antropológica, será utilizada a dissertação elaborada pela pesquisadora Márcia Veiga da Silva (2010), cuja relevância se dá pela natureza da pesquisa e pela proximidade geográfica de seu objeto de estudo, além de ter sido realizado no principal canal televisivo 16

Escritor e colunista político norte-americano, Walter Lippmann é autor do livro Public Opinion (1922), considerado “o livro fundador dos estudos midiáticos americanos” (FREIRE FILHO; HERSCHMANN; PAIVA, 2004, p. 3).

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estadual. Já na segunda parte, separadamente, a abordagem será feita especificamente no texto, trazendo pesquisas com foco na linguagem utilizada pelos veículos de mídia nos quais estão presentes assuntos envolvendo questões de gênero e sexualidade. Essa servirá como ponto de partida para o desenvolvimento da pesquisa referente ao objeto de análise selecionado, por ser, também mídia impressa. Os valores disseminados pela mídia estão vinculados diretamente aos valores e significados culturais vigentes. As percepções pessoais, seu contexto e visões de mundo do produtor de conteúdo são parte das opções feitas no decorrer do processo e nos critérios jornalísticos. Conforme aponta Silva (2010a), cada indivíduo se reconhece como parte de um grupo e de uma cultura, conforme suas vivências cotidianas e a maneira como instituições influentes nesse processo estão presentes nessa rotina. Mais do que apresentar fatos, o jornalismo tem também papel pedagógico. “Sua função “educativa” se traduz, sobretudo, pela necessidade de “explicar” o mundo, sempre baseado na “verdade” e fazendo uso de recursos técnicos e humanos capazes de ilustrarem esses saberes gerando significado” (SILVA, 2010a, p. 33). A contribuição do jornalismo para a instituição de valores pode ser explicada pelo fato de que, quem produz as notícias são indivíduos que, assim como os demais, possuem características e pontos de vista não isentos, que aparecem desde a definição da pauta até a maneira como ela é composta. Dessa forma, ele é também responsável pela manutenção de consensos sociais vigentes, perspectivas e significados. Não há como pensar a cultura (aqui entendida como conjunto de regras, hábitos e valores historicamente construídos numa sociedade) em que estamos inseridos sem refletir sobre o papel do jornalismo. A participação do jornalismo na normatização da sociedade fica evidente por este prisma, bem como nos processos pelos quais são valoradas as relações sociais. É em meio a isso que se situam as relações de gênero. Esses mesmos valores e formas de construção da realidade através da notícia incidem sobre a construção de determinadas concepções de gênero, definindo masculinidades e feminilidades, bem como sexualidades legítimas e ilegítimas (SILVA, 2010a, p. 36).

Após optar pela observação participante, acompanhando a rotina de produção telejornalística durante sua dissertação de mestrado, Marcia Veiga da Silva (2010) comprova que classe, geração, raça e, fundamentalmente, gênero, estão presentes

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em todas as fases de produção, bem como na posição ocupada pelos profissionais inseridos no veículo de comunicação. Para ela: O papel do jornalista no processo de criação das notícias e, concomitantemente, na construção das realidades é, portanto, fundamental para a compreensão dos valores circulantes em uma sociedade e, mais do que isso, permeia a formação de uma normatividade. O que “significa” o real para esses profissionais será, então, norteador do que é produzido e veiculado como “verdade” nos meios de comunicação (SILVA, 2010a, p. 41).

Mostrar a forma como as notícias são produzidas, para Felipe Pena (2005), é uma questão democrática, um modo de compreender como seus significados são construídos. No jornalismo de televisão, por exemplo, esse trabalho de “descortinamento” deve ser ainda mais intensificado. Na TV, sob o império da visualização, como diria Virilio, somos escravos da superficialidade. Organizada no tempo e no espaço, a notícia televisiva sofre com mais intensidade os efeitos da velocidade. (PENA, 2005, p. 71)

A maneira como se desenvolvem as rotinas de trabalho e a subjetividade de cada profissional são fatores intrínsecos ao conteúdo divulgado nas diversas plataformas (televisão, jornal impresso, rádio, etc). Assim, o jornalista, enquanto elemento principal na trajetória produtiva, faz com que seja “o elemento humano o primeiro a dar significado aos fatos sociais, transformá-los em notícias com fins de gerar sentido, a partir da forma como enxergam e refletem o mundo” (SILVA, 2010a, p. 46). No que se refere às questões de gênero, a pesquisadora aponta que: Problematizar as “normalidades” da cultura é um bom caminho para que se possa compreender como tais relações de poder se estabelecem. Investigar as convenções de gênero significa de fato problematizar a construção da desigualdade naquilo que está posto de modo mais sutil e banalizado numa cultura. É ir ao encontro dos micro-universos e tentar perceber de que maneira as diferenças são transformadas em desigualdades (SILVA, 2010a, p. 57).

Para analisar a relação entre gênero e jornalismo, é preciso compreendê-lo como algo que também é generificado e, assim, saber de que forma contribui para o reforço de valores hegemônicos e heteronormativos (SILVA, 2010a). Ao constatar que “o jornalismo é masculino”, a pesquisadora tem como foco três categorias fundamentais: rotinas produtivas, valores e relações. A partir de tal definição, o

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acompanhamento de cada etapa traz exemplos dos vieses dados às questões envolvendo identidade de gênero e sexualidade. Ao relatar suas percepções ao acompanhar um telejornal em fase de mudanças, com o afastamento do editor-chefe (homem), Silva (2010a) depara-se com a divisão temporária do cargo entre um homem e uma mulher. As constatações sobre esse aspecto já demonstram a visão coletiva – e pessoal, de alguns integrantes da equipe – em relação aos aspectos fundamentais para aquele que vier a ocupar o cargo de chefia: Katia17 me fala claramente dos atributos que ela acredita serem os mais valorados para os cargos de chefia e poder, como um perfil mais autoritário. Ela faz uma relação entre esses atributos com a desigualdade salarial e de gênero a eles associados, e também os identifica como valores sociais no país. Kátia fala dos desconfortos sentidos por ela quando no exercício da chefia por se entender percebida pelos outros não como uma chefe, uma autoridade, mas sim por outros papeis associados à sua condição de mulher – mãe, parceira, amiga, alguém para transar. Mais adiante, esses elementos – somados a outros – se mostram definidores das decisões sobre quem ocuparia interinamente o cargo (SILVA, 2010a, p. 109).

O tratamento horizontal dado à equipe é visto de forma negativa pelos demais, como uma fraqueza, logo, uma característica feminina. Porém, no que tange as relações de hierarquia dentro do ambiente produtivo, não apenas as posições “superiores” representam os detentores do poder quando se trata de gênero. Aferi que gênero também compunha as visões de mundo que estavam a orientar inconscientemente os jornalistas na produção das notícias em todas as suas instâncias. Entre as pautas, assim como entre os repórteres, havia uma hierarquia de valores correspondentes, e esses valores estavam constituídos de gênero. As concepções de gênero estavam presentes na idealização das matérias, bem como permeava as escolhas dos repórteres eu iriam realiza-las. Neste pequeno universo observado, os valores e a hierarquização de profissionais, de notícias e as demais escolhas durante a produção equiparavam-se à normatividade social vigente (SILVA, 2010a, p. 133).

Ao exemplificar a maneira como a normatividade está presente na escolha dos assuntos abordados, Silva (2010a) aponta para a sugestão de uma pauta referente à uma família constituída por um casal de lésbicas que acabara de adotar uma criança, a qual o repórter imediatamente recusa por “não gostar disso”. O gosto pessoal dos repórteres, mais do que a relevância do assunto sugerido ou mesmo

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Nome usado ficcionalmente para se referir à jornalista que compartilhou temporariamente o cargo de editora-chefe. Por questões éticas e após concluir que não atrapalharia em sua pesquisa, Márcia Veiga da Silva optou por não usar os nomes verdadeiros dos interlocutores.

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definições hierárquicas, é o critério para a distribuição do material a ser desenvolvido. Dessa maneira, assim como mostrado no exemplo anterior, a subjetividade está fortemente presente no que é veiculado pela emissora estudada. Se a inclusão de homossexuais é evitada por alguns repórteres, quando tal situação não pode ser evitada, a abordagem mais uma vez aponta para o reforço de estereótipos, como no relato da conversa com o mesmo jornalista: “eu não consigo me acostumar com isso, olha só, naquela mesa tem um casal de mulheres namorando, e esses dois caras são um casal de gays fazendo comprar. Eu não me acostumo com isso” (SILVA, 2010a, p. 142). O contexto e a cultura pessoal são critérios utilizados pelos jornalistas, mesmo que não intencionalmente, para definir o que consideram notícia, de acordo com Pena (2005), para o qual, tais critérios são quase instintivos. Para o autor, é preciso, também, compreender a situação de pressão na qual vive frequentemente o jornalista, paralelamente a isso, “ele toma a notícia como um valor, ou seja, apropriase dos benefícios de ser o jornalista a dar o furo e entra no jogo da concorrência comercial” (PENA, 2005, p. 71), refletindo, assim, diretamente no resultado de seu trabalho. A relevância do contexto profissional do jornalismo na constituição das notícias pode ser explicada pela teoria do newsmaking (produção da notícia), cujo foco trata das articulações entre a “cultura profissional dos jornalistas, a organização do trabalho e dos processos produtivos” (VIZEU, 2007, p. 223). Na produção das notícias temos, de um lado, a cultura profissional, entendida como um conjunto emaranhado de retóricas, astúcias, táticas, códigos, estereótipos, tipificações, representações de papeis, rituais e convenções relativos à concepção do produto-notícia e às modalidades que superindentem a sua confecção. Isso se traduz, pois, numa série de paradigmas e práticas profissionais dadas como naturais. Por outro lado, temos restrições ligadas à organização do trabalho, sobre as quais se criam convenções profissionais, que contribuem para definir o que é notícia, contribuem ainda para legitimar o processo produtivo, desde o uso das fontes até a seleção dos acontecimentos. Estabelece-se, assim, um conjunto de critérios de relevância, que definem a noticiabilidade de um fato, isto é, a possibilidade de ele virar notícia (VIZEU, 2007, p. 224).

A teoria também é abordada por Pena (2005), para o qual a imprensa não é reflexo, mas sim, faz parte da construção da realidade. A linguagem submetida “a uma série de operações e pressões sociais” (PENA, 2005, p. 128) resulta nas notícias divulgadas na mídia, com base nos critérios de noticiabilidade mencionados

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anteriormente por Vizeu (2007), além da observação da audiência e as rotinas de produção. As perspectivas individuais em consonância com os critérios da organização jornalística da qual faz parte se tornam definitivos para as escolhas referentes aos assuntos que são considerados de maior importância, o espaço que terão e a forma como serão tratados. Nesse viés, também é possível constatar que temáticas normativas estão mais presentes e ganham conotação positiva, diferente do que ocorre com assuntos e pessoas fora dos padrões vigentes. Junto a conceitos pré-concebidos referentes à sexualidade e gênero, novamente Silva (2010a) reforça o estigma interseccional, nesse caso, voltado também à classe social. Ao abordar a prática sexual ilegal em um parque da capital porto-alegrense, os repórteres envolvidos surpreendem-se não pelo ato, mas pela prática em uma área considerada “de outro nível”, especialmente quando tratam-se de homossexuais. Destacam-se, então, alguns pontos relacionados às escolhas do repórter: o foco dado à matéria apresenta uma perspectiva na qual a prática tem, majoritariamente, participação homossexual. Da mesma forma, o tratamento dado à uma entrevistada travesti, ao chama-la de “traveca” reforça o posicionamento do jornalista quanto ao tratamento dado à identidade de gênero da mesma. No que tange a sexualidade dos indivíduos, Silva (2010a) aponta novamente para julgamentos feitos pelo mesmo profissional. O repórter e editor parecia já saber a identidade sexual das pessoas sem entrevista-las, apenas pelo gestual. [...] Atribuir uma identidade a um sujeito é algo complexo, e em geral está carregado de valores. Há muita discussão sobre identidades, e pelas perspectivas teóricas as quais me filio, a identidade tem a ver com as formas através das quais o sujeito se autodefine, o que não guarda relação, necessariamente, com as suas práticas sexuais: uma coisa é identidade, outra são as práticas sexuais, que nem sempre são convergentes. (SILVA, 2010a, p. 172)

A visão sobre os “papeis” de cada gênero estão fortemente marcados na divisão do trabalho. Enquanto as mulheres ficam responsáveis pelas matérias com enfoques mais leves, quase de entretenimento, incluindo até mesmo piadas, os homens, por sua vez, seguem desenvolvendo os conteúdos mais relevantes, para os quais são esperadas coragem, força e capacidade investigativa, tidas como inatas dos repórteres desse gênero. Mais do que isso, ao observar as relações entre os profissionais, ainda são detectados consensos quanto ao papel primordial feminino

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no cuidado com a casa e com os filhos, e na superioridade masculina ao conduzir qualquer veículo (SILVA, 2010a). A permanência das concepções de gênero que atribuem às mulheres um papel de cuidado e aos homens o papel de violentos, tão arraigados em nossa sociedade. Mais do que isso, continuam se referindo aos homens e às mulheres como se fossem duas categorias que reunissem dois grandes grupos de pessoas que se comportam de forma distinta (oposta), mas universais entre os pares. Atribuem as razões dessas diferenças, que são comportamentais, a aspectos biológicos ou naturais. (SILVA, 2010a, p. 155)

Se a pesquisa de Silva (2010a) é exceção na análise das relações de gênero na produção midiática, a ausência da abordagem de tal temática é constatada no estudo realizado por Marcelo Träsel (2014), ao observar a equipe do Estadão Dados (ED), núcleo de jornalismo guiado por dados do jornal O Estado de São Paulo. Utilizando também o procedimento de observação participante com o grupo composto por três homens e uma mulher, o pesquisador não considera as questões de gênero em seu relato. O número de profissionais de cada gênero, é o primeiro indício da baixa presença de mulheres, situação reforçada após a conclusão da pesquisa. A partir de então, além da coordenação, todos os cargos do Estadão Dados passam a ser exercidos por homens. Em agosto de 2013, entretanto, Amanda Rossi deixou o Grupo Estado por vontade própria, para terminar de escrever um livro sobre as relações políticas e comerciais entre Brasil e Moçambique. Ela foi substituída pelo repórter Rodrigo Burgarelli. Também em agosto de 2013 o jornalista Lucas de Abreu Maia, que havia sido repórter do Estadão, retornou de um curso de mestrado nos Estados Unidos e foi recontratado (TRASEL, 2014, p. 149).

Ao abordar o interesse dos quatro profissionais por tecnologia, Trasel (2014) constata que os três homens se consideram aficionados, mesmo o coordenador e o repórter que tiveram contato com o ambiente digital apenas na vida adulta. Por outro lado, Rossi, a mais nova e única mulher, mesmo fazendo uso diário de tecnologia no ambiente profissional, aponta para o papel secundário da mesma, preferindo, por exemplo, participar de debates políticos do que falar sobre as vantagens de equipamentos e aplicativos. “Esta diferença entre Rossi e Rabatone18 pode se dever a elementos biográficos: enquanto ela nasceu numa área rural de Minas Gerais e seus pais eram agricultores, ele nasceu na capital de São Paulo e seu pai era

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Diego Rabatone, 28 anos, programador do Estadão Dados.

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engenheiro” (TRASEL, 2014, p. 199). Nesse trecho específico, há uma clara diferença entre a repórter mencionada e os outros integrantes, todavia, o fator “gênero” em nenhum momento é abordado no decorrer da pesquisa. Mais do que comportamentos e preferências, o número de homens e mulheres utilizados como fontes da pesquisa, reforçam a presença de um número muito superior dos primeiros. Do total de 11 entrevistas realizadas19 em duas etapas distintas, nove foram com indivíduos do gênero masculino e apenas duas, do feminino. Os critérios para a escolha dos sete participantes que não fazem parte do ED não é explicada pelo autor. No que tange o processo de produção, a cultura profissional é demonstrada como uma forma de poder, perante a qual os jornalistas “se vêem como fiscais do poder político e econômico a imprensa funcionaria como um contraponto ao Estado, como um “quarto poder”, civil, paralelo ao Executivo, Legislativo e Judiciário” (TRÄSEL, 2014, p. 184). Nesta perspectiva: A ideologia individualista se mostra, por exemplo, na competição entre repórteres – tanto dentro de uma mesma redação como entre redações – pela consecução de “furos” ou de manchetes para suas matérias. Ela está aliada ao desejo de ascensão social e de prestígio, objetivos para os quais a profissão de jornalista é vista como um caminho. Apesar disso, o jornalista pode ser considerado um “homem público”, no sentido de que transcende as preocupações imediatas consigo mesmo e com sua rede de relações íntimas e dedica sua vida à transformação social por meio da profissão. Dessa forma, a identidade do jornalista comungaria da dicotomia moderna entre intimidade e socialidade – de fato, a associação lúdica, isto é, a vida boêmia que caracteriza a figura do jornalista seria um elemento importante na própria formação da identidade, ao estreitar os laços entre os membros da comunidade profissional. O narcisismo, finalmente, seria derivado do estabelecimento de relações, por vezes promíscuas, com figuras de poder político, econômico ou cultural, da desenvoltura com que os repórteres transitam em locais vedados aos cidadãos comuns, e explicaria o fascínio destes profissionais com a celebridade e o prestígio (TRASEL, 2014, p. 185).

Assim, a equipe do ED é apontada como responsável pelo papel da formação cultural, incumbido de aperfeiçoar o jornalismo guiado por dados não apenas para a empresa onde trabalham, mas em âmbito nacional (TRASEL, 2014). Ao tratar do interesse de cada um dos quatro membros da equipe, é possível concluir que, mesmo o estudo tendo como foco o ethos e as rotinas de produção dos profissionais 19

Outra entrevista foi realizada, porém, devido à má qualidade do áudio, não foi utilizada pelo pesquisador, que também não informa o gênero da fonte citada.

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acompanhados, questões envolvendo características como raça, classe social e, principalmente, gênero, são ignorados pelo pesquisador. Ao escrever sobre sua passagem pelo The New York Times, Robert Darnton (2010) possibilita conhecer como as relações de poder ocorrem no ambiente de uma redação jornalística e os conceitos sociais dos profissionais envolvidos. Pensando em meu emprego no The New York Times, lembrei que a única “imagem de pessoa” com que eu me deparara tinha sido uma garota de doze anos de idade. Os jornalistas na sala de redação achavam que os editores esperavam que eles escrevessem suas matérias pensando nessa criatura imaginária. [...] Por que doze anos? Eu costumava me perguntar. Por que uma menina? Quais são as ideias dela sobre a erradicação das favelas no sul do Bronx? Mas eu sabia que ela não passava de uma figura do folclore da 43ª street e funcionava simplesmente como uma advertência para que nossas matérias ficassem claras e legíveis (DARNTON, 2010, p. 78).

No fragmento acima, o autor mostra brevemente os valores que permeiam a equipe em questão referente à identidade de gênero. Ao utilizar uma “menina” de doze anos sob a justificativa de o conteúdo publicado precisa ser claro, não há qualquer explicação quanto à designação de gênero utilizada para traçar o perfil do leitor, ao que se entende que, para os profissionais da publicação, os textos precisam ser e fácil compreensão para que o público feminino possa consumi-lo. A hierarquia do jornal também tem influência no resultado das matérias, as quais são redigidas de forma a agradar os editores que possam, posteriormente, conceder algum tipo de benefício aos repórteres. Esses, por sua vez, concentram-se em pequenos grupos de acordo com pontos de afinidade, seja etária, cultural ou social (DARNTON, 2010). Enquanto alguns autores apontam que a realização da reportagem é resultado da forma como o jornalista vê seu público, como um todo, Darnton afirma que o resultado depende de diversos fatores. Os jornalistas podem ter alguma imagem assim, embora eu duvide disso, mas eles escrevem pensando em toda uma série de grupos de referência: seus preparadores, seus diversos editores, seus diferentes grupos de colegas na sessão Cidades, as fontes e objetos de seus artigos, os repórteres de outros jornais, seus amigos e parentes e grupos de interesse específicos (DARNTON, 2010, p. 96).

As concepções detectadas na produção da notícia, seja no ambiente do telejornalismo e no jornalismo de dados aqui exemplificados ou em outras plataformas midiáticas, têm impacto direto no conteúdo veiculado pela imprensa, que

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carrega valores e significados de jornalistas e empresas. Nas próximas páginas, o foco passa ao texto publicado, ao resultado do trabalho exibido na primeira parte deste capítulo em diversos veículos, analisados por outros pesquisadores. Assim, será possível compreender como tais identidades são apresentadas, produzindo determinados sentidos e, nessa direção, priorizando certas posições que são disponibilizadas para o público.

3.2. A LINGUAGEM DO JORNALISMO NA ABORDAGEM DE GÊNERO E SEXUALIDADE

As escolhas e concepções dos jornalistas durante a produção da notícia incidem no conteúdo que chega ao público. Esta seção trará estudos já produzidos referentes à linguagem usada pelos profissionais ao abordarem questões de gênero e sexualidade, bem como a presença de tais temáticas na imprensa brasileira. Este levantamento é fundamental para o conhecimento das pesquisas já realizadas sobre a relação entre mídia, gênero e sexualidade nas diferentes plataformas, para, posteriormente, voltar o foco ao objeto de análise desta monografia. Ao analisar a presença de lésbicas, bissexuais, gays, transexuais e travestis (LGBT) nas páginas dos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São, Paulo, Vicente da Silva Darde (2012) constata que a forma como esse público é representado em ambas as publicações reforça padrões binários e heteronormativos da sexualidade, à medida que tenta “encaixar” a população LGBT em padrões considerados aceitáveis, normais, frente aos demais. As representações da homossexualidade foram historicamente construídas por instituições regulatórias das relações sociais, tais como a religião (subversão da lei divina), o Estado (repressão) e pelas ciências médicas e psicológicas (patologização). São essas instâncias que constroem discursos que atribuem um caráter desviante, anormal e patológico à homossexualidade. (DARDE, 2012, p. 27)

Darde (2012), assim como apontou Silva (2010), reforça o papel do jornalismo na construção social, na qual a subjetividade dos profissionais envolvidos está constantemente presente. O pesquisador ainda aponta para a ambiguidade do jornalismo, à medida que, por um lado é mediador do conhecimento utilizando um discurso polifônico, ao mesmo tempo em que torna-se voz hegemônica “à medida

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em que o campo é legitimado socialmente para enunciar o discurso da atualidade” (DARDE, 2012, p. 52-53). Ao analisar dois dos jornais mais vendidos do Brasil20, Darde tem por objetivo não apenas detectar sua presença na mídia, mas saber de que maneira esta contribui para a construção da cidadania de tal público, ao tratar, por exemplo, de assuntos como direitos civis e violência. A imprensa, à medida que passa a tratar de assuntos como gênero e sexualidade, gera efeitos e interpretações que perpassam a linguagem utilizada. O mapeamento das fontes de informação presentes nos textos jornalísticos do gênero informativo da Folha observa, entre os agentes enunciadores do discurso sobre a população LGBT, um expressivo número de sujeitos que se nomeiam com suas identidades diferentes da heterossexualidade. A visibilidade das pessoas LGBT no jornal está relacionada a dois motivos principais: primeiro, devido à crescente denúncia de agressões, como as que aconteceram na região da Avenida Paulista, em São Paulo; segundo, porque muitos estão buscando oficializar sua união perante a lei. Estes fatos trouxeram o debate sobre a questão para o espaço público, pois como cidadãos eles possuem os mesmos direitos civis dos heterossexuais como casamento, adoção de crianças e outros benefícios a partir da “oficialização” da união (DARDE, 2012, p. 133-134).

Já no jornal O Estado de São Paulo, pode-se constatar que, em grande parte das matérias, há predomínio da presença de fontes institucionais, como indivíduos do poder judiciário e legislativo.

Observamos que é mais recorrente a presença das fontes institucionais por dois motivos: primeiro, porque elas e suas respectivas instituições serem os agentes responsáveis pelos fatos, como verificamos nas reportagens sobre o julgamento do STF sobre a união estável entre pessoas do mesmo sexo, ou pelas declarações discriminatórias de um deputado federal. Dentre os critérios de noticiabilidade, temos que as declarações de uma pessoa pública – seja político, artista, entre outros – tem maior pessoa que um cidadão “comum”. O segundo motivo se deve ao fato de que os jornalistas procuram essas fontes, consideradas credenciadas, para abordar diferentes ângulos sobre o tema, pois assim se daria mais a pluralidade de vozes no texto na construção do discurso sobre a matéria (DARDE, 2012, p. 202).

Nos dois veículos de comunicação analisados, Darde (2012) constata que fontes LGBT estão presentes principalmente pelo aumento dos registros de agressões causadas por homofobia e transfobia, em São Paulo. Outros temas 20

De acordo com a Associação Nacional de Jornais (ANJ), o jornal Folha de São Paulo foi o segundo mais vendido no ano de 2014, com média de circulação de 351.745, enquanto O Estado de São Paulo tem média de 237.901, ocupando o sétimo lugar no ranking nacional.

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abordados de forma similar nas publicações são a aprovação da união civil entre casais homossexuais e a discriminação de um deputado federal para com um jogador brasileiro. O discurso predominante sobre a diversidade sexual está ancorado no desvio dos papeis sexuais e dos padrões de conduta estabelecidos como “normais”. “Tais comportamentos aparecem relacionados aos seguintes atributos: “promiscuidade”, “doença” e “crime e pedofilia”. Estas ancoragens sobre o tema aparecem nos discursos dos agentes sociais das Igrejas Católica a e Evangélica (sejam eles religiosos ou políticos pertencentes à bancada religiosa). [...] A utilização do termo homossexualismo, associado ao imaginário da doença, também é uma estratégia que reforça o preconceito, reproduzindo o padrão normatizado de se conceber as relações sexuais com a finalidade de procriação entre homem e mulher (DARDE, 2012, p. 204).

Além de discursos discriminatórios vindos de fontes religiosas e da utilização do termo patologizante “homossexualismo”, é possível constatar ainda a falta de diversidade referente às diversas identidades que integram o público LGBT. No caderno de turismo voltado à esta população, a presença de lésbicas, bissexuais e transexuais é ínfima, “o que revela também o preconceito dentre os próprios homossexuais, pois parte dos textos foi escrita por um jornalista e militante gay” (DARDE, 2012, p. 210). Os sentidos produzidos pelo discurso jornalístico sobre a população LGBT nos dois jornais estudados mostram uma tensão entre as representações que se mantêm conservadoras e outras que buscam desconstruir padrões culturais vigentes acerca da sexualidade e, assim, ajudar no combate à repressão da diversidade sexual. Tanto no jornal Folha quanto no Estadão as representações que predominam são desvio de norma, baseadas em doutrinas e ideologias religiosas que consideram a homossexualidade como pecado, anormalidade, doença e crime; e cidadão merecedor de direitos civis, que aparece em termos quantitativos ligeiramente abaixo do primeiro colocado, mas que consideramos em equilíbrio nesses discursos (DARDE, 2012, p. 210).

Mesmo que as temáticas referentes às identidades de gênero e sexualidade venham ganhando visibilidade, elas ainda são tratadas como comportamentos desviantes, à medida em que aparecem com cunho patológico ou com discursos religiosos discriminatórios. Além disso, “as representações que possibilitam a inclusão social e o combate às desigualdades para a população LGBT está ancorada em uma perspectiva que reitera a heteronormatividade hegemônica” (DARDE, 2012, p.214), principalmente a união estável, onde relacionamentos monogâmicos aproximam homossexuais da “normalidade”.

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Os jornais não são o único ambiente de normatização na mídia. As revistas, em especial as voltadas ao público feminino, constantemente reforçam padrões em suas páginas. Patrícia Conceição da Silva (2010), ao estudar as revistas Atrevida e Capricho, direcionadas ao público adolescente, observa que relacionamentos e sexualidade são temas recorrentes em publicações do segmento. Dessa forma, tornam-se importantes na desconstrução ou no reforço de padrões e na definição dos papeis de cada gênero. Embora a sexualidade seja apontada como temática recorrente nas revistas adolescentes nos últimos anos, questões ligadas à homossexualidade, bissexualidade e transexualidade ocuparam um espaço bastante reduzido nos jornais e revistas no período analisado: em 2005, foram contabilizadas 30 inserções sobre o assunto e apenas onze em 2006. Entre as hipóteses levantadas pela pesquisa para justificar essa redução está o fato de que, no ano de 2005, houve forte debate sobre homossexualidade na televisão brasileira incitado pela novela América, exibida pela rede Globo, em horário nobre. (SILVA, 2010b, p. 24)

Historicamente, estudos voltados à imprensa com foco no público adolescente são importantes enquanto fontes de informação sobre sexualidade. Porém, ao atribuir às mulheres “papeis” específicos e um padrão de feminilidade excludente, pesquisadores constataram que elas são, na maioria das vezes, “colaboradores para a perpetuação do tradicional padrão dicotômico de gênero e também das desigualdades entre homens e mulheres” (SILVA, 2010b, p. 36). As diferentes identidades de gênero são questionadas à medida que estão fora da normatividade. Ao retomar o termo utilizado por Judith Butler (2001), a pesquisadora mostra que as identidades desviantes são consideradas “abjetas”, por não haver “concordância” entre gênero, sexo e prática sexual. No campo da sexualidade, o abjeto está circunstrito àqueles que fogem à norma heterossexual. No entanto, não podemos perder de vista que “heterossexualidade” e “homossexualidade”, vistas como categorias naturais e universais pela sociedade ocidental contemporânea, foram noções inventadas, construídas e institucionalizadas ao longo do tempo. (SILVA, 2010b, p. 70)

Ao observar todo o conteúdo divulgado pelas duas revistas no período de um ano, Silva (2010b) constatou a frequência da abordagem da sexualidade nas páginas, que é colocada como um dos assuntos mais relevantes na vida dos adolescentes. Ao tratar, por exemplo, da primeira relação sexual das leitoras, ambas

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as

revistas

partem

da

mesma

perspectiva:

invariavelmente,

o

ato

será

heterossexual, conclusão relacionada à forma como ambas falam de cuidados e dúvidas do público. Outro ponto que comprova a heteronormatividade ao falar da perda da virgindade e na posterior vida sexual das adolescentes, é a presença da figura masculina, principalmente como namorado. Ao trazer depoimentos de leitoras, as revistas mostram os padrões internalizados por elas, como, na relação entre virgindade e casamento. O depoimento de uma garota, que declara a decisão de casar-se virgem, relaciona-se com a importância que é dada à virgindade feminina em nossa sociedade, ao fato de ela estar sempre relacionada a uma única forma de fazer sexo – a heterossexual – e, ainda, aos tradicionais ideais de casamento romântico, nos quais a mulher “entrega-se” para aquele que será seu por toda a vida. Por outro lado, o depoimento apresenta afinidades com o discurso que é disseminado pelas revistas no que diz respeito à valorização do próprio corpo, à prevalência da vontade feminina em caso de pressão do garoto para transar e, especialmente, à relação sexual “hétero” como a possibilidade única (SILVA, 2010b, p. 105).

Paralelamente, assim como apontou Darde (2012) no conteúdo dos dois jornais paulistanos, as páginas de Atrevida e Capricho também exibem discurso normatizado

quanto

às

relações,

ou

seja,

relacionamentos

monogâmicos

heterossexuais. Outro depoimento enviado à revista, esse por uma adolescente lésbica, mostra como a busca pelos padrões existe mesmo quando ao expor sua sexualidade, ao relatar que sonha com um casamento “careta” e em ter filhos. “Ou seja, ainda que a garota se assuma lésbica, o que significa um desvio da norma sexual, continua submetida ao binômio casamento/maternidade, ao qual as mulheres estão historicamente ligadas” (SILVA, 2010b, P. 108). A polarização entre homem e mulher também aparece no conteúdo das revistas, que apontam características tratadas como inerentes ao masculino e ao feminino, de maneira distinta. Silva (2010b) aponta para o tratamento de cada um de acordo com o sexo biológico, sem considerar os fatores que fazem parte da construção da identidade de cada indivíduo. Questões como a primeira relação sexual, a maternidade e o casamento apontam para a maneira como o conteúdo leva as leitoras a reforçarem padrões de comportamento e identidade.

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Por trás da ideia de um “instinto maternal” intrínseco às mulheres, entretanto, esconde-se um sistema de heterossexualidade compulsória que atua em função de interesses reprodutivos. Esse sistema que presume desejos, práticas e relacionamentos heterossexuais, também guia a trajetória das adolescentes construída pelas revistas. Podemos afirmar que grande parte dessa trajetória é construída em função do outro – o garoto – e marcada pela necessidade de agradá-lo, o que remete, também, à misoginia (SILVA, 2010b, p. 131).

Outras situações, como o dia dos namorados, no qual só aparecem casais heterossexuais e mesmo a definição do termo (casal) como homem e mulher, corroboram

para

reforçar

conceitos

normatizadores.

O

tema

“casamento

homossexual” surge em formato de uma enquete, que discute se o ato deve ou não ser legalizado, trazendo opiniões favoráveis e contrárias dos leitores, com argumentos religiosos (“Deus criou homem e mulher para viverem juntos”) seguido da defesa de “papeis” diferentes para homens e mulheres. Os resultados da análise apontam, em primeiro lugar, que as revistas constroem relações entre sexo, gênero, desejo e prática sexual que exigem continuidade entre esses aspectos, deixando poucos espaços para possíveis rupturas. O termo “sexo” é compreendido dentro de uma lógica binária (homem/mulher) e em termos biológicos, ligado diretamente às características corporais. Logo, notamos a existência de apenas dois sexos para as revistas, o que reforça a eterna dicotomia que contribui para reiterar a heteronormatividade (SILVA, 2010b, p. 165).

No ambiente televisivo, a representação de identidades de gênero aparece com maior frequência na teledramaturgia. Ao analisar como transgêneros estão inseridas em minisséries e seriados da Rede Globo, a pesquisadora Tess Chamusca Pirajá (2011) encontrou tais personagens em três produções da emissora. A televisão, assim como o jornalismo em sua amplitude, exerce importante papel na manutenção e desconstrução de padrões e representações sociais. “Além dos telejornais e dos demais programas informativos, tal função educativa é exercida, sobretudo, pelas obras teledramatúrgicas, que ocupam o horário nobre e alcançam altos índices de audiência” (PIRAJÁ, 2011, p. 71). Enquanto em telenovelas personagens travestis e transexuais têm pouca representatividade, em programas de auditório e telejornais “popularescos” sua participação é frequente. Tess Chamusca Pirajá (2011, p. 96) aponta que nos formatos estudados: Identificamos somente a presença de personagens travestis, em três obras. O seriado Carandiru, outras histórias (2005, 10 episódios), no qual a experiência de ser travesti dentro de um contexto prisional é

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problematizada, destacadamente, a partir da personagem Madona; a minissérie Queridos amigos (2008, 25 capítulos), que apresenta Cíntia, uma cantora de boate que circula entre intelectuais de classe média, e Brenda, uma prostituta de luxo; e o seriado Ó paí, ó (2008/2009, 10 episódios), cuja trama inclui Yolanda, prostituta e moradora de um cortiço no Centro Histórico de Salvador. Embora não possamos afirmar que não existiram outras personagens travestis nas minisséries e seriados da Globo (o que exigiria a observação direta de mais de cem produções), o contexto político anterior à década de 90, no qual vigorava a ditadura militar e uma forte censura aos meios de comunicação, torna pouco provável a presença desse grupo social na tela da TV neste período.

A

travestilidade

é

apontada

como

uma

identidade

constituída

fundamentalmente pelo cultivo da imagem feminina que vai além da forma de vestir, mas também inclui mudanças corporais (PIRAJÁ, 2011). Em Carandiru – outras histórias, três dos dez episódios apresentam personagens travestis.

Enquanto Camille e Melissa são franzinas e donas de uma feminilidade que pouco se destaca na tela, Madona é esbelta e atraente. É branca, alta, tem ombros largos, braços fortes, pernas grossas, seios fartos, sobrancelhas arredondadas e unhas compridas. Sem pelos na cabeça, ela usa uma peruca loira de fios lisos e longos. O acessório permite que a personagem usufrua de um bem muito valorizado entre as travestis: longas madeixas. Além disso, Madona parece ter mais intimidade com o processo de produção do rosto (PIRAJÁ, 2011, p. 109).

Madona, uma das três personagens travestis, é casada com Edelso e, antes da prisão, trabalhava como profissional do sexo, sendo apresentada como provedora, o que é visto com incômodo pelo marido, que acredita ser seu papel. Nesse contexto, é possível observar padrões heteronormativos no relacionamento, seja pelo anseio do marido de “tirá-la da rua” ou pelo desejo apresentado por Madona de ter um filho. Assim, a personagem associa a feminilidade almejada à maternidade, situação que seria possível se ela deixasse de exercer a prostituição (PIRAJÁ, 2011). A relação não-normativa encontra problemas no momento em que Edelso tenta visitar Madona na prisão e é proibido ao se apresentar como marido da travesti. Além disso, a opção por uma abordagem romantizada da história de amor de Madona e Edelso (em que há uma presença pouco expressiva de contatos íntimos), possivelmente, tem a ver com a busca pela aceitação do público a um casal não-hegemônico. A princípio, podemos argumentar que se trata de uma estratégia louvável porque estimula as pessoas a se sensibilizarem com o preconceito sofrido pelas travestis. Mas, o uso recorrente de tal esquema apresenta um risco. Essas representações (ainda que não explicitamente ou intencionalmente) podem reforçar a ideia de que

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somente uma parte das travestis merece legitimidade: as que desejam ser esposas fiéis e mães de família (PIRAJÁ, 2011, p. 121).

Já em Queridos Amigos, as duas personagens travestis, Cíntia e Brenda, surgem na mesma cena, quando Benny, homossexual e um dos personagens do núcleo principal, vai à boate onde ambas trabalham em busca de companhia para um evento entre amigos. Em uma das cenas na boate, enquanto Cintia canta, Brenda conta a Karina que tem um cliente com quem ela não pode aparecer em público. Mais tarde, quando Alberto sofre uma hemorragia cerebral e Brenda vai até o hospital entregar um bilhete de Iraci, ela descobre que o seu cliente Luis Augusto é Guto, ex-marido de Lena. Inicialmente, ela prefere manter sigilo sobre o assunto. Mas, ao descobrir que Guto se aproveitou da condição de marido traído para restringir o contato de Lena com a filha, muda de ideia e decide ajudá-la. Além de explicar a Lena que Guto sempre fez de tudo para esconder a homossexualidade, Brenda entrega a ela fotos de uma viagem dos dois a Las Vegas. Com isso, Lena conversa com o ex-marido e consegue ficar mais tempo com a filha (PIRAJÁ, 2011, p. 126).

De modo geral, ambas as personagens são tratadas no feminino pelos demais, todavia, em alguns momentos, expressões como “seu anormal”, “coisa esquisita” e “aquilo” são usados. O tratamento hostil é vivenciado principalmente por Cíntia, ao ser levada por Benny ao aniversário do amigo Leo, que o havia pedido para que não levasse seu namorado. Neste capítulo, de modo debochado, Benny critica a família mononuclear burguesa e a heterossexualidade. E, para isso, usa Cintia. Além dele, os próprios realizadores da minissérie brincam com o tema ao incluírem na cena um suspense sobre a identidade da moça que o acompanha e estabelecerem um paralelo entre dois casais heterossexuais expressando afeto na mesa e um par não-convencional que se junta a eles e desestabiliza os padrões de normalidade. Com o intuito de provocar os amigos, Benny, um homossexual assumido, forja um par monogâmico, feliz e ansioso para constituir uma família (algo não somente aceito, mas valorizado socialmente), em que o papel feminino é ocupado por uma travesti. No entanto, ele não contava com o fato de ter contratado uma travesti que, por todos seus atributos (feminilidade recatada e muito respeito pela instituição da família), dificilmente faria “um show ‘pros’ coroas”, como ele desejava (PIRAJÁ, 2011, p. 136).

A sexualidade das duas personagens é abordada de forma discreta, à medida que permanece ausente em grande parte da história. Ainda assim, a produção promove a discussão do debate sobre a identidade de gênero, à medida que apresenta a personagem Brenda de forma feminina e sem conflitos em relação ao órgão genital. Em diversos momentos das cenas, surgem debates quanto ao gênero

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das duas personagens travestis, ao que Cintia conclui “eu sou gente, muito gente” (PIRAJÁ, 2010). A última trama analisada, Ó pai, ó, relata a vida de moradores de um cortiço na cidade de Salvador, dentre as quais a travesti Yolanda. Logo no início, ela e um morador de rua, considerados “indesejados” passam por uma tentativa de expulsão com a chegada de um navio de turistas. Após apanhar da polícia e ficar machucada, o que a impedia de continuar trabalhando como profissional do sexo, ela passa a trabalhar com Neusão, porém, está afirma não poder assinar a carteira da nova funcionária, devido à carga de impostos (PIRAJÁ, 2011). Ao explicá-la que cônjuges que trabalham juntos não têm este tipo de despesa, imediatamente, Yolanda propõe o casamento a Neusão. A cerimônia é realizada no cartório civil e no próprio bar, com direito a vestido branco, véu e grinalda. Surge a ideia de adotar uma criança, um desejo antigo de Neusão. Quando tudo parecia resolvido, a funcionária do cartório descobre o sexo biológico das personagens, o que impede que as duas consigam concretizar a adoção. Yolanda sugere que as duas tenham um filho do modo convencional, mas Neusão recusa e argumenta que elas podem começar por uma inseminação artificial (PIRAJÁ, 2011, p. 149).

Mesmo assumindo a imagem feminina, Yolanda conclui que “no fim das contas” é homem, paralelamente, os demais personagens a veem como mulher. “Os que demonstram uma atitude preconceituosa utilizam os termos “desviado” (Seu Gerônimo) e “bicha” (delegado) para insultá-la. A personagem é citada como travesti somente no site de divulgação da obra” (PIRAJÁ, 2011, p. 150). Quase todos, incluindo Yolanda, são negros. Ela, por sua vez, é definida como “dona de um corpo escultural, ela tem braços fortes, pernas torneadas, barriguinha enxuta e bumbum firme” (PIRAJÁ, 2011, p. 151), além de elementos considerados femininos, como o uso de maquiagem, a retirada de pelos e unhas e cabelos compridos. Além disso, a personagem apresenta-se preparada para lidar com comentários preconceituosos e longe de um comportamento vitimista. A prostituição é vista como uma forma de sustento, considerada uma ocupação. Todavia, a heteronormatividade está presente na série, exatamente na relação entre a travesti e Neusão. É justamente no momento em que Yolanda vai para a casa de Neusão que as duas deixam de ter um casamento de fachada e começam a construir uma relação de companheirismo. Mas é também nesta circunstância que percebemos a presença de ideais heterossexuais (matrimônio, vida conjugal

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estável, filhos) em duas personagens não-heterossexuais. Assim, segundo Yolanda, pelo simples fato de “ter uma mulher em casa”, Neusão não precisaria mais se preocupar com afazeres domésticos, já que ela, sua esposa, encarnou uma idealização da rainha do lar – a mulher sustentada pelo marido, que cozinha, cuida da arrumação da casa, sabe onde cada objeto está guardado e responde carinhosamente quando o companheiro solicita algo. E é por se mostrar tão prendada que ela estaria pronta para casar, como se diz no cotidiano (PIRAJÁ, 2011, 161).

Ao mostrar Yolanda de forma contextualizada, abordando cotidiano, profissão e relacionamentos, não só é possível “desmistificar o exotismo que ronda a travesti como desconstrói a ideia de que ela flutua livremente com sua ambivalência, como se estivesse à parte do resto da sociedade” (PIRAJÁ, 2011, p. 170), tratando-a menos de forma

estigmatizada

do

que

mostrando-a

de forma humana.

Paralelamente, detecta-se, assim como em Carandiru: outras histórias, a busca pela normatividade através da construção de uma família “tradicional”, ao mesmo tempo em que a personagem não abandona a aparência extravagante que compreende como feminino. As pesquisas aqui utilizadas mostram como a mídia aborda temáticas relacionadas ao gênero e à sexualidade, possibilitando compreender como o conteúdo produzido contribui para a construção de significados em âmbito social. Tal mapeamento é fundamental para compreender a trajetória da notícia, desde sua produção até ser veiculada, e assim chegar ao objeto deste estudo que analisará, no próximo capítulo, como o jornalismo impresso, especificamente um veículo direcionado ao público feminino, trata de tais assuntos nas suas páginas.

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4 REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA EDIÇÃO BRASILEIRA DA REVISTA GLAMOUR

Os capítulos anteriores permitiram a compreensão de conceitos sobre gênero e sexualidade fundamentais para a análise de conteúdo cujos resultados serão apresentados em seguida. Da mesma forma, a revisão bibliográfica exibida no capítulo anterior serve como base para entender como o trabalho realizado pela mídia, em geral, e pelos jornalistas, particularmente, contribuem para a construção de significados. Após a apresentação desse cenário, este capítulo apresentará o corpus selecionado para a pesquisa, um breve histórico sobre a imprensa voltada ao público feminino e, por fim, os resultados obtidos com a análise de conteúdo.

4.1 O CORPUS DA PESQUISA

A escolha da revista Glamour para este estudo se deve à sua relevância no mercado editorial brasileiro, no qual está presente há apenas três anos e já é a revista que mais cresce em circulação paga no segmento22, além de ser a mais vendida na Europa, considerando-se as publicações concorrentes23. No início da pesquisa, duas revistas haviam sido escolhidas – Glamour e Vogue -, porém, com a constatação da similaridade de público-alvo, linha editorial e abordagem, optou-se por apenas uma, sendo suficiente para compreender o segmento na perspectiva aqui escolhida. O objetivo deste capítulo é descobrir de que maneira o jornalismo feminino representa as temáticas voltadas às questões de gênero e sexualidade, considerando seu papel na construção de significados, o qual pode ser usado tanto para corroborar padrões pré-estabelecidos quanto para desconstruí-los e, assim, concluir se a imprensa, aqui especificamente a revista Glamour, contribui para o debate sobre a diversidade e o combate a estereótipos.

22

Comparados os números do primeiro semestre de 2013 e 2014, entre as revistas consideradas concorrentes: Cláudia, Elle, Estilo de vida, Marie Claire e Nova, com base nos números do Instituto Verificador de Comunicação (IVC). 23 Aqui, não são especificados os títulos de tais publicações.

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Nas 12 edições analisadas, somados os títulos presentes no sumário, há 421 matérias jornalísticas sobre pautas variadas. Três assuntos foram escolhidos para balizar a análise: relacionamentos afetivos – incluindo namoros, casamento e família -, sexualidade e identidade de gênero. Da totalidade de matérias, 63 falam de relacionamentos, dez tratam especificamente de sexualidade e três abordam identidade de gênero, porém, em algumas delas, mais de um assunto foi detectado, optando-se por classificar de acordo com a temática em destaque. A revista Glamour é publicada pela editora Globo e tem como público principal as classes A e B, com custo unitário de R$ 7 (2015). De acordo com texto publicado no mídia kit25, assinado pela editora Mônica Salgado, dentre as pretensões da revista está a democratização – especialmente da moda -, buscando “surpreender, ousar, pensar fora da caixinha”. O posicionamento retratado pelo texto da editora serve como interesse inicial para questionar de que maneira a revista de fato “pensa fora da caixa”, como se diferencia das demais e se tal conceito se aplica aos temas desta pesquisa, se há uma visão e representação diferenciada de gênero e sexualidade ou apenas foi pensada para a moda e outras temáticas historicamente abordadas pela imprensa feminina. Após a pesquisa bibliográfica que reconstituiu a perspectiva teórica para abordar historicamente gênero e sexualidade no Brasil e na mídia, na primeira parte deste trabalho, agora será utilizada a técnica de análise de conteúdo para detectar como tais temáticas estão presentes no objeto selecionado. A metodologia escolhida, portanto, será fundamental para avaliar qualitativamente a abordagem sobre os assuntos delimitados. Foram analisadas doze exemplares de Glamour, entre outubro de 2014 e setembro de 2015, edições 31 a 42, período estabelecido pela proximidade cronológica, optando por edições contemporâneas a esta pesquisa, para compreender a forma como os assuntos envolvendo identidade de gênero e sexualidade são representados pela publicação atualmente. Para tal, será feito um breve panorama histórico do segmento midiático escolhido para este estudo, a fim de contextualizar como a imprensa feminina surgiu no jornalismo de revista brasileiro e, posteriormente, trazer o resultado obtido pela pesquisa.

25

Disponível em: http://editora.globo.com/midiakit/gl/midiakit_gl.pdf.

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4.2 JORNALISMO DE REVISTA NO BRASIL

O jornalismo de revista tem grandes diferenças em comparação ao de jornais. Além da segmentação, presente em sua essência, ela “está no espaço privado dos leitores, na casa, na intimidade, pode tratar diretamente, ‘chamar de você’” (SCALZO, 2011, p. 14). Tal proximidade aponta a necessidade de falar com o público, característica primária deste segmento. Gênero, idade e classe social são alguns dos pontos considerados ao definir o público-alvo de cada uma, tendo em vista produzir conteúdo com o qual tais leitores tenham interesse e se identifiquem A segmentação surge pelo marketing, nos Estados Unidos, em contraponto ao mercado de massa (MIRA, 2004), porém, ao mesmo tempo em que diferencia grupos uns dos outros, aponta para um conceito de igualdade. Os movimentos sociais e culturais gerados neste contexto buscam questionar esse conceito de igualdade centrado na figura do homem, adulto, branco, ocidental, a partir de grupos historicamente submetidos como as mulheres, os jovens, os negros, etc. Ao fazer isto, acentuam o potencial moderno de ruptura com as tradições, aprofundam cada vez mais esse processo até chegar à atual “política de identidades”, quando aparecem movimentos como os das mulheres negras, homossexuais negros, mulheres homossexuais, etc. Portanto, um dos fatores que faz com que o mercado tenha que se empenhar cada vez mais em conhecer cada grupo de indivíduos que pode formar um segmento é esse processo de demarcação das diferenças sociais que já pode ser considerado de longa duração (MIRA, 2004, p. 250-251).

O crescimento da imprensa feminina ocorre junto à ampliação do capitalismo, que passa a ver a mulher como consumidora, sobretudo em áreas como a moda e bens de consumo. Com isso, grupos considerados minorias, que até então militavam para ter legitimidade, ao buscarem visibilidade também se tornam segmentos do mercado de consumo, como os idosos, deficientes físicos e homossexuais (MIRA, 2004). “Para o mercado, evidentemente o que interessa é o seu potencial de consumo. Para estes grupos, historicamente discriminados, trata-se de recuperar sua autoestima e mudar sua trajetória social” (MIRA, 2004, p. 255). Porém, ao mesmo tempo em que ganham atenção, o mercado vende ao público promessas de realização mediante a aquisição de bens, conforme aponta Agnes Heller28 (1998,

28

HELLER, Agnes; FEHÉR, Ferenc. Da satisfação numa sociedade insatisfeita, in A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998 apud MIRA, Maria C. Cultura e segmentação: um olhar através das revistas. São Paulo: EDUC, 2004.

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apud MIRA, 2004) “o mercado transforma a necessidade moderna de autodeterminação dos grupos em carência ou falta de determinados produtos. E retira daí sua força.” A segmentação passa a estar não apenas nas revistas, mas nas diversas plataformas de jornalismo e entretenimento, como a televisão e o cinema, considerando diversas variáveis interseccionais como gênero, idade e situação sócio-econômica, “o que permite que as empresas ao explorarem um segmento ganhem em sinergia entre todos eles, o que perdem em abrangência do mercado” (MIRA, 2004, p. 257). Em meio a este contexto, as revistas femininas surgiram produzidas por homens, em uma época em que as mulheres começavam a ser alfabetizadas. Trazidas ao Brasil no século XIX, elas copiavam modelos europeus, em especial o francês, apontando novidades de moda, assuntos voltados aos afazeres de casa, ilustrações, pequenas notícias e artigos. Esse modelo foi repetido, com pequenas diferenças, durante todo o século XIX e a primeira metade do século XX. É certo que houve também, nesse período, publicações feitas de mulheres para mulheres, preocupadas com sua condição na sociedade e seus direitos, mas são poucas e a maioria tem vida curta (SCALZO, 2011, p. 33).

As mudanças ocorrem a partir da segunda metade do século XX, quando as mulheres, até então vistas apenas como donas de casa em sua essência, passam a ser tratadas como consumidoras. A transformação mais marcante vem com Carmem da Silva, psicóloga e jornalista, que na década de 1960 escrevia a coluna “A arte de ser mulher” na revista Cláudia. Neste espaço, a jornalista começa a discutir temas que eram omitidos pelo restante da revista – e até mesmo do segmento -, como machismo, alienação e sexualidade feminina (SCALZO, 2011). A mulher, tratada como “segundo sexo”, vê a imprensa voltada a ela abordar assuntos aparentemente supérfluos, ocupando espaços secundários, ainda que tenha um público bastante significativo. Porém, tais temas “banais” influenciam a sociedade como um todo, não apenas as leitoras – e leitores. À primeira vista, receitas de culinária, conselhos de beleza, contos de amor e outros assuntos – comuns às revistas, seções e suplementos femininos do mundo inteiro – são neutros. Porém, se sairmos da superfície, veremos que a imprensa feminina é mais “ideologizada” que a imprensa dedicada ao público em geral (BUITONI, 2009, p. 21).

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Buitoni (2009) aponta que a periodicidade das revistas (semanal, quinzenal, mensal) reforçam seu caráter ideológico, já que a distancia de notícias atuais. Ao mesmo tempo, os elementos da imprensa feminina “favorecem a utilização da mulher como um mito” (BUITONI, 2009, 25).

O mito é um “reflexo” que inverte, pois transpõe a cultura em natureza, o social em cultural, o ideológico, o histórico, em “natural”. Um fato contingente, por exemplo, aparece como sempre tendo acontecido na sociedade. Apesar de formado pela cultura, apresenta-se como se fosse um fato da natureza. Ora, a imprensa feminina privilegia o ser mulher, propõe modelos culturais como sendo lógicos e naturais (BUITONI, 2009, 25).

O início da imprensa feminina no Brasil, no século XIX, com o periódico Espelho Diamantino, do Rio de Janeiro (1827), apresenta assuntos “leves” e homogêneos. Mais tarde, algumas publicações começam a reivindicar mudanças importantes referentes aos direitos das mulheres, especialmente referente à educação. Durante todo este período, apesar das tentativas de alcançar certa liberdade e mudar a maneira como temáticas femininas eram abordadas, a identidade da mulher e ainda mais, a sexualidade, sempre foram reprimidas ou submetidas ao homem. No final do século XX, Marie Claire chega ao Brasil e traz consigo as marcas editoriais da edição francesa ao abordar assuntos considerados polêmicos, depoimentos e culturas variadas (BUITONI, 2009). Mais do que isso, “Marie Claire alcançou bastante receptividade, conseguiu também um grande número de assinantes e recebeu prêmios por suas matérias ousadas como “especial pênis: força e fragilidade do sexo masculino”, de 1992” (BUITONI, 2009, 143). Neste excerto já é possível ver que a sexualidade feminina, ainda que pareça cada vez mais exposta, liberta e debatida, continua vinculada e protagonizada pela masculina. No final dos anos 1990, Marie Claire e a revista adolescente Capricho acompanharam o crescimento da abordagem sobre a sexualidade feminina, tendo como base a matriz heterossexual. Neste período, a preocupação com a epidemia de Aids fez com que o segmento passasse a falar de maneira constante sobre o assunto, trazendo à tona o que até então não era abordado: a transmissão do vírus não era exclusiva de relações homossexuais (BUITONI, 2009). Com linguagem

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distinta entre ambas as revistas, devido às características particulares de cada público-alvo, há diversas reportagens que reforçam a importância do uso de preservativo para prevenir de doenças sexualmente transmissíveis. As mudanças no tratamento da sexualidade feminina são limitadas à abordagem sobre prevenção de doenças e uso de camisinha. A referência às relações heterossexuais é evidente em diversos momentos. Nas quatro edições seguintes (dezembro, janeiro, fevereiro e março) haveria mais uma evolução enunciativa. Numa revista feminina, os anúncios normalmente têm como foco narrativo uma personagem mulher, para maior identificação com a leitora. Esses anúncios utilizaram a reversibilidade, e fazem um contraponto, mostrando a visão masculina em uma das páginas duplas (BUITONI, 2009, 171).

Além do protagonismo masculino apontado no trecho acima, em uma tentativa de mostrar a liberdade sexual da mulher, Marie Claire reforça o papel servil feminino ao trazer em suas páginas dicas para que as leitoras aprendam a colocar a camisinha. “Encare isso como um presente que você pode dar para ele. Já que tem que usar camisinha, que seja de maneira prazerosa”29. Esta breve seção permite retomar a maneira como a imprensa feminina surge no País e se desenvolve até chegar aos modelos editoriais atuais. Os assuntos e a forma como são desenvolvidos nas páginas das revistas permitem compreender as mudanças ocorridas no período e como este histórico tem relação com a presente abordagem. Após a apresentação do corpus de pesquisa e contextualização da imprensa feminina no Brasil, a próxima seção trará os resultados da análise de conteúdo da revista Glamour, sob a perspectivas teórica já apresentada nos capítulos anteriores.

4.3 REPRESENTAÇÃO DE IDENTIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NA EDIÇÃO BRASILEIRA DA REVISTA GLAMOUR

Nesta seção serão apresentados os resultados da análise de conteúdo realizada nas 12 edições da revista Glamour, entre outubro de 2014 e setembro de 2015. Conforme aponta Bardin “a análise de conteúdo aparece como um conjunto 29

Marie Claire n. 34, jan, 1994, p. 30-31 in: Buitoni, 2009, p. 171.

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de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens” (BARDIN, 2009, p. 40). Tal metodologia busca compreender os significados implícitos no texto, além dos significados literais dos termos, “é uma busca de outras realidades através da mensagem” (BARDIN, 2009, p. 45). A escolha da análise de conteúdo tem como objetivo descobrir quais são os significados das matérias, observando como são representados os três temas delimitados: sexualidade, relacionamentos afetivos e identidade de gênero. Considerando as 421 matérias sobre os variados assuntos tratados pela revista, presentes nos índices das 12 edições analisadas, que totaliza um período de um ano, foram identificadas 63 pautas voltadas a relacionamentos, dez referentes à sexualidade e três sobre identidade de gênero. Ao observar as fontes entrevistadas e mencionadas nas matérias, percebe-se que dos 68 casais presentes, incluindo aqueles que possuem fala no decorrer do texto e os que foram apenas citados pelos jornalistas a título de exemplificar situações tratadas pelas reportagens,

59 são

identificados como heterossexuais e nove como homossexuais, destes, seis estão na mesma reportagem, intitulada “Lésbica depois dos 30”, a qual trata de mulheres que descobrem a homossexualidade após os 30 anos, assunto enquadrado como um fenômeno. A escolha das matérias analisadas se deve à sua relevância, seja pela extensão ou pelo conteúdo e, no caso das temáticas voltadas à identidade de gênero, por ser um número bastante reduzido, todas constam nesta pesquisa. Com três páginas na edição de janeiro de 2015, a matéria “Lésbica depois dos 30”, fica em evidência na análise quanto à sexualidade, ao falar sobre a “investigação” feita pela repórter para descobrir o que leva uma mulher de 30 anos ou mais a questionar sua orientação sexual. Ao tratar o assunto de forma ampla, compreende-se que a publicação vê tal descoberta como algo que ocorre de forma similar para as mais diversas pessoas, no caso, as mulheres. O uso do termo “investigação” traz ao tema a conotação de algo que não se conhece e precise ser descoberto, desmistificado. Assim, ao mesmo tempo em que procura encontrar um ou vários motivos que expliquem a homossexualidade - tratada como tardia - de todas as mulheres com a idade mencionada, Glamour se posiciona de maneira a desvendar possíveis segredos que levem a tal comportamento, diferente da heterossexualidade, tratada com normalidade por todas as matérias que a abordam.

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Bem, aqui cabe uma pergunta: o que leva uma mulher feita – longe das descobertas da adolescência e da infância – a rever/questionar sua orientação sexual? “Quando desabafei com um amigo gay sobre essa paixão pela garota do trabalho, ele disse que eu estava carente, decepcionada com os homens e tal. Tanto não era que estamos juntas há um ano e seis meses”, diz Roberta (GLAMOUR, nº 34, 2015, p. 63).

A revista também trata a descoberta da sexualidade como algo vinculado à fase adolescente, ou seja, algo com prazo para ser definida, logo, biológica. A matriz heteronormativa, apontada por Miskolci (2009) como os comportamentos aceitos socialmente, vinculados à visão da heterossexualidade como natural, também está presente no depoimento de Roberta, uma das fontes entrevistadas. Ao mencionar o tempo em que está em um relacionamento para comprovar a veracidade de sua sexualidade, há a tentativa de incluir-se no padrão mediante um relacionamento monogâmico, situação que se repete quando a publicação tenta encontrar explicações para o fato de haver mulheres que descobrem sua homossexualidade após os 30 anos citando famosas que não apenas são lésbicas, mas seguem esse padrão de relacionamento, logo, dentro do que é aceito e esperado pela sociedade. Assim, é possível constatar a normatização não apenas no texto do repórter, como também no depoimento exibido. A matéria ainda faz alusão ao psicanalista Sigmund Freud como forma de legitimar o fato. “Diferente do instinto sexual animal, que tem sempre um objeto de interesse fixo, o foco da pulsão sexual dos seres humanos é extremamente variável. A qualquer momento da vida podemos mudar de interesses sexuais” (GLAMOUR, nº 34, 2015, p. 63). Novamente a ciência é utilizada para comprovar a sexualidade humana, pondo à prova os relatos das entrevistadas, à medida que estes precisam ser validados com argumentação científica. Assim, mesmo que a homossexualidade seja abordada, ela passa por um processo de regulação, como apontado por Louro (2001), mediante o qual precisa ser comprovada por um agente externo. A publicação refere-se ainda ao fato como um “fenômeno”, e remete à expressão americana “Late-booming lesbians”, traduzida como lésbicas que desabrocham mais tarde. Para explicar tais mudanças, dá-se voz a uma integrante da Associação Americana de Psicologia e, para uma estudiosa do Núcleo de Gênero e Sexualidade de São Paulo. A segunda fonte a contar sua história relata ter

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mantido um casamento com um homem, mesmo tendo curiosidade de relacionar-se com uma mulher, o que ocorreu logo após a separação. “Mais experiente e menos noiada, tratei de ir curtir minha solteirice. Me permiti, então ficar com mulheres. Minha primeira transa homossexual foi um divisor de águas na minha vida. Mulheres têm mais sensibilidade que faz o sexo e o relacionamento irem pra um outro patamar de maturidade” (GLAMOUR, nº 34, 2015, p. 63).

A dicotomia homossexualidade/heterossexualidade segue presente no texto. Aqui, é importante destacar, mesmo que não seja discurso da revista, um contexto polarizado, no qual uma sexualidade se opõe à outra, posição contrária à defendida pela teoria queer. Por fim, em tom intimista, apontado pelo uso do pronome “nós”, marca característica das revistas femininas, a publicação corrobora as palavras de uma psicanalista entrevistada. Não podemos temporalizar as questões relacionadas ao amor, desejo e afetividade. As experiências, em qualquer período da vida, podem surpreender e nos fazer questionar o estabelecido. Nunca é cedo ou tarde para repensar sua forma de educar e amar (GLAMOUR, nº 34, 2015, p. 63).

Além de utilizar uma visão da área da saúde, fato recorrente nas matérias que tratam de orientação sexual, a revista reforça sua perspectiva. Ao mesmo tempo em que fala sobre a importância de esclarecer e compreender a sexualidade como atemporal, o que vai de acordo com uma construção oposta à biologia, a psicanalista trata como algo indissociável o amor do sexo, como se, para ser “aceita”, a homossexualidade precisasse, necessariamente, ser relacionada a um casal monogâmico. Diferente do que é observado na abordagem da sexualidade entre homens e mulheres, há uma busca pelo vínculo entre amor e sexo quando se fala de homossexualidade, em uma tentativa de amenizar a visão de um comportamento desviante. Na terceira página, uma linha do tempo com mulheres famosas lésbicas e a “história do lesbianismo” mostra desde os primeiros registros, na Grécia Antiga, até o ano de 2014, este, não com uma mulher, mas com uma declaração do Papa Francisco “Se um gay busca Deus, quem pode julgar?”. A menção da autoridade religiosa aponta para algumas características encontradas também por Vicente Darde (2012), em sua análise dos jornais Folha de São Paulo e O Estado de São

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Paulo31: primeiramente, citar uma religião, que historicamente exclui gays, lésbicas e qualquer outra forma de sexualidade não voltada à reprodução, com uma abertura à aceitação homossexual, faz parecer que há uma redução do preconceito, porém, não aponta para nada feito efetivamente que mostre essa tolerância. Ao mesmo tempo, usa-se a voz de um homem em uma reportagem sobre mulheres, como alguém que “aceita” a sexualidade das mesmas, porém, paralelamente, há a contradição na fala, que reforça o machismo quanto à população homossexual, à medida que o pontífice se refere aos gays, como se fossem os homossexuais em sua totalidade, ou, em outra interpretação, os únicos que podem ser aceitos. Tal posicionamento ressalta o fato de que as notícias integram uma prática cultural e fazem parte da construção de significados sociais, seja pela forma como a narrativa é realizada ou pelas temáticas abordadas, e o principal, pela união entre os dois. Assim como os mitos, elas não transmitem as informações exatamente como são, mas pelo seu significado. (BIRD e DARDENNE, 1999). Mas, como é que os mitos são em termos de relatos noticiosos individuais – as estórias contínuas – de fato narrados? O mito só tem significado no contar, os temas e os valores culturais só existem se forem comunicados. Obviamente não existe um único mito ou narrativa que seja meramente repetido; no entanto, para continuar a ter força, os mitos devem ser constantemente recontados. (BIRD e DARDENNE, 1999, p. 267).

Assim, o que a mídia publica faz parte da construção de representações e significados. Quando se trata de identidade de gênero e sexualidade, ela pode contribuir para romper com mitos ou para reforçá-los, à medida que há uma repetição de conceitos e padrões. Na segunda matéria observada sobre a sexualidade feminina, ela é novamente vinculada à masculina como algo inerente. Sua importância é percebida pelo espaço dispendido, trazida como um dos destaques da capa e desenvolvida em três páginas, na edição número 35, de fevereiro de 2015, intitulada “A vingança do clitóris” (ANEXO A). “Sexo com penetração é bom e a gente gosta. Mas, como diz aquele comercial de TV, você pode mais!” (GLAMOUR, nº 35, 2015, p. 68). A abertura da matéria já aponta para a dedução de que todas as leitoras são, ou pelo menos

praticam

sexo

heterossexual

(com

penetração),

afirmação

que

é

acompanhada por outra, ainda no início do texto, que questiona a qualidade da vida 31

Ver página 32.

57

sexual da leitora: “coordenadas como você nunca viu (nem leu e muito menos recebeu) aqui!” (GLAMOUR, nº 35, 2015, p. 68). A matéria é subdividida por quatro intertítulos: “Sorry, guys”, “Pênisdependência?”, “O sexo no tempo das cavernas” e “Mas não é só isso...” No decorrer do texto, não há menção a relações homossexuais, em contrapartida, a sexualidade feminina é diretamente ligada a uma figura masculina. “Ah, se seu namorado bem-dotado soubesse o quanto ele é desnecessário pro seu orgasmo...precisaria de algumas sessões de terapia para recuperar a autoestima” (GLAMOUR, nº 35, .2015, p. 69). Mesmo ao trazer a possibilidade de sexo sem penetração, todas as sugestões dadas pela revista pressupõem a participação de um indivíduo do outro gênero. Em outro parágrafo, a matéria volta o tema – feminino – à maneira como o machismo atinge os homens em relação à sexualidade, performance e capacidade, além de citar que “os machos contemporâneos sofrem até hoje com vestígios da seleção natural de nossos ancestrais” (Glamour, n°35, 2015, p. 69). Por fim, um box “ensina os homens” a fazerem sexo oral nas parceiras. Nesta parte, fica clara a intenção de dirigir-se exclusivamente a casais heterossexuais, com o alerta “essa é só pra eles!”. Compreende-se aqui que por serem dicas referentes à sexualidade e anatomia feminina não precisem ser ensinadas a elas, porém, no decorrer da reportagem que trata sobre prazer feminino, este é vinculado a um parceiro masculino, mesmo que exalte o clitóris e o sexo oral. Ao mesmo tempo, percebe-se que a forma como o tema é tratado exibe o gênero feminino de forma passiva, à medida que trata algo que as mulheres deveriam ser protagonistas, como se fosse ligado diretamente ao desempenho masculino. A heteronormatividade também pode ser observada na matéria “Pornô pra elas: um raio-x do pornô pink” (GLAMOUR, nº 37, 2015, p. 132-133). O uso do “pink” no título da matéria já remete à dicotomia cultivada socialmente entre os gêneros, a qual diferencia o que é para meninos daquilo que é para meninas. Ao falar de um “novo mercado pornográfico feminista” a matéria, que tem três páginas, aborda novas opções feitas por e para mulheres, com menos clichês machistas. Porém, é possível

constatar

que



apenas

imagens

de

sites

mostrando

casais

heterossexuais – à exceção de um trio com duas mulheres e um homem -, além de

58

não citar em qualquer momento opções para mulheres com diferentes sexualidades, reforçando, mais uma vez, o padrão heterossexual. Reforçando o posicionamento normativo das matérias da Glamour, o mesmo ocorre em “Sexting, dicas práticas” (GLAMOUR, nº 31, 2014, p. 74). Em uma das páginas da editoria Você e Ponto, o repórter Igor Zahir traz dicas sobre sexo virtual para as leitoras da revista. Linguagem, imagens e vídeos são algumas das ferramentas citadas para aprender a usar aplicativos para a prática. “Deixe suas intenções fluírem de maneira light e elegante, sem sobrecarregar a tela do guapo” (GLAMOUR, nº 31, 2014, p. 74), orienta o trecho que traz dicas para “iniciantes”, as quais são seguidas por ideias para intermediárias e avançadas, como classifica o autor. Diferente das matérias anteriormente citadas, neste texto há apenas uma referência ao gênero masculino, mas ainda assim pode ser questionada pelo fato de ter um homem como autor, remetendo ao fato de que características como seu gênero, entre outras, podem influenciar a maneira como este conduz o texto. Mesmo com menor frequência, comparada às citadas anteriormente, como por exemplo, em “A vingança do clitóris”, a relação é apontada e fica subentendido já no princípio – no trecho citado – o intuito de falar diretamente aos casais heterossexuais. “O novo ABC do sexo”, publicada na edição número 33, de dezembro de 2014, com três páginas, mostra de maneira clara a intenção da revista em falar exclusivamente sobre a prática sexual entre homens e mulheres, trazendo novos termos relativos ao ato. Assim como em todos os demais textos, o repórter fala diretamente com as leitoras, tratando-as por “você”, prática comum na imprensa feminina, como aponta Scalzo (2011)32. Entre os termos apontados pela matéria está a sigla P.A. (pênis amigo ou sex friend, em inglês), além de outros, como sexorcismo. O termo é um sucesso por se referir à transa com uma pessoa pra esquecer a anterior. Algumas pessoas acham errado, dizem que não adianta ir pra cama com um pra tirar o outro da cabeça, mas se dá pra sair com o boy magia e correr o risco de dar certo, por que se fechar pra balanço, não é mesmo? (GLAMOUR, nº 33, 2014, p. 101).

Apesar de, na essência, o termo não ter qualquer associação com alguma orientação sexual, no decorrer da explicação dada pela revista, fica claro o intuito

32

Ver página 42.

59

de, novamente, referir-se a casais heterossexuais. Nota-se que, assim como observou Silva (2010b) no conteúdo divulgado pelas publicações voltadas a adolescentes, na imprensa feminina voltada ao público adulto, apesar de pautas constantes

sobre

relacionamentos,

a

presença

de

temáticas

envolvendo

homossexualidade, bissexualidade ou transexualidade são pouco representadas. Enquanto a abordagem sobre comportamentos não-normativos é pouco presente nos textos das edições analisadas, na mídia como um todo, eles se sobrepõem a outros assuntos em casos de pessoas conhecidas, como fica claro no relato da ex-atleta Laís Souza. Ao falar sobre sua vida após o acidente que a deixou tetraplégica, Laís mostra seu incômodo sobre a maneira como a imprensa destaca sua bissexualidade ao invés de sua vida profissional e atual condição física. “Por que minha opção sexual tem que ser manchete?! Quebrei meu pescoço, poxa! A gente precisa de manchetes pra isso, pra que cada vez existam mais pesquisas que me tirem da porcaria dessa cadeira!” (GLAMOUR, nº 36, 2015, 130). Ao falar sobre o tema, a revista se limita a publicar a reclamação da ex-atleta sobre a forma como a mídia hierarquiza os assuntos sobre ela após o acidente. Mesmo não sendo de autoria da revista, o que chama atenção neste caso é o uso do termo “opção”, feito por Laís, apontando para um conceito disseminado socialmente sobre a sexualidade, que acaba por confundir os próprios indivíduos envolvidos. A hierarquização de informações faz parte do processo de construção das notícias que é, por sua vez, “um processo complexo que se inicia numa escolha e seleção sistemática de acontecimentos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias socialmente construídas” (HALL et al., 1999, p. 224). Neste momento, os valores-notícia e as perspectivas do profissional interferem no resultado final apresentado ao público. As coisas são noticiáveis porque elas representam a volubilidade, a imprevisibilidade e a natureza conflituosa do mundo. Mas não se deve permitir que tais acontecimentos permaneçam no limbo da desordem – devem ser trazidos ao horizonte do significativo. Este trazer dos acontecimentos ao campo dos significados quer dizer, na essência, reportar acontecimentos invulgares e inesperados, para os mapas de significados que já constituem a base do nosso conhecimento cultural, no qual o mundo social já está traçado (HALL et al., 1999, p. 226).

Ao voltar o foco às pautas sobre identidade de gênero, antes mesmo de chegar ao texto, já é possível constatar que este é um tema raro nas páginas da

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revista e a problematização, além de ter pouca frequência, é feita de maneira superficial. Na Glamour, foi facilmente constatado que o assunto só é abordado quando relacionado a algum nome famoso que esteja em evidência na mídia, como é o caso de Caitlyn Jenner. Sob o título “Enquanto Kylie se transforma em cisne, o pai...”, após falar sobre as mudanças estéticas de uma das filhas de Bruce Jenner (Kylie Jenner), a revista faz uma sequência com quatro fotografias mostrando o pai, que, à época, passava por processo de redesignação de sexo. São quatro imagens, de 2004, 2012, 2013 e 2015, a última com a legenda “Bruce numa das últimas aparições: uma moça!” (GLAMOUR, nº 36, 2015, p. 60). A abordagem da transexualidade da ex-atleta (atualmente já com identidade feminina, Caitlyn Jenner) não traz informações adicionais sobre identidade de gênero e transexualidade, ou sobre o processo pelo qual Jenner passava, mas limita-se a falar de especulações sobre cirurgias plásticas para a retirada do “gogó”, considerada característica masculina.

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Na edição de julho de 2015, Caitlyn Jenner aparece mais uma vez como assunto na Glamour. Nesta edição a revista anuncia o reality show que vai contar a trajetória até que a transexual assumisse sua identidade feminina. Apesar de, mais uma vez, não trazer informações e esclarecimentos sobre transexualidade, nem se aprofundar nas dificuldades que Caitlyn passou durante os 65 anos em que manteve a identidade masculina, o que ganha destaque nesta matéria é a galeria que fala sobre quatro transexuais famosas da ficção e da vida real (ANEXO B). “Sophia, de Orange is the New Black: a atriz Laverne Cox nasceu homem e se tornou a primeira transgênero indicada pro Emmy, por sua personagem transex na série do Netflix” (GLAMOUR, 2015, nº 40, p. 136). Ao falar que a atriz “nasceu homem”, a revista, continua a não discutir a temática trans e ainda reforça a visão biológica que categoriza pela genitália, contrariando o conceito de construção social de gênero. A situação é agravada pelo fato de que, além de não esclarecer o tema, traz uma abordagem preconceituosa e desinformativa às leitoras. Outro nome citado é o da personagem Stephanie, travesti interpretada pelo ator Orã Figueiredo na série Tapas e Beijos, da rede Globo. Neste caso, apesar de se tratar de uma retranca da matéria voltada a personagens trans, o foco se dá para o relacionamento entre ela e o marido, descrito como “um tipão macho alfa”. Assim, além de tirar a personagem do protagonismo do tema, o texto volta o foco ao casamento. Assim como detectou Robalo (2014) em sua pesquisa, aqui também é possível perceber a normatização associada à biologia, bem como o protagonismo da heterossexualidade e do masculino frente ao feminino. A representação trans, além de superficial, traz falhas também no caso do ator transexual Thammy Miranda. No especial “o que me torna única”, da edição de agosto de 2015, Glamour traz relatos de famosas que assumiram características “fora dos padrões”, como peso, cabelos crespos e cicatrizes. Em meio aos relatos, ele fala sobre as dificuldades de assumir sua identidade masculina. O espaço dado ao ator contradiz a questão sobre o qual ele fala, por inserir um homem transexual em uma campanha voltada exclusivamente às mulheres, como fica claro no título. Mesmo que a intenção da revista ao trazer à luz a temática transexual seja positiva, pode causar confusão nas leitoras, à medida que insere o ator em um cenário de fala feminina.

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A análise de textos que tratam de relacionamentos, seja sobre namoros, casamentos, ou mesmo no contexto familiar, permite detectar que, assim como nas outras duas temáticas observadas, há reforço da normatividade. Entrevistas com as famosas que estampam cada edição da revista trazem questionamentos sobre casamento, namoro e maternidade, como é o caso da apresentadora Luciana Gimenez, capa da edição de julho de 2015. Casada com o dono da emissora em que trabalha e mãe de um filho oriundo do relacionamento com o cantor Mick Jagger, 29 das 35 perguntas feitas à entrevistada tratavam dos relacionamentos, família e dificuldades durante a gravidez. A vida profissional da apresentadora pouco aparece durante a entrevista. Além do repetitivo foco na vida privada, nesse caso há um interesse ainda maior pelo relacionamento da apresentadora com o cantor, mencionado constantemente nas perguntas. É importante perceber também que mesmo mulheres mais jovens são atingidas por esses assuntos. Marina Ruy Barbosa, capa do mês de novembro, com apenas 19 anos, teve perguntas frequentes sobre sua vida pessoal, mesmo estando em momento importante da vida profissional, fato citado pela própria reportagem. Das 28 perguntas feitas à atriz, seis mencionaram relacionamentos e boatos sobre possíveis envolvimentos. Tais questionamentos são recorrentes em entrevistas com mulheres conhecidas na mídia, assim como questões referentes a matrimônio e maternidade – esses dois, não citados nesta, especificamente, mas detectados nas anteriores. Por outro lado, é possível detectar alguns casos em que os relacionamentos são tratados de maneira secundária, como em “Hollywood é aqui”, entrevista com a capa da edição de outubro de 2014, a atriz americana Kirsten Dunst. Do total de nove páginas entre perguntas, respostas e sessão de fotos, apenas na última página a repórter questiona a atriz quanto a filhos e casamento. Ao ser perguntada se quer ter filhos, Kirsten diz que sim, mas apenas após se casar, quando então vem a pergunta referente à festa de casamento e se ela sonha com muitos convidados e um grande evento. Ainda assim, nota-se nesta matéria algo observado também em “Sexting, dicas práticas” (GLAMOUR, nº 31, 2014, p. 74), sobre sexualidade, na qual não há foco em perguntas voltadas a filhos e família e, em específico nesse caso, não há menção a uma figura masculina. Ao mesmo tempo, ao responder afirmativamente quanto ao desejo de ter filhos, percebe-se também que o ambiente

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na qual está inserida tem influência sobre a atriz. “(Quero) muito. Duas grandes amigas estão grávidas. Aliás, todas ao meu redor estão grávidas! Mas sou bem tradicional, então gostaria de me casar antes de ter bebês” (GLAMOUR, nº 31, 2014, p. 108). Na mesma edição, “S.O.S. pé na bunda” traz dicas de como as mulheres podem lidar com o término de um relacionamento, vinculando a pauta a um programa televisivo que aborda a mesma temática. São dez ideias do que fazer para superar a fase, todas voltadas às leitoras do gênero feminino, com diversas citações que comprovam o foco em casais heterossexuais. Claaaaro que tem que ter a hora de falar mal do ex. Ô se tem! Já parou pra pensar nos defeitos profundos de valores que ele tinha? Tipo aquilo que sua ex-sogra falou um dia e você não deu muita bola...É hora de caçar os defeitos pra modo de pegar um bode profundo dele. Você tem que ficar com a sensação de que vocês não tinham nada a ver. E não tinham mesmo, né? Ou tinham? [...] Ok: agora você pode voltar às redes sociais. Bloqueie o ex ou pare de segui-lo. Uai, você não vai querer ver a vida dele (ou deveria não querer)!Aproveita pra parar de seguir os amigos também, porque tem amigo que aaama mostrar o soldado que está de volta. E alôôô: nem ouse postar frases com efeitos moral pra mostrar que você está bem ou mal. Assim só vai mostrar que se importa a aponto de querer atingi-lo (GLAMOUR, nº 31, 2014, p. 112).

Além de fazer referência constante a um homem como segundo componente dos relacionamentos, a revista trata as reações femininas como algo generalizado, com ações iguais a todas as mulheres, trazendo um manual para que estas consigam retomar a vida sem o homem com o qual se relacionavam. Na segunda parte da matéria são apresentados três relatos sobre relacionamentos que tiveram fim após uma traição. Nesta parte, há presença de uma segunda orientação sexual, com relatos de dois casais heterossexuais e um homossexual. Ainda assim, há predominância da matriz heteronormativa, levando em consideração alguns critérios, como o fato de que, se for considerada apenas a presença de indivíduos com comportamentos desviantes, o casal gay continua sendo minoria entre as três histórias. Por fim, é importante ressaltar que por ser uma revista voltada ao público feminino, o uso de exemplos masculinos aponta também para a presença constante desse gênero, ignorando ou minimizando outras possibilidades de relacionamentos.

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A revista de junho de 2015 ganha destaque nesta temática por incluir um especial de dia dos namorados e, diferente das outras, trazer um casal na foto da capa e matéria principal, esta com oito páginas. A escolha por um casal heterossexual, a modelo Isabeli Fontana e o cantor Di Ferrero, serve para reforçar o que é constatado sem dificuldades nas demais páginas desta e de outras edições da revista: o protagonismo da normatividade. Também é possível observar a diferença na forma como casais homossexuais e heterossexuais são mostrados pela revista: em uma das imagens, o casal da capa de junho aparece muito mais exposto, com mais contato e proximidade do que o casal usado para ilustrar a matéria “Lésbica depois dos 30” da edição de janeiro. Enquanto no primeiro caso, uma das mulheres está com o rosto escondido e partes do corpo cobertas (ANEXO C), no segundo, a imagem do casal está totalmente visível (ANEXO D). O casal estampado na capa não é o único na celebração do mês dos namorados. Ao falar sobre “As regras do amor em 2015”, Glamour traz na matéria fotografias

de

18

casais,

dos

quais

apenas

um

é

homossexual 36.

A

heteronormatividade também é encontrada ao falar sobre o fato, segundo a revista, de as mulheres estarem cada vez mais exigentes para se relacionarem. “Quando o assunto é sexo casual, a expectativa em relação ao parceiro é uma. Agora, se a ideia é algo mais sério, queremos que o cara seja carinhoso, bem-sucedido, boa pinta, felizão, romântico...” (GLAMOUR, nº 39, 2015, p. 63). Mais uma vez, a referência a um parceiro homem é feita de maneira generalizada, sem a representação de outras possibilidades. Quando o assunto é casamento, todas as edições conferidas apresentam relações heterossexuais. Em nenhum momento há problematizações quanto à dificuldade encontrada por pessoas de outras sexualidades que desejam oficializar suas relações, nem mesmo histórias positivas sobre elas. Grande parte dos exemplos traz casamentos religiosos, porém Glamour também não questiona a proibição por parte das religiões para que casais não compostos por um homem e uma mulher cisgênero37 façam cerimônias religiosas.

36

Além de ser apenas um casal homossexual, ele é composto por homens, ou seja, não há qualquer representação sobre as outras sexualidades não-normativas. 37 Pessoa que se identifica com o gênero a ela designado no nascimento.

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Tal fato pode ser constatado na edição 38, de maio de 2015, no especial da editoria Lifestyle sobre o assunto, com total de 21 páginas: “Antes de dizer “sim” ao seu amado, cara glamourosa, leia, grife e guarde estas preciosas páginas. É que você acaba de ganhar um personal wedding planner com o que há de mais incrível no universo casamenteiro” (GLAMOUR, nº 38, 2015, p. 207).

No decorrer da

reportagem, são contadas histórias sobre a cerimônia e festa de três casais, relatos breves sobre o casamento de outros 14 casais (13 famosos e um anônimo, esse enviado por uma leitora), além de dicas sobre decoração, roupas para os noivos, trilha sonora, lugares para a lua de mel, entre outros itens. Apesar do amplo espaço dado ao tema, a publicação não problematiza ou menciona a união homossexual, comprovando a exclusividade quanto à sexualidade, bem como uma padronização interseccional. O elevado número de personagens e o vasto espaço dado se mostram exclusivos para personagens heterossexuais, de classes abastadas38 e, na maioria, brancos (apenas dois dos 34 são negros). A situação se repete na edição nº 40, que traz um casal heterossexual em uma cerimônia religiosa. São três páginas exclusivamente dedicadas a falar sobre o casamento da apresentadora Mica Rocha, mostrando celebração, festa, convidados e detalhes como vestuário e decoração. Assim como ocorre com textos sobre casamentos, que abordam apenas enlaces entre homens e mulheres, o mesmo é observado nas matérias sobre maternidade. Ao falar sobre “mães de primeira viagem”, a edição 33 da Glamour traz relatos de três mulheres, todas com filhos biológicos e integrantes de relacionamentos padrões. As quatro páginas contam histórias com personagens semelhantes: mulheres, heterossexuais, em relacionamentos estáveis (casamento ou namoro), conhecidas pela mídia (uma empresária, uma apresentadora, uma assessora de imprensa e uma blogueira) e brancas. Mais uma vez, a padronização é interseccional e reforça a maneira como a revista representa a maternidade às suas leitoras. Na mesma edição, é possível detectar uma representação do feminino que engloba todas as características que formam o padrão social normativo. “Aqui na Glamour é assim: toda vez que pensamos numa mulher com o “pacote completo” – alto astral + carreira bacana + looks descolados + uma família Doriana linda de viver 38

O poder aquisitivo dos casais pode ser constatado por festas em locais privilegiados, organizadas por profissionais renomados, assim como vestidos de noiva assinados por estilistas conhecidos e lua de mel em ilhas paradisíacas e locais exclusivos.

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– é o nome da Ucha Meirelles, 37 anos, que vem à mente”. (GLAMOUR, nº 33, 2014, p. 76). A imagem de uma mulher capaz de conciliar uma carreira promissora, cuidar da família e ainda ter tempo para o marido aparece de forma idealizada no decorrer da matéria e é frequente nas publicações. Assim, a análise das 12 edições selecionadas nesta pesquisa permite compreender que a mídia, enquanto formadora de significados, colabora para que a padronização perdure em aspectos como orientação sexual e identidade de gênero. Ao mostrar apenas determinados perfis de mulheres, o segmento voltado ao público feminino, em especial a Glamour, objeto deste estudo, contribui para que leitoras que não se identifiquem como cisgênero e tenham diferentes sexualidades tenham pouca representatividade no conteúdo produzido.

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5 CONCLUSÃO

Padrões normativos estão presentes em diversas áreas da sociedade e privilegiam quem se insere em seus limites perante aqueles que se diferem em diversas características como classe social, raça e gênero. Esta pesquisa surgiu da necessidade de compreender como a mídia, mais especificamente a imprensa feminina aborda diferenças voltadas às questões de gênero e sexualidade. Outros trabalhos já foram realizados com foco em padrões de beleza e raciais, aqui, o interesse era compreender de que maneira mulheres que não se encaixam em padrões de gênero e sexualidade são representadas por esse segmento, tendo em vista que ele é, fundamentalmente, voltado a elas. Para tal, foi fundamental compreender e esclarecer as diferenças entre alguns termos que podem trazer visões dos profissionais envolvidos, levando as leitoras a interpretações com vieses pré-estabelecidos. Um dos exemplos primordiais para debater o tema é a diferença entre sexo e gênero, bem como o seu contexto histórico. Da mesma forma, também foi importante mostrar que identidade de gênero e orientação sexual tratam de questões diferentes e, assim, podem abranger diferentes públicos. Desde o início da pesquisa, foi possível perceber que tais temáticas já tinham sido abordadas por outros pesquisadores com foco em outras plataformas midiáticas, como, por exemplo a dissertação Bicha (nem tão) má: representações da homossexualidade na telenovela Amor à Vida (2015), elaborada por Fernanda Nascimento, ou a pesquisa de Tess Chamusca Pirajá, mencionada no segundo capítulo desta monografia, intitulada Das calçadas à tela da tv : representações de travestis em séries da Rede Globo (2011). O mais próximo da temática aqui abordada

foi

o

trabalho

feito

por

Patrícia

Conceição

da

Silva

(2010),

Heteronormatividade ensinada “tintim por tintim”: uma análise das revistas Atrevida e Capricho (2010), voltado à abordagem sobre sexualidade feita pelas revistas direcionadas a adolescentes. Assim, percebeu-se a falta de material que problematizasse a maneira como a imprensa feminina voltada ao público adulto trata de temáticas envolvendo identidade de gênero e sexualidade, tendo em vista que mulheres não-heterossexuais e transgêneros também são, em tese, o público-alvo da mesma, respeitando delimitações de faixa etária e classe social. A partir do

68

objetivo de descobrir de que forma tais perfis são representados pelo segmento, optou-se pela análise de uma publicação com grande abrangência e que desde seu lançamento vem crescendo em número de vendas, a revista Glamour, da Editora Globo. As edições mensais analisadas no período de doze meses permitiram observar a presença de pautas voltadas à sexualidade feminina em quase todas as edições, assim como reportagens frequentes sobre relacionamentos, sejam eles namoros, casamentos, ou ainda, relações familiares. As revistas, em geral, dão amplo espaço às três temáticas, porém, desde a capa ao conteúdo interno, o predomínio é de mulheres cisgênero e heterossexuaais e, com mais destaque em junho, mês que é celebrado o dia dos namorados, um casal com a mesma orientação sexual. Casamentos e famílias também têm personagens que seguem o padrão, salvo raras exceções. Com a análise, concluiu-se que a heterossexualidade é padrão nas matérias que abordam diretamente a sexualidade, bem como naquelas que mostram famílias, namoros e casamentos. Ao trazer novidades ou dicas relacionadas a sexo, os repórteres, em todas as matérias, citam pelo menos uma vez uma figura masculina, o que imediatamente exclui mulheres que não se relacionem com homens. Nas raras vezes em que a revista Glamour problematiza questões voltadas à homossexualidade feminina, a revista perde a chance de mostrar o preconceito e outros problemas sofridos por elas, limitando-se a questionar o motivo que leva uma mulher a descobrir a homossexualidade após anos se relacionando com homens. Da mesma forma, a publicação opta por reforçar o atrelamento do prazer feminino ao desempenho masculino, ao invés de abordar a liberdade sexual feminina e o conhecimento das leitoras sobre o próprio corpo. Considerando os dados do mídia kit divulgado pela Editora, que apontam que mais de 80% das leitoras não consomem informações de outras revistas, a forma como Glamour trata desses assuntos pode ter efeitos ainda mais acentuados, à medida que reforça padrões e desencoraja a aceitação de comportamentos que não se encaixam nele. Nas entrevistas com as famosas que estão na capa de cada edição, perguntas sobre relacionamentos conhecidos pelo público são recorrentes e, em alguns casos, ganham protagonismo nas entrevistas, como visto no caso da apresentadora Luciana Gimenez, cuja entrevista teve cerca de 80% das perguntas

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voltadas a relacionamentos, deixando claro o interesse secundário pela profissão da entrevistada. O predomínio da normatividade nas doze edições da revista também pode ser concluído pelos números: dos 68 casais que foram fontes para as matérias ou que foram citados pelos repórteres no decorrer dos textos, apenas nove eram homossexuais e 59 heterossexuais. Dos nove, seis aparecem na mesma matéria, sendo que quatro apenas foram usados como exemplo pelo autor. Na edição de junho, a sequência de fotos em uma das matérias especiais de dia dos namorados, Regras do amor em 2015 (GLAMOUR, nº 39, 2015, p. 62) também tem baixa representatividade da homossexualidade, com 13 fotos de casais heterossexuais e um homossexual (ANEXO E), o qual é formado por homens, ou seja, a representatividade lésbica é nula. Enquanto a homossexualidade e a bissexualidade aparecem poucas vezes na revista, a segunda apenas uma vez, em uma única pergunta, as demais sexualidades não-normativas como a assexualidade ou pansexualidade sequer são citadas em alguma das edições analisadas. Da mesma forma, identidades de gênero não cisgênero também surgem poucas vezes na publicação. A abordagem da transexualidade, além de escassa é superficial e traz explicações às leitoras quanto à identidade de gênero. O foco da revista em relação às transexuais é mostrar nomes famosos e seu papel na mídia. No único momento em que, de fato, é dado espaço para falar sobre a transexualidade, no caso da campanha “O que me torna única”, realizada pela Glamour como incentivo às mulheres para que assumam características que aparecem como defeitos frente aos padrões normativos, como peso e cicatrizes, a revista comete uma falha ao trazer um homem transexual para uma campanha claramente feminina. Assim, o jornalismo, enquanto agente na construção de sentidos sociais, ao somar falta de informações aprofundadas sobre o assunto a representações que podem gerar confusão na interpretação das leitoras, ao invés de auxiliar na aquisição de conhecimento, contribui para o reforço de estereótipos. A escolha por mostrar indivíduos, casais ou famílias heterossexuais, além de não problematizar questões sobre pessoas que não se encaixam nessas características ou ainda não representa-las, remete ao papel do jornalista e em como suas perspectivas estão implícitas no conteúdo produzido por ele. Assim,

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mesmo que siga as diretrizes da empresa jornalística, os textos também carregam sua forma de ver determinadas situações e suas escolhas quanto à forma como abordará cada assunto. Mesmo não sendo o foco da análise, também constatou-se que a normatividade relativa à identidade de gênero e à sexualidade vem acompanhada por outros padrões, relacionados à classe social e à raça, por exemplo, como visto também no especial sobre casamentos, com 21 páginas, dos quais, entre os 34 noivos e noivas, apenas dois são negros. Quanto à classe social, considera-se que a revista tem como público-alvo leitoras das classes A e B, conforme divulgado pela editora, logo explica tal quesito. Mais do que a falta de representatividade numérica de diferentes identidades de gênero e orientações sexuais, conclui-se que a principal falha referente a tais assuntos e perfis é a falta de informações claras e corretas. Mesmo quando perfis fora do eixo cisgênero heterossexual estão presentes, eles acompanham abordagens biologizantes e, por vezes, com dados incorretos. Além disso, temáticas femininas frequentemente têm desenvolvimento vinculado a uma figura masculina, ou ainda, esta torna-se protagonista pela forma como a pauta é e realizada. Assim, mais do que um problema específico, a imprensa feminina aqui representada pela Glamour brasileira falha pela baixa representatividade das diferentes identidades, na forma superficial que trata tais assuntos, bem como na falta de clareza ao abordá-los. Aqui, não há uma busca para saber se tais problemas se devem a posicionamentos editoriais ou pela visão individual dos repórteres, mas compreende-se que haja a necessidade de romper os estereótipos que protagonizam cada edição da revista, trazendo mais diversidade em suas páginas e, consequentemente, oferecendo uma maior representatividade de diferentes identidades às suas leitoras.

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ANEXO A - A vingança do clitóris (02/2015)

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ANEXO B - Trans fever (07/2015)

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ANEXO C - Lésbica depois dos 30 (01/20015)

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ANEXO D – Amor & Rock ‘n’ roll (06/2015)

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ANEXO E - Regras do amor em 2015 (06/2015)

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