Mulheres e a escrita de si: reflexões sobre modos de produção

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Mulheres e a escrita de si: reflexões sobre modos de produção SILVA, Gislene Alves da (UNEB) [email protected]

RESUMO

O presente estudo é uma pesquisa, de natureza qualitativa e que se pauta em estudos de gênero e da crítica feminista e cultural, buscou investigar modos de produção de escritoras, identificar os modos de produção de escritoras de Alagoinhas/Ba e região, refletindo sobre sua dinâmica, verificando quais os sentidos, dificuldades, demandas e perspectivas deste processo. Constatamos que as escritoras de Alagoinhas continuam sendo apagadas por um mercado hegemônico, produzem sem contar com políticas públicas e com um apoio mais sistematizado, contam apenas com apoios de familiares na publicação, que é toda arcada com dinheiro próprio; e tem a Casa do Poeta de Alagoinhas – CASPAL como um parceiro para divulgação dos seus trabalhos. Palavras-chave: literatura, escritoras de Alagoinhas, escrita de si, modos de produção.

ABSTRACT

The present study is a research, qualitative and staff in gender studies and feminist criticism and cultural sought to investigate ways of producing writers, identify ways of producing writers Alagoinhas / Ba and region, reflecting on their dynamics, determining the senses, difficulties, demands and perspectives of this process. We note that the writers of Alagoinhas remain off the market for a hegemonic place without relying on public policies and support more systematic, rely solely on support from relatives in the publication, which is all arcade with their own money, and has the House of the Poet Alagoinhas CASPAL as a partner for dissemination of their work. Keywords: literature, Alagoinhas writers, writing itself, modes of production.

Considerando o fato de muitas mulheres, escritoras, terem sido excluídas de uma historiografia literária pautada em um cânone patriarcal, procuramos identificar seus modos de produção, de escape e fala nesse processo de silenciamento, considerando que algumas estratégias já foram criadas para se fazer visível no circuito o contradiscurso feminista, mas que ainda são insuficientes para uma pluralização da escrita e que o processo de subalternização, neste caso, envolve gênero em suas inter-relações com marcadores como raça, classe e lugar. Assim, buscamos dar visibilidade, no que diz respeito a produção de escritoras, às dificuldades de produção, publicação e distribuição em contextos específicos, como os locais-regionais, de suas obras, às demandas desta dinâmica, ao tempo em que procuramos também visualizar suas perspectivas e sentidos ativos. Para falar em produção literária de escritoras não podemos deixar de mencionar alguns mecanismos que vem sendo criados para produção e divulgação dessas obras. Um dos exemplos que quero trazer aqui é a da Editora Mulher, que tem como uma de suas finalidades visibilizar e reeditar os livros das escritoras do passado, assim como, editar ensaios sobre gênero. Em relação à literaturanegra, dentre outros modos de produção abertos ao feminino, destacamos o Quilombhoje Literatura1. Ou seja, movimento formado por escritores paulistanos, que teve sua fundação em 1. Pode-se encontrar mais informações por meio do site: http://www.quilombhoje.com.br/

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1980, por Cuti (Luiz Silva), Oswaldo de Camargo, Paulo Colina, Abelardo Rodrigues e outros. Dentre outras atividades do grupo, organiza e publica, em 1978, o primeiro volume da série Cadernos Negros, contendo oito poetas, os quais dividiam os custos do livro, publicado em formato de bolso, com 52 páginas. Escritoras negras como Esmeralda Ribeiro, Marise Tietra, Miriam Alves, Anita Realce, Rosa Egipicíaca, Teresa Margarida da Silva, Maria Firmina dos Reis, Antonieta de Barros, Auta de Souza, Conceição Evaristo, dentre outras, tem encontrado espaços para publicar seus trabalhos nos Cadernos Negros. Ressaltamos ainda a importância deste tipo de produção coletiva que abre espaço para a escritora negra, visto que gênero articulado com a raça constitui dupla exclusão imposta às mulheres. Ou seja, se à mulher, em geral, foi-lhe negado vários direitos, entre eles o do acesso à leitura e escrita, à escola, no que diz respeito à mulher negra, em geral tudo isso foi impetrado com muito mais reforço. Assim, se ao gênero forem atribuídos outras categorias, ou marcadores sociais, como raça, classe, geração, regionalidade etc., a exclusão, geralmente, se acentua. Nesse sentido, o que dizer das escritoras nordestinas, ou mais especificamente das escritoras de Alagoinhas e região. Assim, quais são as dificuldades que as escritoras de Alagoinhas e região têm encontrado para produzir, publicar, dando visibilidade, ou seja, fazendo circular suas expressões escritas? O que e como tem produzido? Em face da situação que se esboçou, perguntamos: quais os modos de produção de escritoras subalternas de Alagoinhas e região? Qual a dinâmica destes modos de produção? E quais os sentidos, dificuldades, demandas e perspectivas da mesma?

Os sujeitos da pesquisa: as escritoras Os sujeitos da nossa pesquisa, ou seja, as escritoras de Alagoinhas e região que pesquisamos são as seguintes: Alealda Portugal Miranda (63), Marina Oliveira, Margarida Maria de Souza (71), Luzia das Virgens Senna (65), Madrilena Berger, Noêmia Alves, Valdelice Sena. Todas as escritoras são associadas da Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL) e duas destas são membros da Academia de Letras e Arte de Alagoinhas (ALADA) que são Margarida Maria de Souza e Luzia das Virgens Senna. Com relação ao local de nascimento destas percebemos que muitas dessas escritoras são de cidades circunvizinhas, mas escolheram Alagoinhas-BA para viver. Por exemplo: Alealda Portugal Miranda nasceu em Catu-Ba e mora em Alagoinhas; Marina Oliveira passou a infância em Alagoinhas e atualmente encontra-se morando em Brasília; Margarida Maria de Souza é uma escritora nascida em Serrinha-Ba e atualmente reside na cidade de Salvador;Luzia das Virgens Senna nasceu na cidade de Queimadas-Ba e mora em Alagoinhas; Madrilena Berger, Presidenta da Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL), mora em Alagoinhas; Noêmia Alves, nascida em Salvador, reside em Alagoinhas; Valdelice Sena nasceu na Caraíba entre Alagoinhas e Aramari e atualmente mora em Alagoinhas. Em relação à formação profissional: Alealda Portugal Miranda é professora, atualmente está aposentada; Marina Oliveira é freira; Madrilena Berger artista plástica; Noêmia Alves radialista, jornalista e poetisa e Valdelice Sena aposentada. Assim, pode-se dizer sobre suas experiências de trabalho que: Alealda Portugal Miranda lecionou por 19 anos em Catu-Ba, retornando pra Alagoinhas onde trabalhou no colégio CENEC; Marina Oliveira trabalhou em uma escola como educadora, foi coordenadora da comunidade no Rio de Janeiro por 38 anos; Madrilena Berger fez várias exposições de quadros no Centro de Cultura, em Feira de Santana, Colégio Modelo, shopping e algumas em casas residenciais; Noêmia Alves criou o programa de rádio De mulher pra mulher, foi dona e redatora do Jornal Folhão da Bahia que tem 14 anos. 2. Informações concedidas pelas escritoras no encontro realizado em novembro de 2010, na UNEB Campus II, durante o 2° Fórum de Critica Cultural e II Seminário Sobre Modos de Violência Contra Mulheres e de Lutas a Favor dos Direitos Humanos. Assim como, por meio de questionário aplicado em 30 de julho de 2011.

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Algumas dessas escritoras são casadas, por exemplo: Alealda Portugal Miranda é casada e é mãe de três filhos; Luzia das Virgens Senna é também casada e tem seis filhos, quatorze netos e uma bisneta; Valdelice Sena mãe de sete filhos; Noêmia Alves tem uma filha e um filho. Algumas escritoras ainda nos revelam dados sobre suas condições sociais, assim como nos contou Valdelice Sena que seu pai era lavrador e contador de história; Luzia das Virgens Senna informou que seu pai era vaqueiro e lavrador; Madrilena Berger, conforme nos disse, é filha de petroleiro. A iniciação na escrita dessas escritoras acontece de forma bem peculiar. Margarida Maria de Souza,na adolescência, escrevia cartas, e trocava por broche ou batom dentre outras coisas, para as meninas entregar aos namorados. Na Faculdade de Formação de Professores de Alagoinhas (FFPA) atual (UNEB), com 35 anos, a biblioteca criou um concurso de contos e foi quando escreveu seu primeiro conto e ganhou em segundo lugar. Valdelice Sena revela que quando seu pai voltava da roça sentavam todos no terreiro para ficar contando histórias e também para ensinar a ler. Assim aprendeu a ler escrevendo na areia. Uma das histórias que ela mais recorda é a do pavão misterioso, com a qual ela ficou empolgada e começou a inventar suas próprias historinhas. Luzia das Virgens Senna começou a escrever nas folhas de um vegetal chamado de palmas. Começou a fazer as letras sem ninguém vê e já estava escrevendo seu nome e também já sabia ler quando sua mãe descobriu. Aos nove anos seu pai a colocou em uma escola, porém o mesmo não permitiu que continuasse a estudar. Madrilena Berger também passou por situação semelhante, seu pai não queria que estudasse. Os tipos das produções dessas escritoras são bastante diversificados, por exemplo: Alealda Portugal Miranda escreve poemas, gênero que a escritora gosta; Marina Oliveira escreve poemas; Margarida Maria de Souza escreve poesias, contos, romances e crônicas;Luzia das Virgens Senna escreve poesias, prosas, autobiografia e cordéis; Madrilena Berger escreve poesias; Noêmia Alves escreve peças teatrais e poesias; Valdelice Sena escreve poesias, contos, letras de músicas. Os temas mais tratados em suas produções são os seguintes: Alealda Portugal Miranda escreve sobre a história da infância e todas as suas idas e vindas para Alagoinhas; Marina Oliveira faz homenagem aos seus pais, falecidos, e também à congregação que tem 75 anos de missão na Bahia; Margarida Maria de Souza atualmente tem mais escrito sobre a solidão; Luzia Senna escreve sobre casamento, o Brasil, sua história de vida dentre outros. Assim, vejamos as produções publicadas: Alealda Portugal Miranda publicou seu primeiro livro intitulado Histórico de Sítio Novo; Marina Oliveira o seu livro intitulado Em verdades poemas em cultura da paz; Margarida Maria de Souza publicou seu primeiro livro intitulado Pedaços de mim, depois publicou Alma menina, que é um livro de poesia; Luzia das Virgens Senna tem como obras publicadas: Te amo Brasil (poesia, 1995); O casamento (prosa 1997); A estrada por onde andei (autobiografia, 2011); Tudo passa (cordel); Rio Catu (cordel); Mandacaru (cordel); O casamento de João Sem Braço e Mikilina (cordel); Noêmia Alves tem os seguintes poema publicadas: Volta inteira, Alma de poeta, Ecos machadianos; Valdelice Sena tem dois trabalhos publicados no livro organizado pela CASPAL que são Preciosa e Desencanto. Atualmente tem em torno de 100 trabalhos guardados. Para suas publicações Marina Oliveira encontrou apoio por parte da irmã para publicar seus poemas, Margarida Maria de Souza tem publicado com recursos próprios,Luzia das Virgens Senna tem o apoio do marido.

Modos de produção, circulação da escrita feminina: dificuldades, apoios, sentidos, demandas Com o intúito de rastrear os modos de produção de escritoras subalternas, refletindo sobre a dinâmica deste processo e focando nas escritoras de Alagoinhas e região (região norte da Bahia e Nordeste do Brasil) promovemos, como estratégia de pesquisa, um encontro com algumas escritoras, de modos que nos possibilitasse colher, através de gravação feita, alguns depoimentos destas a respeito da problemática que aqui discutimos.

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No primeiro diálogo percebemos mais claramente que as dificuldades encontradas por essas escritoras são diversas, que se iniciam na sua infância e se refletem em sua idade adulta, em suas poesias, carregadas com suas marcas do passado. Trata-se de mulheres às quais foi negado o direito ao estudo, negado o direito ao sonho. Alealda Portugal Miranda, escritora de Catu, mas residente em Alagoinhas, descreve as dificuldades que encontra no que diz respeito à produção e publicação, assim como fala do sentido que atribui ao escrever: Quanto à vida de escritora há dificuldades muitas, eu não faço, quer dizer eu não fiz o livro pra ganhar o dinheiro em cima da minha obra; eu fiz para apresentar pelo menos...a cultura da minha terra, a mandioca o aipim, o feijão, as hortaliças, eu vim de um sítio [...] realmente há dificuldades, porque a gente que escreve os poemas, estes ficam escondidos nas gavetas…3 (Alealda Portugal Miranda)

Uma questão a qual todas as escritoras passam, segundo as depoentes, é justamente o engavetamento dos seus trabalhos, a falta de oportunidades para tirá-los desse lugar invisível. Percebemos também, através da fala das escritoras, que nesse percurso existem pessoas que, de alguma maneira, tentam suprir, as dificuldades, sejam as produção ou visibilidade das suas obras. Mas graças a Maria José Oliveira os meus trabalhos são apresentados aqui na UNEB, são trabalhados com alunas e alunos de Letras e tem sido divulgados. Isso eu agradeço a Deus o bastante, sem precisar realmente capital e nem divulgação porque tenho que ganhar dinheiro pra sobreviver, não. Eu só fico sobrevivendo do meu salário, sou professora aposentada do Estado e realmente dar pra fazer as coisas com amor sem precisar tanto de capital.” (Alealda Portugal Miranda)

Uma forma outra de apoio que as escritoras encontram para publicar vem da própria família. Segundo Marina Reis seu livro Em verdades poemas em cultura da paz foi publicado por conta deste incentivo/apoio familiar. Sobre isso ela diz: [....] e então eu comecei a fazer poesia, quando mostrei a minha irmã Tereza que é professora da universidade do estado da Bahia e minha cunhada. – Ave Maria, vamos aproveitar! E então com a ajuda delas publiquei o meu primeiro livro tranqüilo, também não é para ganhar dinheiro nem comercializar.” (Marina Reis).

Porém, muitas são as dificuldades encontradas por essas escritoras para quem não foi fácil tornar-se produtora textual e vários foram os empecilhos nesse percurso. O depoimento de Margarida Souza é exemplar para mostrar como estes empecilhos às vezes estão em casa, nas pessoas mais próximas, na cultura patriarcal ainda arraigada. A biblioteca foi que criou um concurso de contos, então eu fiz o meu primeiro conto aí ganhei em segundo lugar. Daí então eu comecei a escrever, escrever e guardar, escrever e guardar, foi quando eu publiquei meu primeiro livro, foi pedaços de mim, aí eu saí pegando os meus pedaços, juntei no livro. O segundo foi esse, aliás o segundo é Coisas da vida que, ainda não saiu. São contos, Coisas da vida e Milena que foi um romance, que esse romance eu comecei quando minha filha estava novinha [...] aí eu comecei aquele livro, mas o meu ex-marido, na época não sei porque, sai para pegar água pra botar pra ele tomar banho, quando eu voltei só vi a fumaça. Ele queimou tudo, a papelada toda do meu livro. Vocês acreditam que eu coloquei frase por frase e retomei meu livro todo e está até naquele processo do Banco do Brasil para editar. (Margarida Maria de Souza)

Assim, da mesma maneira que a família as apóiam encontramos exemplos de como estas famílias podem diminuí-las, não lhes dando valor e respeito. Constatamos isso por meio do relato de Margarida Souza, o qual nos mostra um marido que se sente dono de sua companheira, de sua escrita, sente-se no direito de queimar o escrito da sua esposa. Ou, constatamos este desvalor, através de um parente que chama a irmã de louca pelo fato desta escrever, como foi o caso da escritora Valdelice Sena, segundo seu depoimento transcrito a seguir: 3. Entrevista concedida pelas escritoras no encontro realizado em novembro de 2010, na UNEB campus II, durante o 2° Fórum de Critica Cultural e II Seminário Sobre Modos de Violência Contra Mulheres e de Lutas a Favor dos Direitos Humanos.

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Fui pra Salvador, comecei a escrever por lá, mas num certo dia na mudança, meu caderno ficou numa sacola cheia de revistas. Daí fui embora, não encontrei mais o caderno, me chateei e destrui todas as poesias. Aí eu já tinha um trabalho de 150 poesias, aí acabou a coragem de escrever. Às vezes escrevia umas coisinhas, mas não guardava, jogava fora,aí há uns 15 anos, mais ou menos atrás, eu me separei do meu marido, me divorciei, ai fiquei sozinha e a solidão é um bom remédio para inspiração. Comecei a escrever novamente, ai fiz umas poesias e guardei, comecei a escrever uns contos guardei também, daqui a pouco me mudei para Alagoinhas. Tornei a destruir tudo, larguei tudo pra lá. Primeiro porque meus irmãos falavam assim: - Ah, isso nunca vai sair do papel! Aí desilude a gente, aí não fiz mais nada, aí tinha um irmão que dizia assim: - Ah o que você tem de artista você tem de louca. Aí eu disse a ele: talvez eu seja louca, talvez eu seja artista. Posso ser as duas coisas, depende do seu ponto de vista. (Valdelice Sena)

Embora Valdelice Sena perceba que o mundo, os sujeitos, são construídos por pontos de vista que divergem e não se fazem único, deixa-se abalar pela perspectiva de seus irmãos, de uma cultura patriarcal que se impõe como vontade de verdade e que exclui a mulher do campo da produção, fazendo parecer algo anormal, quando esta ganha cena neste lugar. Valdelice Sena tem dois trabalhos publicados no livro produzido pela (CASPAL). Diante de todas as dificuldades encontradas por Valdelice ela ainda conserva um sonho: “[...] eu tenho mais ou menos uns 100 trabalhos, mais ou menos guardados, e espero um dia sair do papel e espero que alguém um dia dê valor ao meu trabalho, porque é muito difícil.” Aqui também já encontramos um vestígio da importância que pode ter uma organização como a CASPAL no apoio a produção da escrita feminina. Continuando a rastrear os modos de produção dessas mulheres e suas dificuldades percebemos que estas surgem na infância quando lhes é negado o direito de estudar. Assim aconteceu, dentre outras, com a escritora Luzia Senna, que, mesmo sendo sua mãe professora da região onde morava, aos seis anos de idade, foi proibida de estudar, pois a turma era multisseriada, contendo alunos com mais de vinte anos de idade. Assim, como tinha o sonho de ser professora aprendeu a ler e escrever sozinha, observando as aulas que sua mãe dava. Na falta de caderno escrevia na folha de palma, uma planta conhecida na região sertaneja que morava. Era tudo escondido, foi quando seu pai a colocou em uma escola. Eis o seu relato: Em Alegrete tinha uma única escola. Papai botou todos. Eu já estava com nove anos. Estudei a primeira serie, mas aí pronto, foi só essa. Meu pai não deixou. Pronto, já sabe ler e escrever, não precisa mais. Aí eu dizia: ah pai, eu quero é ser professora! Aí eu recebia muitos gritos: filha de pobre que sabe assinar o nome e escrever alguma coisa já tá bom demais! (Luzia Senna).

Segundo Senna, chegou um momento em que desistiu de ser professora, casou-se, teve filhos, mas continuou sempre pensando em estudar. Diante da solidão que sentia, segundo ela, resolveu escrever sobre as dores: “Eu comecei a escrever, mas eu não escrevia poesia não, apesar de gostar muito. Eu não escrevia poesia, eu escrevia, quando na adolescência, aborrecimento, tristezas, alegrias, mas também não guardava, jogava fora”.Senna nos diz que agora era diferente: “[...] aí veio uma depressão sem fim, depressão, angústia, tristeza. Eu escrevia tudo isso, mas eu guardava”. Já avó, voltou a estudar e concluiu o ensino médio, e sempre pensando em escrever, inclusive escrever esta estória de exclusão feminina que agrega gênero e classe, estória de exclusão sua, mas também de sua mãe: […] minha mãe dizia muito, quando ela sofria chorava, quando meu pai resolveu que ela ia desistir da escola, ela chorava muito e dizia: minha vida dá um romance. Eu dizia: mãe porque a senhora não faz? Ela dizia: não é assim não, é difícil. Eu disse: eu vou fazer, vou pra escola, vou estudar e um dia escrevo o romance de minha mãe. (Luzia Senna)

Em busca do seu objetivo, Luzia Senna continuou sua trajetória, procurando quem podia lhe ajudar a escrever e publicar: Veio à época de Collor de Melo. Vou escrever. Escrevi. Mas eu pensava em fazer a minha biografia: vou contar a minha vida. Aí veio Collor de Melo e eu fiz a poesia contando a historia do Brasil

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com literatura de cordel, como foi feita [...] Aí fiquei com aquilo guardado. Ai pensei: isso dá um livro. Aí comecei a procurar quem me ajudaria porque eu continuava com vergonha, quem me ajudaria a escrever esse livro, porque eu ainda não tinha ido até a 2ª série. Só tenho a 1ª série. Um livro desse, eu tenho vergonha. Mas aí eu quero fazer, tenho que procurar alguém que me ajude. Aí eu procurei pessoas que me orientou Altamiro Lira [...] ele olhou meu trabalho, eu com uma vergonha, aí ele me orientou para que eu procurasse José Olívio (escritor de Alagoinhas). Eu procurei e José Olívio que me deu o endereço da editora no Rio de Janeiro ai eu mandei meu trabalho escondido, também com vergonha. (Luzia Senna)

Para Luzia Senna, depois de enviar seu trabalho para uma editora no Rio de Janeiro, foi de fundamental importância a resposta que esta lhe enviou, conforme nos diz a seguir: Veio uma carta com o material de volta dizendo: parabéns pelo belíssimo trabalho. Ai me senti honrada, né? Se a editora tá dizendo que é um belíssimo trabalho, ela está me dando parabéns, é porque realmente é bom e perdi o medo, a vergonha de mostrar as pessoas. (Luzia Senna)

Luzia Senna, resumindo a duplicidade da família no apoio e não apoio à produção feminina, pois foi impedida de estudar por seu pai, também contou com o incentivo de seu marido, para escrever e publicar, conforme nos diz em relato a seguir: [...] aí meu esposo disse: você vai fazer um livro. Ai ele disse: agora faça seu livro. Eu fiz o primeiro, Te amoBrasil, depois veio o segundo que eu pensava que seria o terceiro. Eu queria que fosse já a minha biografia, não foi. Fiz uma história de casamento [...] eu já não tinha vergonha, o marido assumiu também. Aí fiz o livro e as pessoas passaram a tomar conhecimento, mas eu fiz com a cara e a coragem. (Luzia Senna)

A “cara e a coragem” de Luzia Senna revelam a resistência da escrita subalterna feminina, que encontra vários empecilhos, inclusive traços da cultura patriarcal, negando a possibilidade feminina, na própria mulher, por vezes, traduzindo-se em vergonha e medo. Mas, ao lado desta está à coragem, como sugere Senna apontando para o jogo subalterno feminino que luta contra as forças da subalternização. Nessa luta, que é de vida, saúde e auto-estima a escrita, como produção feminina é arma e tem esse sentido. Vejamos o que ainda afirma Senna: “Eu sai da cozinha, uma mulher depressiva, que vivia chorando, que vivia angustiada, que vivia com medo do mundo, com medo de tudo”.Lançou seu terceiro livro, que é sua autobiografia, As estradas por onde passei (2011). Assim, percebemos que muitas são as dificuldades que as escritoras encontram nesse percurso. A presidenta da CASPAL, Madrilena Berger, ainda acrescenta: “Há dificuldade em relação à sociedade abraçar a arte, é difícil porque a política econômica não nos ajuda muito e quando ajuda é vendo o lado econômico mesmo, não é valorizar você com seu potencial. E às vezes choca”. Nesse caso, não se trata nem de subalternização de gênero, mas da arte, da cultura, da Literatura. Que importância é dada a elas? Se articularmos esta ultima ao gênero o que percebemos? Marcas de subalternização, sim, mas também a marca de um outro sentido de arte, de Literatura como critica cultural, (re) escrita de si, vida.

Algumas considerações Assim, percebemos que as dificuldades encontradas por essas escritoras são diversas, que se iniciam na sua infância e se refletem em sua idade adulta, em suas poesias, carregadas com suas marcas do passado. Mulheres, às quais foi negado o direito ao estudo, negado o direito ao sonho. Todas as escritoras passam pelo engavetamento dos seus trabalhos, a falta de oportunidades para tirá-los desse lugar invisível. Estes empecilhos, às vezes, estão em casa, nas pessoas mais próximas, na cultura patriarcal ainda arraigada, cultura patriarcal que se impõe como vontade de verdade e que exclui a mulher do campo da produção literária, fazendo parecer algo anormal, quando esta ganha à cena neste lugar. Assim, da mesma maneira que a família apóia essas escritoras, encontramos exemplos de como estas famílias podem diminuí-las, não lhes dando o seu valor e respeito. Isto se faz visível, quando muitas relatam

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que foram impedidas de estudar por seus pais, mas que também contam com o apoio e incentivo de irmãs ou parentes do sexo feminino e, em alguns casos, de seus maridos, para escrever e publicar. Ou ainda quando, por meio dos relatos, nos mostram maridos que se sentem donos de sua companheira, de sua escrita, sentem-se no direito de queimar o escrito da sua esposa; ou mesmo nos dizem como, por vezes, são chamadas de loucas por seus irmãos, simplesmente pelo fato de insistirem em escrever. Apesar disso, como citamos, a forma de apoio, que as escritoras encontram para publicar vem da própria família. São essas dificuldades, essa falta de apoio mais sistemático e continuado que talvez gere a ausência dessas escritoras em alguns cenários literários. Apesar do pouco investimento contra a subalternização dessas escritoras, da falta de um investimento mais institucional, da falta de apoio, percebemos que as escritoras e escritores têm procurado meios de continuar produzindo e divulgando suas produções. A Casa do Poeta de Alagoinhas (CASPAL) existe nesse sentido e tem sobrevivido, resistido a esse descaso. Assim, concluímos que as escritoras de Alagoinhas continuam sendo apagadas por um mercado hegemônico, por uma cultura patriarcal e por uma visão de cultura e de literatura que se reflete na falta de importância atribuída para estas. Por conta disso, as escritoras produzem sem contar com políticas públicas e com um apoio mais sistematizado. Apesar disso, como já dissemos, estas escritoras continuam produzindo, insistindo em falar-escrever, resistindo a este apagamento. Para tanto, contam com apoios de familiares na publicação que é toda arcada com dinheiro próprio e, no que diz respeito à divulgação, contam com parceiros como a Casa do Poeta, que funciona como uma estratégia de divulgação e solidificação de um mercado alternativo. Nessa linha, fica clara a importância da mediação, de ações desenvolvidas, por exemplo, pela Universidade e, nesse sentido, a demanda pelo fortalecimento desta cooperação é fundamental. A demanda por políticas públicas, por ações conjuntas. Também fica clara a importância de se estudar, considerar os escritos femininos como expressão de uma cultura feminina que entrelaça literatura, vida e resistência, ou seja, a crença de que a literatura é potência.

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