Mulheres e Deusas: um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina (Dissertação de Mestrado)

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MULHERES E DEUSAS Um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina

Andréa B. Osório

IFCS/UFRJ Mestrado em Sociologia e Antropologia PPGSA

Profa. Dra. Mirian Goldenberg Orientadora

Rio de Janeiro 2001

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MULHERES E DEUSAS Um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina

Andréa B. Osório

Dissertação submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia – PPGSA, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia). Aprovado por: ________________________________ Profa. Dra. Mirian Goldenberg

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Orientadora

________________________________ Profa. Dra. Patrícia Birman ________________________________ Profa. Dra. Yvonne Maggie ________________________________ -

Suplente

Rio de Janeiro 2001

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Osório, Andréa B. Mulheres e Deusas: um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina / Andréa B. Osório. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2001. vi, 302pp. Dissertação – Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS. 1. Bruxaria. 2. Identidade Feminina. 3. Nova Era. 4. Tese (Mestr. – UFRJ/IFCS/PPGSA). I. Título.

iv RESUMO

OSÓRIO, Andréa B. Mulheres e Deusas: um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina. Orientadora: Mirian Goldenberg. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2001. Diss.

Na literatura antropológica, a bruxaria é invariavelmente o espaço do malefício e das acusações. No entanto, é possível verificar hoje, no Brasil, um grupo de mulheres – e homens – que vê na bruxaria um espaço religioso vinculado ao paganismo e ao culto da natureza, onde uma Deusa e um Deus são adorados com atributos sexuais e de gênero bem marcados. Esta bruxaria moderna, vinculada em parte ao mundo esotérico da Nova Era, é chamada wicca. Nesta cosmologia, o feminino representa um papel central, o que permite que a wicca seja um local de construção de uma determinada identidade feminina. Sujeito classicamente vinculado à natureza, a mulher mantém essa ligação na wicca e, conseqüentemente, sua ligação com a magia. A reafirmação da diferença e dos atributos tradicionais de gênero é, do meu ponto de vista, a intenção de construir um novo papel para a mulher.

v ABSTRACT

OSÓRIO, Andréa B. Mulheres e Deusas: um estudo antropológico sobre bruxaria wicca e identidade feminina. Orientadora: Mirian Goldenberg. Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS/PPGSA, 2001. Diss.

At the anthropologic tradition, witchcraft is always seen as the space of evil and accusations. Nevertheless, there is a group of women – and men - in Brazil nowadays that sees witchcraft as a religious space in the pagan field and earth cults, where a Goddess and a God are honored within strong lines of sexual and gender attributes. This modern witchcraft, here seen as part of the New Age movement, is called wicca. In this cosmology, the feminine represents a central role, and it allows wicca to be a space of building a certain female identity. Classically a subject in very straight touch with nature, the woman keeps this association within the wicca and consequently her association with magic. The affirmation of the traditional difference and attributes of gender is, in my point of view, the intention of building a new role for the woman today.

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AGRADECIMENTOS

À orientação dedicada e competente de Mirian Goldenberg, sempre disponível e disposta a dar apoio. Sua inesgotável paciência, generosidade e respeito contribuíram em definitivo para o sucesso desta pesquisa. A todos que se dispuseram a conceder seus depoimentos, abrindo suas casas e corações, contribuindo para a viabilização desta dissertação. À Yvonne Maggie e Patrícia Birman, cujas valiosas sugestões em muito contribuíram para o desenvolvimento de minhas reflexões. À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes) que, com a concessão da bolsa de estudos, permitiu a dedicação plena a esta pesquisa. Ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, solo fértil onde amadureci minhas reflexões. Aos funcionários da Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Paulo, Heloísa e Fernando, sempre amáveis e disponíveis a resolver eventuais problemas. Seus apoios foram fundamentais na elaboração desta dissertação. A Alexandre Veronese, amigo de todas as horas, cuja paciência, dedicação e amor serão sempre lembrados.

vii SUMÁRIO

INTRODUÇÃO..............................................................................................................................1 CAPÍTULO 1: Considerações Teóricas sobre a Bruxaria Wicca................................................13 A Bruxaria Wicca: o que é?...............................................................................................14 Wicca como Parte da Nova Era..........................................................................................36 Bruxaria e Identidade Feminina..........................................................................................48 Reflexões sobre a Wicca.....................................................................................................69 CAPÍTULO 2: A Teórica do Campo: o pensamento de Márcia Frazão.......................................71 Márcia Frazão: uma bruxa hereditária................................................................................76 O Pensamento de Márcia Frazão: visões de bruxaria e feminino.......................................94 Reflexões sobre a Identidade de Bruxa.............................................................................126 CAPÍTULO 3: Para Compreender a Wicca no Brasil................................................................132 Perfis e Acusações: entrevistas com bruxas cariocas.......................................................136 Formação e Concepções de Coven .................................................................................168 Internet na Formação e Disputa de um Grupo..................................................................209 Pensando o Perfil das Bruxas Estudadas..........................................................................245 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................................257 APÊNDICE 1: Resenhas da Obra de Márcia Frazão..................................................................270 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.....................................................................................298

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INTRODUÇÃO

A bruxaria tem sido um tema amplamente estudado pela antropologia, rendendo a este campo de saber obras clássicas e importantes. O uso e a crença na magia têm sido estudados tanto em sociedades simples quanto complexas. No Ocidente, principalmente a partir da Inquisição, a bruxaria se tornou um domínio quase exclusivamente feminino, e a bruxa passou a tomar a forma de uma mulher diabólica. As acusações de malefício, que a antropologia recolheu em inúmeras sociedades, se tornaram parte da idéia que temos sobre bruxaria. O uso da magia e o conluio com forças maléficas e diabólicas fazem parte do imaginário ocidental a respeito da bruxa. Esta figura já folclórica, parte dos contos de fadas, preserva ainda hoje sua face malfazeja na literatura infantil, no folclore, nos filmes do cinema. A mulher má, umas vezes velha e feia, outras jovem e sedutora, lasciva, desregrada, sem laços de parentesco ou solidariedade, por vezes suja e louca, ainda povoa o imaginário ocidental. É uma mulher a ser temida. Esta bruxa que vive nos contos infantis parece, contudo, estar saindo das páginas empoeiradas dos livros para ganhar espaço no mundo moderno. Participando de programas de televisão, atuante da imprensa especializada em esoterismo, publicando obras próprias, a bruxa folclórica parece ter tomado uma roupagem moderna: não voa mais sob o céu noturno montada numa vassoura nem ostenta a face enrugada cheia de verrugas, não traz consigo o chapéu em forma de cone nem o gato preto, mas continua mexendo seu caldeirão fumegante, misturando as ervas de seus feitiços e poções, proferindo palavras mágicas rimadas a um movimento da varinha. A bruxa moderna emerge, assim, para contar sua própria história. Ela não é mais agente do malefício, mulher diabólica, desprovida de laços de solidariedade. Ela agora pode ser mulher casada, com filhos, profissão e um emprego fora da dimensão doméstica. Não é mais a camponesa tosca, perdida no âmago da floresta, raptando crianças que cozinhará em seu caldeirão. Ela é uma mulher com alto grau de instrução, pertencente à classe média, habitante urbana, em contato com outras bruxas. A bruxaria para ela agora é religião. Ao nos depararmos com esta nova bruxa, várias questões surgiram. Em primeiro lugar, a pergunta sob a qual muitos já se debruçaram antes: o que há de tão específico que inclina a mulher à bruxaria? Mas desta vez não se tratava de desvendar páginas passadas, e sim presentes. O que faz uma mulher moderna do Brasil contemporâneo procurar na bruxaria uma religião e

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assumir publicamente sua condição de bruxa? Qual o processo que permite inverter a valoração negativa da categoria bruxa, transformando-a? Que bruxaria é esta, moderna, que recrutou seus praticantes entre os jovens e as mulheres urbanas de classe média? Que conjuntura é esta que permite que esta crença floresça e tome determinados sujeitos como seus membros; o que estas mulheres buscam na bruxaria que a sociedade mais ampla não lhes dá; como o embate entre o tradicional e o moderno estaria acontecendo nos diferentes níveis deste processo. *

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Encontramos a bruxa moderna, num primeiro momento, nas prateleiras das livrarias, nas seções de esoterismo e auto-ajuda. Títulos como “Conversas com uma feiticeira” e “Revelações de uma Bruxa” chamaram nossa atenção. Havia uma série de obras em parte autobiográficas de bruxas descrevendo seu cotidiano - o uso da magia, o aprendizado da bruxaria – disponível para o grande público. São obras que mesclam uma narrativa charmosa sobre o que é uma bruxa com a intenção clara da auto-ajuda, seja na conversão do leitor à bruxaria, seja na transformação interna, subjetiva. O ramo literário da auto-ajuda e do esoterismo é um dos mais lucrativos no país, especialmente após o fenômeno Paulo Coelho. Esoterismo e auto-ajuda se tornaram quase que um ramo único, que o leitor mediano consome como se fosse um só. É nesta conjuntura que a literatura sobre bruxaria começa a tomar maior volume no país. Ela não é encontrada apenas nas lojas esotéricas, mas nas grandes livrarias e eventualmente um livro sobre bruxaria se torna bestseller. Se o movimento de revelação das bruxas nos chamou a atenção, foi a partir da leitura desses livros que a curiosidade de antropóloga emergiu. Os autores eram, como continuam sendo ainda hoje, em sua maioria mulheres. Havia, então, apenas uma autora brasileira. Dirigiam-se normalmente para um público feminino e raramente personagens masculinos entravam na narrativa. Dava-nos a impressão de ter ingressado num mundo mítico constituído apenas de mulheres. Havia homens, é claro, mas não dominavam a narrativa. Não eram mestres nem superiores, pelo contrário: eram o filho, um parente, o cônjuge ou um incrédulo, mas dificilmente um bruxo. A bruxaria emergia, sob nossas vistas, como um espaço eminentemente de mulheres. A leitura mais precisa dessas obras indicava uma inclinação para um universo feminino. O mundo se transforma sob a ótica das bruxas: Deus passa a ser mulher e a natureza é expressão

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dessa divindade; a magia é uma forma de compreender o mundo, e fornece as explicações que a limitada ciência não possui; a arte passa a manter uma ligação intrínseca com a magia, numa associação que exclui a racionalidade científica; o mundo de hoje passa a ser visto pejorativamente, como um mundo masculino e caótico. Estas concepções nos pareciam o inverso do que é corrente na sociedade ocidental. A valoração parecia invertida: para as bruxas, a natureza vale mais que a civilização; o feminino é mais sofisticado e positivo que o masculino; a modernidade é caótica; a ciência não explica o mundo. Surgiu a questão: que sistema de pensamento é esse? E que momento vivemos hoje que permite este tipo de pensamento? Muitas questões foram levantadas, ao longo desta dissertação, pois o tema é amplo e dialoga com assuntos importantes. O que norteou a pesquisa, contudo, foi a preocupação com as discussões de gênero. Tínhamos em mente a idéia de que a bruxa é mulher, de que o espaço da bruxaria é feminino, e nos perguntávamos o porquê. Paralelo a esta percepção, a bruxaria moderna como era apresentada nesta literatura produzida pelas bruxas parecia engendrar uma concepção de gênero com valorações distintas daquelas da sociedade em geral, o que nos parecia permitir a construção de um pensamento distinto do dominante, a ponto de apresentar-se como proposta para uma nova ordem social. Esta hipótese nos indicava que as concepções de gênero poderiam ser a raiz de uma nova visão de mundo que tentava oferecer soluções para o que julga serem problemas das sociedades contemporâneas. Essas soluções apareciam sob a égide de uma nova ordem, mais justa e equânime, a ser um dia alcançada. Não havia, portanto, apenas a preocupação com a bruxa, a mulher que abraçava estas concepções, mas surgiu também o questionamento acerca destas concepções, o que indicariam sobre a sociedade em que vivemos, quais problemas viam e quais as soluções que apresentavam. A centralidade da mudança estava na mulher e na natureza, não no trabalho, na ordem econômica ou política. A mudança proposta era no cotidiano, na maneira de lidar com o feminino e a natureza – já quase sinônimos – e não na reestruturação de uma luta política. O cotidiano seria capaz de promover a mudança em outras esferas, a econômica e a política incluídas, pois o pensamento das bruxas fornece uma lógica explicativa para o mundo de hoje e propõe a sua mudança. Está claro que a bruxaria da qual tratamos não é a mesma dos tempos medievais e do começo da modernidade. É uma bruxaria moderna, revista para que feitiços possam ser executados no microondas, para que as bruxas se reúnam pela internet, para que os misteriosos

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grimórios que guardavam ritos e feitiços secretos sejam hoje publicados em várias edições. Nem os tempos hoje são os mesmos, permeados pela mesma fé religiosa ou pela crença salvadora na ciência. Hoje, as igrejas pentecostais crescem com a conversão das classes populares e eventualmente da classe média. Mas esta tem realizado um movimento próprio, a conversão à Nova Era, da qual julgamos que a bruxaria moderna – chamada wicca – faz parte. Na literatura antropológica, a bruxaria é invariavelmente o espaço do malefício e das acusações. Para as bruxas modernas, a bruxaria wicca é um espaço religioso vinculado ao paganismo e ao culto da natureza, onde uma Deusa e um Deus são adorados com atributos sexuais e de gênero bem marcados. Os atributos femininos e masculinos se alinham em pólos complementares e opostos, onde o feminino é valorado positivamente. Nesta religião, o feminino representa um papel central, o que permite que a wicca seja um local de construção de uma determinada identidade feminina. Sujeito classicamente vinculado à natureza, a mulher mantém essa ligação na wicca, e conseqüentemente sua ligação com a magia. A reafirmação da diferença e dos atributos tradicionais de gênero é, do nosso ponto de vista, a intenção de construir um novo papel para a mulher. Ao mesmo tempo, a wicca é hoje um dos poucos espaços religiosos que permite que a mulher atue como sacerdotisa, numa hierarquia religiosa que a eleva à posição principal. Posto de outra maneira, começamos a nos perguntar em que medida esta lógica explicativa de mundo da bruxaria, suas concepções e atribuições de gênero não estavam formulando uma identidade para a mulher. Se os manuais propunham uma mudança do mundo, havia uma crítica. Esta crítica baseava-se, freqüentemente, em categorias como sociedade patriarcal, ciência objetiva, pensamento retilíneo. O masculino apresentava-se imbuído em valores negativos. Um novo masculino parecia ter que emergir para este novo mundo enquanto um determinado feminino deveria ser acessado. E que feminino seria esse? Que identidade seria essa que permite às bruxas formular uma nova ordem calcada numa determinada mudança dos padrões de gênero? Na leitura dos manuais, parece haver um feminino vinculado a atribuições tradicionais de gênero. A mulher mantém sua estreita ligação com a natureza, mantém-se como sujeito privilegiado da magia, cujo espaço é o doméstico, vinculada à procriação e à criação dos filhos, bem como à transmissão de cultura. E, de fato, as bruxas reelaboram sua história como grupo, criando uma História da bruxaria como religião que se reporta a épocas pré-históricas. A busca

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do tradicional é tão forte que se estende até os primórdios da humanidade. É o lugar do matriarcado, espécie de paraíso perdido que deve ser resgatado, agora sob a forma de matrifocalidade. A ênfase continua recaindo sob o feminino. Contudo, a bruxa não se prende ao tradicional, apenas faz recurso a ele. Como sujeito de seu tempo histórico, ela está inserida no movimento mais amplo da sociedade. Como mulher, apóia as conquistas feministas embora possa não vir a se definir como feminista. Como profissional, busca uma carreira de sucesso fora da esfera doméstica, alinhada com suas necessidades como sujeito, e neste sentido a própria bruxaria pode se tornar profissão. Entre a teoria e a prática Para a compreensão deste discurso apresentado pelas bruxas em seus livros, recorremos à análise da obra de Márcia Frazão. Bruxa e escritora, publicando no mercado interno desde 1991, sete obras lançadas, esta autora é a pioneira da bruxaria no país em termos literários. Apenas em 1998 surgiu outra publicação sobre wicca que não proviesse de Frazão. Ela se tornou referência na bruxaria wicca para o Brasil e uma liderança desse campo. Não foi apenas pela sua importância como pioneira num mercado em expansão que a obra de Frazão é importante para nossa análise. Há concepções do que a bruxaria é e representa permeando todos os seus livros, e de como ela se opõe ao mundo moderno. Neste contexto, a bruxa emerge definitivamente como mulher marginal, à frente de seu tempo, procurando soluções para os problemas que um mundo masculino impôs ao ser humano e à natureza. Misto de autoajuda – quando procura guiar as leitoras no lento processo de transformar-se em bruxa, que significa romper com os padrões atualmente dominantes - e manual de bruxaria – quando dá receitas de meditações, feitiços e rituais - as obras da autora venderam juntas em torno de duzentas mil cópias. As obras de Frazão fornecem, na verdade, indícios importantes para compreendermos o pensamento da wicca e das bruxas. Por muitas vezes as bruxas que entrevistamos expressaram pontos de vista presentes nas obras de Frazão. Embora ela não tenha se tornado espécie de mestra ou guru, pelo contrário, é alvo de crítica das bruxas, a pesquisa de campo nos permitiu ver na autora uma pioneira não apenas na exposição pública como bruxa ou na dedicação ao tema da bruxaria. Mesmo quando não é nominalmente citada, há idéias presentes em seus livros que

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observamos no discurso das bruxas brasileiras, sobretudo as entrevistadas. É na obra de Frazão, também, que as questões de gênero pertinentes se apresentam mais claramente dispostas, num raciocínio que tenta explicar o mundo moderno. A bruxa de Frazão é mulher livre, de sua condição marginal à sua sexualidade; é mulher sábia, que guarda segredos desvendados apenas pela sensibilidade feminina, conhecimentos que um homem jamais acessaria da mesma forma e com a mesma intensidade; é mulher revolucionária, pois está fora da ordem dominante, é marginal. Ao mesmo tempo, a bruxaria se desenvolve sempre no espaço doméstico, na cozinha, entre facas, vassouras, ervas, taças e panelas, no quintal da casa, no cuidado doméstico, nas relações familiares. Esse universo feminino tradicional levanta, mais uma vez, a questão sobre a ligação da bruxaria com o universo feminino. *

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Todo pesquisador atento sabe que entre a teoria e a prática vai um longo caminho. A questão de gênero aparece como fundamental na compreensão da wicca segundo apresentada nos manuais. Mas seria também uma questão pertinente às bruxas em seu cotidiano? Estariam elas preocupadas com isto, elaborando análises sob o mundo moderno e tentando mudá-lo? Não havia outra maneira de estabelecer esta comparação que não passasse por um contato direto com elas. Poderíamos, deste modo, também definir um perfil para as bruxas modernas brasileiras. Foi assim que nos dedicamos, entre 1999 e 2000, a realizar entrevistas com bruxas cariocas. No total foram oito entrevistas, com sete mulheres e um homem. O único representante masculino é marido de uma das bruxas entrevistadas, também bruxo, e desta forma foi realizada uma entrevista conjunta com os dois. Os perfis obtidos através destas entrevistas constam do capítulo 3, que é dedicado à análise do trabalho de campo. As bruxas surgem como pessoas com aceso ao ensino superior, em profissões ligadas ao mercado esotérico, algumas casadas, outras separadas, e metade delas com filhos. Tentamos traçar, segundo seus relatos, o percurso religioso percorrido na esperança de entender o movimento que as levou a se tornarem bruxas. Foi assim que descobrimos que a wicca é alcançada após uma busca. O sentido da busca é o de encontrar algo que dê expressão a sensações interiores do indivíduo. Não é raro que uma bruxa afirme que procurava aquilo em que

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sempre acreditou, uma crença que ela não conhecia, nem ao menos sabia que nome dar, mas que já existia internamente. A busca é o processo pelo qual se encontra a expressão da crença. É com esta mesma lógica que algumas afirmam que não se tornaram bruxas, mas que sempre o foram. A categoria bruxa se define na crença: existindo internamente a crença, era já uma bruxa. É assim que o aprendizado da bruxaria se diferencia da conversão. A conversão pode ser vista como anterior ao aprendizado, que é apenas a conseqüência do fim da busca. Como os relatos lidam sempre com a reformulação, por parte do entrevistado, de sua própria história de vida, deve-se ter em mente que nossa análise partiu da narrativa das bruxas sobre si mesmas, dessa reapropriação posterior dos fatos. Trata-se de uma análise sobre a maneira como as bruxas pensam, uma análise sobre o seu discurso. Tanto do ponto de vista da literatura por elas produzida quanto de seus perfis, o que analisamos é o discurso que elas apresentam sobre a wicca e sobre a própria bruxa. Através das entrevistas começamos nossa imersão no campo. Freqüentamos diferentes encontros de bruxas, organizados por diferentes grupos, participamos de um ritual, visitamos a casa de algumas delas, conhecemos parte de suas famílias, observamos as discussões teóricas sobre a bruxaria, as acusações, seu gosto musical, suas profissões, faixa etária, maneira de se vestir. O que mais nos chamou a atenção, contudo, foi a profusão de encontros e bruxas que haviam se conhecido através da internet. A bruxa, identidade tão tradicional, agora se comunicava pela modernidade da rede virtual. Instigados pela situação, decidimos ingressar nas listas de discussão que promoviam os encontros. A correspondência trocada pelas listas nos suscitou novos questionamentos, ao mesmo tempo em que permitia compreender melhor o campo da wicca no país, e o próprio diálogo entre as concepções nativas e as importadas. A wicca é um sistema europeu trazido para o Brasil a partir, principalmente, de uma literatura importada, de alguns poucos pioneiros, e da própria internet. A facilidade de se obter informação pela rede é um dos pontos que marcam a crescente popularização da wicca no país, fazendo com que as trocas entre as bruxas tenham aumentado, possibilitando até mesmo a idéia de um encontro nacional anual de bruxas, que ocorre desde1999 em Brasília. A partir da participação na internet, que será apresentada no capítulo 3, algumas questões surgiram e outras se esclareceram. Em primeiro lugar, a correspondência trocada nas três listas

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que participamos permitiu obtermos um perfil das bruxas internautas que não se diferenciava muito daquele obtido nas entrevistas. Desta forma, um perfil das bruxas wiccanas estudadas pode ser definido. Em segundo lugar, a internet se mostrou um campo de atuação real para estas bruxas, não no sentido da prática de magia, mas no sentido de formar uma comunidade, estabelecer laços, lideranças e disputas. O peso da internet é tão grande que é através dela que a liderança de Márcia Frazão tem sido posta em cheque. É nesta rede virtual que algo próximo a uma comunidade tem sido formada, o que possibilitou o encontro nacional de Brasília e possibilita a disputa pela liderança do campo, que se reverte em status e dinheiro, pois muitas lideranças têm como profissão – ou segunda fonte de renda - a bruxaria: são escritores, dão cursos, jogam oráculos, mantêm espaços dedicados à bruxaria. Como a internet é um meio de comunicação mediada, cuja interação não se dá em tempo real, novamente recaímos na análise de discursos. Poderíamos, apesar de tudo, ter seguido outro caminho. O material escrito, a mensagem do correio eletrônico, é complementado pela interação face-a-face dos encontros. Freqüentamos sete encontros de listas de discussão. Foi nesse trânsito pelo campo que percebemos a presença de homossexuais masculinos entre os praticantes de wicca, após sermos alertados pelas bruxas entrevistadas de que eles constituíam a maioria dos homens bruxos. Sem dúvida, apenas a análise do discurso não teria nos dado a dimensão dessa constatação: eles de fato existem, mas há também um certo número de bruxos que não é homossexual. Este é um exemplo de como o discurso, muitas vezes, encobre o fato real. Estamos cientes de que no caso da homossexualidade, a observação foi crucial. Em outros pontos, ela apenas mantinha o discurso. Queremos dizer com isso que, embora tenhamos conscientemente valorizado o discurso das bruxas em nossa análise – através da literatura, das entrevistas, de emails – o campo não foi abandonado, nem se tornou uma fonte menor. Em se tratando de uma religiosidade tão recentemente chegada ao país, que se desenvolve principalmente a partir de fontes escritas, sejam elas literárias ou virtuais, optamos pelo contato direto com estas fontes mais do que por uma eventual tradição oral. Não acreditamos, após a análise do campo, que uma tradição oral da bruxaria européia realmente exista no país. Desta forma, nos encaminhamos para aquilo que nos parecia mais certo e passível de verificação. Há bruxas que afirmam que seus conhecimentos foram adquiridos dentro da família, com base em uma cultura oral própria. Se tivéssemos optado por este caminho, este trabalho teria se desenvolvido em função destas tradições familiares e abandonado a “cultura escrita” da wicca.

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Essas tradições orais são, de nosso ponto de vista, menos a wicca – que nos propusemos estudar – do que reminiscências de antigas crenças populares, de origem européia ou não. Não é a tradição popular ancestral que vem se popularizando, mas um sistema formulado continuamente sob o nome de wicca e que se remete a esta tradição em menor grau do que aos conhecimentos difundidos pela Nova Era. Neste sentido, entendemos que a wicca se propaga sobretudo através de fontes escritas, e tentamos nos manter alinhados com este movimento. A imersão no campo nos possibilitou também refazer a história de um grupo de prática de wicca. A partir desta reconstrução, que se faz novamente com base no discurso, pois o grupo em questão havia já rompido laços quando começamos a entrevistar alguns de seus membros, entendemos a dinâmica de funcionamento de um coven, que se mostrou idêntica à do grupo mais amplo das bruxas do país, como foi possível observar através da internet. A mesma estratégia de disputa e acusação foi usada pelas lideranças da wicca no país e pelas lideranças do coven estudado, como se ele fosse o microcosmo de um recorte mais amplo. Desta forma, estabelecemos um perfil amplo do campo da wicca no país, fazendo um levantamento dos perfis de seus praticantes, o percurso religioso, acusações, disputas, organização. Não nos limitamos, portanto, à análise do discurso, mas conseguimos elaborar um panorama mais vasto de modo a retratar o que a wicca é no Brasil, que público atinge, o que propõe e o que traz de novo. A idéia era, fundamentalmente, entender o resgate da bruxa como uma identidade feminina, entender o que ela traz para quem a procura e que sociedade é esta que permite que ela se realize. Quando analisamos a história de um coven, traçando seu perfil como vínhamos fazendo com sujeitos individuais, percebemos o quanto a idéia de família é forte entre as bruxas. O coven aparece em todos os relatos, sejam eles das bruxas entrevistadas, dos membros do coven ou na literatura, fortemente marcado pela idéia de que ele é uma família, a família da bruxa. Desta forma, o universo doméstico da bruxaria permanecia intacto, pois a família se refere ao mundo privado. A família apareceu também de maneira marcante nos diversos relatos sobre a existência de outras bruxas entre os parentes, ou nos relatos de aprendizado da bruxaria dentro de uma tradição familiar.

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Bruxaria no Brasil Ao começarmos a pesquisa bibliográfica, já tínhamos a pergunta sobre a identidade da bruxa em mente. A hipótese colocada era a de que esta identidade trazia fortes concepções de gênero que de alguma forma agradavam à mulher que se tornava bruxa, e restava saber o porquê. Ao longo da pesquisa de campo, observamos que a identidade de bruxa não consistia apenas em uma identidade feminina. Ela englobava categorias profissionais. Os perfis das bruxas indicavam que ela estava restrita a pessoas de classe média, de centros urbanos, com alto grau de escolaridade formal e com determinado percurso religioso. Este último dado abriu mais uma série de questionamentos, pois os perfis não eram apenas parecidos na conjuntura sócio-econômica, mas também no caminho relatado pelas bruxas. O sentido de busca havia feito com que muitas partissem da religião da família - catolicismo, no caso das entrevistadas, e espiritismo ou catolicismo no caso das internautas – em direção a outras formas de religiosidade distantes daquela, em maior ou menor grau, culminando com o ingresso na Nova Era. Estes percursos são importantes para compreendermos que a conversão à wicca não constitui somente uma adesão a uma determinada identidade de gênero, mas a uma identidade que vai mais além, que indica um determinado percurso pessoal, visto aqui a partir da religião, mas que não se atém a ela: há uma tendência profissional, religiosa, de gênero que indicam uma busca por status, uma busca por um lugar no mercado de trabalho, uma busca por ascensão social que se apresenta como um distanciamento da cultura popular. A bruxa que abandona o catolicismo da esfera familiar – nem sempre considerado a religião individual do sujeito em questão – não recorre a quaisquer outras religiões, mas engendra um percurso de afastamento em direção a formas mais mágicas de sagrado. Deste modo, o espiritismo e a umbanda costumam ser o próximo passo, raramente o candomblé, pois como as religiões pentecostais ele é associado às classes baixas. Após este percurso, a bruxa entra em contato com diferentes correntes participantes da Nova Era, e se estabelece em definitivo neste espaço, seja através do budismo, das religiões orientais ou das ordens herméticas. Quando nos perguntamos sobre a centralidade da questão de gênero para a compreensão da identidade de bruxa, uma outra questão veio à tona: o candomblé é também uma religião que lida com o feitiço, e onde as mulheres se apresentam em situação privilegiada; por que, então, estas bruxas optaram pela bruxaria moderna européia? Uma primeira hipótese é a de que

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candomblé e wicca não fornecem aos seus seguidores as mesmas vantagens. Uma segunda é de que as concepções de gênero não são idênticas. Uma terceira é a idéia de que há um afastamento de formas religiosas populares por parte da classe média em vias de ascensão. Estas três hipóteses não são excludentes. Na busca por esse entendimento, percebemos que, de fato, a wicca faz recurso a formas religiosas estrangeiras, afastando-se tanto quanto possível das nacionais. Em um primeiro aspecto, isto se dá pela adoção de elementos mágicos oriundos de tradições importadas, sobretudo as européias. Em um segundo aspecto, as formas mágicas nacionais são, de modo geral, rechaçadas. Por outro lado, a crença na magia instituída na sociedade brasileira lida, em grande medida, com idéias como possessão, mediunidade e feitiço. Isso abre espaço para a wicca, pois a crença na magia existe. Mas a crença na magia segundo o sistema da wicca não é o mesmo que a crença nacionalmente instituída. Desta forma, observamos que crenças estrangeiras em fadas e gnomos convivem com a idéia de que a bruxa é médium, o que não está escrito em nenhum manual de wicca. A tradição brasileira, nesse sentido, foi incorporada pelos praticantes de wicca no Brasil, em grande parte pela influência do espiritismo. Para aqueles preocupados com a ruptura total entre a wicca estrangeira e a magia brasileira, a possibilidade de troca cultural é invalidada e rechaçada, e só a cultura estrangeira é consumida, venha de que lugar vier. A bruxa toma forma, então, não somente a partir da busca ou do aprendizado de um sistema determinado, a wicca, mas também através de concepções brasileiras, como a idéia de dom ligada à de mediunidade. Percebemos que a crença na magia no Brasil mantém-se ainda como um dado que permeia toda a sociedade brasileira. A classe média, contudo, tem atualizado esta crença através da Nova Era. De fato, percebemos a wicca como uma das inúmeras correntes participantes do que se convencionou chamar de movimento Nova Era. Tanto as suas críticas ao mundo moderno quanto as suas concepções de um mundo ideal e o perfil de seus praticantes em muito se assemelham as da Nova Era. Neste sentido, a wicca parece ser uma atualização da bruxa tradicional e ao mesmo tempo uma reação aos papéis tradicionais de gênero. A magia tem ingressado no imaginário da classe média urbana nacional agora também através da influência da Nova Era. Vista como uma crítica à modernidade, pré-moderna ou pósmoderna, ela tem servido como espaço de atualização das crenças nacionais em magia. Procedendo ao que tem sido chamado de um reencantamento do mundo, e baseando-se em

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culturas tradicionais como seus pontos de referência, a Nova Era permite um ambiente onde a crítica à modernidade é composta com recurso ao tradicional, mas sempre visando uma reformulação social que não é tradicional. Afinal, a bruxa moderna não pensa em voltar a ser agente do malefício, tanto quanto a mulher moderna não deseja ser novamente a rainha do lar. Há uma nova identidade na bruxa moderna que está sendo formulada para mulheres modernas, que faz recurso ao tradicional visando ganhos que a modernidade ainda não alcançou. A crítica ao patriarcado não visa a volta ao matriarcado, mas a constituição de sociedade matrifocal1. Desta forma, entendemos que há um constante diálogo entre tradicional e moderno, expresso tanto através da Nova Era quanto dos percursos religiosos das bruxas estudadas. A tradicional categoria bruxa é reformulada, e agora anda em chats, home pages e mailing lists da internet. A tradicional polarização complementar de masculino e feminino é retomada e transformada na medida em que as valorações são invertidas. O paganismo é acessado e entra num embate com as formas cristãs. A magia passa a explicar o mundo, e a ciência se torna um modelo insuficiente para explicar a realidade, embora não se possa negar sua validade, recaindo no conjunto de atributos negativamente valorados. Nesta conjuntura, não é mais de causar estranheza que as bruxas freqüentem a internet.

____________________________________ 1 - Não vamos discutir a realidade da matrifocalidade para determinados grupos sociais. Está claro que no Brasil as classes populares viveram, em alguma medida, essa realidade. Estamos, contudo, tratando de sujeitos oriundos da classe média.

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CAPÍTULO 1 CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE A BRUXARIA WICCA Neste primeiro capítulo faremos uma imersão na teoria sobre o campo. A bruxaria e a magia são temas freqüentes na antropologia. Foi necessário recorrermos a esta tradição para compreendermos porque a mulher é sujeito privilegiado da bruxaria. No discurso das bruxas, que será analisado tanto do ponto de vista do campo quanto da literatura produzida por elas, a mulher surge como sujeito privilegiado desta prática. A partir da análise do discurso religioso/filosófico da wicca, percebemos que o feminino era mais valorizado que o masculino. Cabia, portanto, as perguntas: por que a mulher é sujeito privilegiado nesta prática e por que o feminino é mais valorizado? Para respondermos a estas questões, foi necessário entender o sistema mágico-religioso da wicca. Percebemos que as divindades desta religião apresentam uma associação direta com a natureza. O feminino também aparece associado à natureza, bem como à magia. Esta série de associações sucessivas nos permitiu elaborar uma conjugação de autores na qual a natureza e a magia se aproximam na medida em que constituem pólos opostos à ciência e/ou à civilização, entendida tanto quanto ordem que rompe com a desordem da natureza como enquanto modernidade. Por outro lado, embora a wicca se apresente alinhada com concepções de bruxaria próprias à maioria das práticas mágicas, ela é uma prática moderna, e não podemos nos esquecer de que as bruxas que estudamos são sujeitos de um espaço-tempo definido. A partir desta preocupação, quisemos aproximar a análise das teorias da modernidade, sobretudo através da obra de Giddens (1991). A modernidade é um período de quebra com concepções mágicas do mundo. Por que estariam sujeitos modernos recorrendo às práticas mágicas, especialmente definindo identidades a partir delas? Com esta questão em mente, antecipamos a hipótese demonstrada em campo de que a bruxaria tem sido um lugar de construção de uma determinada identidade. A princípio, pensamos que esta seria uma identidade vinculada principalmente à questão de gênero, visto que a wicca se apresenta como uma prática voltada para o que considera feminino, e visto que a maior parte de seus adeptos são mulheres. Descobrimos, a partir da pesquisa de campo, que não apenas a

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identidade de bruxa traz consigo considerações de gênero como sugere um determinado percurso profissional e religioso associado a questões de classe e apropriação cultural. Estes percursos estão inseridos dentro do movimento mais amplo chamado Nova Era, que aparece dentro da modernidade com um discurso que remete à tradição tanto quanto estabelece uma crítica à modernidade. Parte da Nova Era, a wicca se apresenta segundo suas definições, e seus praticantes têm perfis próximos aos dos new agers. Quisemos ressaltar aqui o ponto de partida teórico que nos permitiu realizar a análise de campo e solucionar as questões que nos colocamos.

BRUXARIA MODERNA WICCA: O QUE É?

A bruxaria que estudamos e a qual nos referimos neste trabalho é a bruxaria wicca. Formulada ou disseminada – há uma polêmica quanto a isto – por Gerald Gardner, na Inglaterra, constitui uma forma de religiosidade que, segundo as bruxas, remonta à era pré-histórica da humanidade. Primeira religião do homem, ela teria sua origem no matriarcado, período anterior ao patriarcado, e constituiria uma religião de culto à terra, na forma de uma divindade feminina, a Grande Mãe ou Deusa, e uma divindade masculina, o Deus Cornífero. Sobrevivendo ao processo histórico, seria a mesma religião das bruxas medievais levadas às fogueiras. Hoje, apresenta uma faceta moderna, evidenciada através da categorização wicca. Os praticantes de wicca autodenominam-se bruxos, wiccanos ou wiccanianos. Diferenciam-se, desta forma, de outros praticantes de artes mágicas e outras correntes de bruxaria. Segundo as bruxas, é wiccano aquele que celebra os rituais da wicca, chamados sabás e esbás, aquele que segue o conselho ou lei wiccana (“faça o que quiseres desde que não machuque ninguém”), aquele que se submete à Lei Tripla (“tudo o que você fizer, voltará para você em triplo”), e aquele que presta culto à Deusa. Como é corrente ao senso-comum, bruxa é uma categoria de acusação que indica a prática do malefício. Entre os wiccanos, no entanto, a categoria bruxa toma outra conotação. Tanto a partir da pesquisa de campo quanto na literatura produzida pelas bruxas, percebemos que a bruxa wiccana não é associada por eles ao malefício. Pelo contrário, é vista como uma figura sábia, guardiã de conhecimentos ocultos, prestativa, sem

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preconceitos, alinhada às forças mágicas e telúricas, ecologista, entre outros. Aparece, normalmente, como uma figura feminina, embora tenhamos observado a prática da wicca entre homens também. A bruxaria wicca está divida em diversas correntes de prática, chamadas tradições. Cada tradição mantém mitos cosmogônicos próprios e fórmulas rituais próprias, que são revelados ao iniciado. Há muitas tradições diferentes, e não nos debruçamos sobre nenhuma em particular, nem esta foi uma preocupação nossa. O corpo teológico da wicca, a mitologia, a sua estrutura ritual, seu calendário é que foram estudados, sempre com vistas às questões de gênero presentes. Há dois calendários possíveis, um referente ao hemisfério norte, de onde a wicca provém, e outro referente ao hemisfério sul, onde está o Brasil. A elaboração de um calendário para o sul indica que esta prática está sendo adaptada às condições geográficas do país. Veremos, no desenrolar deste trabalho, que estas adaptações não se limitam ao calendário. Para a prática da magia e dos rituais, a bruxas fazem uso de instrumentos mágicos. Eles apresentam um caráter sexualizado, bem como os rituais das bruxas, sempre alinhados em pólos masculino e feminino. A junção destes pólos é sempre procurada como ponto de equilíbrio e posição ideal. Ou seja, a complementaridade destes dois pólos se apresenta na forma de equilíbrio, que é a forma idealizada. A sexualização pode ser percebida através da junção destes pólos, que encerra também a idéia de fertilidade e vida, pois as divindades da wicca são ligadas aos ciclos sazonais da natureza. A bruxa que pratica seus rituais sozinha é chamada de bruxa solitária. O grupo de prática é chamado coven. Segundo a tradição das bruxas, este grupo deve ser liderado por uma mulher, chamada Alta Sacerdotisa ou Grã Sacerdotisa. Lidera, a seu lado, um homem, o Alto Sacerdote ou Grão Sacerdote, mas suas atribuições no corpo do ritual não são as mesmas. Ela está em posição hierarquicamente superior à dele. Esta posição reflete tanto a posição da Deusa frente ao Deus quanto a posição do feminino frente o masculino. Percebemos na wicca uma forte inclinação para o universo feminino e uma valorização positiva do mesmo. Masculino e feminino aparecem como pólos opostos de uma interação complementar e necessária. Contudo, o pólo feminino é sempre o mais valorizado, o que nos chamou a atenção para o modo como o feminino é tratado e visto na wicca, e nos fez perguntar quais seriam os seus atributos e porque ele era sempre o mais valorizado. A partir destas questões, foi necessário mergulhar na literatura e no discurso das bruxas para compreendermos como a disposição de gênero de formula neste grupo.

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As divindades da wicca A wicca, além de sistema de magia, reivindica para si o status de religião. Ela desenvolveu um pensamento próprio, com práticas e ritos definidos, datas festivas e divindades. Existem duas divindades principais: a Deusa e o Deus. Na prática, cabe ao wiccano escolher qual panteão utilizará, quais serão as divindades de sua devoção. O sistema comporta qualquer panteão, do celta ao grego, do hindu ao maia. Segundo o pensamento wicca, a Deusa é o princípio da vida, a Criadora do universo. Em algum momento de Sua existência Ela se divide em duas, e Sua outra parte toma a forma masculina: é o Deus. O Deus surge da Deusa, a partir de uma “gravidez” espontânea, que não é suscitada por nenhum outro agente fertilizador que não Ela mesma. Uma vez dividida em duas, Ela instaura a divisão entre o feminino e o masculino. Nascido Dela, o Deus é Seu filho, mas também se torna Seu consorte, e juntos Eles geram vida. Na wicca, a Deusa se divide em três faces, constituindo a Deusa Tríplice: Donzela, Mãe e Velha. A Donzela simboliza a juventude e a fertilidade: ela pode ser vista como uma virgem, como a menina antes da menarca ou como uma mulher solteira e jovem, sexualmente ativa, mas sem filhos. A Mãe simboliza a maturidade sexual e os frutos da fertilidade, isto é, a mulher sexualmente ativa que gera e cria, a mulher grávida, a amante, a esposa. A Velha é a mulher estéril, a mulher após a menopausa, que não tem possibilidade de gerar, mas que guarda segredos e sabedoria. Ela também representa a morte, o fim do que existe. Notamos que existem três faces de mulheres que são fisicamente definidas, em especial por sua capacidade e disposição de gerar filhos ou não. A Mãe se torna o centro dessa trindade uma vez que a Donzela e a Velha lhe estão em oposição, embora não pelos mesmos motivos: enquanto a Donzela se recusa a conceber, a Velha está impossibilitada de fazê-lo. Há uma outra faceta da Velha, no entanto, que sana essa impossibilidade criativa: uma vez que Ela é a Senhora da Morte, e uma vez que os wiccanos acreditam em reencarnação, crêem que tudo o que morre retorna à escuridão do útero da Deusa para, a partir de lá, renascer. A face escura da Velha simboliza o fim, mas para haver recomeço deve haver antes um fim e, portanto, ela simboliza o recomeço também, num movimento circular, e aí está preservada sua face criativa. Por outro lado, como força feminina, é a Deusa quem cria e traz de volta à vida, através de seu útero, parte criativa de seu “corpo”.

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Esta concepção tripla da Deusa não rompe com a idéia de mulher como fonte reprodutora. Os livros wiccanos referem-se à Deusa como a Grande Mãe, demonstrando que seu aspecto de procriadora e nutriz é o mais importante. Sem dúvida, a wicca é, em seu aspecto religioso, um culto da fertilidade. A Deusa está associada aos ciclos de fertilidade da terra, dos animais e dos homens. Está associada também à lua e suas fases: a Donzela é representada pelo quarto crescente, a Mãe pela lua cheia e a Velha pela lua minguante e nova. A lua nova representa a face de recomeço da Velha, aquele útero escuro onde o que morreu aguarda para renascer. Essa correspondência com a lua é central nos rituais wiccanos. A lua crescente é o período em que se diz que as coisas crescem, só atingindo seu ápice na lua cheia. Desta forma, feitiços são programados segundo seus objetivos a partir de cada lua. Não é de estranhar que os rituais mensais das bruxas (esbás) sejam praticados na lua cheia, período em que acredita-se que o poder mágico esteja mais forte. Não é, portanto, à revelia que a face de Mãe que adquire a Deusa muitas vezes suplante a Donzela e a Velha: sendo o ápice de qualquer poder, ela é sempre preferida, pois representa todo o tipo de abundância. O Deus da wicca enquadra-se dentro da categoria de dying God, ou Deus Agonizante, utilizada por Frazer (1971). Ele é também o que Murray (1970) categorizou como horned God, ou Deus Cornudo (ou Cornífero). O Deus porta chifres e encarna a progressão do sol, nascendo, ascendendo e fenecendo segundo este ao longo do ano. A movimentação do sol durante o ano, segundo as estações, representaria exatamente a movimentação do Deus, que nasce, procria e morre. Como o sol, o Deus fertiliza a terra (a Deusa), constituindo-se, portanto, num Deus da fertilidade. Como Ela, Ele comporta três diferentes faces: jovem, ele acompanha a Donzela, por quem se apaixona; homem, ele é amante da Mãe, que concebe um filho Dele, e é então Senhor da Vegetação, pois dá frutos; maduro, ele começa a perder suas forças e morre, tornando-se o Senhor dos Mortos. Após sua morte ele repousa até nascer novamente da Deusa, como Seu filho, e tornar-se novamente Seu amante, refazendo o ciclo a cada ano. A Deusa dá vida quando Mãe e é Ela mesma quem a tira quando Velha. O Deus representa, de certa forma, essa vida que Ela dá e tira. Ele nasce Dela, a Ela se une no amor, e morre todo ano quando seu tempo fértil já passou. Como divindades da fertilidade, Eles são em grande parte definidos por essa capacidade. A Deusa, ao contrário Dele, nunca morre. Ela carrega morte e vida em si, enquanto Ele é sujeito de vida e morte. Temos aqui duas disposições diferentes. Por um lado, a Deusa encarna a passividade, pois como terra é fertilizada pelo sol, isto

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é, pelo Deus. Ele toma o papel ativo, consagrando o já estabelecido esquema de oposição masculinidade/atividade versus feminilidade/passividade. Percebemos que na wicca essa relação se apresenta tanto como complementaridade quanto como oposição. A atividade do Deus é demonstrada através de seu percurso: ele vive e morre, toma uma forma dinâmica, ainda que cíclica. Podemos vir a observar uma dinâmica na existência da Deusa de duas maneiras diferentes: através dos ciclos lunares e das estações do ano. O nascimento do Deus e sua trajetória são seguidos pela Deusa: quando o Deus é jovem, Ela também é jovem, quando Ele fenece, Ela se reveste da face da Velha. As fases da lua apresentam também esse tipo de correspondência, como vimos acima. Podemos estabelecer uma outra correspondência, baseada nas diferentes faces da Deusa Tríplice, entre a lua e as estações do ano. Deste modo, à lua crescente corresponde o período de primavera, regido pela Donzela; à lua cheia corresponde o verão, quando Deus e Deusa estão em força plena, visto que é a época de exuberância e abundância vegetal e animal; à lua minguante corresponde o outono, período em que o Deus morre e o sol começa a declinar seu poder; à lua nova corresponde o inverno, época do nascimento do Deus. Apesar de haver alguma dinâmica também na trajetória da Deusa, é comum no pensamento wiccano que Ela seja vista como passiva e o Deus como ativo. O princípio feminino é visto como passivo e o masculino como ativo, embora tenhamos percebido que a Deusa segue o mesmo ciclo de atividade que o Deus. Ser ativo significa também ser doador assim como ser passivo significa ser receptor. Na sua face de Mãe, a Deusa é doadora, e portanto ativa. Ela não deveria ser vista como passiva. O mito de criação do Deus coloca o princípio masculino como subordinado ao feminino, nascendo dele e dele dependendo para continuar (reproduzir-se). O princípio feminino, ao contrário, é autônomo, pois cria sozinho o princípio masculino – há um todo que se divide - e opta por se juntar à ele num processo, apesar de tudo, complementar, onde ambos entram com partes iguais na reprodução. Desta forma, notamos que embora o princípio masculino possa ser compreendido como subordinado ao feminino, ele não é inferior. Do mesmo modo, o princípio feminino não se torna, em momento algum, superior àquele, mas pode ser independente deste, sem problemas para a sua reprodução, visto que a Deusa é eterna, ao contrário do Deus, que nasce e morre. A Deusa é transcendente enquanto o Deus é imanente.

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Tomamos aqui um lado interessante da wicca, que é a construção de uma tealogia, termo usado para designar o sistema de crença numa Deusa (Tea). Uma vez que o termo teologia implicaria numa orientação exclusivamente masculina, que ignora o feminino, alguns autores wiccanos (STARHAWK, 1989) optaram pelo termo tealogia, o que demonstra como o seu sistema de crenças se volta para o feminino preponderantemente ao masculino. O que nos chama a atenção neste pensamento é a maneira como ele trabalha as relações idealizadas de gênero, com um princípio feminino que não é subjugado por um masculino por sua necessidade de reprodução, e que tampouco subjuga. Talvez por isso o feminino não seja visto exclusivamente como o portador da vida. Ele é criador mas também destruidor, o que abre um leque de possibilidades para os papéis de gênero e quebra as amarras de interpretações que encerram a mulher como uma reprodutora. Aqui o feminino parece ter liberdade para ser mais do que o lugar da reprodução humana. Cultura versus natureza O Deus e a Deusa estão intimamente relacionados aos ciclos de fertilidade da natureza e à própria natureza. Para as bruxas, toda a natureza é expressão da divindade. A Deusa, que gera vida e dá frutos, pode ser representada pela natureza, que nutre e sustenta o homem. O Deus é tão natureza quanto Ela. Ele pode ser representado como o Homem Verde, Senhor da Vegetação. Em sua faceta de Deus Cornudo, Ele é senhor dos bosques, da fertilidade e da sexualidade. A sexualidade aqui se torna quase um sinônimo de fertilidade e vida. Mas Ele pode ser tomado também como senhor de tudo o que é livre, indomado e selvagem. Neste aspecto, ele se contrapõe explicitamente à idéia de cultura. Notemos, então, que embora o Deus e a Deusa sejam a natureza mais do que estejam a ela ligados, o Deus assume uma faceta que incorpora o elemento selvagem e fora de controle que há nela. A Deusa assume esta face de descontrole de uma outra maneira: é a Mãe Natureza que dá abundância no verão e toma tudo de volta no inverno, deixando o homem sem recursos à sua sobrevivência. Poderíamos mesmo pensar que Ela está mais próxima da cultura do que da natureza se nos for necessário estabelecer este par de oposição: Ela simboliza também uma sabedoria oculta (Velha), um mistério, enquanto o Deus representa o instinto, o que é sem controle e sem razão. Por outro lado, Ela também representa os campos semeados, a agricultura

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(Mãe). A agricultura é, sem dúvida, uma atividade de domínio sobre a natureza, portanto uma atividade cultural que se lhe coloca em oposição. Segundo Ortner (1979), que pretende compreender a universalidade da subordinação feminina a partir das especificidades culturais, a mulher adquiriu um valor inferior ao do homem porque foi identificada com algo que cada cultura desvaloriza: esta coisa é a natureza. O homem, por sua vez, é identificado com a cultura. Se a cultura sempre submete a natureza, e se a mulher faz parte da natureza, nada mais “natural” do que o homem subjugar a mulher. As mulheres se aproximam da natureza, segundo ela, em conseqüência de sua função reprodutiva natural, que lhe é específica. A mulher cria a partir de si própria enquanto o homem deve transcender esta impossibilidade inerente, criando além de seu corpo, produzindo bens culturais. Deste modo, a ele competem atividades ligadas à destruição e que, culturalmente, são de maior importância do que as de gerar vida, pois a superioridade da humanidade não é devida ao sexo que gera, mas ao que mata (ORTNER, 1979). Para esta autora, apesar de tudo, o lugar da mulher na sociedade é o de intermediário entre natureza e cultura, visto seu papel no processo de socialização inicial do ser humano. A wicca nos apresenta uma inversão dos pares de oposição natureza/cultura e masculino/feminino, visto que a natureza, em seu sentido de oposição à cultura, está alinhada do lado masculino, enquanto cultura pode ser alinhada do lado feminino. O feminino, contudo, nunca deixa de ser natureza também, no sentido tanto do ecossistema quanto da fertilidade (reprodução). Ele ocupa exatamente este papel intermediário entre natureza e cultura de que fala Ortner (1979). E mais uma vez notamos a inversão, pois não há ninguém no papel de cultura. O feminino na wicca engloba tanto natureza quanto cultura. Por este ponto de vista, a preponderância do feminino no pensamento wicca ainda obedece à lógica que valoriza a cultura em detrimento da natureza. Podemos, no entanto, fazer o caminho contrário, afirmando que a natureza é mais valorizada na wicca, e que por esta razão o feminino tem preponderância sobre o masculino. Essa preponderância só é possível porque a wicca toma a reprodução como um valor positivo acima de qualquer outro. Podemos notar esta valorização na tônica de fertilidade do culto e na disposição de potencial criativo das três faces da Deusa e do próprio Deus. Neste ponto, podemos afirmar que o masculino se coloca ligeiramente abaixo do feminino em força e poder justamente porque

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dele depende para se reproduzir, enquanto o feminino é eterno. A partir daí podemos dizer que a capacidade de reprodução é um dos valores positivos que fazem com que o feminino detenha maior ênfase neste culto. Outras atribuições seriam tanto sua associação com a natureza quanto com a cultura. Ao mesmo tempo em que é natureza, mas uma natureza boa e nutriz, o feminino é cultura, da mesma forma uma cultura boa que traz a sofisticação. O masculino, exatamente ao contrário, é natureza quando bárbaro e retido à força física e à destruição, e encarna a cultura quando ela também é destruição. Estes atributos e associações ficarão mais claros no capítulo referente à obra de Márcia Frazão. As atribuições do feminino são marcadas com mais valor do que as do masculino, formando uma hierarquia que se reflete no trabalho dos grupos de bruxas (a ser visto adiante). O masculino e o feminino, contudo, não são apenas opostos mas também complementares. Essa diferenciação entre eles pode ser melhor concebida na forma de uma assimetria de valorações do que opressão ou subordinação. O coven Como sacerdotisa de uma religião, a bruxa tem obrigações rituais1. Essas obrigações podem ser cumpridas solitariamente ou em grupo (coven). O grupo tende a ser permanente no sentido de manter-se coeso, isto é, uma vez formado um grupo permanente ele se mantém trabalhando unido em todas as datas festivas e rituais. O coven pode durar anos e dar origem a novos covens sem necessariamente ser extinto. Existem dois tipos de grupo: o círculo e o coven. O círculo pode vir a formar um grupo permanente ou não. Ele é, na verdade, um grupo de estudos de magia ou assuntos afins à prática da wicca, como mitologia, por exemplo. O círculo não tem uma organização hierárquica nem tampouco uma rigidez em sua forma. Os membros não formam um grupo coeso, que deve manter-se unido em obrigações rituais. Eventualmente, o círculo começa a praticar os rituais e pode vir a tornar-se um coven. Starhawk (1989), autora wiccana americana, afirma que a maioria ______________________________________________________ 1 – A idéia de “obrigações rituais” não está explícita na wicca. Pelo contrário, os rituais têm uma forte conotação festiva e diz-se que todos os atos de prazer são rituais à Deusa.

dos covens nasce a partir de círculos de estudo. O coven é um grupo fechado, de ordem hierárquica ou não. Todos os seus participantes são considerados sacerdotes e sacerdotisas, uma

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vez que desempenham papéis rituais. Tradicionalmente comporta no máximo treze pessoas e no mínimo três pessoas (LAGÔAS, 1998). Rituais públicos podem ser realizados com mais de treze pessoas (STARHAWK, 1989). A liderança do coven, quando existe, cabe, normalmente, a uma Grã Sacerdotisa, ou Alta Sacerdotisa, e a um Grão Sacerdote, Alto Sacerdote ou Homem de Negro. É possível, no entanto, que a liderança esteja somente nas mãos da Alta Sacerdotisa, sem a presença de um Alto Sacerdote, ou somente nas mãos de um Alto Sacerdote. É possível ainda que a liderança seja exercida em forma de rodízio por todos os membros do coven ou que simplesmente não haja liderança. Tradicionalmente, a Grã Sacerdotisa comanda o coven. É ela quem programa os rituais, divide entre os membros as tarefas relacionadas a eles, define os papéis nos rituais, encontra o local adequado. A Grã Sacerdotisa deve ser obedecida, uma vez que sua experiência é, usualmente, maior que a dos outros membros do coven. Ela desempenha o papel da Deusa nos rituais, sendo portadora de Sua autoridade e poder. Ela representa a Deusa na Terra para os membros do coven, e por isso lhe é devido respeito. Essa forma de autoridade, contudo, jamais deve ser desempenhada de maneira autoritária. A Alta Sacerdotisa não deve ser obedecida cegamente. O princípio de sua autoridade é a sabedoria, a maior experiência e conhecimento, definido normalmente por um maior tempo de prática mágica do que o restante dos membros do coven. Da mesma forma atua o Grão Sacerdote, que representa o Deus nos rituais e para os membros do coven. Quando não comanda diretamente o coven, como o faz a Grã Sacerdotisa, ele apenas a auxilia na organização dos rituais e tarefas. Nem todos os covens trabalham rigidamente dentro desse esquema hierárquico. Segundo Starhawk (1989), é possível eleger-se uma Grã Sacerdotisa para que comande o grupo por um período determinado, depois passando à frente esse comando para outro membro, inclusive um homem. Esse procedimento visa, segundo ela, uma maior democratização do poder dentro do coven, uma vez que a Grã Sacerdotisa ainda mantém seu poder de autoridade, embora eleita. No caso dos homens, visa transcender o espaço criado pela hierarquia usual dos covens, abolindo a diferenciação entre homens e mulheres. Essa diferenciação só toma forma, de fato, na autoridade da Grã Sacerdotisa. Abolindo a regra em que o comando é dado exclusivamente à mulher, abolese também a diferença entre os gêneros dentro do coven. Usualmente, os covens mantêm a mesma Grã Sacerdotisa e o Grão Sacerdote enquanto durarem. Esta duração será definida pela

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disposição dos membros em permanecerem juntos ou não. Nada impede um membro de abandonar seu coven caso esteja insatisfeito ou enfrente alguma impossibilidade. Não existe entre os praticantes de wicca nenhuma hierarquia fora do coven. Os covens não são unidos numa organização hierárquica sob o comando de determinada pessoa. Ao contrário, cada coven constitui uma unidade autônoma. É possível, contudo, que vários covens estejam sob a influência de um ou mais Altos Sacerdotes e Altas Sacerdotisas. Quando uma Alta Sacerdotisa/Alto Sacerdote é formado por seu coven (A) e instruído a organizar um novo coven (B) onde poderá exercer liderança, este novo coven (B) fica de alguma forma sob o escopo de influência do coven (A) que formou aquele Sacerdote/Sacerdotisa. Deste modo, diz-se (FARRAR,1999) que a Alta Sacerdotisa do primeiro coven em questão (A) adquire o título de Rainha das Feiticeiras, pois de seu coven (A) originou-se outro coven (B), o que faz com que ela tenha influência sobre dois covens distintos. Quanto mais covens surgirem a partir do primeiro (A), maior a influência e autoridade da Rainha das Feiticeiras. A Rainha usa uma liga na perna como símbolo do status alcançado. Essa liga terá tantas fivelas quantos forem os covens sobre os quais ela exercer influência, aqueles que derivam diretamente de seu próprio coven (FARRAR,1999). O coven que formou a bruxa pode ser sempre procurado quando há necessidade de qualquer tipo de ajuda. Os covens sobre influência de uma Rainha das Feiticeiras formam uma verdadeira rede. Há uma outra faceta do coven que se torna explícita na fala das entrevistadas: a noção de família. De fato, um coven só é formado quando seus integrantes têm alguma afinidade entre si e algum grau de amizade. O sentimento característico de um coven que expressa essa afinidade é “em perfeito amor e perfeita confiança” (DUNWICH, 1991). A expressão quer dizer que os membros de um coven devem manter relações de amor e confiança entre si, onde quaisquer sentimentos contrários a essa harmonia não são bem-vindos e podem prejudicar o funcionamento do coven. Sobre a relação familiar de um coven, o grupo de participantes é visto como uma família e a Alta Sacerdotisa é encarada como uma mãe. Na wicca, a figura da Deusa Mãe é voluptuosa, é a figura de fertilidade e maturidade sexual. O Alto Sacerdote pode assumir, então, a posição de consorte/amante da Alta Sacerdotisa, exatamente como o Deus é o consorte da Deusa. Neste sentido, é comum encontrarmos na literatura wicca vários casais de escritores que são conjuntamente as Altas Sacedotisas e Altos Sacerdotes de seus próprios covens, como o casal

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Farrar. Se o Grande Rito completo for encenado, isso só poderá ser possível se a Alta Sacerdotisa e o Alto Sacerdote constituírem-se como um casal de fato. Na wicca, o culto é baseado em simbologias sexuais e pode vir a ser o palco de alguns encontros. O Grande Rito é parte dos rituais wiccanos, embora ele seja mais indicado para os sabás de Beltane e Samhain (FARRAR,1999). Consiste na encenação simbólica da união sexual do Deus e da Deusa. Caso seja encenado com os instrumentos mágicos, a faca de cabo negro (athame) será introduzida dentro da taça - normalmente repleta de vinho tinto, numa clara alusão ao sangue menstrual e à fertilidade feminina, mas também possivelmente repleta de sidra, suco de frutas ou leite, todos símbolos da abundância da natureza. A faca representa explicitamente o órgão masculino, enquanto a taça representa o útero. A encenação do Grande Rito com os instrumentos mágicos não é bem vista por alguns wiccanos, que afirmam que o correto é que ele seja encenado pela Alta Sacerdotisa e o Alto Sacerdote com um intercurso sexual real. Em Farrar (1999), o Grande Rito é descrito e ilustrado com fotos. A Alta Sacerdotisa se deita no chão, suas pernas afastadas, os braços longe do corpo, e sobre ela é proferida uma invocação na qual o corpo da mulher é claramente associado à terra, ou seja, à Deusa. “Assiste-me para erigir o antigo altar, no qual em dias pretéritos todos veneravam; O grande altar de todas as coisas. Pois outrora, a Mulher era o altar. ” (FARRAR,1999: 49) A invocação acima serve tanto para o rito real quanto o simbólico. O ato sexual em si deve ser consumado sem a presença do coven, que aguarda o desenrolar da situação longe do casal sacerdotal. Entendemos, a partir daí, que a Alta Sacerdotisa e o Alto Sacerdote formem um casal de fato, não só dentro dos rituais mas fora deles. Janet e Stewart Farrar (1999: 47) afirmam que “o casal que representa o Grande Rito está oferecendo a si mesmo, com reverência e alegria, como expressões dos aspectos de Deus e Deusa da Fonte Suprema. (...) E é porque o Grande Rito sob sua forma ‘real’ deve, nós o sentimos, ser representado por parceiros casados ou por amantes que detenham uma união ou unidade semelhante à do casamento”. Segundo informações de Ana, uma das entrevistadas, quando realiza rituais em grupo, como Alta Sacerdotisa, ela se recusa a manter um Alto Sacerdote no ritual, mesmo que haja bruxos presentes, pois entende que esses cargos devem ser divididos por um casal de fato e não apenas ritualmente. A idéia implícita na

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opinião de Ana é a de que a união sexual do Deus e da Deusa é uma união de amor e com amor deve ser encenada. Se os sacerdotes não constituírem um casal de fato, sua união não representará a união amorosa da divindade. Os Farrar (1999: 47) afirmam que “pelo fato de ser um rito mágico, poderoso e carregado pela intensidade da relação sexual, se interpretado por um casal cujo relacionamento é menos estreito, pode ativar vínculos em níveis para os quais tal casal não esteja preparado e que podem se revelar desequilibrados e perturbadores”. Portanto, parece haver uma interdição mágica a essa prática. O Alto Sacerdote deve representar a masculinidade do Deus. A rigor, não há espaço para o homossexualismo masculino na wicca como há, por exemplo, no candomblé (BIRMAN, 1995). Quanto ao homossexualismo feminino, a prática se mostra distinta. Na literatura wicca, pelo menos, há sinais de que covens formados por lésbicas são comuns. Não existe, contudo, nenhuma informação sobre covens formados por gays, embora, sem dúvida, existam gays praticantes de wicca. A idéia implícita é de que, sendo uma religião voltada para o feminino, ela atrairia homens mais vinculados à feminilidade, ou seja, gays. Neste sentido, levantamos a hipótese de que o gay é um pólo feminino na wicca, e não masculino. O masculino é representado pelo homem heterossexual, patriarcal ou não. A representação que a wicca guarda do masculino é a de atividade, força, energia. A idéia de que há muitos gays na wicca é comum entre seus praticantes. Pudemos averiguar, em campo, que há gays praticando a wicca, mas não podemos afirmar que eles representam a maioria dos bruxos. Dos dez bruxos que conhecemos ou sobre os quais foi possível obter informação, três são tidos como gays e um como bissexual. A nossa hipótese se assenta no fato de que a wicca é uma religião inclinada a valorizar positivamente o feminino em detrimento do masculino. Este se torna pólo complementar e necessário a uma harmonia total. Neste sentido, o homossexualismo só se encaixa nas divisões de gênero wiccanas quando é alinhado ao feminino. A ritualística wicca não engloba a possibilidade de homossexualismo masculino. Como vimos acima, está implícito que o Alto Sacerdote seja heterossexual. A força criativa, nesta religião, decorre exatamente da união dos opostos masculino e feminino. É necessário, portanto, que os homens incorporem qualidades vistas como masculinas. As mulheres, do mesmo modo, devem portar qualidades femininas. Porque então existem oficialmente covens lésbicos mas não gays? Nossa resposta se baseia na idéia de que a wicca trata feminino e masculino também a partir de uma divisão biológica e

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não apenas de gênero. Neste sentido, uma mulher é alguém que possui um útero e, mesmo sendo lésbica, não deixa de ser mulher e encarnar a idéia de feminino. Portadora de um útero, ela não perde a oportunidade de procriar. O homem gay, por outro lado, tem um falo que não é usado para a procriação, e pode deixar de ser pólo masculino. Só há lugar na wicca para o gay, como há para a lésbica, em um artifício de gênero onde eles se alinham ao pólo feminino.O lugar das lésbicas é um lugar próprio, em separado: um coven só de lésbicas. Não existe, contudo, em nosso material de campo, nada que nos leve a afirmar que lésbicas e gays são proibidos de fazer parte de covens conjuntamente com heterossexuais. O feminismo entrou fortemente nas concepções wiccanas, e autoras como Starhawk, Stein, Frazão e Budapest declaram-se feministas, no sentido da luta pelos direitos da mulher. O feminismo abriu uma porta de entrada para as lésbicas, mas sua permanência na wicca se deve à própria dinâmica de gênero dessa religião. Não obstante, existem gays na wicca. Na literatura wicca a que tivemos acesso, apenas Starhawk (1989) pretendeu absorver gays e lésbicas, com uma preocupação “politicamente correta” pelo assunto. No candomblé, comparativamente, apesar de as mulheres manterem cargos superiores, a valoração dada ao feminino é menor que aquela dada ao masculino, o que se apresenta, por exemplo, em servir a comida primeiro aos homens e àqueles de orixá masculino (BIRMAN, 1995). A mulher é associada ao doméstico, ao sacrifício, ao cuidado da família. Ela ascende aos cargos superiores na hierarquia sacerdotal porque o espaço do feminino é propício à religião e à possessão e não porque o feminino seja mais valorizado do que o masculino. O que temos na wicca é exatamente o contrário: é por ser mulher que cabe à Alta Sacerdotisa – idealmente, pois como vimos isto não é mais uma regra - a maior autoridade num coven, e não por simbolizar o feminino, senão teríamos uma situação análoga ao do candomblé, onde uma maioria de pais-desanto é homossexual. Como vimos acima, dificilmente um homossexual conseguirá exercer o cargo de Alto Sacerdote. Da mesma forma, é por isso que não há impedimento teológico – ou tealógico – aos covens formados por lésbicas: o poder feminino reside na sua constituição física de mulher, que ela não perde sob hipótese alguma. Embora os grupos sejam a prática mais usual descrita na literatura wicca, uma bruxa pode praticar os mesmos rituais que o coven, mas com alguma alteração de formato para se adequar a uma só pessoa. Neste caso ela é chamada bruxa solitária. Uma bruxa solitária pode já ter pertencido a algum coven ou não. No primeiro caso, os rituais de passagem de grau serão feitos

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por ela mesma (auto-dedicação e iniciação) e o ritmo do aprendizado mágico também será de seu próprio critério. Os rituais Existem dois tipos de rituais na wicca: esbás e sabás. Os esbás constituem rituais do coven (ou da bruxa solitária) que tomam lugar usualmente nas luas cheias. Contam-se treze no período de um ano. Nestes rituais é trabalhada a magia ou algum aspecto das divindades que o grupo deseje explorar. Os esbás não têm um tema de trabalho específico. Este deve ser eleito pelo coven, segundo suas necessidades e disposições. A lua cheia é escolhida porque é o período do ápice de poder mágico. É possível, no entanto, que os sabás sejam feitos em cada lua diferente. Nada impede que um coven faça esbás a cada lua cheia, nova e crescente, trabalhando deste modo os três diferentes aspectos da Deusa, a saber, Donzela, Mãe e Velha. Esta disposição fica a critério de cada grupo. Os sabás são rituais que marcam o caminho do sol, rituais sazonais de fertilidade que louvam o Deus e a Deusa em seu aspecto de casal divino. São oito por ano: Yule (solstício de inverno), Imbolc (Candlemas), Ostara (equinócio de primavera), Beltane, Litha (solstício de verão ou meio de verão), Lammas (Lughnasadh), Mabon (equinócio de outono) e Samhain (Halloween). Os sabás dos solstícios e equinócios (sabás menores) são direcionados a aspectos do Deus enquanto os quatro restantes (sabás maiores) direcionam-se a aspectos da Deusa. Como rituais sazonais, os sabás obedecem a um calendário que se guia pelo sol, pelas estações do ano, portanto, essas datas serão diferentes segundo cada hemisfério. Do mesmo modo, solstícios e equinócios não têm data fixa porque dependem da movimentação do sol. Existe, contudo, uma margem de cerca de três dias em que cada um destes sabás pode cair. Janet e Stewart Farrar (1999) afirmam que, originalmente, os quatro sabás da Deusa eram os únicos existentes na tradição religiosa dos celtas, de quem os sabás seriam originários. Os demais quatro, que marcam o começo de cada estação, teriam sido implementados entre os celtas a partir das invasões de povos nórdicos aos seus territórios. Os rituais nos sabás mudam sua forma de coven para coven, mas obedecem sempre ao tema da época, o aspecto que tomam a Deusa e o Deus segundo a época do ano. O conjunto dos oito sabás marca um ciclo de um ano chamado pelos wiccanos de Roda do Ano. Um período de

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seis meses é chamado “meia Roda”. O termo Roda encerra a idéia de uma passagem de tempo circular e cíclica, que após findada recomeça novamente. Instrumentos mágicos Para praticarem seus rituais, as bruxas precisam de instrumentos mágicos. Esses instrumentos guardam correlações explícitas com princípios masculinos e femininos, mantendo a idéia de fertilidade e procriação. Deste modo, muitos dos instrumentos não são mais do que representações dos órgãos reprodutores feminino e masculino. A sua utilização nos rituais também demonstra que servem como metáforas para a união sexual (geradora de vida) do Deus e da Deusa. Os principais instrumentos são: o athame, a espada, a vassoura, a varinha, o caldeirão, o pentagrama, o cálice, o incensário e o sino. Existem vários outros instrumentos mágicos, como a foice, o chicote e o bolline (faca de cabo branco), por exemplo. Esses instrumentos mágicos são de uso menos comum nos rituais ou não se destinam em absoluto a eles. Cada instrumento mágico corresponde a um elemento diferente: o athame e a espada correspondem ao elemento fogo (para alguns, ao ar), a varinha corresponde ao ar (para alguns, ao fogo) assim como o incensário e o sino, o cálice e o caldeirão correspondem à água, o pentagrama corresponde à terra e a vassoura à quintessência (nível espiritual). O incensário é o objeto onde se queima incenso durante os rituais. O incenso pode ser queimado sobre a brasa de carvão na forma de tablete ou ervas secas ou pode ser queimado o incenso industrializado na forma de bastão. Ele serve para purificar o ambiente do ritual e para consagrar objetos. Seu propósito seguirá a propriedade da erva que esteja sendo queimada. O sino é um instrumento dedicado à Deusa, devido à sua forma arredondada. Ele serve para purificação. O cálice e o caldeirão são instrumentos similares, que representam a Deusa e seu útero criativo. Instrumentos com formas arredondadas costumam representar o feminino, enquanto instrumentos com formas alongadas ou fálicas representam o masculino. No cálice colocam-se a água com sal, utilizada para purificar o ambiente do ritual, e qualquer bebida a ser consumida ritualmente. O caldeirão é uma panela de ferro ou barro, pintada de preto. Pode apresentar duas asas laterais e três pés de apoio. É um objeto utilizado para diversos fins rituais. Pode ser colocado no altar, com flores, frutas e velas em seu interior ou ser usado em feitiços, como representante da

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transmutação, bem como ser levado ao fogo para servir de panela no cozimento de feitiços, poções e banhos. A espada e o athame (faca de cabo negro) são instrumentos do Deus. Podem substituir um ao outro durante os rituais. Eles simbolizam a força do falo do Deus. Quando há necessidade de representar o Deus fertilizando a Deusa, o athame é colocado ritualmente dentro do cálice, numa metáfora do ato sexual. O athame é utilizado nos rituais tanto para traçar o espaço designado ao ritual quanto para cortar qualquer coisa de que se precise, a comida inclusive, e para marcar símbolos mágicos em velas. A espada é um instrumento que apenas a Alta Sacerdotisa e/ou Alto Sacerdote costumam possuir. É com ela que eles traçam o espaço consagrado ao ritual. Neste sentido, a sua posse pode vir a indicar um signo de distinção. A varinha também simboliza o falo do Deus, o princípio masculino. Constitui-se de um galho fino de árvore sem folhas, mas pode ser feita artesanalmente de materiais diversos como a madeira e a prata, e depois adornada com símbolos mágicos ou pedras. Ela também é usada na consagração de objetos e na delimitação do espaço de trabalho mágico e ritual. A vassoura é um instrumento que se destina à limpeza e purificação do ambiente de trabalho ritual. Ela representa a união do casal divino. Seu cabo é o falo do Deus e a palha da vassoura representa a Deusa recebendo o Deus nela, ou seja, a vassoura representa o próprio ato sexual criativo. Ela é também um símbolo de fertilidade. Seu cabo pode ser feito com qualquer tipo de madeira escolhida, embora algumas sejam preferidas a outras (o que vale também para a varinha), e preso a ramos de árvores para formar a palha. O pentagrama é uma estrela de cinco pontas virada para cima e disposta dentro de um círculo. Ele é um símbolo da transmutação da matéria em direção ao espiritual. Se a wicca possui um símbolo comparado à cruz cristã, um símbolo de identificação de seus praticantes, este é o pentagrama, embora outros sistemas de magia também o utilizem como símbolo. Na wicca, ele é disposto sobre o altar em rituais. É também um símbolo de proteção e não é raro que uma bruxa use um pequeno pentagrama pendurado no pescoço como bijuteria. Frazão (1994) costuma incitar seus leitores a fazerem eles mesmos instrumentos como a varinha e a vassoura. À exceção da varinha, pudemos verificar que todos os demais instrumentos podem ser encontrados em diversas lojas do Rio de Janeiro, nem todas voltadas a produtos esotéricos. É interessante notar que grande parte desses instrumentos se confunde com instrumentos de uso doméstico. O athame é uma faca, o caldeirão é uma panela, o cálice é uma

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taça, a vassoura usa-se ainda normalmente na limpeza da casa. Como instrumentos da esfera doméstica, eles são instrumentos típicos do uso feminino. Embora a faca e a taça sejam comuns a todos que morem na casa, o seu cuidado ainda é feminino. O espaço da cozinha é inegavelmente ainda hoje um espaço feminino. Os instrumentos mágicos, contudo, só devem ser utilizados para fins mágicos e rituais. Origens da wicca Os autores wiccanos afirmam que suas práticas religiosas são herdeiras daquelas dos homens pré-históricos. Sítios arqueológicos como os de Trois Frères, na França, e Çatal Huyuk, na Turquia são comumente citados em livros de wicca como lugares onde a pesquisa arqueológica demonstrou a existência pré-histórica da crença na Deusa Mãe e no Deus Cornífero. Na verdade, pesquisadores como Gimbutas (1997) afirmam a existência dessa crença, tentando usá-la como prova do período matriarcal ou matrifocal da humanidade. O discurso dos entrevistados afirma que essa religião pré-histórica teria se mantido no período do patriarcado, modificando um pouco sua forma. Deste modo, a mitologia greco-romana está cheia de exemplos de deusas da lua, da fertilidade, da terra, e cheia de deuses da vegetação, deuses do sexo, do sol. Frazer (1971) demonstra essas associações. Para os wiccanos, elas seriam provenientes da crença na Deusa Mãe e no Deus Cornífero, modificadas para que se enquadrassem melhor na sociedade patriarcal: o Deus se torna mais forte que a Deusa e o masculino é associado à guerra. Assim, temos Zeus governando os outros deuses do Olimpo. Mas se retornarmos à gênese dos deuses gregos, acharemos uma Deusa, Gaia, dando à luz sozinha o seu filho e consorte, e a partir daí povoando o mundo de deuses. Já sob perseguição da Inquisição, os praticantes da bruxaria teriam mantido seu culto sob sigilo (FRAZÃO, 1994). Seria essa a forma de se defenderem das perseguições da época. O diabo ao qual eram associadas seria na verdade o Deus das feiticeiras: um Deus com chifres que simbolizava a efervescência da vida, tanto no reino vegetal, através das estações do ano ou do calendário agrícola, quanto no reino animal, através o impulso sexual (MURRAY, 1996). Frazer (1971) e Murray (1970, 1996) demonstram como o folclore europeu está cheio de passagens que se remetem ao culto à Deusa Mãe e ao Deus Cornífero. Murray (1996) afirma que se tratam de resquícios das formas de culto e crença das bruxas. Neste sentido, são citadas a

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tradições folclóricas européias como a dos noivos da primavera e o mastro de maio como resquícios de práticas rituais pagãs. Frazer (1971), embora não fale em bruxas, tenta demonstrar que a crença numa Deusa doadora de vida e num Deus da vegetação que tem sua vida regulada pelas estações do ano, morrendo anualmente, é disseminada por vários pontos do mundo. Murray (1970, 1996) ignora a figura da Deusa e centra-se somente na figura do Deus, como única divindade das bruxas. Sua afirmação de que haviam covens dirigidos por Sacerdotes homens – e não mulheres - provém de relatos de torturados da Inquisição. Esses Sacerdotes oficiavam sozinhos os grupos, e alguns o faziam em companhia da Sacerdotisa, que figura em segundo plano nas obras de Murray. Não se sabe o que levou os torturados ao silêncio quanto à Deusa – caso Ela realmente fosse objeto de culto. Acredita-se que ela passasse desapercebida nas confissões das bruxas, visto que os inquisidores procuravam provas sobre o culto ao diabo. Foi apenas recentemente, na década de 1950, na Inglaterra, que surgiu de fato a designação wicca e o significado a ela dado: bruxaria moderna. Ela se propunha a ser uma releitura e um resgate da bruxaria folclórica, amparada por estudos arqueológicos, históricos e antropológicos. É unânime apontar o grande responsável pelo ressurgimento da bruxaria como sendo Gerald Gardner, que publicou obras de ficção sobre bruxaria para então admitir que era ele mesmo um bruxo (assim que a Inglaterra aboliu sua última lei contra a prática de bruxaria). Gardner era membro de ordens esotéricas secretas e ficou conhecido como o disseminador da wicca. Existe entre os wiccanos, contudo, uma vasta polêmica sobre a veracidade dos relatos de Gardner: teria ele inventado uma nova religião com base em informações históricas e práticas esotéricas ou teria ele descoberto de fato a prática da bruxaria em pleno século XX? Até hoje, não foi possível encontrar esta resposta. Tudo o que sabemos de Gardner está disponível em várias páginas na internet. Seus livros são de difícil acesso no Brasil. Os ensinamentos que Gardner depositou em sua obra literária deram origem à chamada tradição gardneriana, pessoas que seguem suas práticas. Um outro nome aparece como celebridade no mundo da bruxaria wicca: Alex Sanders. A princípio um discípulo de Gardner, Sanders desenvolve uma obra própria e dá origem à tradição alexandrina de wicca. Autores nacionais

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A partir da década de 1990, no Brasil, os livros de wicca têm aparecido nas livrarias já com autores brasileiros, embora a maior parte da literatura sobre o assunto seja importada. A autora que mais se destaca é Márcia Frazão, pioneira dessa literatura em português. Até o momento, ela publicou sete livros, sendo seis sobre bruxaria wicca e um sobre oráculos. Existem pelo menos mais três autores brasileiros de livros sobre a wicca. Luiza Lagôas lançou, em 1998, um livro sobre wicca destinado ao público adolescente. Claudiney Prieto escreveu dois livros sobre o assunto, o último lançado em 2000. Cláudio Crow Quintino também lançou um livro sobre wicca em 2000. De um modo geral, a literatura wicca é voltada para iniciantes. Os livros contêm informação sobre a religião wicca, alguns rituais para praticantes solitários ou covens, exercícios, e algumas receitas de feitiços. Há informações sobre ervas, planetas, deuses, cores e procedimentos mágicos, segundo os fins desejados, com um único aviso: “faça o que quiser, desde que não machuque ninguém”. Esta é, basicamente, toda moral wiccana. Sua única lei é um desdobramento dessa moral: a lei do retorno tríplice, segundo a qual qualquer bem ou mal feito ou enviado retorna três vezes àquele que o enviou. Luiza Lagôas é bailarina e reside em Niterói. Como já dissemos, seu livro destina-se ao público adolescente, prioritariamente a meninas, que desenvolveriam com as amigas um círculo ou coven. O livro explica quando e como fazer os sabás e dá receitas de feitiços e outros rituais. O final do livro guarda um agradecimento especial àqueles que tornaram o livro viável, entre eles Márcia Frazão. Claudiney Prieto é uma das lideranças da wicca no país. Fundador e presidente da ABRA-WICCA, Associação Brasileira Para a Religião e Filosofia Wicca, aparece freqüentemente

nos meios de comunicação falando sobre a wicca. Reside em São Paulo, onde dá cursos sobre bruxaria. Seus livros seguem a idéia de apresentação da wicca a um público iniciante, fornecendo listas de rituais, feitiços, instrumentos, mitos, entre outros. Cláudio Crow Quintino é tradutor de várias obras sobre wicca em língua inglesa. A partir deste trabalho, decidiu escrever seu próprio livro, que não difere muito dos outros. Os livros de Márcia Frazão indicam as crenças básicas da religião wicca, rituais, feitiços, leitura de oráculos e uma boa dose de autobiografia. É através de suas experiências pessoais que Frazão ensina grande parte do que aprendeu. Ela afirma ter aprendido bruxaria com as mulheres de suas família: as avós materna e paterna e algumas tias, todas bruxas. Seus livros são dirigidos ao público feminino. Existe um tipo de feminismo em Frazão que é próximo do “feminismo

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essencialista” (CASTELLS, 2000). Frazão exalta um modo feminino de ser em contraposição ao modo masculino de ser, tendo em vista, como meta, uma nova sociedade mais feminina. O modo de ser masculino é descrito como retilíneo, enquanto o feminino é descrito como curvilíneo. O “mundo retilíneo” dos homens é o do capitalismo, da opressão feminina, da ciência, da razão iluminista que não crê na magia (desencantamento do mundo). O “mundo curvilíneo” é o das emoções, da magia, da natureza, da delicadeza feminina. Os modos feminino e masculino de ser, além de construírem a realidade que nos cerca – patriarcado e matriarcado -, são naturalizados e expressos como inerentes a cada sexo, ou seja, como parte de sua essência. A essência feminina seria mais interessante, senão superior, para servir de parâmetro para uma reformulação de nossa sociedade, vista como decadente, desprovida de amor ao próximo e à natureza. Frazão crê, como as feministas essencialistas, que houve um período de matriarcado na História da humanidade, marcado pela harmonia social e com a natureza. Segundo Castells (2000), o feminismo essencialista coaduna ideais feministas com o espiritualismo e o ecofeminismo. Do nosso ponto de vista, a wicca não está longe de poder ser classificada como espiritualismo, pois, como veremos, ela é parte do movimento Nova Era, ou ecofeminismo, uma vez que as divindades da wicca estão intimamente relacionadas à natureza e, portanto, a defesa da natureza tanto quanto a defesa dos direitos da mulher parecem estar em pleno acordo com o pensamento wiccano. Wicca Tupiniquim? Ao perguntarmos às bruxas se havia uma forma genuinamente brasileira de bruxaria, dois tipo de resposta vieram à tona. No âmbito da magia, o sincretismo africano pode ser visto como uma genuína bruxaria brasileira. No que concerne à wicca, adaptações precisas podem vir a revelar o que uma bruxa chamou de “wicca tupiniquim”. O candomblé e a umbanda, tratados como cultos afro-brasileiros, podem ser vistos como expressão de uma bruxaria brasileira. A mãe-de-santo, tão sacerdotisa quanto a bruxa wiccana, conhecedora de ervas, curas, orações, danças, feitiços é vista como uma espécie de bruxa. é brasileira na medida em que foi formulada no Brasil, a partir de elementos presentes em nossa cultura. O candomblé pode ser visto como mais próximo do paganismo do que a umbanda, embora ambos sejam sincréticos. A umbanda ocupa uma posição mais próxima ao espiritismo do

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que ao paganismo. As concepções de magia presentes nestas duas religiões, contudo, são fundamentais para compreendermos as concepções mágicas do brasileiro (MAGGIE, 1992) e também das bruxas que pesquisamos. Concepções de feitiçaria ligadas ao dom, à mediunidade, ao contato com espíritos estão presentes nas bruxas brasileiras. Quanto à wicca, especificamente, uma série de adaptações possibilitam pensarmos numa wicca à brasileira. A primeira, como apontamos, é a concepção de bruxaria vinculada às concepções de magia presentes na sociedade brasileira, sobretudo a advinda dos cultos afrobrasileiros. Deste modo, quando a bruxa afirma possuir um dom ou um poder, este se apresenta de duas formas distintas: sob a forma de mediunidade ou sob a forma de paranormalidade. No primeiro caso, diferentes tipos de contato com espíritos tomam forma. No segundo caso, poderes mentais ou advindos de estados emocionais alterados são relatados, entre eles: movimentar objetos, ler mentes, sugestionar mentes, prever o futuro, ver o passado, telepatia, intuição, modificar o destino. Quanto à mediunidade, ela se apresenta das seguintes formas: ver espíritos, vultos ou reflexos, ouvir espíritos, comandar espíritos, perceber sua presença. Uma das adaptações que permitem falar em wicca brasileira é a adequação do calendário ao hemisfério sul. O calendário original da wicca segue as estações do ano no hemisfério norte. Os sabás são comemorados segundo este calendário sazonal, que quando é adaptado ao sul, inverte as datas de comemoração, pois quando é inverno no hemisfério norte, é verão no sul. Esta inversão não é usada por todas as bruxas: algumas mantêm suas comemorações rituais seguindo o calendário do norte, o que gera uma primeira classificação entre elas: ser nortista ou sulista. O calendário é um ponto importante da prática da wicca, e é possível observar-se que esta é um polêmica freqüente. Cada lado procura argumentos próprios para legitimar a escolha por um ou outro calendário, e até mesmo um calendário misto já foi suscitado, onde os solstícios e equinócios seriam realizados pelo sul e os sabás maiores pelo norte. Há um problema de fato: quando os sabás seguem o calendário norte, as celebrações e seus temas rituais freqüentemente acompanham aqueles do cristianismo, com datas muito próximas. Como exemplo, podemos falar sobre o Natal: comemorado pelo cristianismo em 25 de dezembro, ele está próximo a um dos sabás das bruxas, Yule, cujo tema é exatamente o nascimento do Deus. No hemisfério norte, Yule marca o solstício de inverno, e é comemorado entre 21 e 23 de dezembro, próximo ao Natal. Segundo o calendário do hemisfério sul, ele é comemorado no inverno também, entre 21 e 23 de junho, perto das festas juninas e não do Natal. O choque entre o calendário da wicca e o

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calendário de festas cristãs, vistas como originárias dos sabás, faz com que algumas bruxas optem por manter o calendário do hemisfério norte, pois este não entra em choque com as comemorações religiosas mais amplas de nossa sociedade. Há outros argumentos mais ou menos mágicos para a manutenção de tal ou qual calendário. Importa aqui somente ressaltar que a prática estabelecida para o sul fornece uma ruptura ainda mais brusca com a sociedade cristã. Além desta, uma outra adaptação de calendário diz respeito também à flora nativa. As bruxas que seguem uma inspiração celta costumam também se orientar por um calendário de origem celta em que a cada mês do ano corresponde uma árvore. Suas propriedade mágicas entram em sintonia com as atribuições de cada mês, numa série complexa de associações. Algumas bruxas, uma vez estabelecido o calendário para o sul, modificaram as árvores de cada mês, introduzindo árvores pertencentes à flora brasileira, e que cresçam em solo nativo. Árvores dificilmente encontradas aqui, como o carvalho, foram permutadas por outras mais facilmente encontradas. Há uma série de permutas possíveis para árvores, frutas e ervas de origem européia. Seguindo este raciocínio, observamos também que as ervas, flores, frutas utilizadas em feitiços podem ser adaptadas à realidade brasileira. Ervas usadas no sincretismo africano, inclusive, podem vir a manter as mesmas propriedades para a bruxa wiccana brasileira, como a arruda. Ervas que não são encontradas no Brasil, mas estão presentes nas receitas e no folclore europeu, como a mandrágora, podem ser permutadas por ervas nativas e usadas do mesmo modo que as receitas indicam. Uma outra adaptação possível é o panteão. Como a wicca é um sistema que aceita diversos panteões, nada impede que a bruxa brasileira utilize panteões africanos ou indígenas em seus rituais. Cabe a ela decidir. Da mesma forma, lendas e folclore de nossa cultura popular podem ser inseridos nos rituais, como uma forma de manter a relação com a terra cultuada, em sua posição geográfica e histórica. Frazão é uma bruxa que realiza este tipo de inserção. Normalmente afeita a divindades gregas, uma de suas obras (1996) apresenta a figura de Yemanjá. Frazão também é uma pessoa preocupada com o folclore nacional, e tenta resgatar a bruxa brasileira na figura da rezadeira ou benzedeira. Mulher humilde, de pouca instrução, que ajuda sem cobrar nada, que detém conhecimentos de ervas, orações e feitiços, ela é apresentada como a bruxa folclórica do Brasil, pois se aproxima da figura européia da curandeira, e normalmente tem influência portuguesa e indígena.

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Para outras bruxas, todavia, a wicca é um sistema importado da Inglaterra, estrangeiro ao Brasil, e assim deve ser mantido. Não aceitam a inversão do calendário, não aceitam a entrada do folclore nacional em seu sistema nem procuram a adaptação da herbolária mágica. Permanecem, deste modo, fiéis à wicca segundo se apresenta para o hemisfério norte, especialmente através de autores estrangeiros, sites e home pages.

WICCA COMO PARTE DA NOVA ERA

Acima explicamos o que vem a ser a bruxaria moderna ou wicca. Percebemos que ela tem muito em comum com o fenômeno Nova Era, embora alguns praticantes de wicca não gostem de ser vistos como pertencentes à Nova Era. Seguiremos explicando o que é a Nova Era e o que apresenta em comum com a wicca. O movimento Nova Era A Nova Era é formada por um conjunto de práticas, valores e comportamentos que remontam ao movimento beat e à contracultura dos anos 1950 e 1960. Difundiu-se mais fortemente a partir do movimento hippie, assumindo novas dimensões. O que diferencia a Nova Era de outros movimentos posteriores à década de 1960 é o seu caráter religioso, de inspiração pré-moderna. A religiosidade Nova Era foi definida como “religiosidade do Eu”, que refere-se tanto à falta de mediação entre sujeito e divindade quanto ao fato de que o Eu é o locus da divindade (HEELAS, 1996). As atividades e serviços oferecidos pela Nova Era vão de artes divinatórias a terapias nãoconvencionais, exercícios de inspiração oriental, vivências xamãnicas, meditação, cursos e workshops sobre princípios filosóficos de diferentes origens, música Nova Era e world music, literatura de auto-ajuda, incensos, cristais, pêndulos, imagens de anjos, duendes, fadas, bruxas, e outros (AMARAL, 1999). Formam ainda o conjunto das atividades Nova Era diversas correntes espirituais, tradições religiosas e esotéricas, ciências não convencionais, culto a seres sobrenaturais ou extraterrestres, espiritualidade feminina, ritos pagãos e religiões não-cristãs,

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conhecimento da Deusa, peregrinações, entre outros (HEELAS, 1996). A Nova Era, deste modo, é constituída por práticas diversas, exercidas em diferentes combinações, independentes da inserção religiosa de seus praticantes. Constitui-se em um espaço onde o indivíduo elege suas preferências dentro de um mercado de bens simbólicos. Embora haja uma diversidade grande, a Nova Era apresenta uma língua franca, de veia esotérica, empregada por todos os seus adeptos, que permite enxergar as diferenças entre as diversas práticas muito mais como aparentes do que reais (MAGNANI, 1999). Em quase todas as atividades da Nova Era é possível observar um esquema binário de organização do mundo que opõe dois conjuntos: de um lado a natureza e de outro a civilização. No lado “natureza”, observa-se agrupados os seguintes elementos, mais valorizados e sacralizados pela Nova Era: passado, magia/rito/mito, arte, feminino, infância, Oriente, indígenas, corpo, inconsciente, intuição, receptibilidade, sensação/emoção, prazer, espontaneidade, ritmo, gesto/movimento/contato, manipulação direta. No lado “civilização”, apresentam-se os seguintes elementos: presente, cultura, ciência, tecnologia, masculino, maioridade, Ocidente, europeus, mente, consciente, racionalidade, crítica, intenção/vontade, esforço, controle, melodia, palavra, máquinas e ferramentas. A sacralização do lado “natureza” evidencia uma inversão da valoração que atribuía ao progresso, à racionalidade e à tecnologia papéis centrais na transformação positiva do mundo, predominante na década de 1950 (CAROZZI, 1999). A contracultura da qual a Nova Era provém já afirmava essa rejeição aos valores científicos e tecnológicos, embora eles não sejam rejeitados in toto. Essa ruptura de paradigma pretendida pela Nova Era permitiu que ela influenciasse alguns movimentos sociais como as alas espiritualistas dos movimentos ambientalista e feminista (TERRIN, 1996). A ciência é denunciada pela Nova Era como objetivista, mecanicista, determinista, positivista e linear. Há uma tendência à procura por uma mudança de paradigma em todas as áreas do conhecimento. Esta mudança se direciona para a transformação individual, sacralização do self e da natureza, cura, espiritualidade, sincretismo, liberação do corpo, anti-autoritarismo e autonomia. Há um propósito milenarista na Nova Era que se expressa na busca pela instauração de uma nova era para a humanidade. Ao mesmo tempo, seu discurso pode ser visto como póstradicional na medida em que é contrário à modernidade e ao projeto iluminista do Ocidente (TERRIN, 1996). Torna-se, deste modo, uma narrativa romântica.

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Além de uma ala contracultural, a Nova Era apresenta também uma ala capitalista. Esta ala não vê contradição entre o sucesso no mercado e o progresso espiritual (HEELAS, 1996). A contracultura que influenciou a Nova Era constituía o estilo de vida da juventude universitária de classe média (HARRIS, 1978), o que ainda hoje se reflete na posição sócioeconômica dos new agers. Os praticantes da Nova Era são majoritariamente habitantes urbanos do Ocidente, com altos graus de educação formal e acesso a informação, e que participam de sua extensa gama de atividades. São indivíduos preocupados com a qualidade de vida e interessados por temas como filosofias orientais, ecologia, valorização do feminino e terapias nãoconvencionais (CONTEPOMI, 1999). O espaço de consumo da Nova Era é o das lojas que vendem seus produtos, centros terapêuticos voltados à medicina alternativa, feiras, seminários, festivais, congressos, eventos e encontros onde um mercado de produtos e serviços é oferecido e consumido. Heelas (1996) é o autor que melhor trata a questão da diversidade que a Nova Era apresenta. Embora as fontes utilizadas por este movimento sejam inúmeras e diversas, não existem muitos conflitos de crença na Nova Era. Pelo contrário, maneiras a princípio diferentes de ser Nova Era partem dos mesmos pressupostos básicos a respeito da condição humana. Para este autor, existe uma constância em meio à diversidade, que se apresenta numa “língua franca”, de veia esotérica, empregada por todos os que fazem parte deste movimento. As diferenças entre as práticas são mais aparentes do que reais. Quanto à maneira como vivem, os adeptos da Nova Era seguem caminhos os mais divergentes. Ela não é um movimento organizado, existindo mesmo um certo grau de competição e rivalidade em seu interior. Poderia ser definida como um conjunto de caminhos que representam, na verdade, variações sobre o tema da “religiosidade do eu”. Heelas (1996) apresenta os pressupostos básicos, por assim dizer, do pensamento e crença enquadrados sob a categoria Nova Era. As mais importantes são: toda vida (existência) é manifestação do Espírito (cosmo, divindade); o objetivo de toda existência é proporcionar a manifestação mais plena do Amor; todas as religiões são expressões desta mesma realidade interior; toda vida é apenas o véu exterior de uma realidade invisível interior e causal; os seres humanos são criaturas de natureza dupla, possuindo um corpo e uma alma; o corpo é limitado e tende ao materialismo; a alma é infinita e tende ao amor; existem mestres espirituais; toda vida

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consiste em energia interligada; embora façamos parte da dinâmica do amor cósmico, somos coresponsáveis pelo estado de nossos próprios eus, de nosso meio ambiente e de todas as formas de vida existentes; vivemos agora um período de evolução no sentido de uma transformação espiritual do planeta. Wicca como parte do movimento Nova Era É a bruxaria moderna parte da Nova Era? Do nosso ponto de vista a resposta é afirmativa. Várias das características da Nova Era podem ser percebidas na bruxaria moderna: a religiosidade do Eu, a diversidade, os pressupostos, o contraculturalismo, o consumismo (HEELAS, 1996). A religiosidade do Eu na wicca é expressa de forma análoga à da Nova Era: existem livros que dão sugestões de rituais, feitiços e encantamentos ao adepto, muitas vezes na forma de autoajuda, mas ele só deve praticar aquilo que sente ser correto. Não há um expoente que traduza em si legitimação ou autoridade sobre os demais adeptos. Cada um segue aquilo que melhor lhe apraz, e com isso chegamos a mais um ponto da Nova Era: a falta de mediador entre o sujeito e a divindade. Na wicca, o praticante não é somente adepto de uma religião, mas ele mesmo espécie de sacerdote, pois professa os cultos independente de qualquer “funcionário religioso”. Ele se comunica com o divino sem a interferência de ninguém. Isso vale tanto para praticantes solitários ou membros de covens. No caso do coven, o Grão-Sacerdote e/ou Grã-Sacerdotisa não devem ser encarados como líderes autoritários, nos dois sentidos do termo: tanto não devem eles tomar decisões arbitrárias, sem consulta prévia ao grupo, quanto não exercem uma autoridade de direito, embora possam a vir exercer uma autoridade de fato. Em todo caso, a marca de um coven, pelo menos idealmente, deve ser a confiança que seus membros depositam uns nos outros, e não a autoridade ou qualquer tipo de hierarquia. Na confiança reside a idéia Nova Era de fazer apenas aquilo que se sente ser correto. Por outro lado, existe um conhecido texto de wicca, The Charge of the Goddess, atribuído a Doreen Valiente, que ressalta que o que não é encontrado dentro de si, nunca será encontrado fora, o que quer dizer que a espiritualidade reside no interior do ser humano. A diversidade marca a wicca da mesma forma que marca a Nova Era. Diversos panteões pagãos são usados pelos praticantes, dos lugares mais óbvios aos mais remotos. Entre os panteões já citados por diversos autores estão o celta, o nórdico, o grego, o romano, o sumério, o havaiano, africano, nativo sul-americano, nativo norte-americano, indiano, chinês e japonês. E não só nos

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panteões se expressa a diversidade da wicca: ela é, em si, um grande caldeirão de influências. As oito festas sazonais anuais, ou sabás, seguem a tradição da cultura celta, e são utilizadas por todos os adeptos, independente do panteão de divindades a ser venerado. Não é raro encontrar um praticante que louve divindades gregas segundo o calendário celta. As tradições da wicca, isto é, correntes de práticas e doutrinas que se distinguem segundo sua origem, também apresentam grande diversidade. Algumas das tradições mais comuns são a Old Dianic, a Diânica (de inspiração grega e aberta somente a mulheres), a Faery (de inspiração irlandesa), a gardneriana e a alexandrina. Entre as mais conhecidas, estão ainda as tradições escocesa (PectiWita) e italiana (stregheria), ambas utilizando o calendário festivo celta. Há autores (FARRAR,1999), inclusive, que afirmam que este calendário é parte celta, parte germânico. A wicca é, sem dúvida, de uma diversidade completa. Quanto aos pressupostos normalmente aceitos pela Nova Era, e mencionados anteriormente, a wicca, de um modo geral, aceita-os sem restrições. No entanto, não temos certeza se está de acordo com o pressuposto de que a “personalidade exterior” tende ao materialismo e o “ser interior” ao amor. É certo que a wicca enxerga o ser humano como cheio de potenciais e não visa fazer o mal ao próximo, mas as constantes receitas de feitiços para ganhos materiais faz com que nos indaguemos a respeito deste pressuposto. Tampouco conseguimos visualizar a existência de mestres espirituais entre os praticantes de wicca. O mestre espiritual é um espírito que instrui o sujeito em determinados ramos de conhecimento e aconselha suas ações. Existem autores que são mais lidos, o que nem sempre significa que sejam os mais aceitos. É provável que os primeiros autores sobre a wicca, Gerald Gardner e Alex Sanders, tidos como disseminadores da bruxaria moderna e fundadores das tradições gardneriana e alexandrina, sejam os únicos em posição de serem aceitos como possíveis mestres. No entanto, os dois já são falecidos e suas obras são de difícil acesso tanto no Brasil quanto no exterior. O Alto Sacerdote ou a Alta Sacerdotisa, quando ensinam bruxaria aos iniciantes, podem ser vistos como mestres também. Os demais pressupostos nos parecem bem aceitos na wicca. Toda existência é vista como manifestação das divindades, o que se expressa na proibição de sacrifícios animais ou uso de qualquer componente animal que tenha causado dano ao animal em questão, mas apenas para uso ritual ou em feitiços. Isso não faz com que os praticantes de wicca sejam todos vegetarianos, nem o vegetarianismo é pré-requisito à participação nesta religião. É possível, inclusive, acharmos

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feitiços que incluam um pedaço de carne de vaca, peixe ou morcego na receita, ou feitiços que consistem em receitas culinárias que envolvem algum tipo de carne animal. Do mesmo modo, plantas utilizadas em feitiços devem, segundo Frazão (1994), ser colhidas pela própria bruxa, mediante um pagamento à planta e um singelo pedido de licença. Contudo, as bruxas não têm que colher toda comida que ingerem, como seria também lógico imaginar. Parece aqui que a “veia utilitária” da Nova Era fala também através da bruxaria moderna. O utilitarismo da Nova Era, para Heelas (1996), aparece claramente quando o Eu é acionado e tratado como um meio para chegar a determinados fins materiais e psicológicos. É impossível desvencilhar-se da paraticidade do mundo moderno, ficando os costumes de respeito à natureza limitados à esfera do uso mágico e ritual de plantas e produtos animais. O utilitarismo se expressa, ainda, na prática de feitiços. É comum as bruxas fazerem feitiços para si buscando melhoria financeira, um novo amor ou apenas tempo bom. O objetivo da vida, na wicca como na Nova Era, é a manifestação do Amor. Na bruxaria, o Amor é sinônimo de Vida, numa acepção que nos remete a Freud e a sua teoria sobre instinto de vida e punção de morte (MARCUSE, 1969). O amor é vida na medida em que se associa ao sexo, e a wicca é uma prática bastante sexualizada em toda sua simbologia ritual. Como vimos acima, os instrumentos pontiagudos, como a espada, athame e varinha, diz-se que pertencem ao Deus, e simbolizam seu falo masculino, força criadora e doadora de vida. O caldeirão e a taça pertencem à Deusa e representam seu útero gerador de vida, sua força criativa. A taça e o athame são usados ritualmente para simular a união entre as divindades masculina e feminina, união essa que é fonte de vida pois está relacionada às estações do ano e à vida vegetal e animal bem como à sobrevivência humana. Outros pontos dessa sexualização são o hábito de realizar-se os rituais “vestidos de céu” (nus) e eventualmente a união divina não ser representada através do athame e da taça, mas ser consumada de fato entre o Sacerdote e a Sacerdotisa. Quanto ao consumismo, existem diversas lojas esotéricas que vendem produtos relacionados à wicca. Pedras, incensos, ervas secas, incensários, caldeirões, punhais e até mesmo vassouras podem ser encontradas nessas lojas, bem como uma profusão de livros sobre o assunto. Completam a lista de comparas da bruxa diversos oráculos como o tarot ou o jogo de runas, também encontrados à venda. Não só estão esses produtos disponíveis em diversas lojas, como estas lojas se encontram com facilidade no Rio de Janeiro. É de se imaginar que o consumo de produtos esotéricos, ligados à Nova Era, movimente uma boa quantia em dinheiro. Quanto às

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oficinas, cursos, seminários e retiros de que fala Heelas (1996), eles são comuns também no Rio. Não temos informações sobre seus freqüentadores, mas uma das entrevistadas organizou alguns eventos de Nova Era, espécie de feiras onde palestras e cursos eram ministrados e atendimento personalizado era dado por profissionais de várias áreas da Nova Era. Outras três entrevistadas e um entrevistado já fizeram parte de eventos similares como expositores, locais onde trabalhavam como astrólogas, palestrantes, runólogas ou tarólogas. Apesar da esfera de consumismo atingir a wicca, entendemos que ela se enquadra melhor na ala contracultural da Nova Era do que na ala capitalista (HEELAS, 1996). A wicca não apresenta uma filosofia de “ganhar dinheiro” ou “obter sucesso no mercado”, que a ala capitalista da Nova Era apresenta. Ela estaria mais próxima da vertente contracultural pelo tipo de relação que mantém com a natureza. Esta é enxergada como o próprio corpo da Deusa, parte integrante da divindade. A defesa da natureza é, portanto, a defesa da própria divindade. Há uma ânsia por fazer-se rituais em contato com a natureza, que é vista romanticamente como bondosa em contraposição à civilização moderna, vista como destrutiva. A tentativa de libertar-se das instituições da modernidade é aqui, na verdade, a tentativa de estar mais diretamente ligada à própria divindade. Este foi o caminho de Frazão, por exemplo, que se mudou do Rio de Janeiro para Friburgo, no interior do estado, para estar mais próxima de um determinado estilo de vida, mais próxima à natureza. Quanto à abordagem tradicional ou pós-tradicional, é comum que os livros sobre a wicca apresentem-na como bruxaria moderna, herdeira da bruxaria “antiga”, chamada Fé Antiga, a Arte, Antiga Religião. A bruxaria seria a religião mais antiga do mundo, a primeira de todas, sobrevivente do período matriarcal da civilização. Com esta crença em vista, não é incomum os paraticantes de wicca procurarem traços do matriarcado nos cultos a divindades do período patriarcal, como o culto da deusa Diana. O recurso à pré-história da humanidade (matriarcado) é um recurso que visa a legitimação de uma prática que, se algum dia existiu de fato, foi quase completamente modificada e apresenta-se sobre nova roupagem, como uma bruxaria moderna. Os panteões pagãos ocidentais só poderiam ser buscados em tempos antigos e medievais. Eles encerram assim uma porção de tradição numa prática que foi reformulada – na melhor das hipóteses - durante e após a Inquisição (FRAZÃO, 1994). Se o uso que fazem dessa tradição é o mesmo uso que a Nova Era faz do tradicional, podemos então seguir a análise de Heelas (1996), e afirmar que a wicca é pós-tradicional, especialmente se entendermos que é uma religião de culto

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não-centralizado, onde o julgamento individual do que deve ou não ser feito e aceito é a única autoridade válida. Tradição e Modernidade A Nova Era se apresenta, segundo Heelas, (1996), como um discurso contrário à modernidade, em particular ao projeto iluminista, um discurso pós-tradicional. Ela faz recurso ao tradicional para formular um discurso que é ao mesmo tempo contrário à modernidade, pois se lhe constitui uma crítica, e que se insere na modernidade. A partir desta análise, pode ser compreendida como pós-moderna. Do mesmo modo, a bruxaria wicca busca no tradicional elementos que possam formular uma crítica à modernidade, ao mesmo tempo em que está inserida nela. Como tradição e modernidade dialogam, tanto para o âmbito da Nova Era quanto para a wicca? Desejamos apontar o diálogo entre a identidade tradicional da bruxa e a identidade moderna da mulher contemporânea, que observaremos adiante. A pergunta, neste sentido, é em que medida uma identidade tradicional como a de bruxa é reapropriada na modernidade, e para que fins. A tradição e a modernidade devem ter sua oposição relativizada, pois a modernização da tradição tem sido fundamental para a reprodução da modernidade, e tem se articulado ao desenvolvimento de instituições tradicionais na modernidade. A modernização da tradição consiste em adaptar a tradição ao mundo moderno, racionalizando-a, ou seja, apresentando argumentos a seu favor e desenvolvendo práticas. Não devemos supor que haja exatamente uma ruptura entre modernidade e tradição. Na modernidade, as tradições que antes dependiam de contextos locais e de uma forte ritualização, puderam se livrar desses constrangimentos espaçotemporais. Elas podem agora, inclusive, se reproduzir diretamente através de meios de comunicação de massa (DOMINGUES, 1999). Julgamos que este é o caso das bruxas modernas e da wicca. Nas culturas tradicionais, segundo Giddens (1991), o passado é honrado e os símbolos valorizados porque perpetuam a experiência de gerações. A tradição é uma maneira de lidar com o tempo e o espaço que insere qualquer atividade numa continuidade entre passado, presente e futuro, que são estruturados por práticas sociais recorrentes. Apesar disso, afirma o autor, a tradição não é estática porque é reinventada a cada geração. Ela tanto resiste à mudança quanto

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pertence a um contexto no qual existem poucos elementos temporais e espaciais em cujos termos a mudança possa ser capaz de ter alguma forma significativa. Nas culturas orais, as mais tradicionais de todas, a tradição não é reconhecida como tal. Para compreendermos a tradição como distinta de outros modos de organizar a ação e a experiência, é preciso penetrar no espaço-tempo de maneiras que só são possíveis com a intervenção da escrita (GIDDENS, 1991). A escrita expande o nível de distanciamento espaçotempo, criando uma perspectiva de passado, presente e futuro onde a apropriação reflexiva do conhecimento pode ser destacada da tradição. Na civilizações pré-modernas, a reflexividade ainda está limitada à reinterpretação da tradição, de modo que o tempo passado tem maior peso do que o futuro. Sua rotina prende-se à tradição. Na modernidade, não se sanciona uma prática por ser tradicional. A tradição pode até ser justificada, mas apenas à luz do conhecimento, que não é autenticado por ela. A Nova Era, em seu recurso à tradição, nada mais faz do que recuperar práticas tradicionais que são revistas com olhos modernos. Neste caso, tradição e ciência (razão moderna) podem algumas vezes se fundir. A tradição justificada e o hábito quando combinados resultam que, mesmo nas sociedades mais modernizadas, a tradição continua a desempenhar um papel. No entanto, uma tradição que é justificada é uma tradição falsificada, pois recebe sua identidade apenas da reflexividade moderna (GIDDENS, 1991). A reflexividade da vida moderna consiste em que as práticas são examinadas e reformadas constantemente à luz de informação renovada sobre elas mesmas, o que altera o seu caráter. Quando a razão substituiu a tradição, ela parecia oferecer uma maior certeza, mas, afirma Giddens (1991), isto parece persuasivo apenas se não atentarmos para o fato de que a reflexividade da modernidade subverte a razão, pelo menos onde ela é ganho de conhecimento certo, visto que este conhecimento está sendo reflexivamente refeito todo o tempo. Nunca estamos seguros de que qualquer dado do conhecimento não vá ser revisado. Na modernidade, não existem certezas. Para o autor, é a íntima relação entre o Iluminismo e a defesa da razão que tem feito com que a ciência natural seja tomada como distinção entre a modernidade e a prémodernidade. O pensamento iluminista e a cultura ocidental emergiram de um contexto religioso que enfatizava a teologia e a graça divina. A divina providência foi uma idéia diretiva da cristandade. Sem estas orientações, afirma ele, o Iluminismo dificilmente teria sido possível. Não é surpreendente, portanto, que a defesa da razão apenas remodele idéias de providência ao invés

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de extinguí-las. A lei divina foi substituída pela certeza da observação empírica, e a providência divina pelo progresso. Giddens (1991) aponta ainda a simultaneidade conjuntural do crescimento do poder europeu com a ascensão da razão como a origem da suposição de que essa nova perspectiva moderna fundamentava-se em base sólida e oferecia segurança ao mesmo tempo em que emancipava da tradição. Religião, tradição e o sujeito moderno Na modernidade, os sujeitos desencaixados possuem características como fluidez, heterogeneidade, personalidade desenraizada e fugacidade das construções simbólicas e identidades. Indivíduos e grupos podem vir a perder referenciais (DOMINGUES, 1999). Dentro de nosso tema, cabe perguntar se a modernidade, e principalmente a modernidade radicalizada (GIDDENS, 1991), fez com que a mulher perdesse referenciais do feminino, uma pergunta análoga a de vários autores que estudam a perda do referencial de masculinidade dos homens. O sujeito moderno não deve obrigações pessoais a ninguém e pode viver onde bem entender. Sua identidade é um dado em aberto e é de sua própria responsabilidade. É através da reflexividade que ele escolhe que tipo de pessoa deseja ser, que tipo de vida deseja levar, para onde quer ir, que profissão ter. Em limites mais ou menos largos ou estreitos, dependendo da conjuntura material dada (recursos intelectuais, materiais e de poder), essas são decisões pensadas pelo sujeito. Há, na modernidade, uma forte individualização, quando o sujeito passa a ter de construir sua trajetória. A construção dessa identidade, no entanto, demandam uma certa estabilidade. No mundo moderno, essa estabilidade pode ser buscada no recurso à tradição ou à religião, por exemplo. O recurso à estabilidade é o inverso, e também uma resposta aos mecanismos de desencaixe (GIDDENS, 1991). Como membro de um grupo ou de uma religião (ou classe, ou etnia) o indivíduo se sente incluído por esse grupo, que lhe dá sentido (DOMINGUES, 1999). Acreditamos ser este o caso das bruxas pesquisadas. Aquelas que foram entrevistadas afirmaram que “sempre” tinham acreditado no sistema de crenças da wicca, mas não havia um nome a ser dado a este seu sistema. Elas se definem como sendo bruxas desde “sempre”, e justificam esta definição com recursos parecidos: jogando cartas como oráculo intuitivamente quando crianças, apresentando premonições e visões ou uma “forte relação com a lua”. É a

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religião, nesse caso, que dá sentido a essas experiências pessoais, ao mesmo tempo em que fornece um grupo que apóia o sujeito nesse tipo de experiência e faz com que ele encontre uma identidade pessoal vinculada a uma identidade coletiva, a de ser bruxa. O que buscamos saber é o quanto essa identidade não está vinculada também com a experiência de gênero. A construção da biografia, no que tange o gênero, é mais complexa na modernidade do que dentro de modelos onde os papéis sexuais e a duração do casamento já eram dados. No caso especificamente das mulheres, no começo da modernidade elas eram tidas como seres incompletos, indivíduos limitados, em cuja racionalidade não se devia confiar (DOMINGUES, 1999). Seriam dotadas de pouca razão e muita emocionalidade, o que fazia delas seres frágeis. Isso fazia com que fossem excluídas da vida pública e subordinadas aos maridos e pais, enclausuradas na esfera doméstica. Mas as transformações de lá para cá foram grandes. A revolução feminista mudou o perfil da vida privada de modo que as mulheres têm ganho mais poder na família. A esfera pública deixou, por outro lado, de ser exclusividade masculina. Deste modo, a mulher atingiu uma maior individualização: ela passa a responder por seus próprios atos e decisões, livre para tomá-los e correr riscos semelhantes aos masculinos. O reencaixe alcançado pela religião, no caso das bruxas, fornece uma valorização de uma maneira de ser que talvez não fosse valorizada em outros contextos. Dons como intuição, visões e premonições afastam a bruxa do ser humano comum. Nos relatos de algumas bruxas, esses dons acarretam – tanto quanto a própria condição de bruxa – um estigma que, a princípio, elas não desejam. O reforço de um grupo que apresenta um mesmo padrão funciona como forma de reencaixe. Para Domingues (1999), todas as formas de reencaixe, tanto pela religião quanto pelo gênero, apontam para formas particulares de desencaixe que são impulsionadas pelo desenvolvimento do mercado e estado moderno e pelo modo como o indivíduo moderno foi pensado. Esses desencaixes podem impulsionar reencaixes que ressuscitam ou dão continuidade a tradições díspares. No nosso caso, vemos a bruxaria com um apelo não só ao reencaixe pela religião, mas também pela tradição uma vez que a religião faz uma releitura de tradições pagãs e a partir dessas releituras tradicionais e de pontos de vista da modernidade constrói determinadas identidades. Para Giddens (1991), as cosmologias religiosas proporcionam interpretações morais e práticas da vida pessoal e social, bem como do mundo natural. Representa um ambiente de

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segurança para o fiel. Não só as divindades e forças religiosas fornecem apoio, mas também eventuais funcionários religiosos. As crenças religiosas trazem fidedignidade à vivência de eventos e situações e formam uma estrutura em termos da qual podem ser explicados e respondidos. Para este autor, um dos contextos principais das relações de confiança na prémodernidade era a própria tradição. A tradição, diferente da religião, não se refere a um corpo particular de crenças e práticas, mas à sua organização, especialmente temporal. A estruturação do tempo na tradição é diferente. É uma temporalidade de repetição onde o passado é o meio de organizar o futuro. A modernidade ao contrário, é voltada para o futuro. Na verdade, na tradição, nem o passado nem o futuro são separados do presente contínuo, como na modernidade. Na tradição, o passado é incorporado às práticas presentes de forma que o futuro se curva para cruzar o passado, constituindo uma temporalidade circular. Deste modo entendemos porque a tradição contribui para a segurança ontológica (GIDDENS, 1991), pois mantém a confiança na continuidade do passado, presente e futuro, vinculando essa confiança a práticas rotinizadas. A segurança ontológica é uma forma de sentimentos de segurança que se referem à crença na continuidade e constância de ambientes de ação circundantes, o que não quer dizer que os cenários tradicionais fossem mais “psicologicamente aconchegantes” do que os modernos. No caso da religião, ela tem uma influência dual. Suas crenças e práticas fornecem um refúgio do cotidiano, mas também podem se transformar em fonte de ansiedade e apreensão. Segundo Giddens (1991), isto se deve ao fato de que a religião permeia muitos aspectos da atividade social. As ameaças naturais podem ser interpretadas através dos códigos religiosos. A religião pode criar seus próprios terrores. Quanto à influência da religião em geral na vida moderna, pode-se dizer que houve um declínio no envolvimento popular com igrejas e da influência das instituições religiosas. Esse declínio se deve a alguns fatores, dentre eles a racionalização da vida e dos sistemas de explicação do mundo. A religião hoje é uma escolha do indivíduo. Ela se mantém importante quando se mistura com outras questões da vida pessoal que não apenas a relação com o sobrenatural (DOMINGUES, 1999). Pode ser um meio de preservar uma determinada identidade sob risco na modernidade, ou de construir uma. No primeiro caso, que acreditamos ser o caso da bruxaria, a identidade é mantida através da recuperação de doutrinas, crenças e práticas de um

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passado sagrado, que é exatamente o que entendemos que a wicca faz. Essas doutrinas, crenças e práticas são modificadas e sofrem inovações, dando ensejo a um perfil religioso novo. A religião passa a servir de reencaixe, tradicional apenas na aparência, porém moderna e contemporânea de fato. É um discurso de retorno à tradição que inova e se direciona para a modernidade. A wicca é um exemplo disto tanto quanto toda a Nova Era.

BRUXARIA E IDENTIDADE FEMININA

Nesta primeira parte do trabalho tentamos estabelecer um elo entre a bruxaria e a modernidade passando pela mulher enquanto sujeito. A modernidade é um período marcado pelo predomínio da razão. O seu surgimento marca o declínio de concepções mágicas sobre o mundo. A mulher é classicamente um sujeito vinculado à natureza e à magia, e o declínio desta é, de certa forma, o declínio daquela. Do ponto de vista inverso, a ascensão da magia em nossos tempos constitui-se tanto uma crítica à razão quanto à modernidade e suas instituições, como a ciência, o Estado ou o capitalismo. Esta ascensão e crítica serão vistas sob a forma que tomaram contemporaneamente no movimento Nova Era. A mulher entra em nossa análise a partir do momento em que, numa determinada prática mágica – a bruxaria wicca – a sua ligação com a magia e a natureza é exacerbada, e sofre não uma crítica, mas uma reafirmação. Essa reafirmação é, do nosso ponto de vista, a intenção de construir um novo papel para a mulher, papel este de certa forma vinculado àquele que ela “perdeu” quando da passagem à modernidade. Em sociedades tradicionais, determinadas visões de feminino corroboram as atribuições de gênero. Entre estas visões, está a idéia de que a mulher é mais próxima à natureza do que o homem. A partir destas visões, utilizaremos o pensamento de Adorno e Horkheimer (1985) para compreendermos como a mulher se tornou sujeito privilegiado desta relação, e como a modernidade lida com o encantamento e o desencantamento do mundo. Seguiremos, então, nas definições da identidade feminina e as categorias de bruxaria. Há na wicca um recurso à tradição como modo de reencaixar a mulher e seu papel de gênero dentro da modernidade radicalizada (GIDDENS, 1991). A mulher de hoje, pós-revolução feminista, entrou no mundo competitivo do trabalho, e perdeu espaço nas funções domésticas e

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familiares antes restritas a ela, e - segundo alguns – se masculinizou neste processo. A busca por uma nova identidade feminina seria, então, a busca por um novo espaço na sociedade, que a aceite como mulher mas não a discrimine por isso. Começaremos nossa análise buscando o vínculo entre o papel e as visões do feminino na sociedade pré-moderna européia e tradicional brasileira, a constituição da modernidade e a bruxaria através do período inquisitorial europeu e Brasil colonial. Europa e Brasil servem como exemplos tempo-espaciais de um processo ocidental. Seguiremos com a análise da modernidade e sua aversão à magia, para então observarmos que a religião é um dos processos de reencaixe dos sujeitos através e da tradição, o que julgamos também ser o caso dos que procuram na wicca uma determinada identidade social. Visões da mulher nos princípios da modernidade A que tipo de identidade feminina a bruxaria moderna recorre? No nosso entender, àquela de princípios da modernidade ocidental, de sociedades que estavam em transição para a modernidade ou mesmo sociedades ainda tradicionais, como o Brasil Colônia, que veremos mais adiante. A mulher européia do período inquisitorial, por exemplo, foi perseguida pelo papel que desempenhava naquela sociedade. Curandeira, concorrente do padre na religião doméstica, ela difundia a cultura popular às crianças numa época em que as escolas rurais eram raras. Este era o processo de construção do homem moderno, que se deu também pela derrota da mulher-bruxa. Ela é uma mulher vencida, encarregada da continuidade da sociedade camponesa tradicional, como curandeira, mãe, filha ou esposa, num tempo de adaptação à modernidade (MUCHEMBLED, 1987). Na época tratada por Muchembled (1987), séculos XVI e XVII na Europa, e segundo o direito da época, a mulher era dependente das vontades dos homens: seu pai, marido ou irmão. No campo, entretanto, a condição feminina se distanciava deste modelo. A necessidade de trabalhar tanto quanto os homens acarretava uma relativa igualdade entre os cônjuges. Enquanto peça fundamental na transmissão cultural e nas relações sociais, nas estratégias matrimoniais, na vida comunitária e familiar, ela dispunha de um determinado conhecimento e poder. A condição feminina se modifica a partir da entrada lenta do antifeminismo no campo, nos séculos XVII e XVIII.

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No campo, a mulher é uma produtora: suas atividades são complementares às de seu marido. Ela não está confinada dentro de casa. Por essência e necessidade, ela é o veículo da cultura popular que transmite nos diversos locais que freqüenta, reais ou simbólicos: o interior da casa de outras mulheres na ocasião de um parto, os velórios, o forno, o lavadouro, praças, caminhos, mercados. Marcam o espaço rural portando um conjunto de conhecimentos e técnicas vindas de suas mães, e que transmitem às suas filhas. Dentro desses conhecimentos, o tratamento do corpo é uma das funções primordiais das mulheres. Elas tomavam o lugar dos médicos, enquanto parteiras e curandeiras. No campo, os médicos eram raros e se encontravam a grandes distâncias. Sua ligação privilegiada com o corpo humano vinha do próprio cuidado com as crianças. Feridas e doenças eram por elas tratadas. Seus remédios de base empírica e francamente mágicos eram a solução em épocas de peste e guerra. Esse tipo de conhecimento valorizava a mulher, que dele retirava o poder que exercia sobre as crianças, sobre o mundo masculino e sobre as mulheres mais jovens (MUCHEMBLED, 1987; DEL PRIORE, 1997). Além disso, é às mulheres, enquanto transmissoras de cultura, que concernem os problemas de religião. Enquanto guardiãs e difusoras de crenças, as mulheres fazem a passagem da natureza à civilização. A mulher passou a encarnar o passado mágico que recusa a ideologia dominante: ou se juntava aos padres, oligarquia alfabetizada e massas submissas ou perecia como bruxa. Os processos por bruxaria constituiram, portanto, verdadeira pedagogia. Difundiram um novo modelo religioso onde a mulher estava associada ao perigo e à ação do diabo no mundo, quando na verdade seu universo era o da tradição popular, da magia e da natureza que ela encarnava. Ao mesmo tempo, afirmavam a força da civilização escrita, realocando vagarosamente o discurso e a memória das mulheres na cultura camponesa (MUCHEMBLED, 1987). A mulher não foi submetida sem alguma resistência. Após o período da Inquisição, já em plena modernidade, ela conservou, para o essencial, suas funções anteriores, visto que uma sociedade não abandona em pouco tempo o conhecimento adquirido e utilizado durante mais de um milênio. Ela continuou a ensinar às crianças a língua materna e manteve a cultura oral, malgrado o processo de alfabetização, que as deixa de fora. No campo, a mulher guardou uma importância social que a mulher da cidade perdera, e praticou sua revanche ensinando às crianças da cidade, como ama de leite, a cultura camponesa, marcando assim a transmissão de superstições e crenças populares. A escola se transformou em sua concorrente, bem como os livros. Essa privação da cultura dominante bem como de sua própria cultura oral é observada

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também no campo médico. O avanço da medicina sobre o curandeirismo privou as camponesas de uma parte de seu poder sobre o corpo humano. A desvalorização da magia e bruxaria toma delas o prestígio anterior e torna-as suspeitas e perigosas (MUCHEMBLED, 1987; SOUZA, 1989). Estigmatizar era andar meio caminho no sentido de construir coletivamente um estereótipo de feitiçaria. A bruxa era associada à prostituta e à mulher lasciva. Mulheres sozinhas ou que trabalhavam para viver, mulheres sem laços familiares de solidariedade, eram quase sempre tidas por prostitutas. Nessa categoria entravam mulheres que vendiam filtros de amor, ensinavam orações para “prender” homem, receitavam beberagens e lavatórios. Magia sexual e prostituição pareciam andar juntas. O assédio de muitos homens (que era uma história comum entre as acusadas no Brasil Colônia), a vida errante, o conhecimento de palavras estranhas e ervas medicinais, tudo contribuía para a construção desse estereótipo. As bruxas ou suspeitas de bruxaria incorporavam tudo o que se considerava anti-social, perigoso e perturbador. A bruxa é a antítese do ideal feminino da época (SOUZA, 1989). O fundamento de toda essa repressão contra a mulher era a idéia de que o homem lhe era superior, e que a ele, por conseguinte, cabia exercer autoridade. Eva parece ser o princípio desse mal, inoculando, segundo Araújo (1997), na própria natureza feminina o estigma da predisposição à transgressão. Nesse ponto, a bruxa é o epíteto da mulher maligna: seus saberes ocultos e forças mágicas amedrontam e adoecem, saberes esses conferidos pelo próprio diabo e seus servos endemoniados. E mais: a bruxa é uma mulher lasciva, sexualmente insaciável, predisposta aos prazeres da carne. Ela é o extremo oposto da mulher idealizada pela sociedade de então, aquela mulher passiva, submissa, casta, ignorante, mãe de família. Sexualidade e feitiçaria formam um fio que abarca o estereótipo da bruxa e as acusações sobre ela. Como Souza (1989) demonstrou, a bruxa é sempre tida como meretriz, pois é uma mulher sozinha e sem marido, que pratica magia sexual para seus clientes, alcoviteira. A ligação entre sexualidade e feitiçaria fica mais clara no sabá, reunião em que dizia-se que as bruxas entregavam-se ao coito com o diabo. Qualquer doença que atacasse uma mulher, segundo Del Priore (1997), era interpretada como um indício da punição celestial contra os pecados cometidos, ou então vista como feitiço ou sinal diabólico, uma vez que a natureza feminina era tida como mais vulnerável à tentação do demônio. Os remédios receitados pelos médicos, além de ineficientes, como a sangria, pareciam saídos dos próprios livros das feiticeiras, pois carregavam um conteúdo mágico implícito. O

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corpo da mulher era considerado com inferioridade pela medicina de então. Além disso, médicos e sacerdotes passaram a perseguir mulheres que tinham algum conhecimento empírico sobre o corpo humano. Esse saber, segundo Del Priore (1997) e Muchembled (1987), era passado de mãe para filha, dentro de uma tradição oral, e afirmava toda uma cultura feminina. A ciência afasta a mulher dessa sua tradição. Nesta época, segundo Del Priore (1997), acreditava-se também nas propriedades curativas de lagoas e rios. Segundo ela, o elemento líquido inscrevia-se tradicionalmente nos ritos de fecundidade das mulheres. A ausência ou presença de menstruação era fator determinante para a saúde da mulher, sua ausência indicando período de esterilidade, a menopausa. Reflexo das fases da lua, a menstruação inscrevia a mulher no calendário da natureza. Os homens nutriam um grande preconceito contra o sangue menstrual. Dizia-se que se tratava do sangue mais infecto que havia no corpo. Saído do útero oco (sem feto), que desta forma se tornava encantado e sedutor, ele seria capaz de enlouquecer e enfeitiçar quando ingerido, causando visões de fantasmas e monstros, medo e lágrimas. O tempo da menstruação era o tempo de uma morte simbólica para a mulher, quando deveria afastar-se de tudo o que era produzido ou se reproduzia, pois sua influência poderia degenerar e contaminar qualquer coisa. A menstruação remete à própria sexualidade da mulher, diabólica por natureza, e que se presta à feitiçaria. Segundo Del Priore (1997), a raiz mens refere-se etimologicamente à mudança da lua. De um tempo em que facilitava as previsões do tempo, ela passa a se relacionar com a serpente – nossa velha e boa Eva – e as deusas selênicas. A mulher menstruada passa a ser, então, relacionada com a morte, a destruição e o diabólico. Para esta autora, a menstruação foi transformada pelas mulheres de esterilidade em fecundidade, preservando assim valores especificamente femininos. No Brasil Colônia, como nas sociedades tradicionais, a mulher era submetida à influência cósmica, relacionada à natureza. Muchembled (1987) também vê a mulher mais próxima da natureza, e parte daí para localizá-la como a ponte entre a natureza e a cultura, e por isso também transformada em alvo na luta do erudito racional contra o popular mágico. Os remédios das curandeiras baseavam-se na semelhança entre as ervas e plantas e partes do corpo humano. Junto a outros ingredientes, eram utilizadas em mezinhas, chás, lavatórios. O mundo vegetal levava as mulheres a práticas tradicionais, e as ligava ao quintal onde ervas eram plantadas, um espaço feminino por excelência, local da subsistência, da criação e da cozinha. Para Del Priore (1997), a intimidade da mulher com a doença e a morte tornava-a perigosa e

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maldita. A acusação de curandeirismo é uma acusação dupla, portanto: contra mulher e contra o saber empírico que esta guardava. Na medicina de então, o corpo da mulher e a natureza feminina apontavam para o seu destino inescapável: o de ser mãe. Ao mesmo tempo, a natureza feminina apontava não só para um estatuto biológico, mas moral e metafísico: não apenas mãe, mas frágil e submissa por natureza, cheia de bons sentimentos. O útero da mulher era quase o símbolo de sua existência: era a possibilidade de ser mãe e a causa de quase todos os seus achaques. A valorização do útero levava a uma valorização da sexualidade feminina, mas no sentido de sua disciplina e não de sua realização. O útero era tido como causa de uma série de enfermidades femininas que iam da melancolia à loucura ou à ninfomania, doenças essas de conexão íntima com o demônio. Manter o útero ocupado, ou seja, manter-se grávida, era manter o seu bom funcionamento, pois afinal era para isso que ele servia (DEL PRIORE, 1997). Modernidade versus natureza Por que a natureza é o elemento de ligação e oposição entre a bruxaria, a mulher e a modernidade? A mulher, sujeito mais próximo à natureza, é também o sujeito mais próximo à magia dentro da ordem moderna. Vejamos agora que tipo de pensamento operou esta junção na modernidade, para então entrarmos na visão antropológica deste problema, quando acessaremos as obras de Mauss e Douglas, sobretudo. Neste tópico, trabalharemos exclusivamente a partir do pensamento de Adorno e Horkheimer expresso na Dialética do Esclarecimento (1985), onde os autores se debruçam, entre outros, sobre o problema da racionalidade moderna. Esta obra nos permite compreender a disjunção fundamental que a modernidade opera entre a natureza e a razão. Será crucial entendermos esta parte para ingressarmos no pensamento das bruxas acerca da magia e da bruxaria, principalmente a obra de Márcia Frazão, vistos nas partes subseqüentes deste trabalho. Segundo Adorno e Horkheimer (1985), o projeto iluminista é o projeto do esclarecimento. Seu objetivo é o conhecimento e o poder: livrar os homens do medo e investí-los na posição de senhores. Seu programa era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber. A essência desse saber é a técnica. O saber era a arma para

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dominar a natureza, que tanto amedronta o homem. A natureza que ele deseja controlar. O entendimento, segundo os autores, é patriarcal: ele vence a superstição e impera sobre a natureza desencantada. Desencantar o mundo é destruir o animismo. Para os autores, o pensamento, no sentido do esclarecimento, é a produção de uma ordem científica unitária e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios, que podem ser interpretados tanto como axiomas arbitrariamente escolhidos quanto como idéias inatas ou abstrações supremas. O sistema visado pelo esclarecimento é uma forma de conhecimento que lide melhor com os fatos e apóie o sujeito na dominação da natureza de maneira mais eficaz. Podemos perceber porque a natureza é vista como o que pode romper com a modernidade. Sendo o esclarecimento um projeto de dominar racionalmente a natureza, desencantando o mundo, o reencantamento do mundo e o apelo ao natural, como faz a Nova Era, constituem uma tentativa de romper com a modernidade, não necessariamente conseguindo ir além dela, visto que o recurso à natureza é um recurso ao pré-moderno. O que é atacado com o reencantamento do mundo ou o retorno à natureza não é o industrialismo ou o capitalismo, mas a própria lógica do esclarecimento, isto é, da modernidade. O problema do esclarecimento, segundo os autores, é que ele se reconhece a si mesmo no mito que tentou destruir. O mito se tornou argumento para a oposição ao esclarecimento. Significa que ele próprio, mito, adotou o princípio da racionalidade que era a acusação que pairava sobre o esclarecimento: uma racionalidade corrosiva. Os mitos que foram vítimas do esclarecimento são, para eles, já o produto do próprio esclarecimento. O primeiro movimento do mito era de relatar, denominar, dizer a origem, expor, fixar, explicar. Mas cedo deixaram de ser um relato para tornarem-se uma doutrina. As deidades olímpicas deixam, então, de identificaremse com elementos, e passam a significá-los. Tornam-se sua suprema manifestação. É desfeita a distinção entre a existência e a realidade, e o mundo é submetido ao domínio dos homens. O mito, segundo eles, se converte em esclarecimento, e a natureza torna-se objetividade. A magia buscava fins, e atuava pela mimese. A ciência, também em busca de fins, atua agora pelo distanciamento em relação ao objeto. A oposição entre o esclarecimento e a mitologia é delineada pela oposição entre a razão e o irracional. A mitologia conhece o espírito que está imerso na natureza como potência natural. A realidade exterior e a interior são potências de origem divina ou demoníaca. Para escapar ao medo supersticioso da natureza, a razão despe tudo o que é objetivo como um disfarce de um

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material caótico, lançando sobre esse material a idéia de que ele escraviza a humanidade. O esclarecimento repõe a coerência e o sentido dentro da subjetividade, que só se constitui nesse exato processo. O sujeito se converte na única autoridade irrestrita e vazia. (Aqui encontramos um elo da modernidade com a religiosidade do eu presente na Nova Era). A natureza se reduz, então, a uma resistência a esse poder abstrato do sujeito. Para os autores, o mito patriarcal solar é ele próprio esclarecimento. Eles entendem que a própria mitologia desfecha o processo sem fim do esclarecimento, no qual toda concepção teórica acaba por sucumbir à crítica de ser apenas uma crença, até que os próprios conceitos do espírito, de verdade, e até mesmo de esclarecimento tenham-se convertido em magia animista. A explicação de todo acontecimento como repetição, que o esclarecimento defende contra a imaginação mítica, é o princípio do próprio mito. Mito e esclarecimento, portanto, confundem-se. No esclarecimento, as explicações do mundo como o nada ou o todo são mitologias. Os caminhos garantidos para a redenção são práticas mágicas sublimadas. O esclarecimento rompe com as práticas mágicas anteriores. O método do esclarecimento é o método analítico, a decomposição pela reflexão. O seu problema é, contudo, que o processo está decidido de antemão, e nisso o esclarecimento “regride à mitologia da qual jamais soube escapar”. A mitologia refletia a ordem existente: um processo cíclico, o destino, a dominação do mundo. Para os autores, no mundo esclarecido a mitologia invadiu a esfera profana. O eu do esclarecimento extermina todos os vestígios naturais como algo de mitológico, em busca de comportamentos normalizados, mais “naturais, decentes e racionais”. Esse eu que não queria nem mesmo ser natural, constituiu o ponto de referência da razão, instância legisladora da ação torna-se um sujeito transcendental ou lógico. O instinto é visto a partir daí como mítico, como uma superstição. O processo do esclarecimento é, entre outras coisas, um processo de afastamento da natureza e construção da razão em oposição a ela. Um processo mesmo de dominação. Os autores enxergam nos momentos decisivos da civilização ocidental, da transição para a religião olímpica ao Renascimento, da Reforma ao ateísmo burguês, e em todas as vezes que novos povos e camadas sociais recalcavam o mito, o medo da natureza não compreendida e ameaçadora – conseqüência de sua própria materialização e objetualização –, que era degradado em superstição animista, e a dominação da natureza interna e externa tornava-se o fim absoluto da vida. O que mito e esclarecimento guardam em comum é a necessidade de dominar a

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natureza. Uma necessidade patriarcal de elevar a razão ao domínio do caótico. Para os autores, é com a economia burguesa que o mito é aclarado pela razão. Mas no caminho entre mito e lógica, o pensamento perdeu a capacidade de refletir sobre si mesmo. O pensamento é aquilo que distancia os homens da natureza, e permite a sua dominação. O esclarecimento é, portanto, mais que esclarecimento: ele é natureza perceptível em sua alienação. A mulher é a representante da natureza por excelência, opondo-se à razão esclarecedora patriarcal. Ela encarna a fascinação da natureza, do que foi inferiorizado fisiológica, biológica e socialmente. Para os autores, essa é a origem da dominação feminina na sociedade burguesa. O estigma da fraqueza que a mulher carrega e o seu desamparo em virtude daquela seriam a justificação de sua opressão. É interessante notar como os autores acreditam que houve um período matriarcal da humanidade onde a mulher desfrutava de uma condição mais feliz. Enquanto ser natural, ela é o produto da história que a desnatura. O cristianismo exerce, sem dúvida, papel central na dominação da mulher no Ocidente. Acreditam que ele tentou compensar essa opressão através da ideologia do respeito à mulher, uma tentativa de relembrar tempos arcaicos, cujo resultado foi o rancor pela mulher e pelo parazer, visto que o sentimento que melhor se ajusta à opressão é o desprezo, e não o respeito ou a veneração. Historicamente, o culto da madona teria sido pago com a caça às bruxas, que os autores entendem ter sido espécie de vingança exercida sobre a imagem da profetisa da era précristã, que punha em questão a dominação patriarcal. Os autores, em sua concepção da bruxa, chegam perto do que a própria wicca professa. A bruxa de hoje se remete à sacerdotisa pré-cristã tanto em sua prática quanto em sua ideologia, buscando o rompimento com o patriarcado através de uma prática inerentemente feminina, e um retorno a fontes tradicionais em busca de legitimidade para um fenômeno moderno. A opressão à mulher guarda, segundo os autores, a intenção de extirpar a tentação de recair na natureza. E aí exatamente mora a barbárie, o outro lado da cultura, que faz com que a razão pareça desvanecer-se em sua luta contra a natureza. É aí que o homem forte paga a sua força de dominação com um cada vez maior distanciamento da natureza, no qual o medo está sempre proibido. A barbárie, na concepção dos autores, é a civilização trazendo de volta a natureza terrível como se ela fosse seu último resultado. Os autores vêem a modernidade afundando, o colapso da civilização burguesa, a autodestruição do esclarecimento, único pensamento capaz de trazer a liberdade. Na verdade, os autores não fazem uma crítica ao

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esclarecimento, mas observam os rumos que ele tomou, voltando-se ao mito e à natureza ele próprio e colocando em cheque a liberdade humana, pois é veículo de dominação. O esclarecimento moderno é mais uma etapa de desmitologização, mas é radical, e nisso se distingue das mudanças anteriores que colocavam novas mitologias, ainda que esclarecidas, no lugar das antigas. Depois que a natureza foi posta de lado a título de prejuízo e mito, restou a natureza enquanto matéria. A magia transferiu-se para o fazer, a indústria. E temos então que a indústria e o capitalismo – a sociedade burguesa – são fruto da radicalização do esclarecimento, do projeto de modernidade, o projeto iluminista. Não são apenas filósofos como Adorno e Horkheimer, preocupados com a modernidade, que efetuaram a junção entre a mulher e a natureza, por um lado, e a ciência como expressão do pensamento racional moderno, do outro. Como vimos, há historiadores como Muchembled (1987) e Del Priore (1997) que também efetuam esta junção. Outros autores, como Ortner (1979), apresentam uma oposição entre natureza e cultura, e não natureza e razão. É neste ponto que o pensamento de Adorno e Horkheimer se fez necessário em nossa análise. Veremos adiante que as bruxas trabalham como concepções duplas de natureza e civilização. Para entendermos esta duplicidade, é necessário ter em mente que a cultura nem sempre implica em racionalidade. Especialmente no pensamento de Frazão, a razão se alinha à civilização, mas não à cultura de povos em contato direto com a natureza, que ela chama de “primitivos”. O pensamento desta autora segue, de certo modo, o pensamento de Adorno e Horkheimer. Apenas Frazão não acredita, como estes autores, que a racionalidade e a civilização possam ser melhores ao homem do que a natureza. É este ponto que torna o pensamento das bruxas interessante e o distingue de outras formas de pensamento correntes na sociedade ocidental.

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Bruxaria e feminino Vejamos agora algumas associações entre bruxaria e feminino para a antropologia. Marcel Mauss e Mary Douglas são autores que se debruçaram com maior ênfase sobre o tema da magia, numa abordagem antropológica que foi amplamente utilizada por nós. A idéia da bruxa como ser marginal foi fundamental na compreensão do universo pesquisado. Não poderíamos, contudo, nos furtar a mencionar Evans-Pritchard e Durkheim. Este dispensa as apresentações, mas é necessário dizer que seguimos sua idéia de que a religião é um fenômeno social, cujas representações são coletivas e expressam realidades coletivas. Quanto ao outro, a hereditariedade da substância-bruxaria, a bruxa como categoria de acusação e malefício, e sobretudo a magia como uma lógica de explicação de incidentes (ou o que chamamos de acaso) foram todas idéias fundamentais para a realização do corrente trabalho. Não estaremos, no presente momento, demasiadamente preocupados com a estreita ligação entre a bruxaria e o malefício. As bruxas que pesquisamos não costumam fazer uso de acusações de malefício, embora possam ser acusadas segundo esta lógica. A acusação de malefício, contudo, é fruto da própria condição desviante da bruxa, que é o que nos interessa prioritariamente. A posição estrutural de marginalidade da bruxa numa sociedade será um dos pontos de apoio da análise do material de campo, vindo as noções de dom e hereditariedade a seguir. Uma das obras mais importantes sobre bruxaria é o clássico de Evans-Pritchard, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande (1976). A partir de um estudo de campo na África, o autor desvenda como funciona a bruxaria na sociedade Zande, para o que ela serve e como regula as relações sociais. Um dos pontos que nos chamou a atenção nesta obra foi a idéia de que a categoria bruxo(a) é uma categoria de acusação, uma acusação que é lançada, geralmente, sobre vizinhos com quem se estabeleceu algum tipo de conflito, e que por isso quereriam à vítima de bruxaria algum mal. No entanto, existem várias formas de se praticar magia na sociedade Zande, nem todas maléficas. Evans-Pritchard divide bem a linha entre bruxaria e feitiçaria: a primeira é praticada por um(a) bruxo(a), pessoa que nasceu com substância-bruxaria em seu corpo, herança de sua família; o feiticeiro, ao contrário, é aquele que atua através do poder das ervas, sempre no sentido de praticar o mal.

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No Brasil, bruxa(o) também constitui uma categoria de acusação. Diz-se normalmente que “fulana é uma bruxa” quando é pessoa que age com maldade. Este tipo de acusação pode ser ouvida tanto nas ruas quanto nos meios de comunicação. No entanto, esta categoria de acusação, usada como acima descrito pelo senso comum, nem sempre é sinônimo de uma acusação de uso de magia. Quando uma pessoa lida com o chamado “ocultismo”, também é comum que se diga que é bruxa. Por “ocultismo” compreendemos diversas formas de oráculos e conhecimento esotérico. Neste caso, não costuma constituir acusação, pelo contrário, o domínio de determinado “conhecimento oculto” pode ser visto como positivo, e aí a categoria bruxa inverte sua valoração negativa, tornando-se um elogio. Este é o caso das bruxas que estudamos, inseridas neste meio ocultista, onde o conhecimento serve como uma ferramenta na busca por status. Aqui, diferentemente dos Azande, a categoria bruxa é uma acusação normalmente dirigida a mulheres. Maluf (1993) estudou como essa categoria de acusação era usada nas narrativas dos habitantes da Lagoa da Conceição, em Florianópolis, Santa Catarina. Lá a mulher acusada de bruxaria também é geralmente uma vizinha, descoberta após uma consulta à benzedeira local. A bruxaria recai normalmente sobre crianças, onde algumas doenças dão o sintoma de embruxamento. A mãe procura então uma benzedeira, mulher que reza a criança e indica algum tipo de banho, profetizando, segundo as reações da criança, se ela viverá ou não. É também a benzedeira que descobre quem é a bruxa. Esta dificilmente sabe que possui o dom da bruxaria, algo intrínseco a ela. Fica claro que a acusação é voltada para o universo feminino: são mães que têm seus filhos atacados por vizinhas bruxas, e que para sanar o problema procuram benzedeiras. Nunca um homem é acusado de bruxaria. Quando em contato com o universo masculino (segundo a autora: os barcos de pesca, a estrada à noite, o trabalho fora da esfera doméstica), a bruxa é sinônimo de desregramento sexual. Ela se torna uma mulher sexualmente atraente, com interesses sexuais explícitos pelo homem que encontra, mulher que quebra a relação costumeira local entre os gêneros ao entrar no espaço masculino. Souza (1989) afirma que uma das acusações que pesavam sobre as bruxas na Colônia era a de serem mulheres lascivas, prostitutas, alcoviteiras, que faziam filtros de amor e lavatórios afrodisíacos. Qualquer mulher pobre, sem laços familiares, sem marido, podia ser vista como uma prostituta, e acusada de bruxaria. A bruxa é uma operadora de magia, e a magia não é racional, como Evans-Pritchard (1976) aponta, embora tenha uma lógica própria. Esta lógica não está, segundo Douglas (1976),

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amparada na coerência intelectual, mas na ação simbólica. A crença na feitiçaria é um exemplo de que poderes impessoais são receptivos à comunicação simbólica. Apoiada na mimese, o discurso e a prática da magia não constituem filosofias. Quando falamos em bruxaria wicca, deve estar claro que há uma filosofia passada por autores em seus manuais, mas há também uma prática mágica que opera da mesma forma que os autores acima apontam, com base na ação simbólica e no recurso à mimese, a divindades, invocações e outras formas. Para Douglas (1976), a magia dá sentido à existência, classifica o mundo, impõe uma ordem. Como veremos quanto ao pensamento das bruxas, o que chamamos de filosofia é, na verdade, um pensamento que organiza o mundo em dualidades opostas e complementares, mas que, antes de tudo, impõe uma ordem e uma hierarquia, valorizando um pólo em detrimento do outro. Desta forma, a bruxaria wicca fornece uma compreensão de mundo própria para seus adeptos. Neste sentido, a wicca segue a idéia de que o ritual e a magia são espaços que lidam com a desordem e a potência da desordem: sonhos, frenesis, a desordem da mente que permite acessar poderes e verdades que o esforço consciente não alcança (Douglas, 1976). Esta desordem é uma quebra com a razão, como expressa acima em Adorno e Horkheimer (1985), e permite um alinhamento com as forças mágicas, como veremos na análise das obras de Frazão. Retornando destas regiões desordenadas com novos conhecimentos, a bruxa adquire um poder inacessível aos outros. Movimentando-se entre a ordem e a desordem, ela toma uma posição marginal, perigosa. Ela se dispõe num estado de transição entre ambos. Ter estado nas margens é ter estado em contato com o perigo, com o poder (Douglas, 1976). Algumas das bruxas que entrevistamos recorrem a este tipo de metáfora para definir a bruxa: ser que lida com magia e está a meio caminho entre a natureza (desordem, irracional) e a cultura (ordem, civilização, razão). Neste sentido, a bruxa pode ser vista como um ser humano que se muda para o âmbito da natureza e a esfera animal. Percebemos, então, que a bruxa tem uma posição marginal na sociedade: não é apenas definida segundo uma força psíquica, um dom, mas pode ser estruturalmente definida segundo seu status ambíguo e inarticulado. São pessoas em áreas relativamente não estruturadas da sociedade, onde o controle é difícil (Douglas, 1976). A partir da obra de Douglas, gostaríamos de levantar ainda mais um ponto: sujeito marginal, desalinhado com a sociedade, a bruxa pode ser vista como louca, o que conduz a uma associação explícita com a sujeira. Sanidade e impureza ocupam o mesmo pólo de uma ordem que as opõe ao sagrado. A sujeira se apresenta, assim, como subproduto de uma ordenação que

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rejeita elementos inapropriados. No universo por nós pesquisado, é comum encontrarmos associações entre bruxaria e loucura como formas de acusação. A loucura é tanto uma acusação que a sociedade aplica sobre a bruxa quanto uma acusação usada pelas próprias bruxas para desmerecer o potencial mágico de uma oponente, que se torna, deste modo, não bruxa, mas louca. Mauss (1974) é outro autor que se dedicou ao estudo da magia e sua prática. O operador de magia aparece, para ele, também como um sujeito marginal. Não define a magia pela forma de seus rituais, mas pelas condições em que são realizados e que marcam o lugar que o mágico ocupa em sua sociedade. Não fazendo parte de um culto organizado, ele toca o limite do proibido. É secreto, privado e misterioso. O que torna a magia eficaz é um poder desconhecido. Este poder provem de dons espirituais que qualificam o indivíduo para a prática mágica. Veremos que freqüentemente as bruxas fazem recurso à idéia de dom para reforçar a condição de bruxa, ao mesmo tempo em que é um poder que legitima o uso da magia. Neste sentido, certos indivíduos estariam destinados à magia: especialmente aqueles a quem a sociedade guarda determinadas atitudes. Este é, também, o caso das mulheres. Sua posição estrutural na sociedade e a maneira como são vistas e tratadas por esta, em termos de atribuições, fazem com que seja considerada mais apta para a magia (MAUSS, 1974). No âmbito da dominação masculina, a mulher se torna ser desviante e, por conseguinte, sujeito da prática mágica. Mas não apenas pela sua posição. Neste caso, Mauss aponta que as características físicas também são determinantes. Quando está prestes à comunhão sexual, durante as regras, a gestação e o parto, e após a menopausa a mulher é considerada mais intensamente como portadora de poderes mágicos. Estas passagens são aquelas que marcam a divindade feminina da wicca, demonstrando que a lógica da bruxaria segue a lógica explicitada por Mauss. Marca, dessa forma, não apenas diferentes estágios do corpo feminino, mas picos de poder mágico. O uso do sangue menstrual em receitas de feitiços segue este padrão lógico. O mágico - e a bruxa – pode não apenas ser imputado com qualidades mágicas, mas também afirmar possuir estes poderes, que é o caso das bruxas modernas. Não apenas se aproveitam da idéia de que a mulher é mais inclinada à bruxaria do que o homem como afirmam possuir poderes – dons – muitas vezes presentes em outros membros da família, sobretudo mulheres. Esta idéia da família de mágicos se apresenta em outras sociedades, como a Índia (MAUSS, 1974). Espaço de legitimação para as bruxas, a bruxaria vista como hereditária não o é

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no sentido de que o dom seja herdado, mas sim de que há uma genealogia que permite o dom. Não são qualidades físicas que são herdadas, como Frazão deixou-nos claro, mas um ambiente em que a prática mágica se torna propícia. Gostaríamos de ressaltar também que o mágico só o é na medida em que há uma crença que o possibilita. O recurso à família como legitimação da condição de bruxa busca reforçar esta crença. Quanto à família de mágicos, não é qualquer de seus membros que se torna mágico. É preciso determinadas condições para que ele apareça. A família se torna uma sociedade mágica e a magia uma riqueza conservada na família (MAUSS, 1979). Não só o mágico se apresenta entre os de condição social marginal como enquanto mágico o sujeito apresenta uma situação social definida como desviante. O mágico é muitas vezes visto como um ser mais próximo à natureza, como Mauss (1974) e Douglas (1976) apontam. Essa proximidade foi vista em Adorno e Horkheimer (1985) e será vista também quando analisarmos as obras de Frazão. A própria divindade da wicca está mais próxima à natureza do que à cultura. Desta forma, a bruxaria se alinha com as forças naturais e indomadas ao invés de se alinhar com as forças de ordem social e pensamento racional. Identidade feminina O papel da mulher na sociedade brasileira tradicional, organizada a partir da família hierárquica, extensa e patriarcal, era definido no casamento. Como apontado por Durham (1983), a divisão sexual do trabalho guarda à mulher os cuidados da esfera privada da vida, a esfera doméstica e o cuidado com as crianças. A mulher da sociedade tradicional tinha sua própria identidade definida nessa hierarquia: inferior ao homem, a ela cabia os cuidados da esfera doméstica. Seu comportamento, sentimentos, vestimentas e linguagem eram definidos dentro desse rígido esquema hierárquico (FIGUEIRA, 1987). Lipovestky (2000) afirma que nas sociedades pré-modernas, mesmo consagrada às tarefas domésticas, a mulher não se dedicava exclusivamente a estas. Seu trabalho é fundamental para a economia familiar, seja ela baseada na agricultura ou algum tipo de manufatura. A esposa-mãe-dona-de-casa é, para este autor, uma idealização. A mudança desse tipo de sociedade para uma sociedade mais igualitária, moderna, abre a possibilidade da mulher construir uma identidade de sujeito definida a partir do gosto pessoal, e

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não mais dado por uma hierarquia social. Embora o processo de modernização no país esteja ainda incompleto, ele abre a possibilidade de que a mulher encontre novas identidades que não a definam exclusivamente pela sua atuação na esfera doméstica (FIGUEIRA, 1987). É a mudança na autonomia feminina, em grande parte fruto do crescimento do nível de escolaridade das mulheres e sua entrada no mercado de trabalho, que tem proporcionado a mudança nos arranjos familiares brasileiros. Essa mudança proporciona também a possibilidade de que a identidade feminina seja agora construída não mais exclusivamente na família e casamento, mas também na esfera pública, no mercado de trabalho (GOLDANI, 1993; BERQUÓ, 1998; OLIVEIRA, 1996). Na modernidade, segundo Lipovetsky (2000), o ideal da “boa esposa e mãe” não desaparece, mas a retórica de sacrifício que o acompanhava encontra-se mascarada por normas individualistas. Hoje, a nova condição da mulher se caracteriza por uma recusa em construir uma identidade baseada nas funções de mãe e de esposa. A atividade profissional das mulheres se tornou um valor e uma aspiração. Para este autor, este foi um processo no qual as mulheres tiveram suas habilidades tradicionais cada vez mais desqualificadas em nome de uma nova ordem científica e médica. Esta tentativa de “aculturação” do saber feminino foi acompanhado da reclusão da mulher à esfera doméstica exclusivamente. Muchembled (1987) é um outro autor que afirma que a modernidade retirou das mulheres saberes que lhes eram tradicionais. No caso da bruxaria wicca, pode-se notar que as bruxas de hoje retomam, em alguma medida, este mesmo discurso para retomar seu papel tradicional e seus saberes tradicionais, hoje não mais contra a ordem científica vigente, mas contra o domínio masculino e o patriarcado. Em várias das obras de Frazão, é possível perceber como os conceitos de ciência e racionalidade são associados ao patriarcado e ao modo masculino de ser. Segundo Lipovetsky (2000), a única função que escapa à desvalorização sistemática da mulher é a maternidade. Interessante notar como esse ponto é fundamental na bruxaria wicca, onde o tema é trabalhado à exaustão, tanto nos rituais e mitologia quanto na própria aproximação com a divindade. A conversão a uma religião onde o feminino é valorado positivamente em detrimento do masculino só é possível numa sociedade moderna ou à caminho da modernidade (GIDDENS, 1991; LIPOVESTKY, 2000; FIGUEIRA, 1987). Nesse caso, o fato de serem as bruxas prioritariamente de camadas médias urbanas dá a tônica da mudança social brasileira no que concerne à mulher, pois a entrada de novos padrões modernos na sociedade brasileira têm se dado primeiramente nessas camadas. Ao perguntarmos o que essas mulheres buscam na bruxaria,

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deparamo-nos com relatos construídos de modo a fazer com que a bruxaria se tornasse um destino quase inescapável, tornando a categoria bruxa uma construção identitária, uma vez que o discurso das mulheres entrevistadas apontam a idéia de que elas são bruxas “desde sempre”: ou por terem nascido bruxas ou porque toda mulher é uma bruxa. Mas, que identidade é essa? Do nosso ponto de vista, e a partir do material de campo analisado, percebemos que a identidade de bruxa não constitui apenas uma identidade de gênero com recurso ao tradicional. Para as bruxas que entrevistamos, pode-se tornar uma profissão. De um modo geral, a bruxaria wicca tem se apresentado também como parte de um percurso religioso que indica um afastamento das religiões populares em direção à Nova Era e a uma tradição recebida de fora do país. Para Lipovetsky (2000), o ingresso da mulher em atividades profissionais leva a adoção de atitudes que significam a busca por um sentido para a vida pessoal, e expressam um desejo de ser sujeito da própria existência. Para o autor, a cultura do trabalho propicia às mulheres a conquista de uma identidade profissional plena e indica um desejo, por parte delas, de serem reconhecidas a partir do que fazem e não do que são “por natureza”, como mulheres. No caso das bruxas, todo um discurso é construído no sentido de mostrar que toda mulher é uma bruxa, ou de que a bruxa o é desde o nascimento. Nesse caso, o que ela faz – a profissão de bruxa - nada mais é do que uma expressão do que ela é: uma bruxa e, em última instância, uma mulher. Segundo este autor, o que domina o perfil da mulher “pós-moderna” (não desejamos entrar aqui na discussão sobre a modernidade e a pós-modernidade) é o investimento feminino na vida profissional e a rejeição a uma identidade baseada exclusivamente nos papéis domésticos. Nesse caso, as bruxas entrevistadas se apresentam como fruto da modernidade tanto em sua busca por uma identidade profissional quanto em sua busca por saberes tradicionalmente femininos, de modo a romperem com uma identidade construída como mãe e esposa e também em relação ao homem quando numa posição de subordinação. Das sete bruxas e um bruxo que entrevistamos, seis se inserem direta ou indiretamente no mercado esotérico como profissionais. Desses, apenas dois não trabalham diretamente como os conhecimentos que uma bruxa possui, no sentido de transformar a bruxaria em profissão. Quando uma das entrevistadas manifesta interesse em ingressar também no mercado esotérico, percebe-se que esse é um desejo movido pela necessidade de se adequar o trabalho remunerado com a identidade de bruxa e não somente pela dificuldade de entrada em outros ramos do mercado de

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trabalho. Este desejo fica mais claro quando observamos que a entrevistada em questão tem um emprego estável (funcionária pública), bem remunerado (R$1300 mensais) e futuramente terá qualificação para conseguir ganhos ainda mais altos (estuda Direito). Embora uma das entrevistadas tenha relatado sua entrada no mercado esotérico como fruto do desespero financeiro, não vejo essas duas posições como opostas. Na verdade, o fato de serem bruxas, além de possuírem qualificação formal (nível superior), possibilitou a essas mulheres a perspectiva de ingresso em mais de um ramo de atividade profissional. A permanência no ramo esotérico se deve a uma escolha deliberada por parte delas. Essa visão é corroborada pelo desejo de ingresso nesse mercado por quem está de fora dele, mesmo sem problemas financeiros e com grandes chances de sucesso profissional, dada sua qualificação. Através dessas entrevistas, nota-se também que a maior parte das bruxas é ou foi casada, o casamento entendido aqui também como coabitação (união consensual). Das sete mulheres entrevistadas, seis são ou já foram casadas. Destas, quatro têm filhos. Estes dados apontam que a identidade de bruxa não impossibilita essas mulheres para o matrimônio. Estes dados apontam para um outro lado: através da bibliografia produzida pelas bruxas, percebe-se que toda a esfera de atuação da bruxaria é feminina e doméstica (instrumentos mágicos como o caldeirão, a vassoura, o punhal e a taça deixam isto claro, bem como a idéia de se manter uma horta de ervas mágicas, realizar feitiços na cozinha ou enquanto se faz trabalhos domésticos ou na idéia de que o útero é o lugar de força e poder de uma bruxa, sendo o sangue menstrual considerado magicamente poderoso); neste ponto cabe um questionamento sobre o quanto a identidade de bruxa rompe com valores tradicionais e expressa a “modernização” da mulher e o quanto essa identidade, na verdade, ajuda a reconstruir para a mulher moderna papéis tradicionais de gênero. Segundo Lipovestky (2000), o que caracterizaria a mulher contemporânea (pós-moderna) seria a recusa de uma identidade constituída exclusivamente pelas funções de mãe e de esposa. Neste caso, as bruxas demonstram através das entrevistas que esse não é exatamente o modelo seguido por elas, visto que embora muitas tenham se casado e tido filhos, elas também trabalham fora de casa. Quando tomamos as camadas médias urbanas brasileiras, das quais as entrevistadas fazem parte, como modernizadas ou em um processo de modernização (FIGUEIRA, 1987), então é possível enxergar a identidade de bruxa tanto como fruto dessa modernização quanto como um recurso à tradição. Neste último caso, trabalhamos com a hipótese de que essas camadas fossem

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modernizadas, causando em seus sujeitos o que Giddens (1991) chama de desencaixe. Como sujeitos desencaixados, as bruxas podem recorrer ao tradicional para a reformulação de uma nova identidade que mantenha os ganhos da modernidade para as mulheres ao mesmo tempo em que estabelece atividades de gênero em parte tradicionais para elas. Verifica-se que a bruxaria wicca não rompe, na verdade, com a tradicional atribuição de funções aos gêneros, nem com a tradicional divisão sexual do trabalho. O que ela traz de inovador é a inversão da valoração usual para os gêneros. Na wicca, o feminino é mais valorizado pela sua capacidade de criação, e por uma série de atributos tidos como naturais nas mulheres: sensibilidade, generosidade, beleza, sutileza, calma, intuição, imaginação, criatividade, entre outros. O masculino, por sua vez, seria eminentemente agressivo, belicista, forte, racional, entre outros. Essas atribuições não são modernas, mas tradicionais. A inovação da bruxaria wicca é a visão de que exatamente por ser o que é, o feminino é positivamente valorado, o que não ocorre nas sociedades tradicionais. A análise do campo realizado mostra que a identidade de bruxa propicia a essas mulheres autonomia, inclusive no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que pode vir a reforçar padrões tradicionais de divisão sexual do trabalho, sem romper de todo com o modelo de família brasileira (casal com filhos). Neste caso, exatamente como a sociedade brasileira, a filosofia expressa pela bruxaria wicca parece exercer regras de “modernização reativa” (FIGUEIRA, 1987), pois mantém o padrão em que um dos sexos é valorizado em detrimento do outro, mas muda o sexo em questão do homem para a mulher. Fica, portanto, uma indicação de como a wicca tem sido professada no país e do porque ela ter atingido camadas médias urbanas quando sua proposta de “comunhão com a natureza” apontaria para um caminho mais rural. Quanto ao aparente reforço que a bruxaria traz aos padrões tradicionais, é interessante aqui tomar a discussão que Lipovestky (2000) faz sobre a mulher contemporânea. Para este autor, existem três tipos de mulher: a “primeira mulher” é aquela diabolizada, associada ao caos e ao mal, que lida com magia; a “segunda mulher” é aquela idealizada a partir da Idade Média, vista como mais próxima da divindade do que o homem, é a mãe enaltecida, a força civilizadora; a “terceira mulher” seria a mulher que rompe com essas idealizações e abole a hierarquia social dos sexos, apresentando uma autonomização do seu ser (característica das democracias ocidentais) embora as desigualdades entre os sexos não desapareçam de todo. A identidade de bruxa bebe, claramente, em todas essas fontes. A princípio mais próxima da “primeira mulher” por sua íntima

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relação com a magia e pela visão folclórica da bruxa como um ser ligado ao mal, pode-se perceber no discurso atual das bruxas uma certa influência da “segunda mulher” tanto na adoração da face de Mãe que sua divindade apresenta como na idéia da mulher enquanto força civilizadora e ser mais próximo da divindade - no caso das bruxas, pela relação óbvia entre uma divindade feminina prevalecente e a mulher. A partir dessas influências a bruxa contemporânea parece emergir como uma identidade nova, absorvendo – ou graças a - as conquistas da “terceira mulher”. Para as próprias bruxas, contudo, sua identidade é vista muito mais como tradicional do que moderna, uma vez que acreditam que sua religião foi reformulada a partir da religião praticada no período matriarcal da humanidade e uma vez que procuram pelos saberes tradicionais femininos. A wicca e a mulher de hoje no Brasil Vimos como a mulher é sujeito privilegiado da bruxaria, especialmente no Ocidente. O que faz dela bruxa é a sua posição desviante numa ordem dada: ela é associada à natureza na modernidade; ela é feita marginal como sujeito subordinado na ordem da dominação masculina; ela retém atributos que a diferenciam do ideal dominante, que é masculino. Nas últimas décadas, a mulher tem conseguido rever alguns aspectos de seu status social frente ao patriarcado. Com todos os ganhos de hoje, porque ela estaria disposta a retomar uma identidade vinculada à marginalidade e a atribuições tradicionais de gênero? Mas será que é isto que as bruxas modernas tem de fato buscado, quando decidiram em primeiro lugar tornarem-se bruxas? Se o espaço da mulher não é ainda de plena igualdade com os homens, não é também possível dizer que nada mudou. O papel da mulher dentro da economia doméstica, apesar de tudo, foi o que sofreu a menor mudança. Embora ela seja hoje, muitas vezes, a única provedora do lar, ou pelo menos uma contribuinte importante, na maior parte das vezes o trabalho doméstico ainda é tarefa sua. A bruxaria parece, como afirma Del Priore (1997), ser uma inversão do pejorativo feminino numa afirmação de suas qualidades enquanto mulher. Se para os homens a menstruação continua parecendo algo impuro, na bruxaria ela é divina e repleta de poder. Se a atividade da mulher como dona-de-casa ainda é vivenciada por muitas como uma submissão, na bruxaria ela é percebida como um espaço de liberdade para plantar ervas para feitiços, proteger a casa de

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influências nefastas, tomar conta da cozinha onde se utilizam vários instrumentos mágicos e realiza-se feitiços com o caldeirão, a taça, o athame (punhal), a varinha, a vassoura, entre outros. Em suma, o que estamos sugerindo é que, dadas as mudanças na condição feminina, o que vimos nos últimos anos foi a perda, por parte da mulher, exatamente daquilo que fazia dela mulher. Ela continua a parir filhos, cuidar deles, da casa, da família, mas ao entrar no mercado de trabalho ela sofre uma transformação na tentativa de se manter competitiva e alcançar outros postos. As mulheres que trabalham fora não raras vezes deixam a casa nas mãos de uma empregada doméstica e os filhos nas mãos de uma babá ou parente. Em parte, elas perderam aquela ligação com o que era antes o mundo feminino, e perderam também aquela cultura feminina que o processo de modernização lhes roubou. Nesse sentido, a bruxaria parece um caminho aberto para algumas mulheres recuperarem uma identidade feminina, uma cultura e um mundo feminino perdidos. Claro que essa recuperação não é a de uma nova rotina. As bruxas modernas trabalham, se casam e têm filhos. Elas são mulheres do mundo contemporâneo, mas parecem buscar na bruxaria um pouco daquela velha condição feminina que lhes foi de certa forma roubada. As bruxas entendem que a wicca é uma religião orientada para o feminino. Afirmam que a evocação da divindade feminina orienta a wicca para o feminino e vão além: para algumas, toda mulher é bruxa, isto é, “tem útero, é bruxa”. Essa afirmação desvenda o papel do útero na formulação do poder mágico dentro da bruxaria. É o poder de procriação, de gerar vida, que o útero traz implícito, e por isso ele se torna tão importante. Ele é um gerador de energia. É ele que faz a mulher ser mulher e faz da mulher uma bruxa, pois é um poder feminino. Na época da Inquisição, considerava-se que a bruxaria era um mal hereditário. Hoje a idéia persiste, mas a bruxaria, de mal, tornou-se um dom. Frazão (1995) afirma ser uma bruxa hereditária, que teria aprendido sua arte com suas avós e tias, também bruxas. Entre as bruxas brasileiras, é comum afirmarem que há outras bruxas na família, normalmente definidas pelo dom. Neste caso, costumam se referir a familiares mulheres mais do que a homens, o que parece reforçar a idéia de que a bruxaria é um esforço do feminino no sentido de organizar uma nova identidade, e nesse sentido formular uma história familiar que corrobore o sentido dessa identidade é fundamental. É um recurso de legitimidade da condição de bruxa. De acordo com as bruxas pesquisadas, a wicca é um caminho tanto de busca quanto de transformação. Essa transformação é interna, uma mudança “em todos os níveis” que viria

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através da magia, dos rituais, as práticas religiosas, uma busca pelo equilíbrio. Para as entrevistadas, a bruxaria modifica o seu praticante, sua maneira de ver o mundo ou o seu próprio eu. Em outras palavras, poderíamos dizer que ela modifica a identidade social de seu praticante.

REFLEXÕES SOBRE A WICCA

Gostaríamos de ressaltar alguns pontos deste primeiro capítulo. Observamos que as concepções mágicas da wicca sobre o feminino se alinham com aquelas apresentadas pela antropologia, tanto na associação do feminino com a magia quanto na associação de ambos com a natureza. A natureza se apresenta, tanto na wicca quanto na Nova Era, como oposta à civilização, e positivamente valorada neste sentido. Tudo que se associe a ela será também positivamente valorado, formando-se deste modo duas colunas de atributos antagônicos. A civilização em questão é a modernidade, logo há uma crítica tecida quanto aos processos que a definem. Esta crítica vem através da Nova Era, do ambientalismo, do feminismo, entre outros. Como prática moderna, a wicca se apresenta também como crítica à modernidade. A sacralização da natureza e a valoração do feminino que ela traz contribuem para que a coloquemos alinhada aos movimentos ambientalista, feminista e da Nova Era. Percebemos, então, que a wicca é uma prática que permite, pelo menos na teoria, uma crítica à modernidade ao mesmo tempo em que oferece soluções, na forma de uma nova ordem social. Esta nova ordem valoriza o feminino e seus atributos, a magia, a natureza, em detrimento dos processos vividos atualmente de ruptura e domínio da natureza, principalmente através do pensamento científico. Há na wicca uma crítica ao racionalismo que procura adequar meios a fins tanto quanto um questionamento sobre estes fins. Para a mulher de hoje, a crítica à modernidade é uma crítica também ao modo como foi inserida na sociedade moderna: idealmente reclusa no lar, subordinada ao homem, sem liberdade como sujeito. A procura das mulheres modernas pela identidade de bruxa, que não de alinha ao ideal acima, é reflexo da quebra progressiva que este padrão tem sofrido nos últimos tempos. A bruxa de hoje rompe menos a partir de padrões de gênero do que de concepções de mundo baseadas, sobretudo, na magia. Mas como vimos, a identidade feminina ainda está

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intrinsecamente vinculada aos processos mágicos. O que decorre disto é uma identidade – a bruxa - que flerta com o tradicional ao mesmo tempo em que se insere nos processos últimos da modernidade, chamada tardia ou radicalizada. É uma identidade que faz recurso ao tradicional, que tece críticas aos padrões modernos, e que se constrói nessa dualidade. Neste processo, a bruxa deixa de ser sujeito de malefício e passa a ser uma sacerdotisa – e por isto inserida numa ordem hierárquica e estrutural. Mantém sua ligação com a natureza, mantém os atributos correntes de gênero, e inverte sua valoração. Na bruxaria ela toma o que há de mais distante da ordem moderna, o que há de mais feminino, e transforma no mais valorizado. Usa e pratica a magia, mas não se afasta da tecnologia produzida pela ciência. Como sujeito moderno, ela escolhe ser bruxa, identidade que dá sentido a uma experiência vivida e um determinado perfil relatados de modo a traçar o destino inevitável: ser bruxa, ser desviante que se alinha com a posição desviante da mulher na sociedade de dominação masculina; mas também ter poder, conhecimento, e o status advindo desta posição. Torna-se, assim, um espaço em que a mulher transita por definições ora tradicionais ora modernas, construídas numa hierarquia valorativa que lhe é sempre generosa, espaço em que ela domina, ao contrário da sociedade mais ampla. Dominando este espaço, ela faz uma crítica à sociedade que não a inclui como mulher.

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CAPÍTULO 2 A TEÓRICA DO CAMPO: O PENSAMENTO DE MÁRCIA FRAZÃO

Quando a bruxaria wicca se apresentou como tema de pesquisa para nós, foi através da literatura produzida pelas próprias bruxas que começamos a delinear o discurso e as concepções de gênero da bruxaria. A obra de Frazão, nesta época, chamou nossa atenção, pois ali o debate de gênero é claro e explícito. Escrevendo para leitoras, falando do universo feminino da casa, da cozinha, do romance, do casamento, dos filhos, e dedicando parte de suas obras ao relato autobiográfico, Frazão passou a simbolizar, para a pesquisadora, o que seria a bruxa brasileira. É claro que, uma vez em campo, percebemos que esta autora é apenas uma bruxa brasileira, dentre tantas que conhecemos. Mas seu significado no universo da wicca no país vai além de seu perfil. Quando o campo foi pesquisado, percebemos que Frazão é uma liderança nacional dentro da bruxaria. Seus pontos de vista são próprios e bem marcados, angariando com isto tanto simpatizantes quanto inimigos. No último caso, a defesa feroz do que julga ser o correto caminho para o desenvolvimento da bruxaria no país fez de Frazão alvo daqueles que não concordam com ela. Estabeleceu-se, deste modo, uma disputa pela liderança no universo da wicca no país, onde não é apenas o poder de ter seguidores que está em jogo, mas diferentes concepções de bruxaria. Veremos este embate no próximo, deste modo teremos os pontos de vista de Frazão e de seus acusadores. O cerne da disputa é a concepção de como praticar a bruxaria, do que ela é de fato e do que representa. Em suas obras, o pensamento de Frazão a este respeito vai se desenvolvendo progressivamente. Os mesmos temas permeiam toda a sua obra: o amor, o sagrado, a culinária, o encontro com os deuses através da comunhão com a natureza. Há, também, uma posição marcadamente feminista. A escritora fala para mulheres. Ela incita suas leitoras a se despirem de sentimentos de culpa, de vergonha, a viverem seus amores sem medo das restrições morais e sociais, a viverem sua sexualidade livremente. É uma nova mulher que Frazão traz à tona, uma mulher que, embora possivelmente dona-de-casa, esposa e mãe, não define sua personalidade às custas destes papéis. Não é uma mulher trancada na prisão do lar, impossibilitada de ingressar na esfera da rua, sob o jugo da dominação masculina. O lar é um micro-cosmo, e simboliza a própria

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mulher. Ele não deixa de ser um espaço feminino, mas adquire uma nova significação, exatamente como a cozinha. Nela, a mulher transforma os alimentos, enquanto faz feitiços que transformam a si mesma e ao mundo ao seu redor. Há um limite tênue entre o feitiço e a autoajuda. Na cozinha, a mulher-bruxa que Frazão apresenta consegue inverter a ordem hierárquica dos gêneros, subvertendo a dominação masculina. Ela se torna dominadora, sujeito de seu próprio desejo e do desejo dos homens que se encantam com seus feitiços de amor, a boa mesa e a amante desinibida. Há, sem dúvida, uma romantização da bruxa. Ela se torna um ser cheio de qualidades e sem defeito algum. É a portadora de uma nova ordem, onde a mulher e o feminino se tornam o pólo mais valorizado nesta hierarquia de gêneros. Esta nova ordem se remete a uma concepção de mundo própria da autora, mas com raízes visíveis na filosofia ocidental e na própria ideologia da Nova Era. A natureza, a magia, o corpo e o sentimento se tornam mais valorizados do que a civilização, a ciência, a mente e a razão, características fundadoras da ordem que vivemos hoje, a modernidade. Neste sentido, há um constante embate entre tradição e modernidade, embate esse presente na própria Nova Era. O selvagem, o primitivo, o silvícola se tornam sujeitos privilegiados nesta nova ordem, assim como as mulheres. Eles encarnam os valores da natureza, da correção moral, da sofisticação ética. São o oposto do masculino racional dominante. Eles são os excluídos da ordem instaurada pela modernidade, e que agora formulam uma nova ordem onde sejam incluídos. Ao longo deste trabalho, será possível observar que os pontos de vista expressos por Frazão são análogos aos de algumas bruxas que entrevistamos. Isto demonstra que o pensamento da autora, embora próprio, é o retrato do discurso da bruxaria. Ao mesmo tempo, não esqueçamos que Frazão é uma autora lida pelas bruxas, e podemos dizer que seus conceitos e idéias foram, em certa medida, assimilados. O mais importante é percebermos, em sua obra, como as concepções de gênero dão origem a concepções de mundo, à busca de uma nova ordem social, pelo menos ao nível dos valores. O papel tradicional da mulher, de amante, esposa, mãe, dona-de-casa, não é de todo modificado. Mas o valor que se atribui a este papel é transformado. Quanto ao perfil da autora, que será apresentado adiante, é necessário dizer que ele está disposto por toda a sua obra. Foi com recurso a estes relatos autobiográficos e a uma entrevista realizada por nós que pudemos formular o perfil da bruxa. O que mais chama a atenção é a força da tradição familiar. Criada numa família de bruxas, segundo conta, Frazão é socializada neste

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universo lúdico da magia desde a tenra infância. O ingresso na faculdade de Filosofia afasta-a momentaneamente deste mundo. Mas a filha pródiga abandona a Filosofia e retorna ao universo de infância, se tornando escritora e bruxa “assumida” a partir de 1991. Como a vida da autora e seu pensamento estão intrinsecamente ligados, pois é dos ensinamentos das bruxas de sua família que ela retira boa parte de seu repertório de bruxa, foi necessário falar de cada um separadamente. A experiência pessoal marca a condição de bruxa. A vida da autora marca, em acontecimentos sucessivos, o padrão que permite a ela dizer que é bruxa, e permite pensar e teorizar a bruxaria em seus livros. Buscamos, portanto, analisar o perfil e o pensamento de uma autora pioneira na exposição pública da bruxaria wicca no país, liderança constituída neste universo, teórica da bruxaria e feminista. Tentamos perceber, tanto no relato biográfico quanto em sua obra, o que faz a bruxa, o que as questões de gênero tem a ver com a bruxaria, o que exatamente ela é. Num escopo mais amplo, este capítulo nos ajudará a entender melhor porque uma mulher decide vivenciar a bruxaria como tem sido apresentada aqui. *

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Quando a idéia de elaborar uma dissertação sobre bruxaria e papéis femininos surgiu, a única literatura sobre bruxaria moderna que tínhamos nas mãos eram as obras de Márcia Frazão. Ela é vista como a primeira autora brasileira a escrever livros sobre bruxaria, e a primeira a falar sobre wicca. Seu pioneirismo nessa área é reconhecido por todas as bruxas e bruxos com quem tivemos contato durante o trabalho de campo. É comum, inclusive, que muitas bruxas, principiantes ou não, procurem a autora pessoalmente em busca de algum tipo de ajuda ou apenas para conhecê-la. Quando estivemos em sua casa para a realização de uma entrevista para o corrente trabalho, seu marido nos disse que era comum a visita de bruxas à procura da autora. Todas querendo conhecê-la pessoalmente. Isto no dá a dimensão da referência em Frazão se tornou no mundo da bruxaria wicca no Brasil. Fomos os primeiros não-bruxos a procurar Frazão em sua casa, segundo seu marido. Nesse sentido, seus livros são vistos como “diferentes” da wicca praticada por estas pessoas, mas ainda assim são recorrentemente citados. O Manual Mágico do Amor (1995), terceiro livro da escritora, é invariavelmente descrito como um livro belíssimo, escrito numa

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linguagem poética, mas longe de se adequar ao uso na wicca. A Cozinha da Bruxa (1996) é um livro que as entrevistadas têm como de muita utilidade, pois apresenta cada erva com suas respectivas correspondências mágicas e seus usos próprios em feitiços. De fato, a autora jamais afirmou que praticava a bruxaria wicca. Ela limita-se a dizer que é praticante da Arte, nome genérico para a bruxaria européia. Embora seja leitora de Gardner, visto como o fundador ou disseminador da wicca pelas bruxas, a autora critica o que a wicca se tornou no Brasil. Essas críticas recaem sobre determinados comportamentos que algumas bruxas estariam difundindo no país. Criticando os comportamentos dessas bruxas, Frazão se tornou, igualmente, alvo de críticas. Nas listas de discussão das quais participa, não é incomum as brigas da autora com outras bruxas e bruxos incomodados com seus pontos de vista. Podemos dizer que, na comunidade brasileira que a wicca formou na internet, Frazão é a principal interlocutora. Os outros grupos existentes tendem a se formar com base nos prós e contras às suas visões da bruxaria. Ela se tornou, dessa forma, uma referência também no espaço virtual. Frazão têm sete obras publicadas que, juntas, venderam cerca de duzentas mil cópias, segundo ela. Seus livros têm várias reedições e praticamente toda bruxa já comprou ou pelo menos já leu uma de suas obras. Ela é, ainda, a única autora brasileira com mais de dois livros publicados sobre o assunto. Começou a escrever em 1991, e seu último livro foi lançado em 2000. Suas obras são recheadas de feitiços, rituais, receitas, ervas mágicas, instrumentos, enfim, o que é necessário para a prática da bruxaria. Contudo, o que mais nos chamou a atenção é que a autora se dirige sempre para uma leitora mulher, e possui um discurso de libertação feminina que expõe sua preocupação com o papel da mulher na sociedade de hoje. A mulher de Frazão deve ser livre, dona de seu próprio corpo e de sua vontade, deve se permitir o prazer, deve viver intensamente seus desejos sem ser criticada pela sociedade em que vivemos, ainda marcada pela dominação masculina. Feitiços para acabar com a violência doméstica ou para despertar o desejo sexual da mulher são exemplos de sua preocupação com o bem-estar da mulher. Na verdade, o discurso de Frazão é uma verdadeira teoria não apenas sobre bruxaria, mas sobre o papel do feminino na sociedade. Foi neste sentido que sua obra nos chamou a atenção. Como vimos, a bruxaria wicca tem um discurso afinado com as questões de gênero, e é uma prática religiosa centrada nos papéis femininos. O pensamento da autora vem corroborar nossa

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hipótese, pois é mais direto ainda do que os mitos e a cosmologia wicca. Na bruxaria de Frazão, mais até do que na wicca, a bruxa é uma mulher reclamando uma nova identidade. Esta identidade está pautada no recurso a identidade tradicionais de gênero, como a parteira, a curandeira, a cozinheira, a benzedeira, a bruxa. O recurso ao tradicional marca não só o seu discurso como o da wicca e o da Nova Era de um modo geral. A diferença reside na inversão valorativa que Frazão propõe, exatamente como a wicca e a Nova Era propõem: o que a sociedade da dominação masculina entende como atributos ligados ao feminino e ao masculino permanecem os mesmos, mas os primeiros são alternativamente mais valorizados neste contexto. O que podemos concluir desse processo é que Frazão, exatamente como a Nova Era, está claramente propondo uma inversão de valores com vistas a uma renovação da ordem vigente, ou melhor, uma transformação onde os valores dominantes devem ceder lugar a outros valores, num processo de construção de uma nova sociedade. A ordem atual, da ciência, do consumo e da dominação masculina, é mal vista. É uma sociedade corrompida que deve ser transformada. O pensamento da autora será analisado adiante. Por enquanto, gostaríamos de apresentar o sua perfil. Como veremos, ele é fundamental para a compreensão dos seus pontos de vista. Por outro lado, o perfil da autora, segundo seus próprios relatos, fornece a medida do processo de tornar-se bruxa. Os conceitos mais importantes de sua teoria estão intimamente ligados ao seu percurso como mulher e como bruxa, com destaque especial para a família. Deste modo, podemos analisar o perfil de uma bruxa e o discurso que já vendeu duzentas mil cópias e que se tornou referência para praticantes de wicca. A análise do perfil da autora é fundamental para compreendermos tanto as representações de gênero da bruxaria wicca quanto as diferentes correntes e grupos que se formaram ultimamente no país. Ao mesmo tempo, podemos acompanhar como uma bruxa reformula a sua própria vida de modo que a bruxaria se torne parte integrante de seu ser e destino quase inescapável. Como veremos no capítulo seguinte, a idéia de ser bruxa desde o nascimento ou desde sempre é comum também às bruxas do Rio de Janeiro que pudemos entrevistar. Seus relatos se alinham, em parte, com o de Frazão, embora a autora apresente um universo diferente, que é seu universo familiar.

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MÁRCIA FRAZÃO: UMA BRUXA HEREDITÁRIA

Em junho de 2000 fomos até a casa da autora, em Nova Friburgo, interior do estado do Rio de Janeiro, para entrevistá-la. Começamos a entrevista com Márcia Frazão na sala de estar de sua casa. As constantes interrupções de Ronaldo, seu companheiro, que tentava de toda forma participar da conversa, fizeram com que Frazão nos mudasse para a cozinha. Ronaldo não se deu por vencido: embora tenha tentado permanecer trabalhando no computador, fez-se presente o quanto pode, e diversas vezes deu sua opinião sobre as perguntas que fazíamos a Frazão, obrigando-nos a algumas pausas. O companheiro de Frazão é um sujeito falante. Às vezes ela debatia com ele, ambos com necessidade de falar e apenas uma pessoa para ouvir. Falavam sobre filosofia, linguagem, psicologia, sobre os tempos em que eram hippies e Ronaldo trabalhava no meio artístico, sobre figuras conhecidas da música e da literatura, sobre a boemia que Frazão havia freqüentado quando ainda era criança, na companhia de uma tia, e todas as figuras importantes que conhecera. O gravador não foi solidário. Obrigou-nos a recomeçar a entrevista uma vez, e, em outro momento, nos deu a impressão de que havíamos perdido quase meia hora de gravação, o que felizmente não ocorreu. Ao resmungarmos nosso desgosto com o aparelho, Frazão respondeu que aquilo ocorria porque estávamos na casa de uma bruxa. A partir da entrevista a nós concedida para o corrente trabalho, e a partir dos relatos em seus livros, pudemos reconstituir a vida da autora, procurando o que condicionou sua escolha pela bruxaria, o que a impulsionou para este mundo e a razão de manter-se nele. A referência familiar Um dos fatores mais fortes na relação da autora com a bruxaria é sua própria família, que ela descreve ao longo de suas obras. Nascida num universo de matriarcas, criada pelas tias e avós, socializada entre mulheres fortes, rezas e feitiços, a bruxa Márcia Frazão começa a tomar forma antes mesmo de nascer, e vai sendo modelada por toda a infância até a idade adulta. Neste processo há um episódio que marca a autora em definitivo. A relação com o universo mágico, contudo,vai sendo vista como inevitável numa perspectiva atual, ao olhar-se para o passado. As

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passagens da vida da autora, segundo seu próprio relato, se tornam quase indissociáveis de sua história familiar, o que vai fornecendo dados relevantes de sua vida como bruxa. Durante a infância, Frazão foi afastada da mãe e criada por uma tia. Paralelamente, a avó Vitalina se encarregava de socializar a menina em seu universo de rezadeira, ensinado-lhe feitiços e técnicas mágicas que aprendera com sua mãe e tias. Herdeira “natural” dessa descendência bruxa, Frazão não escapa à sua sina. Segundo a autora, a bruxaria é o seu caminho de comunhão com a divindade. Este caminho já teria sido traçado para ela, desde o seu nascimento, “como uma herança”. Esta herança está sinalizada em seu corpo por uma marca de nascença no ombro direito e que lembra uma lua cheia. Quando era criança, achava que esta marca era mágica e poderosa, e mostrava-a sempre que podia. Numa dessas “exibições”, descobriu o “segredo das mulheres da família”, isto é, descobriu que todas as mulheres de sua família possuíam o mesmo sinal no mesmo lugar do corpo. Ao perceber que não era a única portadora do sinal, ficou decepcionada, mas mais tarde compreendeu que o sinal indica que “faz parte de uma tradição passada ao longo do tempo somente a nós, mulheres”. Vejamos então quem eram as pessoas da família, e como elas marcaram a vida da autora. Paralelamente, veremos episódios de sua vida que marcam seu perfil de bruxa. A primeira a ser apresentada é a avó Vitalina, que apresenta a bruxaria à autora e que se transforma na sua referência e modelo ideal de bruxa. A avó bruxa A família é elemento central no perfil de Frazão como bruxa. É na família que ela aprende a ser bruxa, observando e recebendo ensinamentos mágicos de suas tias e avós, especialmente de dona Vitalina. É o fato de estar imersa numa família onde a magia faz parte do dia-a-dia que faz com que ela desperte para este universo e decida dedicar-se a ele. Neste ponto, o tornar-se bruxa nada mais é do que continuar a história de suas ancestrais. O relato sobre a família é, na verdade, o relato sobre as mulheres da família. Poucas vezes os homens entram no relato de Frazão, e estes são seu pai e seus dois irmãos. As tias e avós, por outro lado, misturam-se ao seu próprio percurso como bruxa. Os agregados da casa - agregadas, melhor dizendo - também se tornam peça fundamental da família, exercendo seus dons igualmente mágicos na solução de problemas.

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Mas a magia praticada pelas empregadas da casa é a africana, oriunda dos terreiros de candomblé. Vitalina é a figura central na vida da bruxa Frazão. Era rezadeira e conhecia o poder das orações e das ervas. Fazia remédios e feitiços com os quais curava quem a procurasse. Vivia sozinha em sua casa, no bairro de Laranjeiras, Rio de Janeiro, onde criava seus animais, e guardava a poeira nos cantos e as teias de aranha para usar em seus feitiços. Conversava com as plantas e com elas aprendia os segredos para seus remédios. Rezava para a lua e falava da Deusa e do seu consorte para a neta. Mas nem só de rezas vivia essa bruxa. Segundo Fazão, era especialista em maldições, e lançava uma vez por outra. Vitalina não tinha pudor de desejar a morte de alguém, mas lidava com suas maldições em termos de justiça. Mãe do pai de Frazão, Vitalina era oriunda de uma família da aristocracia rural e fora criada nas fazendas. Era uma rezadeira pagã que se recusava a entrar numa igreja e não batizou os filhos, criando-os no universo de sua crença. Suas irmãs também eram pagãs, conta a autora. Vitalina nasceu numa fazenda, no século XIX, e depois mudou-se para outra quando de seu primeiro casamento. Era analfabeta, segundo a autora, porque “ler era proibido às mulheres” naquela época. Mesmo assim, a autora considera a avó como mulher sábia. A mãe dessa sua avó fora considerada louca. Contudo, a autora partilha da opinião de sua avó de que não era louca, mas bruxa, mulher de sensibilidade aflorada que “conversava com o rio, entendia os pássaros, curava com ervas e sentia as pedras”. A capacidade de realizar estes feitos extraordinários teria sido passada então para sua avó, e dela para a autora. Teria morrido com 102 anos, e sua mãe (a bisavó Luiza) com 110. Descendente de portugueses e índios da tribo Araras, Frazão descobriu recentemente que o sobrenome da avó ligava-a a uma ilha grega, cujo destino dos habitantes foi marcado pela aparição do pirata turco Barba Rossa, que após dizimar metade da população da ilha, vendeu a outra metade nos mercados de escravos no século XV ou XVI. De alguma forma, dona Vitalina insistia no fato de possuir ascendência turca, mas nunca a família havia conseguido comprovar a veracidade da estória. Segundo a autora, a avó não se referia a si mesma como bruxa. Preferia afirmar que sua família era “de feiticeiras”. Hoje, a última feiticeira de seu ramo familiar é Frazão, única neta de dona Vitalina, que teve nove filhos “sozinha dentro de um quarto”, onde realizava seus próprios partos. Enxergava os homens da família como fracos. Para Frazão, eles eram mesmo fracos, mas

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porque as mulheres da família eram fortes. A complementaridade entre masculino e feminino se mantém, mas ao invés do padrão vigente em que homens fortes e mulheres submissas formam um todo complementar, temos uma ordem inversa onde mulheres fortes se relacionam com homens fracos. Feiticeira convicta, a avó narrava à neta estórias sobre a violência exercida contra as bruxas, especialmente a partir do período inquisitorial. Segundo conta, o medo da Inquisição quase conseguiu erradicar as tradições pagãs nas famílias de bruxas. A bruxaria é retratada como uma religião do populacho, misturada ao cotidiano, e que passa a ser secreta devido às restrições conjunturais. Foi dentro das famílias que a bruxaria pode ser resguardada, de maneira secreta, como uma tradição pagã. As divindades pagãs cultuadas teriam, então, perdido seus nomes originais. Do mesmo modo, os instrumentos mágicos tiveram que ser reformulados e disfarçados. Vitalina possui amigas que também eram bruxas. Vez por outra elas se reuniam, e a autora recorda que ouvia as conversas e experiências ali trocadas. As amigas da avó, recorda, eram sérias, não sorriam, e freqüentemente ignoravam sua presença na casa. A avó as desculpava dizendo que tais mulheres tinham sido submetidas a tratamentos psiquiátricos e tinham sido vítimas de escárnio por serem bruxas. Adotaram, por conta da situação, uma vida reclusa, mas ainda assim ajudando a quem as procurasse. Quebrando o protocolo costumeiro, afirma a autora, uma das amigas de sua avó certa vez resolveu lhe dar conselhos. Disse-lhe para olhar o céu, sentir o sabor dos alimentos, conversar com os outros à mesa, observar os caminhos por onde andasse, cumprimentar todos que encontrasse, contar a um amigo tudo o que vivera desde o último encontro e dizer a ele que está feliz em vê-lo, dar atenção aos animais que encontrasse, observar o entardecer, agradecer pela comida, conversar com a noite e agradecer o dia vivido aos deuses. Frazão tomou o conselho de bom grado e hoje os recomenda às suas leitoras como rituais a serem feitos ao menos três vezes por semana. Mas seguir as determinações à risca, conta, não foi fácil. Recorrendo a avó, que sempre a repreendia por não agradecer a dádiva do alimento, ouviu que cumprimentar estranhos a manteria sempre fora de perigo, e foi assim quando teve que encarar três integrantes de uma gangue local num beco escuro, quando morava nos EUA. Cumprimentou-os e, para seu espanto, eles lhe alertaram que corria perigo andando sozinha por aquele lugar, e decidiram acompanhá-la a seu destino para protegê-la. Quando o homem chegou até à lua, Frazão recorda ter ficado fascinada, mas a avó, ao contrário, tinha ficado preocupada: previu que aquela seria uma lua de malefícios, trazendo

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doenças, guerras e crimes, pois a lua se zangara com os humanos. Outra estória de dona Vitalina narrada pela autora é a da maldição que sua avó jogava em quem quer que usasse casacos de pele. Dizia que a ira dos animais abatidos recairia sobre tais pessoas. E, coincidentemente ou não, Frazão observava-os sofrendo tragédias pessoais. Ecologista antes do tempo, dona Vitalina era capaz de parar em pleno Parque Guinle apenas para ouvir um feitiço dado por uma planta. Mesmo na família, as atitudes de dona Vitalina causavam espanto. Pensava-se que tinha arterioesclerose, uma acusação mais cientifizada da mesma loucura da bisavó no século anterior. Antes de se tornar bruxa, relata a autora, até mesmo ela pensou na possibilidade de que a avó estivesse doente. É interessante notarmos que Frazão teve o seu estar no mundo remodelado na prática da bruxaria. Antes do compromisso total com a bruxaria, ela pensava em termos de loucura. Depois, ela passa a pensar em termos de magia. O comportamento sui generis de dona Vitalina, com o antecedente do comportamento de sua mãe – a bisavó da autora – e de suas amigas, traz à tona a categoria de loucura em oposição à de bruxaria. Para a autora, as bruxas são incompreendidas em nossa sociedade, e o eram mais no tempo de sua avó e bisavó. Essa incompreensão, segundo ela, estaria enraizada no medo da liberdade. As bruxas, para ela, são seres livres, e é o medo de sua liberdade que leva à dificuldade de lidar com elas. Essa liberdade está calcada na recusa à submissão e no compromisso de honrar os sonhos. A categoria loucura é uma categoria que se contrapõe à de razão. Na medida em que a bruxaria é vinculada ao amor, ao sonho, à infância - através dos relatos da autora -, ao feminino, à natureza, à sociedade primitiva e à magia, como veremos a seguir, Frazão paulatinamente constrói uma categoria que é oposta à de razão. A razão está em eterna contraposição à bruxaria através das categorias de interesse, coerção social, mundo adulto, pensamento acadêmico, masculino, civilização, modernidade e ciência. O mundo passa a ser cindido em duas metades opostas e raramente complementares, onde a bruxaria se salvaguarda das acusações do mundo racional, seu principal inimigo. O nascimento numa família de bruxas Por ter sido criado por uma rezadeira pagã, o pai de Frazão não fora batizado. A mãe da autora, no entanto, era filha de uma portuguesa católica, e o casamento se deu na Igreja, o que

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obrigou o pai da autora a ser batizado, para desgosto de dona Vitalina. O pai era advogado, e foi também professor. A mãe “é a Barbie”, diz, numa referência à boneca. Não trabalhava, era donade-casa, mas o que gostava mesmo de fazer era passar as tardes em compras e cabeleireiro. Hoje, os dois vivem em Friburgo. Mudaram-se do Rio de Janeiro para lá seguindo os passos da filha. O pai de Frazão tinha vinte e um anos quando casou com sua mãe, então com dezesseis. Frazão nasceu em 1951. Quando a autora contava cerca de seis meses de vida, uma das tias, preocupada com a pouca idade de sua mãe, resolveu criar a menina. Ela recorda que foi criada por todas as mulheres da família, o que deixou marcas em sua maneira de ver o mundo. “Tia Mariza, que era a filha mais velha da minha avó, entrou numa que mamãe não tinha condições psicológicas de ficar comigo, então simplesmente me tirou. Me pegou e me levou pra casa dela. Era casada, mas nunca teve filhos, então, quer dizer, desde pequena eu rodei nas mãos dessas mulheres todas. Por exemplo, minha tia Nazir, o marido dela foi um dos fundadores da Banda [de Ipanema], e com dez anos ela resolveu que eu tinha que conhecer a noite. Até os treze anos, eu ficava no Jangadeiro até as três horas da madrugada, eu assistia os shows. Porque as mulheres da família da minha avó sempre foram mulheres muito pioneiras. A minha tia foi a primeira mulher a ter uma rádio no Rio. Ela foi a primeira empresária de artistas. E todas elas tinham vício. Eram mulheres que jogavam carta, bebiam. Eu rodava por elas e todas tinham estórias, então eu acho que eu já nasci nesse complô.” A socialização no meio de mulheres tão independentes, fez com que Frazão passasse a observar o papel da mulher na sociedade de forma diferente do ponto de vista da época, quando o ideal de feminilidade era representado por sua mãe: mulher que se casa cedo, cuida da casa e dos filhos, gosta de compras, da última moda, dos artista do cinema e de cabeleireiro. Contra essa mãe conformada, a autora parece guardar alguma mágoa. A mãe é uma personagem pouco citada em seus livros, e na entrevista que nos concedeu, ela limita-se a compará-la a uma boneca. “Mamãe é a Barbie”, diz. As tias, por outro lado, eram pioneiras, independentes, empresárias e empreendedoras, frequentavam a boêmia, mantinham comportamentos masculinos que definem bem o rompimento com o padrão ideal: eram mulheres de vícios, que jogam cartas e bebem. Essas tias eram as herdeiras diretas da personalidade forte da avó. Elas formavam um grupo que

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se indispunha à ordem vigente e escapava aos padrões tentando manifestar uma mudança, uma outra forma de estar no mundo. Ao conviver com estas mulheres, Frazão aprende suas estórias, guarda-as em si, e se torna parte do mundo de mulheres fortes e fora dos padrões. A socialização nessa família marca em definitivo a sua relação com a bruxaria e o papel que imputa a esta, como instrumento de libertação da mulher das amarras da dominação masculina. Afinal, a bruxa de Frazão é uma mulher livre, independente e à margem, exatamente como as mulheres de sua família eram. É por isso que a figura da mãe se torna obliterada nos relatos da autora; ela não segue este padrão. A avó materna de Frazão chamava-se Virgínia, uma descendente de portugueses tão devota da Virgem Maria, que mandou construir uma réplica da gruta de Fátima em seu jardim. Os desentendimentos com dona Vitalina eram corriqueiros e previsíveis, devido ao choque religioso. O fato de ser católica, contudo, não impede a autora de enxergar na avó uma faceta mágica, exposta no costume que tinha de confeccionar breves para proteção. Por outro lado, dona Virgínia e a mãe da autora costumavam freqüentar um centro espírita, “centro de mesa”, como diz. Lá, dona Virgínia tentava se comunicar com o marido falecido. A mistura de diferentes religiosidades tem, para Frazão, uma lógica, e a autora monta um raciocínio explicativo que junta o paganismo que pratica com as crenças da família materna. “O catolicismo do português é muito engraçado, e do brasileiro. Aliás, no mundo inteiro, você já se tocou de que todas as visões são de santas? Todas as visões são de mulheres. Na verdade, eu acho que existe o catolicismo, o cristianismo institucional, que é esse da Igreja, e tem o catolicismo, o cristianismo carnavalizado, pagão, que é o da esfera da Virgem.” Quando chegou a época de ser batizada, as correntes divergentes que dona Virgínia e dona Vitalina representavam entraram em choque. A mãe da autora, católica que era, fez questão de batizar a filha. Seu contato com a Igreja católica, contudo, se resumiu aos ritos do batismo e da comunhão. Após a comunhão, Frazão conta que jamais retornou a uma igreja. Se o batismo é um sacramento involuntátio, visto que é decidido pela família da criança, a comunhão nem sempre chega a sê-lo.

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Infância e juventude Em suas obras, Frazão se remete constantemente à infância, período no qual estava mais suscetível à influência da avó Vitalina. A narrativa ganha maior impulso pessoal a partir dos treze anos, quando Frazão está saindo da infância. Mas o que marca o percurso como bruxa, segundo entrevista da autora, é menos a influência da avó do que um fato específico em sua vida. A Primeira Comunhão aos dez anos de idade se torna um marca e constrói a certeza de um lugar no mundo. A sensação de não pertencer àquele grupo, a dificuldade em adequar-se ao ritual, a sucessão de acidentes, o constrangimento, as ameaças, a culpa e o erro se tornam tão marcantes que levam a autora a enxergar ali o seu momento de ingresso na bruxaria. “Aí fui estudar em colégio religioso, e tive que fazer Primeira Comunhão. Se alguém perguntar pra mim quando é que você se descobriu, resolveu assumir que era bruxa? Foi exatamente no dia da minha Primeira Comunhão. Antes de fazer a comunhão, um dia antes, tinha que confessar os seus pecados. Pelo que eu tinha aprendido na aula de catecismo, quando o padre chegou pra mim e falou ‘confesse seus pecados’, eu olhei pra ele e falei ‘eu não tenho pecados’, porque eu não tinha matado ninguém, não tinha cobiçado ninguém, não tinha feito nada daquilo. O padre me deu um esporro, disse que eu estava pecando pela vaidade, porque imagina se eu não tinha pecado e tal. Eu me senti com um torturador, sabe? Aí eu comecei a inventar pecado pra ele. Aí, claro, o cara me mandou rezar. Aí nós fomos ter uma reunião. A madre falou assim: eu queria que vocês pensassem muito bem, porque amanhã é o dia da comunhão e se alguém cometer um pecado e se comungar, vai cair em sacrilégio. Sacrilégio era entrada franca pro inferno. Aí eu falei: meu deus do céu, eu menti pra um homem da Igreja; isso é demais! Aí fui caçar o padre. Cadê o padre? Já tinha ido embora. Não dormi a noite inteira. No dia seguinte cacei o padre e nada. Entrei com as outras meninas como se estivesse indo pro cadafalso. Aí falei: não, na hora em que ele for se aproximando com a hóstia, eu vou dizer ‘não, eu não posso porque eu estou com um pecado e tal’. Eu tava quase no final da fila. Aí vinha ele: pá e pá com a hóstia. Quando chegou perto de mim, eu ia [falar] ‘ahh’, e ele enfiou a hóstia na minha boca. Eu saí da Primeira Comunhão pensando assim: agora é o inferno. Eu acho que foi

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exatamente ali que me deu a marca. Sabe, ali neguinho me marcou. Não há mais como ser igual, sabe?” A sensação, no entanto, era anterior ao episódio, que apenas deu um cunho institucional e social ao que a autora já sentia subjetivamente. O ritual dá a legitimação de uma realidade que era apenas interna ao sujeito. No ritual, ela se torna institucionalmente marcada, socialmente diferenciada. Interessante notar que a série de situações que desembocam na comunhão sob pecado é alheia à autora. Ela tenta de todas as formas intervir no processo, pará-lo, mas só consegue entrar mais fortemente, se envolvendo cada vez mais na trama. Ao fim, não há possibilidade de escolha nem saída. Ela se vê numa situação da qual é vítima. O padre é comparado a um torturador: ela confessa os crimes não cometidos depois de ser condenada de antemão pelo que não fizera. Cai então em um pecado real, quando antes não tinha nenhum. O padre desaparece antes que possa conversar com ele, e só reaparece quando é tarde demais. Ele coloca a hóstia em sua boca antes que ela possa se manifestar. É ele o agente ativo da estória, ocupando o papel de vilão. As situações se aglomeram sem que a autora possa agir. Seu papel é passivo. Toda vez que tenta remediar seu erro, ela apenas comete mais um, pois a trama na qual está inserida não lhe deixa possibilidades. Afinal, fora na própria Igreja, no curso de catecismo, que aprendera o que era pecado e realizara que não tinha nenhum. A igreja se tornou um local desagradável e a autora jamais retornou a uma. O sacrilégio traz a marca sobre Frazão. Ela não pertence mais àquele mundo onde via suas amigas se tornando anjos e indo para o céu. Ela estava condenada ao inferno. Diferente das outras, estava fadada a um caminho marginal, marcado desde a sua Primeira Comunhão. O lugar de “última na fila” é, neste sentido, simbólico. Ela está apartada das primeiras, está no fim, nas margens. A comunhão toma ares de excomunhão: o torturador medieval condena-a ao inferno por sacrilégio, e ela não pode retornar à igreja. Está marcada, uma marca indelével, que não sai, uma marca na alma. O sacrilégio empurra-a para o caminho da bruxaria: não pertencendo à Igreja, condenada ao inferno, pecadora sem perdão, ela volta seus olhos na direção da tradição familiar, e constrói um mundo seu, um universo apartado daquele das “outras”, as que vão para o céu com asas de anjos. Ela cai no inferno, ou sobre a Terra, e envereda pelo caminho oposto. Se alguma dúvida havia antes, o episódio esclarece seu lugar no mundo.

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Dos dez anos aos treze a autora foi criada paralelamente pelas tias, que levaram-na a freqüentar a vida artística da cidade ainda muito jovem. Com treze anos, a autora começa a formular suas próprias teorias sobre a realidade, e começa a perceber como o mundo funciona. Lia compulsivamente, praticava magia com a avó, tinha algumas amizades. O corpo começava a incomodá-la. Achava-se gorda, feia, sempre atrás de óculos e livros, CDF, “meio retardada”. O espelho era um inimigo que aprendeu a domar com o tempo. Viajava num mundo de fantasia criado a partir das experiências mágicas que vivia com a avó e dos romances que lia. As angústias eram tamanhas que criaram uma apendicite. Em outro momento, a autora narra um episódio no qual ficou “fora do ar”, como diz, por duas semanas. O psicólogo recomendava terapia, a avó insistia em problemas mágicos. Com paciência, diz, conseguiu voltar à realidade. Esta passagem é semelhante à história de suas ancestrais: a bisavó dada como louca, a avó com seus comportamentos questionados em família, a mãe e suas crises de depressão. Adolescente, ela começou a se relacionar com o mundo dos homens: descobriu as diferenças entre papéis masculinos e femininos e namorou rapazes. Desprezou muitos namorados por serem machistas e mandões, interferindo até nas roupas que usava. Sua liberdade de bruxa e de mulher, conforme a avó havia-lhe ensinado, não poderia ser afetada. Por este tipo de comportamento, passou a ser chamada de rebelde e estranha e diziam que “não batia bem”, o que nos leva de volta à categoria de loucura. É no comportamento de bruxa, no exercício da sua liberdade, que toma atitudes que aos outros parecem sem sentido, e torna-se alvo das acusações de loucura. Magoada com as acusações de ser gorda, feia e “quatro olhos”, pensou em desistir de seu sonho de liberdade, mas o apoio do espírito de uma falecida tia fez com que mudasse de idéia. Leu O Segundo Sexo, de S. Beauvoir, e compreendeu que o feminino causava terror. Quando reconciliou-se com o espelho e começou a achar-se bela, passou a seduzir por seduzir. Numa dessas aventuras, foi ao apartamento de um rapaz solteiro e quase foi violentada por ele. A intervenção mágica ajudou-a a se livrar da companhia indesejável, que passou por uma dolorosa crise renal. A partir daí, passa a assumir um comportamento menos arriscado. Os feitiços de amor ajudavam as amigas e faziam-na ser popular. Na verdade, realizava-a mais ser a confidente das amigas do que ser bruxa, diz. Os feitiços da avó eram um meio de integrar-se socialmente. Sem eles, achava-se desinteressante e sem atrativos para manter amizades. Sentia-se rejeitada.

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Anos mais tarde resolveu romper com a magia. Negou os ensinamentos das avós, questionou suas superstições e práticas. Ingressou na faculdade de Filosofia, no IFCS/UFRJ, mas não se formou. Faltando apenas dois meses para a conclusão do curso, ela se indispôs com um de seus professores e abandonou a faculdade. Não cursou nenhuma outra faculdade nem lecionou filosofia. A Academia e o trabalho acadêmico não eram o que queria. Resolveu dedicar-se aos estudos pelo resto da vida, mas por conta própria. A emergência como bruxa no universo da contracultura Quando o irmão resolveu viajar para Londres ela acabara de entrar na adolescência e sentiu-se desprotegida. Queria acompanhá-lo. Deu-se conta de que ele não retornaria. Era um de seus esteios de relação com o masculino. A morte do irmão, anos depois, foi um choque para Frazão. Em seus livros ela relata a sensação de vazio que vivenciou após o episódio. Foi somente aos poucos que superou o choque. A crença da bruxaria na transformação e renascimento parece ter se tornado peça chave nesse processo de cura emocional. Contudo, nessa época, ela ainda não havia descoberto os livros de wicca. Foi este irmão, de Londres, quem primeiro lhe descreveu o movimento hippie. Jovem, ela adentrou esse estilo de vida e foi de carona até os Estados Unidos, onde ficou morando algum tempo. Foi então que voltou a aprender magia, discutindo bruxaria com as amigas. Uma delas lhe emprestou o livro de Starhawk, The Spiral Dance, sobre wicca, que fez com que a autora se interessasse novamente pelo assunto. “(...) Pois é, Starhawk foi a primeira pessoa que li quando comecei a decifrar o quebra-cabeça mágico da minha tradição familiar. A li nos Estados Unidos, numa época em que o mundo acadêmico ainda pesava muito na minha vida.” Viu a prática mágica de seu universo familiar descrita como bruxaria. Foi então despertada por outro livro, Living with Magic, de David Farren. Retornou, enfim, às práticas ensinadas pelas avós. No ápice desse processo, se mudou do Rio para Friburgo, procurando um estilo de vida mais condizente com suas opções e comprometimentos. Continuou hippie, como gosta sempre de lembrar, embora isso lhe traga alguns inconvenientes. Quando criança, ela

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recorda, o filho deixou de ser convidado para a festa do amigo por que a mãe era hippie e considerada uma presença imprópria. Para a autora, foi o movimento hippie que possibilitou a volta à cena das antigas bruxas, escondidas em tradições familiares. Este movimento criou um estilo de vida que ela vê presente, atualmente, na Nova Era. Para ela, os hippies, em seu modo de vida, se aproximavam dos ideais da bruxaria: a não-violência, o pacifismo, o respeito pela natureza, a liberdade sexual, a igualdade de gêneros. A revolução sexual, diz, só foi possível através dos hippies e das bruxas, que lhe atribuem um caráter sagrado. Com os hippies compreendeu melhor o feminino e “seu papel transformador na sociedade”. Com suas antepassadas bruxas, já aprendera as “funções mágicas do feminino”, mas não conseguia vislumbrar o que faria no mundo com esse conhecimento. Foi no movimento hippie que encontrou outras bruxas hereditárias. Nenhuma delas, contudo, tinha idéia do que fazer com esta herança. Estavam divididas entre o conhecimento mágico e o nãomágico. O que fizeram, então, foi aliar a bruxaria às idéias da época. Vida adulta: trabalho e casamento Embora não tenha concluído a faculdade, a autora trabalhou em vários lugares diferentes. Deu aula de OSPB durante um ano para o ginásio, e desistiu de ser professora. O lado hippie falava mais forte. “Eu não gosto do esquema de como é o ensino, como passar o conhecimento. Eu não gosto de hierarquia. Quase fui solicitada a me retirar da escola.” Trabalhou em outros ramos também: foi jornalista, guardadora de carros, criou cachorros e hoje, além de escritora, traduz livros para três diferentes editoras. Casou-se em 1975. O “casamento” com Ronaldo Periassu não foi realizado nem em cartório civil nem em qualquer tipo de cerimônia religiosa, constituindo-se em coabitação. Periassu também é escritor, fez a mesma faculdade que Frazão, e foi professor e produtor cultural. Conheceram-se aos oito anos de idade. A irmã dele era amiga da autora. Quando foram morar juntos, a irmã dele teria lhe dito que Frazão havia feito macumba, mas ela garante que o companheiro sempre soube que era uma bruxa.

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Ronaldo nasceu em 1944. Fez faculdade de Filosofia e foi professor e produtor cultural. Hoje trabalha como escritor e tradutor. O filho do casal nasceu em 1978. Quando o menino estava com sete anos, em 1985, eles mudaram-se para o interior do estado do Rio. Hoje o rapaz estuda Direito e se interessa pela carreira diplomática. Ainda residindo em Nova Friburgo com o filho e Ronaldo, Frazão trabalha como tradutora e escreve seus livros. Os pais dela residem também em Friburgo, para onde se mudaram posteriomente. Dos dois irmãos que teve, um é falecido e o outro mora no Rio de Janeiro. Participante do movimento hippie, o pensamento de Frazão reflete, como veremos a seguir, o ideário da contracultura. A crítica do mundo moderno, do patriarcado, da relação que vivemos hoje com a natureza são uma constante. Oferecendo soluções para o que considera problemas da humanidade, a autora sugere ao leitor um caminho de auto-transformação. No perfil da autora, essa transformação é sentida tanto do ponto de vista da mudança do Rio para o interior, quanto da inserção na contracultura e na política de esquerda. Os partidos de esquerda no Brasil são aqueles que representam, de uma maneira geral, a crítica a um modelo atual de mundo e soluções para essa crítica que implicam em uma transformação. É neste contexto que está inserida a militância política da autora. Quando lhe perguntamos se participava de algum partido ou movimento social, respondeu que tinha orgulho de ser a inscrição número cento e vinte e nove no PT, embora estivesse prestes a abandonar o partido e filiar-se ao PSTU, com o qual tem se identificado mais. Não fez parte de outro movimento social. O lado hippie, diz ela, faz com que não goste de hierarquias. Por isto, explica, não se envolve diretamente em movimentos sociais, nem é uma militante política atuante. A expressão de sua militância ela deixa para suas obras, que considera feministas. A política tradicional, institucional, não a seduz. Diz que é “muito anarquista” para acompanhar a política institucional. A mudança para Friburgo A mudança para Friburgo ocorreu em 1985 e tem vários motivos que são alternadamente apresentados pela autora. Em seus livros, ela diz ter buscado um contato maior com a natureza e uma mudança na alimentação que lhe trariam maior equilíbrio. Em entrevista por nós realizada, ela dá outra explicação. A cidade interiorana foi escolhida ao acaso, porque era fria. O casal não

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conhecia nem a cidade nem a casa que estavam alugando quando da mudança. Conseguiram até mesmo perder-se no caminho até lá. “Na verdade, eu podia dizer que eu estava de saco cheio do Rio e aquela coisa toda. Não, não era isso. Era um negócio de... já tinha cumprido, sabe, já tinha cumprido aquele ciclo e eu queria dar pro meu filho uma coisa que eu já tinha tido quando criança, que era espaço, verde, uma vida mais mansa, mais doce.” A procura por Friburgo é uma procura pelo lugar ideal, que poderia estar naquela cidade ou em qualquer outra que tivesse “espaço, verde, uma vida mais mansa”. A busca nostálgica é por algo que não existia mais no Rio de Janeiro, algo perdido na infância da autora, que ela desejava oferecer ao filho. Essa mudança é quase um resgate da infância. Em mensagem enviada a uma lista de discussão, a autora retrata a mudança como o resgate das crenças ensinadas pela avó. Como a mensagem foi escrita em inglês, fizemos a tradução. “Quando eu tinha trinta e dois anos, minha avó (de cento e dois anos) foi assassinada por um neto. O ano era 1982. Aquele evento me fez pensar sobre todas as coisas que ela aprendeu (eu era sua única neta) sobre sua tradição familiar. Depois disso eu desisti de todas as teorias e entrei em seu universo. Um universo de velhas tradições relacionadas com a Terra.” A morte da avó, e as circunstâncias desta, fazem com que Frazão tente resgatar o universo da infância, no qual a avó era figura presente, sempre prestes a ensinar-lhe um novo feitiço ou mostrar-lhe uma erva mágica. De fato, esta explicação não se opõe, de forma alguma, às anteriores. A mudança é, ao mesmo tempo, o resgate da infância perdida, na forma da infância do filho, e o retorno às tradições da avó, ou seja, o contato com a natureza e o exercício da magia. A morte da avó faz com que sua única neta se disponha a ser a nova guardiã das tradições familiares. Sem este passo por parte da autora, provavelmente não haveria mais ninguém para tomar a posição de bruxa da família. Frazão toma, então, o lugar que era da avó. Ela rompe de

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vez com o mundo acadêmico, o mundo racional, o mundo das teorias, e embarca em um universo de crenças mágicas. A casa da bruxa A família cuida da casa sozinha, sem auxílio de nenhum tipo de empregado. Não possui máquina de lavar roupa ou louça nem microondas. Prefere não as ter. É ela quem faz a comida, lava a louça e a roupa na casa. A recusa por tecnologia é quase uma recusa ao mundo moderno, o mundo racional dos seres civilizados. É um posicionamento que se destaca no terreno ideológico, e não no prático. Ao recusar as tecnologias, ela procura integrar-se mais ao meio em que habita e à natureza à sua volta. A autora não possui nem celular nem secretária eletrônica, não lê jornal há três anos e nem revistas. Prefere ler sobre filosofia, psicologia e História. O computador, contudo, está conectado à internet, onde ela participa de várias listas de discussão. A casa da autora situa-se no bairro Cascatinha. A numeração da rua é irregular. Escondida atrás de arbustos e um portão para automóveis, está a casa de dois andares, pintada de branco, com o Fusca vinho guardado na garagem. Abaixo da casa, situada numa ladeira, podemos vislumbrar um pequeno jardim. As janelas da casa, que lembra um chalé dos Alpes, guardam pinheiros de Natal e estrelas recortados em papel prateado e colados no vidro. Recordamos então que para as bruxas do hemisfério sul, o Natal chama-se Yule, o sabá que comemora o equinócio de inverno. O pinheiro de Natal é um símbolo pagão relacionado a este sabá. Dentro da casa, vários molhos de ervas secas estendiam-se pendurados das paredes, especialmente na sala e na cozinha. Um adesivo do Museu das Bruxas de Salém, EUA, estava colado na porta da geladeira. Na subida da escada para o segundo andar da casa, havia uma pintura de bruxa. Na sala de jantar, uma mesa guardava inúmeros vidros antes usados para guardar maionese ou conservas. Num dos vidros, um perfume feito com uma pimenta vermelha gigante e paus de canela. Em outro vidro, com uma estrela na tampa, havia álcool de cereais conchas de praia, ervas, flores, uma lacraia e um sapo. Receita da avó, disse Frazão. Havia outros potes ainda, pequenos e grandes, com perfumes e poções. Três bonecas de pano se escondiam entre os vidros. Uma delas representava a sogra da autora, que havia lançado sobre ela um encantamento a partir da boneca. Sobre a mesa de jantar, o livro recém-lançado jazia

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dentro de uma guirlanda de ervas secas. Ao perguntarmos se aquele era um feitiço, Frazão limitou-se a sorrir. Na parede oposta aos perfumes, retratos em preto e branco das mulheres de sua família. Frazão me indicava quem eram suas tias, e como haviam morrido. Uma delas morrera assassinada em circunstâncias consideradas por ela suspeitas. O casal achava que o assassino era o namorado. De uma caixa grande de papel saíram outros retratos: Ronaldo, mais jovem, nos anos 1970; as tias de Frazão fantasiadas para o Carnaval, a barriga à mostra e o comentário da bruxa: ‘Olha essas mulheres; olha como eram livres...’; retratos da família reunida com a avó Vitalina ao centro, uma mulher baixa, cabelo preso num coque, a pele queimada de sol, o rosto coberto de rugas. Uma vassoura artesanal, de cabeça para baixo, fora colocada atrás da porta principal da casa. A vassoura era, na verdade, um instrumento de defesa, segundo ela explicou. Nas casas rurais, mulheres deixadas sozinhas por longo tempo durante o dia podiam fazer uso do cabo da vassoura como um instrumento de defesa, caso algum estranho aparecesse. Por isto era colocada tradicionalmente atrás da porta, onde estaria acessível. Na parte dos fundos da casa, havia uma horta. Lá a autora planta as ervas que usa em seus feitiços. Ela arrancava as ervas daninhas quando chegamos. Reclamava que quanto mais ervas arrancava, mais apareciam. No quintal estava enterrada sua cadela. Sobre o “túmulo”, o casal dispôs uma pedra igual à estatueta da Vênus de Willendorf, representação pré-histórica da Deusa Mãe. A pedra fora encontrada por Frazão na terra. O local de trabalho do casal é uma biblioteca onde estantes cobrem as quatro paredes, do teto ao chão, todas completamente tomadas por livros. Uma mesa grande e o computador preenchem o espaço restante do meio do cômodo. Dentre as obras visíveis estavam algumas sobre a história das mulheres celtas, mitologia dos Orixás e obras de Gerald Gardner, considerado o fundador da wicca. No segundo andar da casa ficam os quartos. Num deles, a bruxa faz seus feitiços. No outro, dorme Daniel, filho do casal. O quarto de Márcia e Ronaldo é simples. A cama é um colchão colocado diretamente no chão, pois a inclinação de uma das paredes não permite muitos móveis. Sobre ela, há um coletor de sonhos, instrumento indígena norte-americano que prende os pesadelos. Ganhou-o de uma índia, cuja tribo fabrica estes dispositivos. Não há armários no quarto. As roupas são guardadas em araras. Em uma das paredes, pode ser vista a coleção de

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chapéus de Frazão. E sobre a penteadeira, está guardada a coleção de bijuterias, algumas presenteadas por mulheres indígenas. Ancestralidade Criada com as estórias e a experiência dessas mulheres, o mundo vivenciado por Frazão está sempre voltado para dentro, para a família. As poucas amizades da menina são quase parte do mundo familiar. Os namorados são pouco citados. O atual marido raramente entra nas narrativas, os irmãos e o pai também. O filho de Frazão é um dos personagens masculinos mais presentes. Ainda assim, perde para a ala feminina da família. Alguns vizinhos já percorreram as páginas de seus livros, mas eles traçam a linha exata do “dentro” e “fora” da família na narrativa da autora. “Eu acho que eu já nasci [bruxa], porque eu já nasci no meio de mulheres loucas. E tem toda uma estória que antes de eu nascer, poucos anos antes, morreu minha tia Nadir, a amazona da família, linda. E no dia em que eu nasci, o melhor amigo dela [da tia Nadir] estava lá em casa. Então eu cresci ouvindo essas estórias. Tipo: ah, você sabe que quando você estava pra nascer acharam os patins da tia Nadir? Porque a tia Nadir morreu patinando. Então eu gostava disso.” Essa família que se mantém unida, perpetua sua história nas estórias que conta, nos valores que atribui a elas e aos objetos de seus membros, encontrando para cada um deles um papel a ser desempenhado. Antes mesmo de nascer, o novo membro já tem seu papel definido, exatamente como em sociedades hierárquicas (DUMONT, 1992). A família é um microcosmo onde a autora habita. As mulheres dessa família, como vimos, tomam preeminência sobre seus homens, pelo menos na narrativa da autora. São elas que movem dinamicamente essa pequena sociedade. É simbólica uma passagem de O Feitiço da Lua (1997), em que a autora afirma que as mulheres da família mantinham um pacto de silêncio sobre suas fraquezas e jamais mostravam sua fragilidade em público, mas apenas entre si. O comportamento delas é masculino, no sentido de que estão sempre em posições ocupadas por homens: como vimos, são mulheres que bebem, jogam, freqüentam a boêmia, empreendedoras, empresárias, pioneiras, mulheres de negócios, de feitiços,

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mais fortes do que os seus homens, que são sutilmente escondidos por trás de suas saias nas obras da autora. Como os homens, elas não choram, pelo menos não em público. A vivência desse universo é evocada por Frazão como determinante na produção de uma bruxa. A bruxa, apresentada por ela sempre como um ser marginal, é formada não através de livros, mas através da socialização em um universo de mulheres fortes e determinadas, sensíveis a ponto de se comunicarem com a natureza, e cientes de seu papel no mundo. Como as mulheres de sua família, a bruxa descrita por Frazão não segue a cartilha da esposa-mãe e rainha do lar. As mulheres que se tornam seu parâmetro de liberdade feminina e poder de decisão, são mulheres de comportamento masculino, fechadas em um universo familiar onde apenas outras mulheres podem ingressar. O aprendizado desse comportamento, o rompimento com os padrões dominantes anteriores à revolução feminista, são traços marcantes da bruxa. E, neste caso, ela é de fato um ser marginal, pois adota um comportamento não adequado a seu papel social e de gênero. “A primeira coisa que ela tem que fazer, uma mulher, para se tornar bruxa, é que ela vai ter que construir a sua história. Então, se não foi socializada, ela vai ter que fazer uma pesquisa dentro da própria família. Não é uma coisa de fora. É fundamental. Você não se torna bruxa lendo o livro de alguém.” A idéia da hereditariedade é forte nos relatos de Frazão. Não é a hereditariedade do sangue, como se a bruxaria fosse a famosa substância descrita por Evans-Pritchard, nem é um dom passado a cada geração. A bruxa, para a autora, nasce dentro de um contexto social. Ela é fruto de uma realidade matrifocal. Reconhecer a bruxa, então, se torna um exercício de observação: aquela que é “torta”, a que é marginal em algum sentido, será a bruxa. E como ser “torto”, ela apresentará suas marcas: não usará a roupa da moda, não terá um discurso afiado com o dominante, não estará inserida no sistema. Ela não será uma bruxa apenas para ser de vanguarda ou estar na moda. Ela não cobrará por seus serviços, pois a profissão de bruxa faz parte do sistema, e a bruxa legítima é alguém fora dele.

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“Ela não será igual ao rebanho, então esteticamente alguma coisa ela terá torto. Não estará com a roupa da moda, entendeu? E o discurso dela será torto. Se conhece uma bruxa pelo brilho no olhar. Porque alguém que tem tesão na vida, o olho brilha. É fácil, não é nenhum dom.” A referência ao “brilho no olhar” indica que a situação de marginalidade da bruxa não é um fardo, mas um comprometimento com a vida. O sistema se transforma em morte, e estar fora dele significa a procura pela vida. Ela está numa situação marginal por estar comprometida com valores que a sociedade atual abandonou. Essa sociedade é corrompida. A bruxa não, ela se mantém fiel a seus ideais. Ela vive um mundo que os outros desistiram de viver. Ela está em contato com a natureza, enquanto o homem civilizado se apartou desta. A natureza é vida. A civilização é morte e destruição. A bruxa segue a sua intuição, se comunica com a natureza, sonha, sua forma de estar no mundo é lúdica. Por todas essas qualidades, ela é um ser com “brilho no olhar”. Veremos a seguir a síntese da teoria da autora, como ela define a bruxa e alguns de seus diferentes interlocutores.

O PENSAMENTO DE MÁRCIA FRAZÃO: VISÕES SOBRE BRUXARIA E FEMININO

Márcia Frazão é a bruxa mais conhecida do país. É a única autora brasileira sobre bruxaria com mais de duas obras lançadas. Com sete livros publicados, seis deles sobre bruxaria e um sobre oráculos, no mercado interno desde 1991, afirma já ter vendido duzentos mil exemplares de toda a sua obra. Já consolidada no mercado literário “esotérico” e de auto-ajuda, não é difícil encontrar um de seus livros nas maiores redes de livrarias da cidade – ou do país – bem como nas pequenas lojas, exceção feita às lojas esotéricas propriamente ditas, que, segundo Frazão, se recusam a vender seus livros1. ____________________________________ 1 – Frazão afirma que as lojas esotéricas não vendem seus livros. O motivo apresentado seria uma briga da autora com a “comunidade” esotérica. Segundo ela, “eles [os esotéricos] me odeiam”. Em sua obra, Frazão abre guerra aberta contra os esotéricos, se colocando contra suas posturas, taxadas de busca pelo poder, hierárquicas, retilíneas. Veremos o teor dessa disputa mais adiante.

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Cada vez que lança uma nova obra no mercado, Frazão percorre uma maratona: viaja pelas principais capitais para lançamentos em livrarias, programas de rádio e de televisão, dá entrevistas para diversas revistas e participa de palestras e seminários acadêmicos2. Além dos livros, ela possui uma home page na internet, onde receitas, feitiços, bibliografia editada pela autora, fotos artísticas e poesia estão disponíveis em português e inglês. Há ainda links para outras home pages e uma lista de discussão, Lâmias, voltada apenas para mulheres. Apesar de tentarmos ingressar nesta lista por duas vezes, jamais obtivemos resposta. No gerenciador da lista, o E-groups, ela não apresenta movimento de envio de mensagens. Em todas as suas obras, Frazão apresenta um mesmo ponto de vista sobre a bruxaria, o feminino e a magia. São considerações próprias, em que a autora formula uma verdadeira teoria sobre modernidade, patriarcado e bruxaria, teoria essa que muitas vezes não difere das considerações encontradas no universo Nova Era. Veremos a seguir, de um modo sucinto, do que trata a sua obra, livro por livro, para, a seguir, fazermos uma análise mais profunda de seus pontos de vista e da mensagem que leva às suas leitoras e leitores. A discrepância quanto ao tamanho de cada descrição é devida ao própria discrepância no tamanho das obras e seus conteúdos. É necessário ressaltar que a autora mantém, em toda a obra, três interlocutores principais: as cartas de suas leitoras, a sua família extensa e ela mesma, num relato quase sempre autobiográfico. A personagem principal da jornada em busca da bruxaria e da magia, do reino do sonho e do amor, é sempre a própria Frazão, desde a infância até a maturidade. A única personagem capaz de ofuscar o brilho da autora-personagem é sua avó Vitalina - bruxa e rezadeira -, uma presença constante em seus relatos de vida.

_______________________________________ 2 – Em quatro de outubro de 2000, Frazão realizou a palestra de encerramento do seminário “Língua e Pensamento na Antiguidade”, na Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense, que teve duração de três dias. Ao longo dos dez anos em que é escritora, já pudemos assistir à autora em diversos programas de entrevistas como Programa Livre, do SBT, o Sem Censura, da TVE, Programa Sílvia Poppovic, da Bandeirantes, e em 2000 ela esteve no Mais Você, na Globo, por mais de uma vez. Revistas tão diferentes quanto Cláudia, voltada ao público feminino de 20 a 40 anos, e Destino, voltada ao público esotérico, já publicaram matérias com a participação da autora. Em 2000, realizou o lançamento do seu livro A Panela de Afrodite numa das lojas da cadeia de livrarias Siciliano, em um shopping da Zona Sul do Rio de Janeiro.

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Bruxaria gastronômica ou a Tradição da Tia Anastácia Dos seus sete livros publicados até hoje, um versa sobre oráculos, um sobre amor, outro sobre as divindades gregas Eros, Afrodite e Dioniso, um é auto-biográfico e dois deles contém receitas culinárias. O primeiro e o último lançamentos da autora são livros de uma bruxaria gastronômica que leva os feitiços ao fogão e à cozinha, e são capazes de atingir um público que vai além das bruxas e candidatas a bruxas. Mesmo em suas outras obras, a autora apresenta a idéia da bruxaria que passa pela cozinha, espaço de transformação do alimento e da própria cozinheira-bruxa, onde a natureza estaria presente em seus quatro elementos: água, fogo, terra e ar. A predileção pelo tema gastronômico, a intimidade com a cozinha e a originalidade da idéia3 renderam a Frazão a alcunha de fundadora de uma nova tradição da bruxaria, a Tradição da Tia Anastácia, numa alusão à personagem que habitava o Sítio do Pica-Pau Amarelo de Monteiro Lobato, e que passava a maior parte do tempo cozinhando. Foi no lançamento de A Panela de Afrodite que ouvimos os comentários de bruxas e bruxos a respeito da Tradição da Tia Anastácia. Na verdade, trata-se de um comentário ácido ao perfil da autora e de sua obra, e é sempre dito de maneira velada, entre cochichos, e nunca diretamente à própria. No lançamento de A Panela de Afrodite no Rio de Janeiro havia uma mesa de pães e pastas que se dizia terem sido feitas pela própria Frazão, a partir de receitas do livro em questão. Quando estivemos em sua casa, em Nova Friburgo, interior do estado do Rio de Janeiro, para realizar uma entrevista para o corrente trabalho, a autora e seu marido, gentilmente, nos levaram até a Rodoviária da cidade. Perguntamos, então, se não tinham vontade de abrir um restaurante. Ela respondeu que seu sonho era abrir uma espécie de padaria-café-bistrô, pois gosta de preparar pães, bolos, biscoitos e doces. O que as críticas à Tradição da Tia Anastácia escondem, é que há mais por trás dos livros de receita do que se pode supor. Aparentemente servindo a qualquer cozinheira, as receitas de _________________________________ 3 – Embora o candomblé faça uso da correlação entre comida e divindades, o mesmo não pode ser dito sobre o universo Nova Era. Se observarmos o costume das “comidas de santo”, a idéia de uma bruxaria gastronômica não se torna assim tão original. Contudo, entre os new agers a correlação não é tão explícita. Prova disto são as críticas que a autora recebe por sua predileção pela culinária.

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Frazão direcionam-se sempre a um objetivo determinado; necessitam de uma preparação prévia da cozinha, da cozinheira e da mesa onde a comida será servida; e se trata de feitiços para todas as finalidades. No ato de misturar farinha, ovos e leite, a cozinheira-bruxa mistura alimentos dedicados a divindades, e transforma suas presenças em um feitiço, enquanto transforma a si mesma. A auto-transformação é a chave de compreensão não só dos livros de receita da autora, mas de toda a sua obra. A cozinha é ainda um espaço feminino, por excelência, e Frazão é uma autora que escreve para o público feminino. O domínio da casa e da cozinha se mantém, na obra da autora, como um espaço feminino onde a mulher tem a liberdade de realizar encantamentos, mudar o curso do destino, transformar o seu próprio eu. O lar não é mais a prisão da mulher, o espaço contraposto à rua que serve para guarda-la do mundo externo. Ele se torna um microcosmo, simbolizando o próprio eu interno que espera por mudanças e transformações. Parte destas transformações se dá ao nível da sexualidade da mulher. A autora aponta freqüentemente para a mudança necessária neste âmbito para que a bruxa existente em cada mulher possa aflorar. Livre de restrições morais, de preconceitos, de vergonha, de culpa, e outros sentimentos correlatos, a bruxa é uma mulher que vive a sexualidade em sua plenitude. O sexo e a comida têm a mesma importância na obra da autora. O ponto comum entre ambas é a esfera do sentido, do corpo, da sensação. O paladar, o estômago saciado, o prazer do sexo são formas de entrar no mundo dos sentidos, onde a razão tem pouca influência. Veremos que o resgate desse universo sensorial é fundamental, para Frazão, para a formação de bruxa. O rompimento com a razão é necessário para que o sentido aflore, e essa ruptura se dá, entre outras formas, pela cozinha e pela cama. Além da comida, entra em cena também o vinho, a embriaguez. Dioniso é resgatado como o deus das bruxas, este deus grego do vinho e do sexo, em cujo cortejo seguiam as bacantes, mulheres que rompiam com a ordem patriarcal dilacerando os homens. O sexo, o vinho e a comida formam um triângulo de rompimento. Como vimos, o vinho é elemento essencial nas práticas da bruxaria wicca. Agente da embriaguez, o vinho se torna mais uma porta para o rompimento com a razão. Neste sentido, se torna um instrumento mágico, libertando a mente da razão e levando-a ao mundo dos sentidos. Através da dominância dos sentidos por esses três agentes, o sujeito é capaz de romper com as amarras sociais e abrir-se para o universo mágico. A magia, para Frazão, está em franca oposição à ordem civilizada. A autora

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formula uma série de pares de oposição e alinha a bruxaria em um dos lados, que é o mais valorizado por ela. Na sociedade brasileira, sexo e comida, cama e mesa, mulher e paladar, estão intrinsecamente ligados de diversas formas. É comum ouvir-se de um homem que ele deseja mulher de cama e mesa, ou seja, boa cozinheira e boa amante, traçando uma correlação entre sexo e comida que Affonso Romano de Sant’Anna já havia detectado na prosa e na poesia brasileira, em seu livro O Canibalismo Amoroso (1985), onde as mulheres mais voluptuosas e faceiras são sempre comparadas a frutas e pratos a serem degustados. DaMatta foi outro autor que observou esta equação na sociedade brasileira. Segundo ele, “equacionamos simbolicamente a mulher com a comida e o doce com o feminino, deixando o salgado e o indigesto para estarem associados a tudo o que nos ‘cheira’ a coisas duras e cruéis” (1994: 52). O autor refaz, nesta passagem, a mesma lógica que apresentamos para o feminino e o masculino na bruxaria wicca. O masculino é dotado de adjetivações menos valorizadas e até socialmente repreendidas, como o ser cruel. O feminino, por outro lado, é doce, é compreensivo, amável. Este é o tipo de pensamento que levou uma das bruxas que entrevistamos a afirmar que o feminino civiliza, que o requinte e a sofisticação são produto das mulheres. De fato, o duro e o cruel se alinham mais fortemente a um pólo de rudeza e barbárie. Notamos, a partir de DaMatta, que as concepções de gênero apresentadas na wicca, tanto no discurso das bruxas brasileiras quanto nos livros e manuais de bruxas estrangeiras, não estão longe das próprias concepções da sociedade brasileira. Indo mais além, DaMatta (1994) ainda relaciona o cru com o estado selvagem e o cozido com o universo social da cultura e da ideologia. Não é mero acaso, portanto, que o mundo da mulher se torne o pólo mais valorizado na bruxaria como apresentada por Frazão e pela wicca. O feminino é, neste pensamento, a origem daquilo que civiliza. Não é mero acaso que a bruxa de Frazão tenha se tornado uma quituteira. Cozinhando, ela modifica o mundo no sentido de melhora-lo, pois simbolicamente o cozido é o civilizado, e quem cozinha são as mulheres. Poderíamos nos remeter, ainda, ao pensamento que vê nas mulheres a origem da cultura popular, passada oralmente de mãe a filha, uma verdadeira cultura feminina (MUCHEMBLED, 1989), exatamente como a bruxaria que Frazão aprendeu em família e que divide com suas leitoras. No ato de cozinhar, as mulheres sensuais da literatura brasileira se tornaram ainda mais atraentes, invertendo a lógica da dominação masculina e subjugando o homem através de seu

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desejo (DAMATTA, 1994). Exatamente como Frazão aponta, o sentido rompe com a razão, o homem dominador é dominado por quem ele subjuga, a mulher. A arma dessa inversão é o desejo, o sentimento que rompe com a ordem instituída. Queremos dizer com isto que o pensamento de Frazão, embora traga uma ótica feminista de libertação da mulher, se alinha de certa forma com a tradição cultural brasileira. Para DaMatta, “nós, brasileiros, concebemos a sexualidade e a vemos não como um encontro de opostos e iguais (o homem e a mulher que seriam indivíduos donos de si mesmos), mas como um modo de resolver essa igualdade pela absorção, simbolicamente consentida em termos sociais, de um pelo outro” (1994: 60). Formulase, deste modo, uma sociedade hierarquizada em termos de gênero, onde um come e o outro é comido, há um englobador e um englobado. No caso de Frazão, há um esforço para que a mulher deixe de constituir o sujeito comido e englobado para constituir o sujeito comedor e englobante. Pensamos que é disso que a questão de gênero, na obra da autora, trata. Pensamos que é disso que a bruxaria fala, em todo o seu discurso, quando a mulher toma o pólo mais valorizado de uma relação hierarquizada. Pois esta hierarquia não está sendo posta em cheque, mesmo que a igualdade seja almejada. E por enquanto, esta estrutura hierárquica reflete a estrutura da sociedade brasileira.

Algumas reflexões sobre a obra de Márcia Frazão A autora, ao longo de sua obra4, formula uma teoria própria sobre a bruxaria e seus adeptos. Nesta teoria, o mundo se divide em dois pólos em constante conflito, e a solução para tal é a reformulação da sociedade e do indivíduo, numa busca por um mundo melhor. Transformação é palavra-chave tanto na resolução dos conflitos quanto no próprio exercício da bruxaria. Há uma necessidade de mudar a realidade e de não estar alijada do mundo. Por isso afirma que a bruxa é um ser no mundo, e não fora dele. A mulher, ao se reconhecer bruxa, deve buscar a transformação no seu interior, enquanto pessoa. A bruxa, ao executar um feitiço, tenta transformar uma situação. Ao cozinhar, ela transforma os ingredientes. É nesta analogia que a cozinha torna-se o altar da bruxa. Nela encontramos os quatro elementos necessários à bruxa: ar, terra, fogo e água. Nela, os __________________________________ 4 – Para que o leitor entenda melhor a análise feita sobre a obra de Márcia Frazão, em anexo encontram-se as resenhas de todos os seus livros.

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instrumentos da bruxa estão disponíveis: a faca, a colher de pau, o caldeirão, a taça, a vassoura. Na cozinha, os feitiços têm aromas e sabores e se transformam em pratos de festa. Como vimos, a cozinha é um espaço predileto de Frazão. Dona-de-casa, cozinheira, ela se sente à vontade neste que ainda é um espaço essencialmente feminino. Mas para ela, a mulher na cozinha deve se despir das “humilhações”, ou seja, deve-se construir uma nova identidade feminina em que a mulher possa entrar na cozinha e cuidar da casa sem que se transforme em escrava do lar e da família. A bruxa de Frazão é uma mulher que possui da liberdade de escolha à liberdade do prazer sexual. Sua bruxaria traz ainda uma outra marca: é uma bruxaria cabocla, forjada nos ensinamentos de rezadeira da avó Vitalina e na procura pelo herbolário e folclore nacional. Frazão é das poucas autoras que traz listas completas de ervas, com seus usos mágicos e terapêuticos, em cada livro que lança. E na preocupação com as raízes brasileiras, a mandrágora européia – que não nasce em solo brasileiro - é substituída pelo melão-de-são-caetano, o hemisfério norte é substituído pelo sul, e uma Yemanjá entra em ação a cada Ano Novo na praia. A avó, diz ela, teria lhe ensinado uma tradição brasileira, não estrangeira. Não obstante, a bibliografia que consta nas obras da autora é toda composta por livros estrangeiros, traduzidos ou não. A busca pelas raízes brasileira de uma tradição européia é o cerne das críticas que ela direciona a determinados grupos que praticam a wicca e aos esotéricos. A teoria da autora expressa em suas obras é composta de uma visão de mundo próxima àquela da Nova Era. Nela, pares de oposições se encadeiam de forma a construir uma cisão no mundo vigente: duas colunas, representadas no quadro abaixo, guardam os atributos de cada diferente mundo. De um lado está o mundo da bruxa, de outro a sociedade dominante. Como veremos, o ponto de vista da bruxa é radicalmente diferente daquele dominante na sociedade. Por isso a bruxa é vista como um ser marginal. Veremos também o quanto o ponto de vista da autora se aproxima daquele expresso na Nova Era. Algumas categorias são usadas pela autora, num conjunto de pares de oposição, em que o mundo da bruxaria é apartado do mundo racional. Para entendermos o seu pensamento acerca da bruxaria, iremos dispor as categorias em questão em um quadro de oposições.

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Quadro de Oposições --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------magia

ciência

bruxa

esotérico

sonho

razão

loucura

doença mental

amor

interesse

prazer

dor / culpa

natureza

civilização

primitivo

moderno

culto

religião

feminino

masculino

matriarcal / matrifocal

patriarcal

curvilíneo

retilíneo

Quadro n. 1: Oposições entre magia e razão.

A categoria de magia está diametralmente oposta à de ciência5. Esta é a forma de pensamento da modernidade, do mundo racional, representado muitas vezes pelo meio acadêmico, a faculdade de Filosofia que a autora iniciou mas não concluiu. O pensamento racional da academia é repressor, afasta-a da magia, leva-a a pensar com as categorias do mundo racional. Para aquele mundo acadêmico, diz, a magia é o irracional, o ilógico, a desordem. Liberta desse estrangulamento, a autora imerge cada vez mais no mundo lúdico da bruxaria. Essa ludicidade aparece, de forma incontestável, da própria narrativa da autora, sempre buscando nos fragmentos de sua infância e adolescência as experiências que teriam feito dela uma bruxa. É neste período da vida que o contato com a família está mais próximo, família esta que é ________________________________________ 5 - Douglas (op. cit.), como Frazão, afirma que é um erro pensar em idéias como destino, feitiçaria e magia como fazendo parte de filosofias ou como sistematicamente pensadas. O universo da magia é o da ação simbólica. O mago não está empenhado na coerência intelectual. Observamos, portanto, a partir de Douglas, que magia e razão constituem pólos opostos. Isto quer dizer que a lógica da magia está baseada em correspondências simbólicas que não necessariamente fazem sentido para a mente racional. Elas fazem sentido no contexto mágico. Douglas trabalha com dois planos de representação na passagem acima: o simbólico e o racional. No racional, a magia não faz sentido. No mágico, o racional é inoperante. É este tipo de diferenciação que encontramos no pensamento de Frazão.

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fundamental para a autora, formada quase exclusivamente por mulheres, todas elas bruxas. Poderíamos, portanto, incluir no quadro mais dois pares de oposição que ajudam a reforçar o mundo no qual é possível acessar a magia: de um lado, a infância e o comportamento lúdico, de outro a racionalidade dos adultos; de um lado, a família e suas bruxas – e aqui podemos inserir as empregadas da casa e as amigas de Frazão e sua avó -, de outro o mundo exterior que não compreende aquelas mulheres. A infância é também o período de descobertas e sonhos. É neste período que ela desvenda os segredos que a avó guarda, a leitura da sorte em oráculos, a essência do feminino que enxerga nas mulheres de sua família, o encanto das bruxas. A cada experiência, a autora vai formando sua identidade de bruxa, em oposição à do mundo externo àquela realidade vivida em família. Os sonhos de infância, deve-se guardá-los, como a todas as lembranças. Os sonhos também revelam o futuro, revelam mensagens do inconsciente, dão conselhos, são iniciatórios. Eles rasgam o reino do pensamento racional do ser desperto, levando-o a outras dimensões. É uma das chaves para se fugir da razão, e uma porta de entrada para a magia. A razão também é categoria oposta à loucura. A conversa com as plantas, com as águas, as visões que os sonhos trazem, o comportamento em tudo atípico da bruxa combinam-se para dar a impressão de que é louca. No já cientifizado e psicologizado século XX, a loucura passa a ser doença mental, psicopatologia. Há várias acusações de loucura na família da autora. Ela mesma fora taxada de “estranha” pelo comportamento inadequado. Mas para uma bruxa, a loucura é apenas o sintoma de que se está diante de outra bruxa. A loucura não existe, é uma invenção da razão para aqueles que conseguem romper com ela. É uma acusação para aqueles que são livres de amarras sociais e racionais. A bruxa apresenta-se, portanto, como esse ser livre. Uma última contraposição à razão se apresenta: a emoção. Na obra de Frazão, a emoção mais descrita e louvada é, sem dúvida, o amor. Ele é visto como capaz de libertar, de transformar, de curar, de salvar. Ele é feitiço perfeito, o mais poderoso de todos. É outra chave da bruxaria, de uma bruxa que prepara poções de amor e é cúmplice do Cupido, procurada pelos enamorados. No reino dos sentimentos, a razão não governa. Àqueles que se deixam levar pela razão quando deveriam se entregar às paixões sofrem a acusação de serem interesseiros. Quando o interesse se acumula acima do amor, é necessário uma reestruturação pessoal. É necessária uma transformação interior. Na esperança de que essa transformação traga um mundo melhor, dominado pelo sonho e pelo amor, a autora dedica longas páginas ao sentimento. Mas suas

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tentativas parecem vãs: recebe cartas de amores interesseiros, e não verdadeiros; recebe pedidos para feitiços de amor sem o compromisso da auto-transformação. Na categoria amor poderíamos inserir uma subcategoria: prazer sexual. A autora se reporta, muitas vezes, às bruxas como mulheres livres, no sentido também da liberdade sexual, liberdade do prazer. O ato sexual passa a ser representativo das bruxas e, seguindo a lógica de oposições formulada por ela, passa também a tipificar a bruxa. Enquanto fonte de percepção sensorial, o prazer sexual pode perfeitamente ser colocado na primeira coluna do quadro, aquela que se opõe à razão e seus instrumentos. O sexo, sem dúvida, está longe de ser racional. E o sexo livre que a autora evoca é o rompimento das últimas amarras de coerção racional e social. A intenção de Frazão, no entanto, é exortar a mulher à liberdade de sua condição feminina, à quebra aos padrões de submissão à dominação masculina. E o sexo figura, para ela, como uma das portas de rompimento com essa submissão. Podemos estabelecer que o sexo é o símbolo do corpo na teoria da autora, que se oporia à mente racional da segunda coluna do quadro. É nesse sentido que a autora se dedica a escrever sobre Dioniso e as Bacantes. Estas são mulheres livres, devoradoras de homens, uma metáfora para as bruxas que estariam devorando o sistema masculino, científico, patriarcal e moderno dominante hoje em nossa sociedade. Deus da vegetação, ligado aos ciclos da natureza, “deus dos fracos e oprimidos”, celebrado essencialmente por mulheres, Dioniso encarna toda a transgressão que a bruxaria de Frazão se propõe. O medo que as Bacantes suscitavam em seus conterrâneos masculinos, diz, é o mesmo medo que a liberdade feminina suscita nos homens, o medo que se tem de bruxas e que leva a serem classificadas, como as Bacantes o foram, de mulheres histéricas e más. O sexo é uma chave de libertação da sociedade retilínea, onde o prazer não é livre pois é visto com culpa. A sociedade patriarcal, como ela a descreve, seria guiada pela dor, enquanto as bruxas dirigiriam seu comportamento a partir do prazer. Podemos estabelecer aí mais um par de oposições: para a autora, em seu dia-a-dia, conforme nos disse, não há diferença entre trabalho e lazer. Todo o tempo gasto é tempo lúdico. Todo o trabalho, da tradução de livros ao cuidado doméstico é um prazer. Na sociedade dominante não é assim. O trabalho é cansativo e exaure. Ele é um sacrifício, por isso as pessoas têm hobbies, passatempos prediletos para seus tempos de lazer. A autora afirma que não tem hobbys pois todo o seu tempo é de lazer.

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A categoria de natureza é também central ao pensamento da autora, e formula os pares de oposição subseqüentes no quadro acima. A natureza é, em primeira instância, a própria divindade feminina, a Deusa ou Grande Mãe. Como vimos anteriormente, é a divindade nutriz, a divindade adorada pelas bruxas, essência do feminino. A natureza, portanto, é sagrada e deve ser preservada a qualquer custo, o que dá ensejo a pontos de vista ecologistas. A natureza sacralizada da bruxaria torna tudo que está nela mágico. A natureza, ligada à divindade feminina da terra e da lua, representa também, em um nível simbólico, tudo o que é não domesticado, o que é selvagem, em última instância, o que é livre. Temos, deste modo, uma das pontas do raciocínio da autora fechadas: natureza, feminino e liberdade se tornam aspectos correlatos e necessários à bruxa. Esta deve manter contato com a natureza, plantar uma horta, um jardim, cuidar de suas ervas mágicas, colhê-las com suas próprias mãos. Representando a divindade e a liberdade, essa correlação coloca as bruxas como mulheres cuja essência feminina prima pela liberdade de espírito e de ação. Daí a categoria de loucura se tornar na verdade, conforme a autora, um epíteto de liberdade. A louca é livre pois rompe com as amarras da racionalidade. A bruxa é livre porque se mistura à natureza, que é livre por definição. A bruxa que não observa a natureza e não mantém estreito contato com esta na verdade não é bruxa, como a mulher que não é livre não pode se tornar bruxa. O contraponto racional da natureza é a civilização. A civilização é o constrangimento social, é a perda da liberdade, é o local de domínio masculino e preponderância da razão, que se torna, deste modo, um atributo masculino também. Afinal, nenhum homem é acusado de louco em toda a obra da autora, apenas mulheres. É a civilização que perverte o ser humano, afastandoo da natureza e tornando-o um ser incompleto, dominado pela razão, afeito à violência contra a natureza e contra outros seres humanos. A civilização é caótica enquanto a natureza é harmoniosa. Notemos que a categoria civilização se refere mais ao modo de vida ocidental do que ao oriental. Em última instância, a autora se refere a um estilo de vida que está apartado da natureza, como civilizados estão apartados de indígenas. Os povos em contato com a natureza são vistos pela autora como mais equilibrados mais harmoniosos. Há uma romantização das sociedades primitivas, vistas como fora do escopo de influência da civilização devastadora. Os “primitivos” – com aspas, como escreve a autora – são o bom selvagem, seres humanos em perfeita harmonia com a natureza, retirando desse convívio a sabedoria que os civilizados perderam. Eles nos dão o exemplo a ser seguido. Todas as virtudes

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residem no “primitivo”: ele é honesto, sábio, equilibrado, harmonioso, virtuoso, pacífico, natural. Ele não sofreu as restrições racionais da civilização e ainda trabalha a magia e a natureza de forma sagrada. A magia é a sua forma de explicar o mundo enquanto a ciência é a nossa. Nós, civilizados, ao contrário, somos seres caóticos, violentos, beligerantes, dominadores, corrompidos, perversos. Nós destruímos a natureza e a nós mesmos. Nós esquecemos as divindades. Não acreditamos mais em magia, não ouvimos nossos sonhos, não acreditamos nos sentimentos. Nossa maneira de pensar faz com que observemos a natureza, ao invés de nos integrarmos a ela. Somos consumistas e dirigidos pelo interesse econômico. A sociedade desequilibrada na qual vivemos seria responsável também pelas nossas doenças. Esse desequilíbrio teria gerado, nas mulheres, doenças como a depressão pós-parto e a tensão prémenstrual. Essa sociedade moderna é vista como um mal que deve ser extinto. Outra sociedade deve ser erguida em seu lugar, na qual homens e mulheres serão iguais, na qual a magia terá lugar, a natureza voltará a ser sagrada e a divindade louvada. Mais um par se dispõe: masculino e feminino. O feminino é a mulher, a sensibilidade, a intuição, a emoção, o sonho, a sutileza, a harmonia, a magia, a lua, a terra, a natureza, a liberdade. O masculino é a violência, a dominação, a coerção, a força bruta, o caos, a razão. É neste par de opostos que a autora formula claramente a essência da bruxaria como feminina. É a mulher, e especialmente ela, o sujeito que pratica a bruxaria e a magia. O homem precisa sofrer uma transformação maior do que a mulher para conseguir ingressar neste mundo, afinal, ele vai contra o que a autora apresenta como sendo sua própria natureza. Se a mulher moderna desaprendeu a magia, a intuição, a sensibilidade, é mais fácil para ela operar esse resgate. O homem, ao contrário, não tem o que resgatar. Ele deve mudar, transformar-se para acessar um mundo que é feminino, um mundo de magia e sonhos, acessando uma nova forma de masculinidade, que não esteja ligada aos velhos padrões. Essa nova masculinidade será um dos instrumentos de queda da ordem vigente, e abrirá as portas para a nova ordem que deve se estabelecer. No entanto, o homem está mais preso à razão do que a mulher, e para ele é mais difícil libertar-se dessa prisão. Fatalmente, nem todos conseguem essa proeza. Observando estas oposições mais de perto, poderíamos imaginar que há uma contradição. O feminino ora é cultura, ora natureza. A mulher ora é independente, ora é doce. O masculino ora é natureza, ora civilização. De fato, percebemos que existem duas lógicas superpostas, estabelecidas como dois eixos centrais para efeito de análise, tanto no que tange à obra da autora

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quanto no discurso da wicca e das bruxas de um modo geral. Em ambos os eixos, aquilo que é associado ao feminino é sempre positivamente valorizado. O que é associado ao masculino é sempre desvalorizado. Num primeiro eixo, o feminino está vinculado à natureza, enquanto o masculino está vinculado à civilização. A natureza, neste caso, é sagrada, representa a Grande Mãe, divindade nutriz. É uma natureza boa, que serve a acolhe o homem. A civilização é a sua inimiga, pois se baseia num movimento contínuo de destruição da natureza, seja do meioambiente, seja dos povos “primitivos” e sua formas de vida mais ligadas a ela. Num segundo eixo, o feminino é civilização, é o conhecimento das ervas e artes de cura, é a agricultura, enquanto o masculino é a barbárie, a força física, o selvagem. Neste eixo, há uma concepção de ordem e desordem que são inversas àquelas do primeiro eixo. A civilização não é mais destruidora da natureza, ela atua em conjunto com esta, respeitando-a e seguindo os ciclos naturais (agricultura). A natureza retratada pelo masculino, por outro lado, é a desordem do selvagem, o caos da barbárie, a falta de regras, a destruição, a força física que não é capaz de dialogar. Toma, assim, uma conotação negativa. Observamos, a partir destes dois eixos, que essa lógica dupla que opera no pensamento das bruxas é, na verdade, única. O civilizado do primeiro eixo efetuou o rompimento entre natureza e cultura, fazendo com que se tornassem pólos opostos. Este é o pensamento da modernidade, da racionalidade moderna. O “primitivo”, por outro lado, não efetuou esse rompimento. A sua cultura está, ainda, estritamente vinculada – na ótica das bruxas – à natureza. Ele é um sujeito em comunhão com ela. Desta forma, quando o conceito de civilização remete a este tipo de interação, ela é positiva, e é delegada ao escopo feminino. Quando ela retrata a noção que a modernidade tem de civilização, ela é vista negativamente. São duas óticas em jogo, em dois eixos complementares: em uma, estão em jogo os valores da modernidade; em outro, os valores das bruxas. Como seres de um momento histórico determinado, elas atuam nestas diferentes frentes, tentando fazer delas um pensamento único. O importante é percebermos que a lógica aponta que aquilo que é valorizado está sempre no pólo feminino, delegado a funções prioritariamente de nutrição, enquanto o masculino é associado à destruição. Um é vida, o outro é morte. Estas concepções de feminino e masculino se alinham com as concepções correntes na sociedade brasileira. Goldenberg (1992) aponta estas mesmas características de destruição e morte: o homem seria visto como um guerreiro, um caçador, provedor e ser carnal. Seria ainda

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competitivo, agressivo e conquistador (GOLDENBERG, 1991). O feminino, por outro lado, é definido em termos de sua relação com o homem, num processo complementar que envolve diretamente a idéia de família: mãe, esposa ou filha, a mulher seria maternal, acolhedora e romântica. Não é difícil ver em Frazão estes tipos de atributo para cada gênero. Todavia, o valor atribuído a estas características é invertido. Se na sociedade brasileira um homem deve ser agressivo, sob a ótica da bruxaria isto é negativamente valorizado, embora as concepções de Frazão indiquem a idéia de que os homens são agressivos e devem deixar de sê-lo. Do mesmo modo, se para a sociedade brasileira uma mulher deve ser romântica, em Frazão percebemos que a bruxa é romântica (o amor rompe com a razão), e isto é positivamente valorizado não apenas como um padrão para as mulheres, mas para homens também. Há uma tendência a fazer com que as diferenças se atenuem e se afinem em um padrão único ideal que é, em última instância, um padrão de rompimento com o esquema valorativo da ordem atual. Com isso queremos dizer que as atribuições não mudam drasticamente para cada gênero, mas há uma valorização dos atributos femininos. A ordem vigente na modernidade é o patriarcado, a dominação masculina. A ela se contrapõe tanto matriarcado quanto sociedade matrifocal. Em sua obra, a autora reveza o uso das duas últimas categorias como se tivessem o mesmo significado, embora ela faça, a princípio, uma diferenciação. O matriarcado, segundo ela, é a dominação feminina, a dominação da sociedade pelas mulheres onde o feminino era o centro da organização social, a divindade era feminina, a natureza era vista com olhos ecológicos e se vivia em comunidade, na mais perfeita harmonia. A sociedade matrifocal é aquela na qual homens e mulheres são idênticos em direitos, sem a predominância de um sobre o outro. O matriarcado é tão rechaçado pela autora quanto o patriarcado, mas ela acredita que a humanidade um dia esteve organizada em termos matriarcais, movendo-se posteriormente para o patriarcado. A sociedade matrifocal teria sido um continuum entre uma ordem e outra. Esta organização é a ideal e deve ser aquela adotada para a construção de uma nova ordem, após a queda do patriarcado. Nesse sentido, as mulheres estariam já resgatando seu papel de matriarcas enquanto os homens devem resgatar o papel que exerciam na sociedade matrifocal – sem dominarem nem serem dominados. O papel da mulher teria sido de suma importância nessa sociedade matrifocal. Para ela, esse papel central foi perdido na introdução do patriarcado, quando então as mulheres deixaram o “pensamento masculino destacar-se”, adquirindo um “comportamento fálico”, perdendo os laços

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com a Grande Mãe, sua divindade, e gerando dor e sofrimento tanto para homens quanto para mulheres, visto que, no patriarcado, o homem também é escravo de um modelo de masculinidade e de uma modelo de racionalização que não abre espaço para o feminino. Para ela, o papel da bruxaria é o de retomar a mulher como centro do sistema humano, fazendo com que volte ao seu “papel ancestral”. “Descobrimo-nos bruxas quando nos percebemos enquanto mulher”, diz. As mulheres têm o papel central nessa mudança pois são “fonte de vida para si próprias e para os outros”. Essa capacidade de gerar vida parece ser o trunfo primordial da mulher. A composição da mulher que a autora faz aponta sempre para um papel maternal. A mulher parece ser definida na sua capacidade de gerar filhos - gerar vida. Como vimos, a divindade na bruxaria é classificada segundo essa capacidade: Virgem, Mãe e Anciã. Os conceitos de culto e religião têm sido também postos em pólos opostos pela autora. Ela tem sido reticente em chamar a bruxaria de religião, embora em seus livros ela faça tal tipo de afirmação. Hoje, diz, vê a bruxaria como culto. Religião é um conceito que associou àqueles que não mantiveram sua ligação com a natureza. “Eu acho loucura você colocar o conceito de religião em cima de atividades pagãs. Porque religião é um conceito para o homem que vive essa ruptura de natureza/cultura. O primitivo não vive isso, então ele não precisa de religião. Ele não precisa porra nenhuma para religar ele.” Não só religião denota um rompimento com a natureza, mas também um rompimento com o feminino: é um conceito patriarcal, visto que o mundo patriarcal foi aquele, na visão da autora, que dominou a natureza como dominou a mulher. Esse mundo é o mundo da ordem, da razão. Em dois diferentes e-mails, ela diz: “A utilização da palavra ‘religião’ não é adequada para nenhum sistema de crença pagão. A concepção de religião vem do sistema patriarcal, que procurou enquadrar o ‘culto’ em um sistema ordenado de regras, visando a ‘ordem’ social. No paganismo, a palavra religião não tem sentido e sim ‘culto’.”

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“Se o homem civilizado precisa se religar e o ‘primitivo’ não, o primeiro passo é ver como o civilizado ‘está no mundo’ e como o primitivo está. A questão fundamental do religare é o laço com a terra. Nós, que nascemos num mundo em que se precisa primeiro pensar para depois sentir, precisamos desse tal religare, mas os verdadeiros povos pagão não.” Na tentativa de formular categorias que abraçassem todos esses pares de oposição, dando um sentido único a eles, a autora forjou as categorias de curvilíneo e retilíneo. O curvilíneo é o mundo das curvas sensuais do corpo da mulher, mundo feminino, vinculado à natureza, onde o tempo é cíclico, como nas sociedades primitivas, como os ciclos naturais com sua idéia de repetição. O curvilíneo é o ideal a ser alcançado. É neste mundo que a bruxaria opera. A categoria de retilíneo engloba as ramificações da razão, o tempo reto que tenta alcançar o futuro que nunca chega, a racionalidade que opera no mundo moderno, o governo do falo, da dominação masculina, a inflexibilidade de posições, a rigidez de pensamento, a ausência de transgressão. À distância, tem-se a impressão de que o retilíneo é estagnado, tentando em vão alcançar algo que reside num futuro metafísico, habitado por elocubrações da racionalidade, enquanto o curvilíneo é o eterno movimento de ir e vir sobre si mesmo, amparado na natureza e na materialidade da vida, sempre o mesmo e sempre renovado, exatamente como uma mulher: virgem ou grávida, ela guarda em si o mesmo poder de criação a ser acessado. Após dar à luz, ela volta a ser o que era antes. O corpo do homem não sofre esse processo: é o mesmo, do começo ao fim, sem mudança. O corpo é uma das oposições à mente, ao pensamento racional. As emoções, o corpo, as sensações, tudo isso faz parte do processo de rompimento com a razão. Não é por acaso que Frazão escreve tanto sobre culinária. A comida faz parte dessa ordem de sensações capaz de romper com as amarras racionais. O sexo, o vinho e a comida formam um triângulo de rompimento. Como vimos, o vinho é elemento essencial nas práticas wiccanas. Agente da embriaguez, o vinho se torna mais uma porta para o rompimento com a razão. Neste sentido, se torna um instrumento mágico, libertando a mente da razão e levando-a ao mundo dos sentidos. Dioniso se faz presente novamente, pois era deus do vinho. O vinho, o sexo e a comida formam os pés de uma estrutura que se dirige à quebra com a razão dominante, a racionalidade de nossos tempos. Através da dominância dos sentidos, por esses três agentes, o sujeito é capaz de romper com as amarras sociais e abrir-se para o universo

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mágico. Em nossa sociedade, especialmente, sexo e comida, cama e mesa, mulher e paladar, estão intrinsecamente ligados de diversas formas. É comum ouvir-se de um homem que ele deseja mulher de cama e mesa, ou seja, boa cozinheira e boa amante, traçando uma correlação entre sexo e comida que Affonso Romano de Sant’Anna já havia detectado na prosa e na poesia brasileira, em seu livro O Canibalismo Amoroso, onde as mulheres mais voluptuosas e faceiras são sempre comparadas a frutas e pratos a serem degustados. A bruxa para Márcia Frazão A bruxa é, para Frazão, mais do que a praticante de magia e feitiços, mais do que a vidente ou taróloga. Ela transforma o mundo à sua volta, transforma a energia negativa em positiva, sempre imbuída de “profundo amor ao próximo”. Ela é um ser comum, despreocupada de imagens místicas, comprometida com o cotidiano e com uma existência simples, sem as complexidades do mundo moderno. Ela é uma pessoa no mundo e não fora dele, buscando a sua mudança. É uma sacerdotisa dos deuses, uma guardiã das tradições e costumes antigos, cujo único comprometimento é com estes deuses. O poder de realizar os feitiços não vem das receitas, afirma a autora, mas do contato da bruxa com a natureza, de sua capacidade de “falar a língua da natureza”. Tanto em seus livros quanto na entrevista a nós concedida, Frazão apresenta a bruxa como marginal. Ela é uma pessoa “torta” na contramão do que é dominante. Se as meninas se vestem de cor-de-rosa, a bruxa usa jeans. No mundo civilizado, ela procura a natureza. Na sociedade moderna, ela valoriza os “primitivos”. Em um mundo dominado pelo masculino, ela afirma o poder da mulher. Numa sociedade voltada para o científico, ela usa magia. Quando a racionalidade desencantou o mundo, ela presta atenção à sua intuição, aos seus sonhos e emoções. Quando não há mais tempo sobrando, ela se recolhe para conversar com a lua ou com as plantas. Em todos os aspectos, a bruxa é uma pessoa marginal, fora dos padrões dominantes. Como aponta Mauss (1974), os indivíduos aos quais o exercício da magia é atribuído têm uma condição particular no interior da sociedade, que os trata como mágicos. Embora nem toda condição anormal indique a prática de magia, aqueles que a ela se dedicam o fazem por força de sentimentos sociais ligados à sua condição específica. E o mágico enquanto tal tem uma situação socialmente definida como anormal.

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A bruxa que não está à margem, que não é pessoa “torta”, fora dos padrões, não pode ser uma verdadeira bruxa. Nesse sentido, a religião pagã ou não, diz menos sobre a bruxa do que sua posição na sociedade. Frazão diz: “Eu acho que pode acontecer o que acontece, não o sincretismo. Eu acho que as religiões são mais ou menos como clubes. Mas o que rola, ao nível de inconsciente coletivo, é uma coisa muito carnavalizada, uma coisa muito pagã. As pessoas não têm consciência disso. Agora, no momento que você tem consciência, aí é impossível. Quando você não tem consciência, sabe, ‘não estou preocupada em ser bruxa, tenho a minha vida, sou católica’, aí dá para ser [bruxa], porque aí você está sendo sem perceber.” A mulher que procura a bruxaria para ser de vanguarda ou estar na moda, também não é uma bruxa. Ela age segundo os padrões da moda, logo não está numa posição marginal. As rezadeiras e benzedeiras, por outro lado, embora cristãs, são bruxas: a posição marginal e o contato com a natureza, além do uso da magia, lhes assegura isso. As próprias mulheres, numa estrutura de dominação masculina, são sujeitos considerados marginais. Segundo Mauss (1974), as mulheres só são tidas como mágicas dada a particularidade de sua posição social. O autor sugere que os fenômenos corporais femininos, como a menstruação e a gravidez, são sinais dos poderes específicos delegados às mulheres. Neste sentido, não é uma coincidência que o sangue menstrual tenha um uso mágico tão difundido. Frazão dá várias receitas de feitiços em seus livros onde este sangue deve ser utilizado. O vinho tinto usado nos rituais wiccanos faz uma alusão a este sangue. Percebemos também que a face de Mãe da Deusa é a face de maior poder e a face preferida pelas bruxas. Se alguma dúvida restava sobre a centralidade do feminino na bruxaria wicca, entendemos que está aqui definitivamente desfeita. Para Mauss (1974), a bruxaria é espaço privilegiado das mulheres não só pela sua situação marginal frente a uma estrutura social de dominação masculina, mas pelo distanciamento que esta estrutura inflige à mulher no que tange o seu aceso aos postos religiosos. A sua situação religiosa diferente faria com que se voltassem para a magia, pois é onde uma inversão de posições ocorre. Na magia a mulher é soberana enquanto na religião ela é subordinada. Isto não está, de forma alguma, em desacordo com o que observamos sobre a wicca. Em nossa sociedade há poucas

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expressões religiosas onde a mulher possa ocupar um cargo religioso de mando. A wicca é um lugar onde isto pode ocorrer. O que observamos em campo, porém, é que a bruxa wiccana não é apenas uma operadora de magia. Ela é também uma sacerdotisa. Deste modo, a wicca está oferecendo às mulheres não só o papel ancestral que desempenham e desempenharam em diversas sociedades, como bruxas, mas um papel que dificilmente elas desempenham no Ocidente moderno, o de sacerdotisas. A wicca é um espaço onde religião e magia se encontram e onde antigas e novas oportunidades de expressão do feminino têm lugar. É possível, a partir daqui, compreendermos melhor porque a autora enxerga a bruxaria como prioritariamente feminina, e desloca o universo da bruxaria para o universo feminino, como se constituíssem uma única ordem. A marginalidade da mulher é expressa nas sociedades de dominância masculina, a marginalidade da magia é expressa perante a ciência, a marginalidade do “primitivo” frente ao moderno, da natureza frente à civilização. Constituem, na verdade, uma ordem única de opostos, que seguem a mesma lógica. O que seria, para Frazão, uma verdadeira bruxa? Como tornar-se bruxa? A bruxa para ela, está claro, é um ser marginal ao sistema dominante, que na maior parte do tempo luta contra ele. Para se tornar bruxa, então, diz a autora, uma mulher tem que construir a sua história. Se não tiver sido socializada num meio de bruxas, ou seja, se não for uma bruxa hereditária, a mulher deve procurar dentro da família algo que a leve de volta ao contato com a natureza. A ancestralidade é fundamental. Por isso a autora se atém à família e recorre freqüentemente à sua ascendência. Não é exatamente o sangue ou a genética que fazem a bruxa, mas o universo onde ela foi criada e socializada. “Vai ter que ter uma pesquisa dentro da própria família. Não é uma coisa de fora. Você não se torna bruxa lendo o livro de alguém. Isso é louco. Tem que haver uma história. Até a própria conexão não é uma coisa que você decide aqui e agora: ‘oba, vou me conectar com a natureza’. Para você se conectar com isso é preciso que alguém, um dia, antes de você, tenha se conectado.” Como reconhecer a verdadeira bruxa? Segundo Frazão, é fácil. Basta buscar aqueles que são desviantes. É a observação que aponta quem é a bruxa, não um dom específico a ela.

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“Alguém que é torto, que está à margem é reconhecível! Ela [a bruxa] não será igual ao rebanho, então esteticamente alguma coisa ela terá torto. Não estará com a roupa da moda, entendeu? E o discurso dela será torto. Se conhece uma bruxa pelo brilho do olhar. Por quê? Por que alguém que tem tesão na vida, o olho brilha. É fácil, não é nenhum dom. Não é dom, é raciocínio.” A mulher bruxa é livre, marginal, desviante, independente. E um homem, poderia ser bruxo? Para Frazão, homens não podem ser bruxos, pois não tem a essência do feminino que permeia a bruxaria. Podem, no entanto, participar como personagens menores. “Eu acho que [a bruxaria] é essencialmente feminina. A mulher tem um dom muito maior de imaginar, de criar. Ela é mais solta nisso. Os homens se esforçam demais. A mulher é natural. O imaginário, essa coisa de liberdade, é muito feminina. (...) Eles podem ser aquilo que sempre fizeram. Eles são chefes de cerimônia. O homem sempre gostou de aparecer. A mulher é mais reservada. Magia é você saber que você pertence, que você está no mundo. Eu sou um pedaço dessa mesa, eu sou a louça que eu lavo (...) e o homem, é muito difícil ele conseguir isso. Na verdade, o homem tem dificuldade de lidar com ele mesmo, né? O homem sempre espera resultados. Eles não têm paciência. A feitiçaria, a magia, é a arte da paciência. A sabedoria é uma coisa que requer muita paciência, muita observação, lidar com o fracasso. Tudo isso a mulher consegue. A mulher, ela lida com a diversidade. Ela caiu? Ela levantou. A minha avó dizia que a mulher tem o poder, o homem não.” Como vimos acima, a autora prossegue construindo pares de oposição que valoram positivamente a mulher e negativamente o homem. O homem retratado por ela é um ser frágil, carente, psicologicamente abalado, incapaz de lidar com a perda, o fracasso e a espera. É um ser imediatista que não consegue nem mesmo se integrar com o ambiente onde vive, sendo um eterno deslocado, reprimido e egocentrado. No final, qualquer chance é deles retirada quando a autora saca o discurso legitimador da avó: os homens não têm poder. Observamos em campo, contudo, que a bruxaria wicca tem se tornado atraente aos homens também. Embora Frazão não enxergue na bruxaria espaço para os homens além da

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figuração, pois lhes falta poder real, alguns jovens têm engrossado as fileiras de bruxos. Como vimos anteriormente, há papéis para os homens na wicca, tanto na cosmologia quanto nos rituais. O que nos chama a atenção, no entanto, é mais a faixa etária desses homens e sua sexualidade. A primeira impressão é que as mulheres que praticam wicca são de todas as faixas etárias, começando a se interessar por bruxaria aos treze ou catorze anos e estendendo-se até os cinqüenta. Os homens, por outro lado, são todos jovens. Dificilmente se encontra um wiccano acima dos trinta anos. O reflexo das mudanças quanto aos papéis de gênero na nossa sociedade parecem fundamentais para compreendermos o fenômeno tanto quanto a estrutura de gêneros que a wicca apresenta. Apesar do ingresso de homens na bruxaria, esta ainda tem sido um espaço feminino onde a predominância numérica das mulheres é sensível. As mulheres que procuram a wicca não são, claramente, mulheres imbuídas de concepções hierárquicas sobre os gêneros, no sentido da dominação masculina. Os homens que as acompanham, portanto, não podem manter um comportamento considerado machista. Uma mulher que acredita que toda mulher nasce bruxa, ou que o poder de uma bruxa reside em seu útero, não delega aos homens nenhum tipo de supremacia. Os homens que as acompanharem, portanto, terão que ser homens pós-revolução feminista. No Brasil, a mudança no status da mulher na sociedade só se deu a partir da década de 70, e mais fortemente da década de 80 (GOLDANI, 1993; OLIVEIRA, 1996; BERQUÓ, 1998). Não seria possível, portanto, que uma grande quantidade de homens com mais de trinta anos pudesse comungar das crenças wiccanas. Quanto à sexualidade, por ser a bruxaria um universo tão vinculado ao feminino, foi possível observar, no campo, um fenômeno análogo àquele que ocorre nos terreiros de candomblé (BIRMAN, 1995), que é a predominância de homens homossexuais. Percebemos que as bruxas sempre falavam sobre o homossexualismo masculino na wicca, e se referiam à maioria dos homens como sendo homossexuais. Eles encontram na wicca um espaço de feminilidade, relativamente parecido com aquele que pais-de-santo encontram no candomblé. Embora na literatura wiccana estrangeira seja possível encontrar algumas referências à presença de lésbicas na bruxaria, o mesmo não se dá a respeito dos gays. Lésbicas, embora sejam homossexuais, são ainda mulheres, portanto têm úteros. Isto significa que o poder da bruxa, aquele que reside em seu útero, é intrínseco à mulher, não importando qual a expressão de sua sexualidade. Ele é inerente, e por isso não exclui as lésbicas. Os homossexuais, contudo, só se fazem inserir no sistema wiccano através de um artifício de gênero.

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Vimos que o princípio masculino é definido na wicca em relação à sua sexualidade: ele é fertilizador, e só poderá sê-lo se estiver numa relação com o princípio feminino. Um gay não incorpora esses atributos masculinos. Ele é levado, então, a tentar incorporar os atributos femininos. Se utilizarmos as categorias de Fry (1982), entenderemos que homem está em oposição à mulher, enquanto bicha ou entendido (homossexual) estão em oposição ao homem (heterossexual). Enquanto a bicha é sempre passiva, e o seu parceiro não deixa de ser homem, o entendido é o homossexual tanto ativo quanto passivo. Deste modo, o homossexual masculino na wicca se torna mais próximo às mulheres, e tende a buscar, tanto quanto elas, um espaço de identidade de gênero e de atuação profissional. Não estamos afirmando que todos os homens bruxos sejam gays. Na verdade, poucos assumem a condição homossexual, que é comentada em sussurros por meio de fofoca. Críticas ao esoterismo A preocupação da autora de manter-se ligada à realidade nacional, tanto no folclore quanto nas práticas mágicas, faz com que ela critique duramente aqueles que, sob seu ponto de vista, preferem consumir uma cultura importada a dar valor às manifestações mágicas populares e ao folclore brasileiro. Dois interlocutores são, então, o alvo das críticas da autora: de um lado, os esotéricos, de outro, os próprios wiccanos que tomam posturas próximas aos dos esotéricos. A autora passa, então, a formular categorias de acusação para esses dois grupos. A própria necessidade de escrever livros mistura-se à sua oposição ao tipo de religiosidade que o mundo esotérico tem trazido ao país. Uma religiosidade estrangeira que, segundo ela, não olha para a cultura brasileira e que não respeita a natureza, beirando quase a loucura. Os estrangeirismos são vistos pela autora no sentido de colonização, que ela tenta combater. “Eu resolvi escrever livros por mero terrorismo. Eu mudei para Friburgo, e Friburgo é o paraíso esotérico. Só tem pastel. Neguinho que faz cura por cristais, cura por sementes de abacate, meditação transcendental, é um leque. E esse pessoal começou a freqüentar a minha casa, e são aquelas pessoas burras, estúpidas, imbecis, e o pior de tudo é que essas pessoas estão ganhando um espaço muito grande. Se fosse só dinheiro, eu não me incomodaria nem um pouco. Só que essas pessoas estão mexendo

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com uma coisa que eu acho que é sagrada. Elas estão mexendo com a identidade cultural de uma geração. E de uma geração é de um povo. Elas estão vendo duendes que fazem parte do imaginário europeu, especificamente do imaginário da GrãBretanha. Acontece que o imaginário de um povo é o que faz com que haja identidade cultural. Eles estão sendo batedores de toda e qualquer colonização. Aí eu falei: porra, eles estão querendo saber o que é magia? Eu vivi isso. Aí eu comecei a escrever livro, por causa disso.” A ação militante de terrorista expressa a preocupação da autora em tomar posições e concretizar ações contra aquilo a que se opõe. É uma atitude comprometida com a mudança. A colonização da qual fala é a importação de símbolos de culturas estrangeiras, símbolos que não fazem sentido para a cultura brasileira. A aceitação passiva deste processo ou a participação nele constituem a acusação da autora. Ela critica também os wiccanos que não se comprometem com a realidade brasileira, desprezando a cultura popular das rezadeiras, parteiras e benzedeiras. Em mensagens postadas a uma lista de discussão, em setembro de 2000, a autora afirma que as benzedeiras são as verdadeiras bruxas, embora sejam cristãs. “Quanto às rezadeiras, as considero as verdadeiras bruxas.” “(...) Mulheres de poder, mulheres que mesmo não tendo a oportunidade de freqüentar escolas e conviver com a dita sociedade moderna, foram acusadas de serem MIXÓRDIA ( = lixo).”6 Há por parte da autora, uma necessidade de resgatar o que o Brasil propõe em termos mágicos, não só a cultura européia das benzedeiras, mas os cultos afro-brasileiros e a cultura indígena. “O Brasil tem uma religiosidade própria, que é a indígena. Mas isso foi misturado. Todos nós somos filhos da Europa, então vamos ver como é que agente misturou isso. Agora, virar celta, virar isso, aí é loucura. Aí é melhor trabalhar para CIA. (...) O Feitiço [da Lua] eu termino com Yemanjá! A gente tem que ter divindades, é uma barafunda, e eu coloco muito bem. A gente tem uma identidade mulata, a gente tem que assumir isso.” _________________________________ 6 – Os grifos são de Frazão.aqui.

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“Gerald Gardner e Aleister Crowley? Não, não. Tivemos aqui o Raoni. Tem Mário Terena. A gente tem um puta imaginário. A gente tem mulheres sagradas. Toda vez que eu falo de parteiras, não é à toa. É tipo terrorismo mesmo. Pegar uma débil mental que fica ‘bênçãos de Danu’, Danu é uma deusa da Irlanda, porra.” Há nestas acusações o mesmo cuidado com o passado que há nos livros da autora em relação à ancestralidade e à família. Se o passado familiar de uma mulher deve ser por ela resgatado no seu processo de tornar-se bruxa, o passado cultural de um país deve também ser mantido nas suas expressões culturais. Estas não devem ser invadidas de elementos externos, mas mantidas como a memória de um povo. A sacralidade que atribui às expressões culturais brasileiras é a mesma que atribui às suas antepassadas. São duas faces do mesmo processo. Nos perguntamos então porque a idéia de hereditariedade da autora é tão bem aceita pelas bruxas a ponto de ser comum encontrarmos no campo, entre nossas entrevistadas e na internet pessoas que afirmem que alguma parenta é bruxa, e a preocupação com a cultura nacional não. Na verdade, a hereditariedade fornece às bruxas um argumento para a legitimação de sua condição. Já o compromisso com o folclore nacional anda na contramão dos perfis que pudemos averiguar através de entrevistas. As bruxas têm perfis religiosos claramente definidas em termos de ascensão social. Há um progressivo afastamento das religiões populares em direção ao esoterismo da Nova Era, consumido especialmente pela classe média urbana. O consumo de símbolos importados está de acordo com esse perfil, que busca uma associação com patamares mais elevados da pirâmide social. Sobre seus livros, Frazão admite que sua intenção é resgatar aqueles que teriam caído na “farsa esotérica”. “Eu escrevo para nego não entrar. (...) Então, já não entra mais no esperto que sai por aí fazendo essas coisas.” Para a autora, uma bruxa nunca deve ser confundida com um esotérico. Os esotéricos representam o oposto da bruxa, e não são marginais. Seu sucesso no mercado indica que a autora

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pode ter razão. Os esotéricos são um sucesso editorial, há inúmeras lojas que vendem produtos destinados a este público, revistas, jornais de distribuição gratuita, terapias e todo tipo de curso. As terapias destes grupos são criticadas pela autora como mais uma farsa. O total descompromisso com o que ela considera efetivamente sagrado – o homem e a natureza – são os pontos principais de sua acusação. “Ele vai curar o teu rim com uma ametista. Como é que você vai entrar nessa? Primeiro, que uma ametista, uma pedra, uma coisa sagrada da terra, que foi tirada como? Com matança de índio, com garimpeiros mortos de fome, que pegam malária, que estão com doenças venéreas. Como é que você pensa que essa pedra vai te curar, porra? Essa pedra está puta!” Criticados por ela de todas as formas, eles tornaram Frazão uma persona non grata em seu meio, o que se reflete, em última instância, na dificuldade em encontrar suas obras à venda em qualquer loja esotérica. Segundo a autora, eles se recusam terminantemente em vender seus livros. É possível encontrarmos livros de outras autoras sobre bruxaria, mas nunca os de Frazão, o que demonstra que não há uma recusa ao tema, mas à autora. Para ela, os esotéricos estariam preocupados apenas com o seu sucesso financeiro e sua auto-promoção, construindo a imagem de gurus e líderes espirituais, fomentando o mercado de produtos esotéricos e um consumismo desenfreado. O esotérico é definido pela autora como uma categoria oposta à de bruxa. No esoterismo, a magia é cheia de pompa e circunstância. Na bruxaria, ela é simples e ligada à natureza. Ao escrever seu livro, ela diz, quis compartilhar seus conhecimentos com um púbico mais amplo. A bruxa, portanto, compartilha conhecimentos. O esotérico, por outro lado, ensina. Aquele que ensina torna-se um mestre e guru, posição que a autora rechaça. A posição de superioridade daquele que ensina traz também a idéia de poder. Para Frazão, as bruxas não desejam poder e não possuem poderes mágicos. O poder é associado por ela à sociedade patriarcal na qual vivemos. Ou seja, o poder está vinculado às idéias representadas na segunda coluna do quadro acima, e que são opostas à bruxaria. O poder é o desequilíbrio dos opostos. A verdadeira bruxa é um ser equilibrado e, portanto, desinteressado em poder. Ela não se deixou levar exclusivamente pelos atributos da razão, mas circula entre os dois mundos formados pelas duas colunas do quadro anterior.

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Ao associar a busca pelo sucesso financeiro com os esotéricos, e apartar essa preocupação do mundo da bruxaria, Frazão começa a traçar críticas a todos aqueles que vivem dos dividendos de sua atuação no mercado de serviços esotéricos. A venda de bonecos de duendes, gnomos, anjos ou fadas é criticada. Para a autora, é o retrato do consumo moderno ao qual as bruxas não são afeitas. Cursos e workshops são igualmente criticados. Embora seja procurada por pessoas interessadas em que ministre cursos sobre bruxaria, relata a autora, ela não se propõe a tal. Afirma que o caminho da bruxaria é o da mudança interna, impossível de ser ensinado. Outra diferença que marca a bruxaria e o esoterismo é a preocupação que a primeira tem com os processos históricos, ausente no esoterismo. O sujeito da Nova Era é um ser a-histórico. A bruxaria estaria amparada, segundo a autora, em comprovações históricas da sua existência desde eras pré-históricas (neolítico). Teria sido a primeira religião da humanidade, e não mais uma seita. Notemos que o recurso à História e a definição como uma religião – embora hoje prefira usar a palavra culto - denotam a procura pela legitimidade das práticas da bruxaria. Os esotéricos, ao contrário, seriam seitas sem amparo histórico. O mesmo teor de críticas que guarda para o mundo esotérico e da Nova Era, Frazão guarda também para aquelas bruxas que, segundo sua visão, se comportam de maneira análoga aos esotéricos, mais interessadas em dinheiro e poder do que na comunhão com a natureza e no compromisso de transformação do mundo. O que mais caracteriza a bruxa, para Frazão, é um senso de estar à margem, de ser um pouco desviante. Aqueles que insistem na profissão de bruxa estão no lugar errado. Os cursos de bruxaria são criticados por ela. “Eu acho que o que caracteriza a bruxa é estar à margem, sempre. Você não pode, por exemplo, ser uma bruxa e estar dentro do sistema, bonitinho. Aí você não é uma bruxa. O que caracteriza é acreditar naquilo que ninguém acredita. Estabelecer relações com coisas que ninguém estabelece. Aí você é uma bruxa. Não é sabe, dar cursos. Aí não, é você querer entrar para o sistema. A mulher que é bruxa é mais livre, é mais dona do seu nariz. Não depende, não tem rabo preso, por isso está fora.” O ingresso no “sistema”, como ela diz, o mercado e a ordem vigente, não só estabelecem quem é e quem não é bruxa, como fazem com que uma bruxa não consiga atuar de fato. O

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comprometimento com essa ordem é oposta à bruxaria e impede que ela sobreviva. Para ser bruxa, é necessário estar de fora, à margem. Críticas à wicca no Brasil Embora a bruxaria de Frazão esteja norteada pela preocupação com uma vinculação forte com a natureza e folclore brasileiros, ela traz diferenças da bruxaria wicca correntemente encontrada em nossa pesquisa de campo. A autora dedica grande parte de seu livro Revelações de uma Bruxa descrevendo a wicca, seus rituais e instrumentos mágicos, no entanto, é comum que se furte a definir sua prática entre bruxaria tradicional, normalmente chamada pelo inglês witchcraft, e wicca, preferindo sempre o termo ambíguo de praticante da Arte. Independente de qual seja a prática da autora, a bruxaria descrita em seus livros contém os mesmos elementos da wicca: um par de divindades masculina e feminina, instrumentos mágicos, feitiços, contato com a natureza, rituais solares (sabás) e lunares (esbás), ênfase no feminino. A principal diferença parece residir no uso do círculo mágico enquanto local de culto e na constituição de covens. O círculo é rechaçado pela autora como parte de práticas de magia cerimonial, vinculadas ao esoterismo. Em nenhum de seus livros há explicações de como traçar o círculo e fazer uso dele. Enquanto os praticantes de wicca descrevem o coven como um grupo mágico, na maior parte das vezes fixo, com algum tipo de liderança constituída e formado para a execução de rituais por membros wiccanos, Frazão descreve outras associações como sendo covens. Os almoços promovidos por sua avó Vitalina, por exemplo, constituíam, na visão da autora, verdadeiros covens, pois ali a comemoração tinha ares de ato mágico, especialmente quando o vinho era passado de taça em taça, e nestas ocasiões a avó realizava seus feitiços. Quando se reúne com amigas de São Paulo ou de Friburgo para jogar tarot, conversar, trocar informação, fazer planos, plantar sonhos, essas reuniões são também descritas como covens. “Outro dia a J. veio para cá e nós passamos o dia inteirinho num coven, sabe? A gente leu tarot uma para outra, a gente falou mal dos outros, a gente desejou a morte de uma porrada de gente, a gente construiu montes de sonhos, coisas que a gente quer. Eu quero comprar uma casa. A gente fez de uma forma lúdica. Isso é um coven, e foi

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isso que eu vi com a minha avó. Era isso, não essa palhaçada ‘estamos aqui, abro o círculo’, isso é loucura.” A autora guarda muitas críticas ao esquema wiccano de culto, que não se restringem somente à composição do coven. Ela desvincula a prática da bruxaria ou Arte daquela levada à cabo pelos esotéricos, e que se manifestaria através das práticas ocultistas do século XIX. Essas práticas seriam avessas ao paganismo, pois estariam longe do contato com a natureza. “Todas essas manifestações que nego está dizendo aí, dizendo que é bruxaria, feitiçaria, são manifestações, estão todas impregnadas do ocultismo do século XIX. Não tem nada de pagão, nada! Tem Cabala atrás, tem Maçonaria, tem Rosa Cruz.” A evocação da Maçonaria e da Rosa Cruz dá a medida do repúdio da autora. Estas são as ordens ocultistas mais famosas do país. Lembremos que é fato corrente o pertencimento de D. Pedro I à Maçonaria. Embora lidando com conhecimento esotérico, os adeptos destas instituições não são necessariamente pagãos. A Cabala, por outro lado, é um conhecimento de origem judaica. Frazão critica, ainda, a forma como os rituais wiccanos estão dispostos no calendário, questionando a validade de se celebrar os sabás. Estes estariam hoje desvinculados de sua função original. “Na verdade, um coven de bruxas é um círculo. Um círculo como é feito entre os povos primitivos: uma festa, uma dança, uma manifestação lúdica. Por exemplo, os grandes sabás, que hoje transformaram na palhaçada que a gente tem, eram festas ligadas à colheita e ao plantio. Nego feliz porque tinha plantado. Nego feliz porque tinha colhido. Bebendo para cacete. Isso que o povo está fazendo é esquizofrenia social.” Esquizofrenia social é a acusação usada pela autora para aqueles que pensam viver num espaço-tempo distinto do real. O sabá verdadeiro é aquele celebrado segundo o ano agrícola. Não se resume a uma comemoração religiosa. É uma festa agrícola com sentido social, não um ritual

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fora do mundo. Estas acusações que a autora formula nos remetem ao conceito de desencaixe, no sentido que Giddens (1991) dá ao termo. Neste sentido, várias práticas dos wiccanos são questionadas por Frazão pois estariam fora do espaço-tempo. Não apenas a celebração do sabá, mas também o uso de espelhos mágicos como se fossem uma tradição pagã européia ancestral é refutado, exatamente como o uso dos banhos de ervas para purificação. “O que transformaram, aí é outro departamento. Porque isso aí é patético. Imagina se na Idade Média, se as mulheres se vestiriam com aquele aparato todo, sabe, teriam todas espelho! (...) Banhos de purificação! Cara, o banho é uma invenção moderna. (...) Claro que eu coloco, tanto que eu morro de rir quando nego chega para mim e diz: ‘eu fiz aqueles rituais todos do seu livro’. Eu penso: está louca! As pessoas não identificam o que é ficção e o que é realidade. Eu sou uma pessoa que gosta de escrever. Eu começo A Panela de Afrodite dizendo de um encontro que eu tive, mas aquilo é i-ma-gi-ná-rio. Aquilo é ficção.” “Um grupo de mulheres malucas, com um outro maluco no meio, vestido todo mundo de preto, capuz, para mim teria que estar num hospício.” Embora a autora fale freqüentemente em suas obras sobre as sutis nuanças entre o uso da magia e a loucura, ela refuta a possibilidade de que uma bruxa venha a ser uma pessoa louca ou aja como tal. A loucura passa a servir, então, como categoria de acusação usada pela própria autora. Os que acreditam na sua prosa de ficção sem diferencia-la dos ensinamentos mágicos são acusados pela autora. E são exatamente eles que expressam quão fina é a linha que separa a magia da loucura. O sujeito perdido no espaço-tempo é tão louco quanto o leitor incauto. Nesse sentido, as falsas bruxas são definidas por Frazão como mulheres problemáticas. Ao mesmo tempo, sua atuação beira o mundo esotérico que ela critica, tanto na atuação como videntes quanto na manutenção de segredos ocultos. A alusão à voz monocórdica é uma referência à falta de sentimento e amor à vida que a autora enxerga nessas pessoas. “Geralmente elas [as falsas bruxas] falam de uma forma monocórdica. Falam muito do que elas podem fazer. Falam de um segredo alucinado, que inventaram um segredo

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que eu não sei que segredo é esse. Elas todas sempre estão envolvidas em alguma coisa tipo atendimento, tarot, sabe? E a coisa pior: são pessoas, mulheres extremamente problemáticas, que não são realizadas sexualmente, afetivamente, fisicamente. São muito parecidas com as beatas, aquelas beatas tradicionais. São fanáticas.” Frustradas em todos os níveis de sua vida, as falsas bruxas buscam uma aparência de bruxa, de mulher realizada. Elas buscam, na verdade, ser em aparência aquilo que não são na realidade. O grande segredo que inventaram e ao qual não dão acesso é o de bem-viver. Imaginamos que para pessoas frustradas, esse é o grande segredo da vida. É por isso que este segredo é inacessível e Frazão o desconhece: como tudo o mais sobre as falsas bruxas, ele também é uma aparência. É assim que se tornam semelhantes às beatas. Estas procuram a aparência de santidade. As falsas bruxas são fanáticas, como aquelas, por defenderem ferrenhamente algo que não passa de uma aparência para a verdadeira bruxa, mas que para elas é bem real. Seu fanatismo esconde o medo da perda daquele segredo, que deve ser defendido e mais parece uma fórmula mágica do que um mistério. O fato de não serem realizadas é o que traz para essas mulheres a idéia do poder. Infelizes, elas buscariam na fantasia de ser bruxa uma nova identidade de mulher poderosa e bem-sucedida, capaz de lidar com os obstáculos do dia-a-dia. Mas os obstáculos que Frazão apresenta a elas são interiores ao sujeito. Sem a transformação desse sujeito interno, não é possível tornar-se uma verdadeira bruxa. Isso se expressa na intolerância que demonstram: são fanáticas. Defendem a bruxaria como uma religião, como as beatas fazem. De novo vemos como Frazão operou o corte entre paganismo e religião. As falsas bruxas operam no nível da religião, absorvendo os vícios das religiões institucionalizadas através do paralelo com as beatas. Fanáticas, reprimidas, infelizes, essas mulheres não podem ser bruxas, pois não têm “tesão na vida” nem “brilho no olhar”. Precisam, antes de mais nada, de uma boa faxina interna. A busca pelo exercício de poder sobre outros é vista também pela autora na fundação de associações de praticantes de wicca que cobram mensalidades de seus membros. A atitude é mal vista pela autora, que enxerga no dinheiro uma outra faceta da profissão de bruxa, como os cursos e qualquer outro serviço cobrado por uma bruxa, inclusive o de leitura de oráculo.

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“Isso é loucura, isso é para enriquecer alguém! Por exemplo, essa ABRA-WICCA cobra dez paus por mês. Quantos sócios têm? Vamos dizer que tenha uns quatrocentos sócios. Por mês, quanto alguém está ganhando? Se eu tiver que entrar para uma instituição, vai ser uma instituição que utilize o dinheiro para, sabe, para bibliotecas, para pagar intelectual, sabe? Eu fico muito puta quando eu vejo um cara, um débil mental, ganhando quatro mil por mês, que é o que deve estar tirando, para dar umas apostilas que são copiadas de outros lugares. Porque o tipo de informação que eles têm é informação de internet.” A acusação de “ter informação de internet” é, claramente, uma acusação de não ser uma bruxa de verdade. Isso apenas se reflete na idéia de espoliar financeiramente outras pessoas e fundar uma associação que visa, tão somente, o lucro em proveito próprio. Esse tipo de posicionamento da autora é público, e já foi veiculado na própria internet, através de uma das listas de discussão da qual ela fez parte, no período em que realizávamos trabalho de campo. Numa mensagem de junho de 2000, ela deixa bem clara sua posição: “(...) Sempre fui contra a criação de uma entidade ‘institucional’, isso desde que o falecido R. inventou de criar uma ‘Igreja Wicca’. Sou fortemente contra todo e qualquer tipo de institucionalização, como também sou contra a vulgarização do paganismo. (...) No entanto, me parece que a instituição que foi formada com a intenção de proteger a wicca, não se preocupa muito com a utilização que a mídia irá fazer dela. (...) Tenho o máximo cuidado em não expor bizarramente a Arte. (...) Também serei contra o caráter fake que alguns estão dando à Arte (como as fotos de um coven que me mostraram recentemente, com adolescentes vestidos de franciscanos, e empunhando punhais recém comprados das mãos do sacerdote do coven (...)).” Esse tipo de posição, sem dúvida, faz de Frazão alvo de muitas críticas, até porque suas opiniões atingem diretamente membros importantes das listas de discussão mais concorridas da internet atualmente. Veremos o universo virtual da wicca em outro capítulo.

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Uma das acusações mais constantes, tanto nas listas quanto por parte de Frazão, é a acusação de busca pelo poder. Poder seria o exercício de influência direta sobre outras pessoas. Em alguns momentos, toma a forma de uma espécie de manipulação. Em outros, significa ambição, tanto por status dentro do grupo quanto por oportunidades financeiras. A necessidade de estar em evidência nos meios de comunicação pode, também, servir como acusação de busca de poder, visto que a mídia é uma das maneiras que as bruxas têm de legitimar suas atuações como bruxas. Através da mídia elas ganham espaço e são procuradas por pessoas ainda iniciantes na bruxaria. É sobre estas pessoas que elas passam a exercer uma influência forte e duradoura, se tornando lideranças. O passo seguinte, neste caso, costuma ser escrever um livro. De qualquer forma, é interessante notar que poder é uma categoria que implica uma disputa de espaço num grupo real dado, jamais uma disputa de dons mágicos e sobrenaturais. Para Frazão, contudo, o caminho foi inverso. De escritora ela passou a figura pública, e apenas depois de alguns livros lançados começou a freqüentar o mundo da internet. Em junho e setembro de 2000, respectivamente, em diferentes listas, fica clara a acusação de busca pelo poder que a autora faz. Na primeira mensagem abaixo, a autora aproveita para criticar os cursos de bruxaria e um outro fenômeno passível de ser observado entre as bruxas, tanto nossas entrevistadas quanto aquelas que freqüentam as listas de discussão: a idéia de que há uma outra bruxa na família, normalmente a avó. A hereditariedade é uma forma de legitimação num universo como o da bruxaria e da magia. “Depois que Gardner escreveu o primeiro livro que afirmava categoricamente a existência de um culto antiqüíssimo, sobrevivente em algumas famílias, a coisa se espalhou e ficou praticamente fora de controle. Um frenesi de ‘quero ser bruxa’, ‘quero aprender a ser bruxa’ se espalhou, dando origem a uma infinidade de ‘métodos práticos de feitiçaria’, ‘seja bruxa em um ano e um dia’, ‘curso de bruxas por correspondência’. O frenesi chegou a tal ponto que, hoje, no cenário global da feitiçaria, são muito poucos aqueles que conseguiram resistir às tentações do poder e do dinheiro fácil. Enquanto as pessoas estiverem utilizando a Arte como meio de comprovação de poder, haverá essa multidão de fórmulas que só servem para denegrir uma coisa tão imensa e bonita como é a Arte. Enquanto o poder careta estiver misturado com a Arte, ela será vista de maneira jocosa, de maneira vil, como os

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panfletinhos e apostilas de cursinhos tão bem a colocam, de maneira institucional, igualzinho as outras religiões que têm um sem número de associados, e... deixará de ser Arte! É hora de trocarmos experiências sem mestres, sem padrinhos, sem nenhuma hierarquia.” “Estou deixando esta lista por saber que NUNCA irei me calar quando ouvir disparates e pressentir ‘busca pelo poder’.”7 No universo que experimentamos no campo, as acusações de busca de poder são freqüentes. Qualquer exposição da bruxa que deliberadamente a torne uma liderança será vista como busca de poder. O poder que está sendo buscado é o poder sobre o grupo que pratica a bruxaria wicca no país. O que está em jogo é tanto um domínio intelectual e moral sobre as posições que as bruxas brasileiras ocupam quanto o domínio financeiro de um mercado rentável e em crescimento. Quanto maior o número de seguidores, mais bem cotada a liderança. As listas de internet se tornaram um lugar privilegiado para a disputa desta liderança, pois atingem todo o país e são abertas a qualquer pessoa que queira se inscrever, não apenas aos wiccanos. Deste modo, as opiniões construídas nelas espelham-se por uma rede e podem vir a tornar-se posições majoritárias entre as bruxas brasileiras. É um espaço cujo domínio é estratégico.

REFLEXÕES SOBRE A IDENTIDADE DE BRUXA

Três pontos distintos devem ser levantados: quem é a bruxa, qual a lógica em que a bruxaria opera, e se existe uma bruxaria brasileira. Em primeiro lugar, vejamos a bruxa segunda Frazão. Seguindo a linha apresentada por antropólogos como Mauss (1974), Frazão apresenta a bruxa como ser marginal e desviante, mas de um desvio um pouco diferente daquele apresentado por este autor. Como Douglas (1976), Mauss enxerga uma necessidade de que o operador de magia seja um desviante. Esse caráter de desvio mantém sua aura de mistério e misticismo, ______________________________________ 7 – O grifo é de Frazão.

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contribuindo para a idéia de que possui poderes mágicos. Ao mesmo tempo, o desviante pode ser tido como mágico, num movimento duplo. Esta dinâmica não se apresenta nestes exatos moldes em Frazão. A bruxa não deve buscar a marginalidade com o intuito de apresentar poderes mágicos frente à sociedade. Não, é de sua condição marginal, dada no âmbito de sua socialização, que ela consegue romper com uma determinada ordem, e acessar o universo mágico. Não queremos simplificar, com isto, o pensamento de Mauss ou Douglas. Queremos apenas indicar que, em Frazão, a marginalidade é uma conseqüência de ser bruxa. Apesar de a autora tratar esta condição marginal como fundamental à bruxa, ela não é a sua causa. Como diria o próprio Mauss, o sujeito marginal está numa situação privilegiada para ser considerado mágico, mas apenas alguns sujeitos o serão, pois nem todo ser marginal é considerado operador de magia. A questão da marginalidade nos leva ao nosso segundo ponto. É no rompimento com a ordem instituída atual que a bruxa de hoje se forma. Queremos dizer que as considerações sobre a marginalidade da bruxa apresentadas aqui são válidas para este caso particular, não constituindo uma generalização que se contraponha às teorias de Mauss e Douglas, pelo contrário. No nosso caso, e seguimos na análise do pensamento de Frazão, a bruxa surge quando rompe com uma ordem racional associada à modernidade ocidental. É na posição de marginal a esse padrão que a mulher de hoje consegue acessar a identidade de bruxa, segundo Frazão. A autora elabora uma série complexa de referências, de modo a compor um quadro de oposições, onde a magia foi excluída do mundo pela racionalidade moderna. Para resgatar a magia, a bruxa tem de romper, por sua vez, com essa ordem moderna racional. Observemos que a magia não é o irracional, ela é uma lógica simbólica que pode operar em conjunto com formas racionais de explicação do mundo, conforme Douglas (1976) e Evans-Pritchard (1976) apontam. No relato deste autor, o cupim rói a madeira, e o Zande sabe que é por isto que o teto desaba. Isto é uma explicação racional. Mas para explicar o por que de o teto ter desabado sobre determinada pessoa, ele acessa a magia como solução. Queremos com isto ressaltar que é no pensamento de Frazão que a magia e a razão foram colocadas em oposição, num mecanismo capaz de prover uma nova lógica para aquele que quer acessar a magia. Desta forma, a intenção da autora é fornecer uma ferramenta para que a mulher possa romper com a ordem dominante e tornar-se bruxa. Ela rompe com aquilo que não lhe

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permite acessar a magia. Por isto qualquer atributo não racional é associado, pela autora, ao pólo da magia: a loucura, o sonho, a intuição, o sentimento, a sensação, o corpo, o sexo, a infância, o lúdico, a natureza. Rompendo com a ordem racional que impede ou rechaça o acesso à magia, a bruxa também rompe com os papéis sexuais delegados por esta ordem, onde a dominação masculina é regra. A bruxa de Frazão é, assim, uma mulher livre, forte e independente, e não a submissa esposa e rainha do lar. Ela não deixa de ser doce e amável, pois estes são ainda predicados femininos, mas não é mais um ser passivo. Segundo Goldenberg (1992), o padrão para o feminino na sociedade brasileira é estabelecido através de sua relação com o masculino, especialmente em termos de família. A identidade feminina é, desta forma, a de esposa, mãe ou filha. Nestes três casos, o padrão apresentado por nossa sociedade é a de uma mulher romântica, maternal e acolhedora. A bruxa se alinha melhor ao padrão da “mulher forte”, descrito por Goldenberg (1992) como a mulher que decide, arrisca e escolhe, que tem personalidade e temperamento forte; que transgride as regras sociais; militante social e política consciente; independente,

livre,

corajosa,

auto-suficiente;

que

não

é

submissa;

bem

sucedida

profissionalmente e que enfrenta sozinha as dificuldades. De fato, grande parte destes atributos são masculinos, se nosso padrão de feminino se referir à esposa submissa e rainha do lar. Como dona-de-casa, ela não tem chances de ser profissionalmente bem sucedida: a profissão é esfera da rua, esfera masculina, enquanto a casa é o lugar do feminino (DAMATTA, 1991). Do mesmo modo, a escolha e a decisão, a independência, a coragem, a política e a auto-suficiência são atributos que definem o masculino na sociedade brasileira, onde ele deve buscar sempre a negação da dependência (GOLDENBERG, 1992). Observamos que o próprio perfil de Frazão indica um padrão mais próximo ao da “mulher forte”, assim como veremos para as bruxas entrevistadas: militante política consciente, profissional bem sucedida, transgressora de regras sociais, independente, ela não se nega ao papel de mãe e dona-de-casa. A bruxa se apresenta, desta forma, como uma categoria que traz atributos da “mulher forte” combinados com papéis tradicionais de mãe, esposa e dona-de-casa. Quanto à questão da sexualidade, presente em toda a obra de Frazão, a bruxa é apresentada como livre também nesse âmbito, num movimento que simboliza o rompimento com os padrões da dominação masculina que, salvo exceções, encarcerou mulheres, domando sua sexualidade e direcionando-a para um único homem, o marido. Nessa configuração, a esposa fiel

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e casta, a mulher honrada, a “santa” se contrapõe à mulher da rua, de sexualidade desregulada, a “puta” (GOLDENBERG, 1995). Maluf (1993) apresenta a bruxa do folclore catarinense como um equivalente à esfera da “puta”, pois é mulher da rua, que circula pelos espaços masculinos da rua e dos barcos de pesca. A bruxa de Frazão, em nosso entender, constitui esta mesma identidade. Não é por acaso que a autora faz recurso constante às Bacantes, cuja desregulação era extrema. A acusação de “puta” é forte em nossa sociedade, e recai sobre as mulheres que não mantém o padrão exigido. A bruxa de Frazão, de fato, rompe com todos esses padrões. Consistiria numa sexualidade que não é reprimida com a da “santa”, tornando-se mais liberta de padrões, como a da “puta”. Neste sentido, as acusações corriqueiras à figura folclórica da bruxa como mulher má, “puta”, histérica/louca são a medida do repúdio à desregulação do papel feminino em sociedades de dominação masculina. Rompendo com a ordem estritamente racional e acessando a magia ela é acusada de ser louca. Rompendo com os padrões de sexualidade, ela se alinha com a “puta”. Deste modo, ela se torna mulher má, pois o malefício provém também de situações marginais (DOUGLAS, 1976). A partir dos padrões acima, entendemos porque a autora faz recurso constante à família. Na sociedade brasileira, o lugar que define a identidade feminina é a família. Para romper com o padrão dado, Frazão não sai do âmbito da família: ela recorre à sua própria família, que apresentava uma estrutura distinta à da sociedade mais ampla no que tange aos padrões femininos. Não obstante ser marginal e desviante, a bruxa ainda mantém os laços primários de família: ela não é o ser totalmente desregulado que a “puta” e a bruxa folclórica representam. Ela é ainda uma mulher inserida na família, disposta a viver os papéis de esposa e mãe, mas definidos em outras bases. No caso de Frazão, a família inverte o padrão costumeiro da dominação masculina, e apresenta mulheres fortes em companhia de homens fracos, segundo palavras da própria autora. A idéia da família e das relações de gênero como totalidades englobantes se mantém. Homens e mulheres não se tornam indivíduos iguais, eles ainda são intrinsecamente diferentes em relações definidas com base na complementaridade. O terceiro ponto que queremos discutir é o da possibilidade de uma bruxaria brasileira. Frazão tem uma preocupação constante em não apartar a cultura popular brasileira do universo da bruxaria. É neste sentido que ela incorpora o Ano Novo como festa de Yemanjá, fazendo recurso

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às tradições africanas no Brasil. Não esquece, tampouco, o legado indígena, presente quando afirma que parte de sua família descende de uma tribo brasileira. A influência da Europa, já mesclada ao universo nativo, vem na forma de sua defesa das rezadeiras e benzedeiras. Em Maluf (1993), esta figura é aquela que combate o malefício causado pela bruxa, especialmente a doença em crianças. Para Frazão, a benzedeira é a genuína bruxa brasileira, conquanto seu arsenal de orações faça uso do imaginário cristão. A benzedeira, mulher humilde do povo que cura de graça com preces e ervas que só ela conhece, também transcende a importância do feminino na sociedade patriarcal. Toma o lugar do médico cientifizado onde este recurso não está de todo disponível, ou onde ele ainda não foi bem assimilado. Como legítima representante desta ordem que Frazão defende, que se remete à tradição da qual as benzedeiras fazem parte, ela se torna a bruxa brasileira. Não é mais bruxa do que qualquer mulher, mas não deve ser desconsiderada apenas por seu recurso ao imaginário cristão. A bruxa aparece, na figura da benzedeira, como uma mulher cujo conhecimento foi legado numa linha feminina, mulher do povo, humilde, sem pretensões além da arte de curar. O cuidado com a cultura brasileira encerra a idéia de que a bruxaria não é apenas ligada à terra, no sentido do elemento, do solo. Ela deve estar também ligada ao país, a um determinado legado cultural, a uma sociedade historicamente constituída. É uma preocupação que Frazão não vê em algumas bruxas wiccanas e especialmente nos esotéricos. Por isto os acusa de serem “colonizados”, de buscarem em tradições estrangeiras algo que existe e é acessível na própria cultura de seu país. De fato, observamos entre as bruxas brasileiras um constante recurso ao que constitui cultura estrangeira. O universo indígena se apresenta sobre as formas nativas norteamericanas, inclusive na obra da própria Frazão. Mesmo quando a cultura africana é acessada, costuma o ser através de tradições caribenhas, não brasileiras. Esse é também um resgate de Frazão: tirar a magia africana dos aposentos da criadagem e traze-la para as bruxas de classe média que consomem seus livros. A terra é sacralizada não apenas como elemento, mas também como fonte de referências culturais. Frazão acredita que a memória de um povo e suas manifestações culturais são sagradas e devem ser valorizadas. Em termos de wicca, isto se reflete na preocupação com o calendário, a Roda do Ano, e as ervas usadas pela bruxa no Brasil. Os rituais sazonais devem seguir as estações do hemisfério sul, onde se encontra o país. Os mitos nativos podem e devem ser acoplados àqueles importados. A natureza brasileira deve ser preservada, bem como as populações que mantém com ela estreitos

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laços. As ervas que a bruxa daqui usa devem ser as ervas que crescem em solo nacional, muitas vezes boas substitutas de ervas européias, como a autora indica. O herbolário nacional é o que de mais genuíno uma bruxa brasileira pode buscar, pois a alinha com as forças da terra onde ela reside. Os usos populares mágicos destas ervas alinham-na com a memória do povo, sujeito agora sagrado. É nesta repaginação da bruxaria para terras brasileiras que a autora sofre críticas, pois estaria formulando uma bruxaria que não consta nos manuais de autores estrangeiros. De fato, como poderiam eles elaborar um sistema próprio a uma realidade que não é a deles? É isto que Frazão se propõe, entre outras coisas, fazer: uma revisão da bruxaria européia de modo a que ela possa servir, também, para resgatar crenças e costumes nacionais pouco valorizados, e que se alinham tão bem com suas concepções de magia e quebra da racionalidade moderna e da ordem vigente que ela apresenta. Percebemos, enfim, que as próprias concepções que a autora apresenta sobre o que seja brasileiro seguem a idéia de uma cultura formada pela junção de três populações diferentes, seus imaginários e costumes: o europeu, na pele do português; o africano; o indígena. As formas em que a magia se apresenta entre estes três interlocutores podem ser associadas pela bruxa moderna, sem perigo.

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CAPÍTULO 3 PARA COMPREENDER A WICCA NO BRASIL

Até conseguirmos ingressar no campo, nossa visão da wicca era dada pelos livros que tínhamos encontrado. Eram livros dispostos nas prateleiras de grandes livrarias, no setor de ocultismo e auto-ajuda. Estas obras haviam, em primeiro lugar, chamado nossa atenção para a questão da bruxaria moderna, ou wicca. Traziam um forte apelo de gênero, um culto aparentemente voltado ao feminino, definiam seus praticantes como bruxas e afirmavam ser a bruxaria uma religião. Como contrastar o que estes manuais traziam com a realidade experimentada pelas bruxas? Seriam elas, de fato, iguais às bruxas apresentadas nos livros de wicca? E a wicca no Brasil, com toda a especificidade de sua sociedade, seria ela a mesma bruxaria praticada nos Estados Unidos e na Europa, de onde provém a maioria dos autores sobre wicca? Apenas o trabalho de campo poderia fornecer material comparativo para isto. Ao mesmo tempo, já nos perguntávamos como seriam as bruxas de carne e osso, em que difeririam das outras mulheres, em que se assemelhariam. Nosso ingresso no campo foi realizado em janeiro de 1999, e se estendeu até dezembro de 2000. Foi através de um programa de televisão que pudemos alcançar bruxas do Rio de Janeiro que nos abriram as portas para que conhecêssemos outras bruxas. Formou-se um circuito de indicações e deste modo pudemos realizar oito entrevistas com bruxas e um bruxo cariocas. A partir delas, montamos perfis que nos ajudaram a entender as bruxas de carne de osso. Até então, havia apenas a idéia passada pelos manuais escritos por autores estrangeiros. Houve a oportunidade de contrastar o pensamento e os perfis apresentados por estes autores com a realidade da wicca no país. Foi assim que percebemos que a wicca se inseria no âmbito mais amplo da Nova Era, e seus praticantes não diferiam muito, em termos de perfil sócio-econômico, dos new agers. Pudemos traçar, também, os perfis religiosos das bruxas brasileiras, e deste modo entendemos quais religiões faziam sentir mais fortemente sua influência sobre elas. Havia, claramente, entre as bruxas pesquisadas, um sentido de busca religiosa. Essa busca formava perfis muitas vezes correlatos. São pessoas que vinham de um universo católico ou espírita – um

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universo cristão - e se dirigiam para práticas de Nova Era, freqüentemente passando pelo espiritismo, tanto a umbanda quanto o kardecismo. O espiritismo se tornou um elemento chave na compreensão da categoria magia para o Brasil. Esta discussão será vista mais adiante. A sociedade brasileira é uma na qual a magia convive com a ciência e a religião no imaginário popular, no folclore, na cultura do povo. Como as concepções de moderna magia européia, a wicca, estariam sendo tratadas aqui pelas bruxas brasileiras? Nossas tradições mágicas mais fortes são a africana e a das benzedeiras de tradição portuguesa ou indígena. Como estas duas correntes se relacionariam com esse novo universo de práticas mágicas? Será que se relacionariam? O trabalho de campo realizado não se limitou às entrevistas. Algumas entrevistadas tinham relatado que haviam chegado a wicca através da internet. Isto se tornou um dado relevante para a pesquisa de campo. Conforme o campo ia se revelando, novas questões iam surgindo e novos caminhos foram buscados. A internet, como veremos, se mostrou um veículo privilegiado na comunicação das bruxas brasileiras, um veículo formador de opiniões, legitimador de determinada posição no grupo da wicca no Brasil, um espaço de disputa neste grupo. Como acompanhar as manifestações das bruxas na internet? A princípio, foi Vanessa quem nos levou a duas reuniões de bruxas internautas no Rio de Janeiro. Ambas foram realizadas em um bar no Leme. O perfil dos presentes a estes encontros revelava uma visível predominância de jovens, tanto homens quanto mulheres. Nem todos, entretanto, eram praticantes de wicca. Havia praticantes de diversas correntes de magia: thelemitas, satanistas, magistas do caos, bruxas sem denominação. Mas há algo em comum entre eles: todos são praticantes de correntes mágicas ligadas a uma tradição esotérica ocidental. Queremos com isso dizer que não havia praticantes de magia afro-brasileira, por exemplo, embora um determinado casal dissesse praticar o vodu haitiano. Embora seja uma prática de origem africana, ela não é uma prática brasileira. Este dado, a princípio pouco importante, se mostrou revelador. Freqüentar as reuniões das bruxas internautas não era suficiente para delinearmos um perfil, nem nos ajudaria a compreender as discussões que aconteciam pela rede. Decidimos, então, ingressar como membros em três diferentes listas de discussão da internet, e assim pudemos acompanhar melhor o desenvolvimento do grupo por este veículo. Percebemos aos

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poucos que toda forma de magia buscada pelas bruxas internautas, ou outros praticantes de magia, foge, frequentemente, ao universo da magia praticada no Brasil, seja ela de origem africana, européia ou indígena. Esta observação se tornou um fato incontestável quando percebemos que este era um dos motivos de desavença entre as bruxas brasileiras. Para algumas, há uma necessidade de um resgate de nossa cultura popular e folclórica, seja de que origem for. Para outras, o recurso é sempre à cultura e ao folclore estrangeiro, seja ele de que país for. A internet se transformou, desta maneira, em um complemento indissociável do grupo concreto. Estas reuniões no Leme só existiam porque as bruxas haviam se conhecido na internet. O encontro anual das bruxas wiccanas, promovido em Brasília desde 1999, só existe porque algumas bruxas se conheceram pela internet. A disputa pela liderança entre as bruxas no país se dá, prioritariamente, através da internet. É através da rede virtual que novas lideranças apareceram e se firmaram como lideranças nacionais. Ao realizarmos um perfil das bruxas internautas, verificamos que este estava de acordo com o observado entre as bruxas entrevistadas. Deste modo, eles se completam. Por outro lado, os perfis mostravam apenas experiências individuais em relação à bruxaria wicca. Sentimos, então, a necessidade de acompanhar o perfil de um grupo de prática. Foi através de Vanessa que chegamos a bruxos que haviam tido um coven, já então extinto. A estória da formação e do fim deste coven será descrita posteriormente. Poderemos entender o que o grupo de prática, o coven, significa para uma bruxa, e como ele trabalha. O coven não só é parte da religião wiccana como é uma aspiração freqüente das bruxas. É comum observar em novatos o interesse extremo que demonstram em ingressar em um coven. Percebemos, através da reconstrução da estória de um determinado grupo, que o coven não é uma aspiração apenas dos novatos, mas pode ser também um sonho de bruxas solitárias. Ao mesmo tempo, as concepções de coven que as bruxas carregam são fundamentais para entendermos o por que desta aspiração. Este capítulo conta uma estória de bruxas wiccanas brasileiras, e ao mesmo tempo delimita o público da bruxaria no país. As acusações, tão caras ao estudo antropológico da bruxaria, estão presentes em todos os três. Estas não se reportam, como é costume na tradição antropológica, a acusações de malefício. Conquanto tomem várias formas em diversas situações dadas, elas giram em torno da mesma questão: quem é a bruxa verdadeira? Há, não obstante, as acusações externas ao grupo, essas sim tratando do malefício. Mas a acusações que as bruxas

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trocam entre si não se baseiam neste ponto. Saber quem é a bruxa verdadeira, acusar a falsa bruxa, nisto se resumem as acusações internas do grupo. Estão presentes, igualmente, as disputas por liderança, comuns a qualquer realidade. Há, por um lado, a disputa retratada no âmbito do coven estudado e, por outro, a disputa travada a nível nacional entre diferentes correntes de pensamento, que encerram distintas concepções de bruxaria. Estas concepções apresentam, para o observador atento, o pensamento das bruxas, e ajudam a esclarecer o que efetivamente está em jogo. Muitas vezes, é no conflito que as estruturas aparecem mais claramente. É interessante ressaltar que as estratégias para a disputa, em ambos os casos, são análogas. O grupo é delimitado e quem está fora dele não tem direito a buscar sua liderança: é desta forma que os conflitos foram solucionados por aqueles em disputa no que tange aos casos estudados. Deste modo, este capítulo traz também a dinâmica das bruxas como grupo: no coven, como grupo de prática; na internet, como comunidade. Embora pareça que o trabalho de campo realizado se tornou amplo demais, optamos conscientemente por não nos focarmos apenas em um dos processos acima, ou em apenas um processo de pesquisa. Se as bruxas brasileiras formam algo que possa ser chamado de comunidade, era imprescindível que a sua interação na rede virtual, a internet, fosse acompanhada. Mas como espaço de interações mediadas, era necessário também sair da internet e ver as bruxas face-a-face. Os perfis das bruxas internautas e das entrevistadas é muito semelhante, e formam um perfil mais abrangente e completo dos praticantes de wicca no país. Por outro lado, como grande parte desta prática se dá no coven, era necessário tomar um grupo de prática para que compreendêssemos a totalidade destas interações. O coven estudado não representa, está claro, o padrão de todos os covens de bruxas. Surpreendeu-nos, contudo, que os processos vividos por seus membros sejam análogos aos processos que observamos na internet. O leitor perceberá que, partindo de um sujeito tradicional como a bruxa, chegamos na mais ampla modernidade: a internet. O caminho não era inevitável, mas foi nossa opção uma vez que entendemos que a wicca, como a Nova Era, é uma reação à modernidade tardia com recurso ao tradicional. São identidades que estão em jogo, e embora nos parecesse, à princípio, que seriam apenas identidades de gênero, isto se apresentou de outra forma no campo. A bruxa não é apenas uma categoria que determina uma identidade feminina específica, alinhada fora dos padrões de “puta” ou “santa”. A categoria bruxa envolve questões marcadamente de gênero, mas num espectro mais amplo de concepções de mundo. Ao mesmo tempo, ser bruxa, no universo

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pesquisado, se tornou não apenas uma categoria indicadora do uso ou não de magia, mas uma opção religiosa, filosófica e muitas vezes uma profissão. Há, no perfil das bruxas estudadas, uma estória de busca religiosa mas também um determinado status social em jogo. Quisemos entender como a categoria bruxa se tornou tão abrangente para essas pessoas, delimitando até sua ocupação profissional e formulando uma identidade total que não se restringe a concepções sobre o masculino e o feminino.

PERFIS E ACUSAÇÕES: ENTREVISTAS COM BRUXAS CARIOCAS

Em janeiro de 1999, o Caderno Teen, um programa para adolescentes na TVE, realizou uma entrevista com uma bruxa. Ela explicava o que era a bruxaria wicca, falava do Deus e da Deusa, dos sabás e fez um convite aberto ao público em geral para que comparecesse a uma reunião na Floresta da Tijuca, realizada no final daquele mês, na qual bruxas e bruxos do Rio de Janeiro estariam reunidos. Por sorte ou acaso – ou magia, diriam os Azande -, conhecíamos há muito a bruxa em questão (sem sabermos que era bruxa). Fomos à reunião de bruxas na data marcada e reconhecemos lá uma outra bruxa que também conhecíamos. Estas pessoas, sem dúvida alguma, foram de fundamental importância para nosso ingresso no campo. Estas duas bruxas serviram como a porta de entrada num mundo mais vasto, um universo de mulheres e homens praticantes de magia. Ana, que apareceu na televisão, apresentou-me a outras bruxas e bruxos. Vanessa, a outra bruxa conhecida, se tornou nossa informante, e foi responsável, junto com Ana, pela indicação de boa parte das bruxas entrevistadas por nós. Com esta oportunidade em mãos, o universo descrito nos manuais de bruxas podia ser confrontado com o universo das pessoas de carne e osso, dos seres humanos reais. As bruxas descritas naqueles manuais - livros que em primeiro lugar chamaram a nossa atenção para a bruxaria moderna européia chamada wicca - podiam ser contrapostas a bruxas reais. A maioria destes manuais foi escrita por autores estrangeiros. Tínhamos nas mãos, além de tudo, a oportunidade de não apenas encontrar bruxas reais, residentes no Brasil, mas de confrontar que tipo de bruxaria elas praticavam aqui, quais influências sentiam-se mais fortemente em seus

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perfis religiosos, como tinham alcançado a bruxaria, como tornaram-se bruxas, porque tornaramse bruxas, entre outras questões. Realizamos, a partir daí, oito entrevistas com bruxas do Rio de Janeiro: sete mulheres e um homem. Através das entrevistas realizadas pudemos montar um pequeno perfil das bruxas, o que nos permite levantar algumas hipóteses. Através das entrevistas pudemos compreender o perfil individual de cada bruxa, o que marca suas motivações, aspirações e desejos na bruxaria. Para um perfil geral das entrevistadas, temos que: •

a faixa etária se encontra entre 22 e 49 anos;



quanto ao estado civil, encontramos cinco pessoas casadas (no civil e/ou religioso), duas separadas (uma de casamento legalmente constituído, a outra de coabitação) e uma solteira;



o número de filhos oscila entre dois para aqueles que são ou já foram casados e nenhum para os solteiros e alguns casados: quatro entrevistadas têm dois filhos e quatro não têm nenhum;



a renda familiar varia de R$800 a R$6500: predomina a renda de R$1500 a R$2000, aproximadamente;



os locais de moradia concentram-se em bairros de classe média e classe baixa, entre São Gonçalo e a Zona Sul e Norte do Rio de Janeiro: Porto Novo (S. Gonçalo) (1), Lins (1), Tijuca (3), Laranjeiras (1), Botafogo (1), Glória (1);



os ramos profissionais distinguem-se bastante, mas há uma concentração em atividades correlatas ao mercado esotérico: há uma funcionária pública, uma personal trainer, uma psicóloga, uma professora de dança e mais quatro entrevistados - um homem e três mulheres - que vivem diretamente da renda obtida com o mercado esotérico (uma como comerciante; uma como astróloga, runóloga, numeróloga e taróloga; um como radiestesista e tarólogo; uma como taróloga)1; a psicóloga eventualmente participa deste

_____________________________________________________ 1 – Essas definições profissionais foram dadas pelos entrevistados. Tarólogo é aquele que joga tarot, método divinatório com cartas de tarot. Runólogo é aquele que joga runas, método divinatório que consiste em símbolos gravados em pequenas placas de madeira, osso, vidro, pedra ou cristal. Radiestesista é aquele que faz medições energéticas com um pêndulo para harmonizar essas energias. Os numerólogos são aqueles que utilizam a numerologia, saber oculto sobre as propriedades dos números.

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mercado como palestrante em feiras esotéricas e astróloga; a professora de dança também participa deste tipo de evento como palestrante; •

quanto à escolaridade, apenas o entrevistado mais novo nunca ingressou em curso superior; do restante das entrevistadas, todas as mulheres passaram por algum curso superior, ou mais de um, concluindo-os ou não; há uma preferência por carreiras acadêmicas nas áreas de ciências humanas e letras, seguida pela área bio-médica;



sete entrevistados (seis mulheres e um homem) já participaram de algum tipo de movimento social, mais notadamente o movimento estudantil e o movimento ecológico;



três entrevistadas foram efetivamente vinculadas a partidos políticos, a princípio todas no PT mas ingressando posteriormente no PSTU (2) e PV (1); outros dois entrevistados (um homem e uma mulher) se envolveram de alguma forma com o PV, mas apenas como simpatizantes;



quanto à religião da família, notamos que ela não é determinante na opção religiosa dos entrevistados: cinco deles são oriundos de famílias católicas, duas de família umbandista e uma de família pertence às Testemunhas de Jeová. É importante observar que: a) nem sempre toda a família é de fato praticante de uma determinada religião, podendo apenas a opção religiosa da mãe simbolizar para o entrevistado a opção da família nuclear; as mães aparecem mais vinculadas à religião do que os pais e padrastos; b) bem como ocorre entre os entrevistados, há casos em que a mãe e/ou o pai (ou padrasto) adotam várias religiões diferentes em diferentes épocas de suas vidas, nesse caso, a religião familiar é normalmente descrita pelo entrevistado, e aceita pela entrevistadora, como aquela na qual o entrevistado foi socializado, ou seja, a do período de infância;



todos os entrevistados foram batizados na Igreja Católica: sete quando crianças e uma apenas para se casar; dos sete batizados quando criança, seis cursaram a catequese e cinco fizeram a Primeira Comunhão;



quando perguntamos aos entrevistados qual a sua religião anterior, cinco afirmaram que não tinham religião - a despeito da vida religiosa da família e de terem (em alguns casos) participado da Igreja Católica quando crianças e feito a Primeira Comunhão -, duas afirmam que já frequentaram a umbanda, o kardecismo/espiritismo e o budismo, e uma participava da Igreja Messiânica;

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o primeiro contato com a bruxaria wicca pode ter se dado numa época em que o entrevistado não deu atenção ao que encontrara, ou não se interessou, ou ainda não compreendeu, e se esqueceu de que já tinha lido algo a respeito da wicca – isso demonstra que a bruxaria como religiosidade é aceita (e buscada) num momento determinado, isto é, momento de busca pela construção de uma identidade a despeito dos entrevistados afirmarem que foram bruxos “desde sempre”; deste modo, consideramos o primeiro contato como aquele que instigou de fato a busca do entrevistado pela bruxaria. Essa busca pode ter sido desencadeada por diferentes fatores subjetivos, mas se dá através da internet para dois entrevistados, através de livros para quatro deles e através de amigos para os outros dois;



é interessante notarmos, a partir da observação acima, que o encontro com a bruxaria se dá através de uma busca que, a princípio, o entrevistado nem ao menos sabia ao que. Pode ser configurada uma busca por algum tipo de religiosidade, mas dificilmente uma em especial, algum tipo de filosofia de vida pode estar sendo buscada também bem como alguma forma de explicação cosmológica do mundo e/ou de fenômenos “sobrenaturais” ou “extra-sensoriais”;



consideramos o aprendizado da wicca como uma categoria diferente do contato, pois marca a entrada de fato para a religião: essa aprendizagem se deu através de livros para quatro entrevistados, através de amigos para um e através de um coven para três deles;



atualmente, três entrevistadas mantém covens ativos e cinco permanecem bruxos solitários.

As bruxas entrevistadas Foram realizadas, ao todo, entre novembro de 1999 e março de 2000, oito entrevistas (sete mulheres e um homem), todas na cidade do Rio de Janeiro e cidade de São Gonçalo (Grande Rio). Traçamos um breve perfil desses entrevistados, contando um pouco de suas estórias pessoais. Os nomes usados são fictícios. As categorias para esse perfil são: idade, estado civil, número de filhos, bairro em que mora, renda individual e familiar, profissão, escolaridade, militância em movimentos sociais, religião, primeiros contatos com a wicca e subseqüente entrada nesta religião. Interessante notar que não há uma conversão à

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bruxaria, há uma adesão: é o encontro de algo procurado há um longo tempo para alguns, e o encontro com um corpo doutrinário religioso que dá forma a crenças pessoais para todos os que praticam a wicca. É o encontro com aquilo no qual “sempre” se acreditou. O conhecimento da religião vem de dentro do praticante e, portanto, a assimilação do pensamento wicca é anterior à adesão. A noção de busca se torna importante na medida em que estabelece quando foi o primeiro contato com a bruxaria, dissociando este contato da adesão de fato. A adesão se dá num momento específico de vida, para cada um, regida por experiências pessoais subjetivas. Essas experiências parecem ser determinantes na adesão. 1) Vanessa Vanessa tem 25 anos, é solteira e sem filhos. Ela mora no Lins, Zona Norte do Rio, com a mãe e o padrasto. Ela não tem irmãos. Seu padrasto é pintor e mestre de obras, ganhando bem menos do que ela. A mãe é dona-de-casa. A renda familiar é de R$2000. O salário de Vanessa, funcionária pública, é R$1300. Além de trabalhar, Vanessa cursa Direito na UERJ. Ela era aluna do curso de Letras (Português-Inglês) na UFRJ, mas abandonou o curso preferindo Direito. A partir dos 17 anos, passa a militar no movimento estudantil, a princípio com o PT mas posteriormente com o PSTU. Vanessa afirma que sua família é católica, apesar de saber que sua mãe faz “macumba” esporadicamente. O pai é católico. O padrasto não tem religião. Ela foi educada pela família no catolicismo: foi batizada, fez a catequese e a Primeira Comunhão. Apesar disso, afirma que sempre foi wiccana, e que apenas não sabia como nomear essa idéia religiosa que tinha. A partir dos sete anos de idade, Vanessa começou a jogar cartas intuitivamente, isto é, sem ninguém lhe ensinar. Posteriormente, com dez ou onze anos de idade, ela leu o Livro de São Cipriano, um livro de bruxaria facilmente encontrado em livrarias e bancas de jornais. Aos treze anos passou a jogar tarot. Leu Mônica Bonfiglio já na faculdade, uma autora de livros sobre anjos e almas gêmeas. Após fazer um feitiço para se livrar da inimizade de uma moça – feitiço este que ela afirma ter funcionado -, passou a ler sobre magia em livros dos autores Eliphas Levy e Papus, mas não se identificou com a magia descrita nesses livros. Passou a ler também sobre o tarot. Nesta época, leu uma reportagem na revista Marie Claire sobre novas religiosidades e descobriu a wicca, mas devido à forma como esta foi apresentada na revista, ficou com a impressão de que

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seus praticantes não eram pessoas sérias. Mais tarde, na faculdade, teve acesso à internet e encontrou sites sobre a wicca. Apesar de seu primeiro contato com a wicca ter se dado através de uma revista, é através da internet que Vanessa passou a estudar a wicca e compreender a bruxaria. É nesse momento que ela se identifica com a wicca e descobre que é wiccana. Passa, então, a ler livros sobre bruxaria. Posteriormente formou um coven que durou cinco meses. A princípio, participavam oito pessoas deste coven, mas apenas quatro permaneceram de fato. Ela conheceu estas pessoas “por acaso” na UERJ e também através da internet. Após o término do coven, ela passou a praticar a wicca com uma amiga. Hoje diz que é uma bruxa solitária. 2) Ana Ana tem 28 anos, é solteira e tem duas filhas, uma de cinco anos e a outra de dois. Cada menina é fruto de um “casamento” diferente de Ana. Em ambos os casos, o “casamento” era coabitação, não havendo nenhuma cerimônia civil ou religiosa. Atualmente Ana está separada de seu segundo “marido” e mora com as filhas na casa de sua mãe, na Tijuca. Ao ser perguntada sobre sua renda mensal e familiar, Ana não quis entrar em detalhes, limitando-se a responder que não tinha conhecimento da renda familiar da casa nem tinha uma renda mensal fixa, pois trabalha como taróloga e promove eventos esotéricos. Contudo, ela afirma que tem um padrão de vida de classe média. Ana cursou um ano de Astronomia na UFRJ, mas abandonou o curso. Anos mais tarde, já casada e mãe das duas meninas, ela ingressou na faculdade de Letras (Português-Inglês), na Universidade Estácio de Sá. Ela cursou Letras por um ano, não completando o curso. Quando ainda era estudante, participou do movimento estudantil, quando fazia parte do PT. Posteriormente passou a militar pelo PSTU, pois fazia parte da Convergência Socialista, corrente petista que dá origem a esse partido. Ana afirma que sua família é católica, religião na qual foi educada. Ela foi batizada, fez catequese e Primeira Comunhão. Apesar disso, diz que antes de encontrar a wicca não tinha uma religião. Afirma que sempre foi wiccana, mas não sabia como nomear sua religião. Ana começa a jogar cartas intuitivamente aos 12 anos. Inicia, então, seus estudos sobre esoterismo. Esses estudos eram clandestinos, sem o conhecimento de sua família, o que levou Ana, a partir dos 14 anos, a “matar aulas” da escola para freqüentar cursos esotéricos. Ela relata que tinha premonições e vidência e procurava uma explicação para esses fenômenos. Primeiro,

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ela buscou no espiritismo, depois na magia cerimonial, quando leu autores como Eliphas Lévy e Papus. Começa, então, a pesquisar sobre os ciganos, pois seu pai era filho de ciganos, embora não tenha aprendido a cultura cigana e tenha sido criado para ser padre, entrando no Seminário mas abandonando-o por fim. A busca de Ana por conhecimento se estendeu às filosofias orientais e o I Ching. Ela afirma que nenhuma dessas filosofias/religiões era aquela com a qual se identificava, pois via Deus como uma mulher e procurava um caminho religioso que acreditasse nisso. Foi numa conversa com um amigo que ela descobriu a wicca e chegou à conclusão de que esta era sua opção religiosa, aquela a qual ela vinha buscando. Ana passou, então, a ler uma literatura estrangeira específica sobre o assunto. Nesta época, começou a freqüentar as livrarias Laice e Pororoca, especializadas em livros esotéricos. Foi neste momento de sua vida que Ana descobriu que a wicca e a bruxaria eram a mesma coisa. Recordou-se de já ter lido um livro sobre bruxaria antes, escrito por Hans Holzer, na biblioteca do colégio, em 1984, com 12 anos de idade, quando ainda estudava no Colégio Pedro II. Nessa época, afirma, não conseguiu aceitar bem o que o livro apresentava, pois era muito nova e o conteúdo repleto de simbologias sexuais a assustara. Ana só se tornou praticante de wicca quando conheceu uma outra bruxa, Inês, que trabalhava como vendedora na mesma loja que ela, no shopping Rio Sul. Ana passou a estudar com Inês e quando mais pessoas juntaram-se a elas, formou-se seu primeiro coven. 3) Cíntia Cíntia tem 36 anos de idade, é casada e tem dois filhos: uma menina de três anos e um menino de cinco. Ela mora com o marido e os filhos em Laranjeiras. A renda familiar da casa é de R$3000. Cíntia não soube dizer quanto ganha por mês pois mantém três atividades paralelas, todas como autônoma: ela é representante comercial de vestuário, personal trainer e afirma também trabalhar na área de radiologia. Seu marido trabalha na área de informática. Ele é programador, faz páginas de internet e digitação, trabalhando como autônomo. Tem 28 anos e cursa a faculdade de Informática. Simone já passou por três cursos superiores, não completando nenhum. Fez Educação Física, Direito e Comunicação Social. Na faculdade, participou do movimento estudantil, mas não fazia parte de nenhum partido político. Cíntia afirma que sua família era Testemunha de Jeová e portanto não lhe foi ministrado nenhum sacramento da Igreja Católica. No entanto, como seu sonho era casar-se na Igreja, Cíntia

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foi batizada no catolicismo e casou-se numa cerimônia católica. Hoje diz que não sabe se a mãe é espírita ou católica. Apesar de batizada na Igreja Católica, Cíntia diz que já freqüentou a umbanda, o kardecismo e o budismo. Quando criança e adolescente, tinha visões e sonhos premonitórios. Sentia-se diferente das outras crianças quando nova, pois teve sérios problemas de saúde e só começou a andar aos sete anos. Acabou dando muito valor ao esporte, numa tentativa de equilibrar o corpo deformado pela doença. Hoje ela ostenta uma silhueta musculosa. Quando adolescente, as visões lhe causavam incômodo e eram motivo de “deboche” por parte de outras pessoas. Ela só veio a encontrar a wicca anos mais tarde, através de um bruxo com quem conversava pela internet. Este homem afirmou que ela era bruxa e lhe deu o endereço de um site de wicca. A partir daí ela afirma ter começado a estudar wicca, procurando livros sobre o assunto, embora diga que já então suspeitasse que era bruxa. Cíntia nunca participou de nenhum coven, mas mantém contato com outros bruxos através da internet, onde participa de listas de discussão. Eventualmente, ela vai a São Paulo visitar amigos bruxos. 4) Adriana Adriana tem 31 anos, é separada de seu primeiro marido há três anos e tem uma filha de 13 anos e um filho de 9. Ela mora com os filhos em Porto Novo, São Gonçalo (Grande Rio). Funcionária da Sul América Seguros, onde era técnica de atendimento, Adriana resolveu montar um negócio próprio em sociedade com uma de suas irmãs (são seis irmãs e um irmão). Ela atualmente trabalha em sua própria loja, aberta no final de 1999, que fica do lado de sua casa, em São Gonçalo. A loja vende produtos esotéricos como incensos, cristais, gnomos, anjos, entre outros. Há uma sala separada da loja onde Adriana dá consultas de Baralho Cigano, jogo de cartomancia. Ela não quis declarar a renda pessoal, mas afirma que sua renda familiar é de R$2100. Ela cursou Turismo na faculdade Plínio Leite, de Niterói, mas nunca exerceu a profissão. Quando estudava, participou do movimento estudantil. Nesta época, fazia parte do PT, mas desligou-se recentemente para ingressar no PV, onde pretende ajudar na candidatura de uma amiga. Adriana afirma que sua mãe era umbandista, mas fez questão de que os filhos fossem batizados na Igreja Católica, onde deveriam também fazer a catequese, ficando a cargo de cada

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um a opção de fazer ou não a Primeira Comunhão. Adriana diz que optou por não fazer a Primeira Comunhão. Mais tarde, ela ingressou na Igreja Messiânica, onde se casou. Afirma que sempre foi “muito bruxa”, possuindo uma “ligação muito forte com a lua”. Descobriu que era bruxa quando fez um ritual de cura, intuitivamente, para o filho que tinha uma grave doença. O menino era ainda bebê, e nenhum médico prometia cura. Esta foi alcançada através deste seu ritual. A partir daí ela passou a buscar e estudar a bruxaria. Quando encontrou a wicca, ela ainda participava da Igreja Messiânica. Uma de suas primeiras leituras foi Brida, de Paulo Coelho, quando se identificou com a personagem título do romance que é uma mulher em busca de uma pessoa que lhe ensine bruxaria. A partir daí começou a freqüentar livrarias e sebos procurando livros a respeito de feitiçaria. Há seis anos, Adriana conheceu uma bruxa chamada Monique e uma amiga desta, através de um anúncio na Revista Programa do Jornal do Brasil. Monique ia ministrar um curso sobre bruxaria wicca, mas quando conheceu Adriana disse-lhe que não precisava de aulas pois Adriana fazia tudo certo intuitivamente. Algum tempo depois, Adriana começou a freqüentar uma grande livraria no centro do Rio onde conheceu alguns bruxos. Durante algum tempo essa livraria foi local de encontro de praticantes de wicca. Na entrevista, Adriana afirma ser uma bruxa solitária. No entanto, ela tem praticando a bruxaria com algumas outras pessoas a quem ela ensina a wicca. Entre os participantes deste novo coven, estaria sua filha. Adriana já havia ensinado bruxaria para uma pessoa antes, um rapaz que ela conheceu numa livraria no centro do Rio. Na época em que a entrevista foi realizada (novembro de 1999), uma adolescente tinha procurado Adriana também com o intuito de que ela lhe ensinasse a wicca, mas Adriana ainda não havia aceito formalmente esse pedido. 5) Carla Carla tem 32 anos de idade, é casada e não tem filhos. Seu marido tem 40 anos e é judeu. O casamento deles foi realizado tanto na wicca quanto no judaísmo. Eles têm um apartamento na Glória, onde moram e trabalham. Tanto Carla quanto o marido trabalham no “mercado esotérico”. Foi num evento desses que eles se conheceram. Carla ministra aulas de wicca e dá consultas como taróloga, runóloga e astróloga. Ela também receita Florais de Bach aos seus consulentes. O marido dá aulas de hebraico e Cabala, e também faz consultas como astrólogo. A renda pessoal mínima de Carla é de R$800, segundo ela, proveniente de seus alunos de wicca,

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que lhe pagam uma mensalidade. A renda familiar, devido às ocupações autônomas, pode variar de R$800 a R$6000. Carla se formou em Biologia na Universidade Santa Úrsula, e seu marido é psicólogo formado mas não trabalha nessa área. Carla já trabalhou como bióloga, mas ao perder seu emprego passou a atuar no mercado esotérico e como vendedora de loja. Na faculdade, ela participou, por um curto período, do movimento estudantil, contudo, não era vinculada a nenhum partido político. Ela panfletava para o PV durante as eleições, mas não era filiada ao partido. Carla diz que sua mãe foi criada por uma outra família, que não seus pais, que era muito católica e tornou-se católica também. Ela conta que seus ancestrais são possivelmente pagãos, ou seja, praticantes de bruxaria, embora ela não possa confirmar esta suposição. Foi criada pela mãe no catolicismo, freqüentando colégios confessionais. No entanto, ela relata que desde pequena se sentia diferente das outras crianças. Diz que era capaz de ver e se comunicar com espíritos, tinha visões e sonhos premonitórios, desenhava quadrados mágicos. Começou a jogar cartas intuitivamente com 12 anos de idade e mais tarde ganhou um baralho de tarot que passou a jogar. Aos 19 anos, Carla entrou na faculdade Santa Úrsula e começou a freqüentar a biblioteca de assuntos teológicos. Leu alguns livros e conheceu pessoas ligadas à bruxaria. Foi convidada, então, a entrar num coven onde permaneceu de 1987 a 1994. A partir daí permaneceu como bruxa solitária, mas agora já possui um novo coven organizado por ela e do qual fazem parte alguns de seus alunos. 6) Edna Edna tem 34 anos, é casada mas não tem filhos. Seu marido, Ronaldo, tem 22 anos e é também nosso entrevistado. O casamento deles foi realizado numa cerimônia religiosa wicca. Eles moram na Tijuca. Edna é professora de Dança do Ventre, e não tem uma renda mensal fixa. Ela afirma que sua renda familiar é flutuante, sendo cerca de R$1500 mensais. Ela cursou Publicidade na faculdade Hélio Alonso, mas não trabalha na área. Já fez parte do PV e de um grupo ecológico ligado à Biblioteca Nacional quando ainda estava na faculdade. Sua mãe é umbandista e seu pai é baha’i. Segundo Edna, a fé baha’i se baseia em não fazer mal a ninguém. É uma fé sem dogmas. Apesar disto, ela foi batizada na Igreja Católica. Edna afirma que nunca praticou nenhuma outra religião que não a wicca. A wicca é a única religião que “tem a ver com minha linguagem”, principalmente por sua ênfase no feminino. Ela

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decidiu se tornar bruxa quando leu As Brumas de Avalon, de Marion Zimmer Bradley, aos 15 anos, e se identificou com a religião descrita no livro. Identificou-se com “a maneira mais feminina de ter contato” com a religião e passou a enxergar a divindade como feminina. Só ingressou na wicca de fato após ter-se mudado do Rio de Janeiro para o Rio Grande do Sul, onde conheceu uma taróloga que era bruxa. Ao vê-la buscando “a religião da Deusa”, esta amiga revelou que era bruxa e convidou-a a entrar para o seu coven, há sete anos. Hoje ela participa de vários covens quando é convidada para alguma festa, praticando a religião mais assiduamente com Ronaldo. Já manteve, por dois anos, um coven próprio no Rio de Janeiro, mas este foi extinto. 7) Vanda Vanda tem 49 anos de idade, é a mais velha das entrevistadas e a única que não pratica a wicca. Como ela se define como bruxa, tomamos seu depoimento. Ela é casada há doze anos com seu segundo marido, com quem não teve filhos. Tem um casal de filhos com o primeiro marido: uma moça de 24 anos e um rapaz de 19. A moça é engenheira e trabalha atualmente no Piauí. O rapaz cursa informática na Universidade Estácio de Sá. Vanda mora com a marido e o filho em Botafogo. Ela é formada em psicologia pela Universidade Santa Úrsula e trabalha como psicóloga junguiana atendendo seus pacientes. Além disso, também dá consultas como astróloga e mais raramente como taróloga. Sua renda mensal é de R$1500. A renda familiar é de R$6500. Ela nunca participou de nenhum movimento social. Vanda conta que sua família era católica. Sua busca religiosa, no entanto, começou precocemente. Ela diz que com oito anos de idade teve vontade de ser freira. Aos 12, começa a estudar o espiritismo. Aos 15, passa a freqüentar a Umbanda, de onde só se desliga com 21 anos. A sua ligação com a umbanda permanece forte até hoje. Embora não freqüente mais, ela afirma que é a religião “mais poderosa” que já conheceu. Quando questionada sobre rituais mágicos, ela afirma que os faz, mas seguindo a tradição da umbanda. Ela também permanece devota de seus Orixás. Após sair da umbanda, Vanda começou a buscar todo tipo de conhecimento Nova Era. Leu sobre os chakras, Feng Shui, vidas passadas, tarot, astrologia e pratica meditação. Afirma que começou uma busca espiritual pois não sentia a presença de Deus. Como psicóloga, ela analisa esta sua busca como a busca por um pai, visto que foi criada por sua mãe e o padrasto.

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Sua busca só terminou dez anos atrás, durante uma meditação, quando encontrou o deus hindu Shiva. Vanda não é uma bruxa wicca, mas declara que é bruxa. Ela define sua religiosidade como sendo “filha da Deusa”, e diz que está muito ligada a Vênus, Oxum e Yemanjá. Afirma que a sua religiosidade está vinculada à natureza. Os rituais que faz são “o que vier na minha cabeça”, mas de um modo geral seus feitiços e rituais ainda estão ligados à tradição da umbanda. Ela busca agora “despertar a consciência”. 8) Ronaldo O último de nossos entrevistados é o único homem, o único sem curso superior e o mais novo também. Tem 22 anos. Ele é casado com Edna numa cerimônia wicca. Este é seu segundo casamento. Ele já havia se “casado” (coabitação) antes, também com uma mulher mais velha do que ele. Ronaldo não tem filhos. Ele mora na Tijuca, com Edna. Concluiu o segundo grau no Colégio Pedro II mas só em 2000 pretende prestar vestibular para o curso de Música. Ronaldo é profissional do mercado esotérico e músico nas horas vagas. Ele trabalha dando consultas de tarot e radiestesia. Sua renda mensal é flutuante, mas a renda familiar declarada é de cerca de R$1500. Quando ainda estava no colégio, Ronaldo fez parte do movimento estudantil. Ele frequentava o PV e o Greenpeace, pois as questões ecológicas lhe chamavam atenção, contudo, não foi membro de nenhuma dessas organizações. Seu pai é católico mas já freqüentou o kardecismo e a umbanda. A mãe é católica, mas já se interessou por espiritismo e hoje estuda esoterismo e ufologia. Ele foi criado dentro do catolicismo, mas considera que a única religião que já praticou foi a wicca. Lê sobre ocultismo desde os 13 anos. Começou a jogar tarot e buscar livros sobre magia prática e ritual. Encontrou um livro sobre wicca chamado Feitiçaria: a tradição renovada, de Evan John Jones e Doreen Valiente, seu primeiro contato com a bruxaria, e continuou a pesquisar sobre o assunto. Foi quando conheceu uma amiga de sua mãe que era bruxa e decidiu instruí-lo. Passou a estudar bruxaria com ela. Mais tarde, através de um anúncio na Revista Programa, do Jornal do Brasil, conheceu Monique, e através dela outras bruxas, incluindo Edna e Ana.

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Algumas categorias de acusação A partir das entrevistas, muitas questões se esclareceram para nós, e outras vieram à tona. Percebemos, por exemplo, que embora o termo “bruxa” não constitua acusação para os entrevistados, sendo, pelo contrário, utilizado por eles para se auto-definirem, outras categorias de acusação foram formuladas, desta vez para designar aqueles que se fazem passar por bruxos e bruxas, mas que na realidade não o seriam. Estas são as acusações internas, de dentro do grupo dos que praticam a bruxaria para aqueles que se inserem no grupo ou se fazem passar por parte dele. Existem também as acusações formuladas por pessoas de fora do grupo (isto é, não bruxos), normalmente vindas da própria família da bruxa, mas também de alguma pessoa do círculo de convivência. As acusações, tanto as internas quanto as externas, em nenhum momento se dirigem contra um grupo específico, mas sempre contra determinados indivíduos portadores de determinadas características. Das acusações internas, percebemos três categorias claramente distintas – visto que se referem a comportamentos específicos - para classificar a “falsa bruxa”. A primeira delas foi apresentada anteriormente no discurso de Ana: é a categoria pink wicca. Segundo Ana, esta categoria foi forjada externamente ao grupo de bruxas por pessoas vinculadas a outras ordens mágicas, mas pudemos presenciar no campo o uso corrente que as bruxas fazem desta categoria de acusação, utilizada sempre para se referirem a praticantes de bruxaria. O pink wicca é aquele que pratica a bruxaria wicca de maneira incompleta, quase leviana. Como categoria de acusação usual, percebemos que pink wicca se refere prioritariamente àqueles com pouco comprometimento com a religião e àqueles que visualizam a bruxaria como uma grande congregação de ajuda mútua, o que ela não parece ser. O pink wicca pode ser aquele que pensa que todos os wiccanos são seus “irmãos”, que todas as bruxas são boas, que não há pessoas com interesses escusos praticando a wicca, que a natureza é naturalmente boa, que as divindades são naturalmente boas. Ou seja, pode vir a ser aquele que mantém um otimismo inabalável em relação ao mundo e à humanidade. Uma segunda categoria interna de acusação surge a partir do referencial estético da bruxa. A bruxa que usa maquiagem carregada, roupas espalhafatosas, pentagrama muito grande pendurado no pescoço, excesso de bijuterias, que mantém os cabelos vermelhos ou uma risada

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excêntrica pode ser vista como falsa bruxa. O ideal, neste caso, é manter a discrição, pois a bruxa “verdadeira” não teria necessidade de chamar atenção sobre si e sobre sua condição de bruxa. “Tudo que é natural é normal nessa religião, mas o que não é natural é você ver uma pessoa toda de preto, vestido longo preto, unhas pintadas de preto, sombra pintada de preto, cheia de anéis no dedo, pentagrama enorme no peito, tipo assim, cabelos vermelhos pintados, escutando Lorena McKenit ou Enya, ‘eu sou bruxa’. Você tem a sua religião. Quando passa disso pra exotismo cultural é outra coisa, você está querendo se mostrar. Eu já vi uma certa cidadã com uma roupa preta e uma sombra roxa e que ficava rindo assim. Ela simplesmente fez, botou um caldeirão no meio do palco, ficou mexendo o caldeirão e invocando poderes mágicos, e isso não era local. Necessita-se respeito à Grande Mãe.” (Carla) Embora o visual espalhafatoso seja motivo de desconfiança, três entrevistadas manifestaram sua predileção pelo preto e o vermelho: uma delas descreveu a bruxa como alguém inclinada a roupas exóticas; a outra descreveu uma situação em que se apresentava vestida exatamente como nos relatos acima. No momento da entrevista, três bruxas apresentavam-se vestidas completamente em negro. “A gente tem uma tendência a se vestir diferente. A gente tem hábitos de se vestir diferente, a gente gosta muito de usar preto, de usar roupas em estilo medieval, de usar roupas exóticas, de usar muitos anéis, de usar pendentes, pentagramas. Eu acho que é proposital, porque a gente tem a necessidade de conhecer outros como nós.” (Ana) A terceira acusação interna consiste na atitude de má fé em prol de vantagem material. A bruxa que cobra por seus serviços mágicos, aquela que cobra para ensinar bruxaria ou aquela que cobra preços muito altos para consultas de oráculo, radiestesia, numerologia, astrologia ou qualquer outro conhecimento é vista como uma “falsa bruxa”, pois a bruxa verdadeira deve cobrar o preço justo por seus serviços ou não cobrar nada. Neste sentido, os serviços passíveis de cobrança são justamente aqueles oferecidos no mercado Nova Era, ou seja, aqueles já institucionalizados como uma profissão. Como demonstramos anteriormente, três entrevistadas e

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um entrevistado vivem diretamente deste mercado e definem-se profissionalmente em relação a ele como astrólogos, runólogoas, tarólogos, numerólogos e/ou radiestesistas. Mesmo assim, quando em campo, notamos que muitas bruxas não vêem com bons olhos essa prática. Para elas, nem mesmo uma consulta de oráculo deveria ser cobrada. Frazão (1995) também condena essa prática. Aquela que desejar manter-se financeiramente apenas com o conhecimento de bruxa que possui será acusada pelo grupo como falsa bruxa. Uma de nossas entrevistadas adquire toda sua renda de atividades ligadas à profissão de bruxa. Foi possível perceber, durante o campo, que ela era constantemente acusada de má fé por diferentes pessoas, inclusive algumas que não a conheciam pessoalmente, o que indica que há um ethos a ser seguido. Rompendo esse ethos, ela se tornou alvo de acusações. Cabe aqui explicarmos melhor o que consiste a acusação de ser “falsa bruxa”. Nem sempre a acusação se relaciona à falsidade ideológica, ao fato de se afirmar possuir conhecimentos que na verdade não se possui. As “falsas bruxas”, em sua maioria, possuem o conhecimento que clamam ter. No entanto, elas o utilizam de maneira indevida, ou seja, quebram o ethos estabelecido do grupo e tornam-se assim sujeitos de acusações. Quem estaria mais próximo da falta de conhecimento é a bruxa pink wicca, contudo, ela não afirma possuir algo que não possui, e por isto, das três acusações internas, esta é sem dúvida a mais leve. A acusação de má fé é, das três, a mais forte. Poderíamos dizer que as três acusações acima referidas denotam uma quebra do ideal estabelecido para uma bruxa: comprometimento com a religião, desapego material, confiança e amor para com os membros do coven, discrição, senso de realidade, boa fé, entre outros. A bruxaria é vista como um ato de amor e caridade. “Falta nessas pessoas um pouquinho de caridade. Eu acho que magia é caridade. Você tem que usar o que você sabe pra ajudar alguém. A magia não é só para si, a magia não é um hobby, a magia é alguma coisa muito mais profunda. É você poder auxiliar outras pessoas. Eu acredito que a magia seja um compromisso com

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comunidade, as pessoas.” (Adriana) Há uma pressão do grupo de modo a indicar um ethos a ser seguido bem como certas regras de conduta desejáveis. A ruptura com esse ethos e essas regras dá lugar a um comportamento mal

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visto e desviante do ponto de vista do grupo. Uma vez que os objetivos legítimos do grupo não são seguidos por um indivíduo, constitui-se um comportamento desviante (VELHO, 1974). Mais algumas categorias de acusação foram formuladas pelos entrevistados, no entanto, elas não denotam um comportamento definido. São elas: “ser bruxa porque está na moda” e “ser bruxa para afrontar a família”. “Então eu falo assim: eu quero agredir você, eu quero agredir minha família, então, pra agredir essas pessoas, eu sou bruxa. Pra ser do contra, eu sou bruxa, pra criar polêmica, pra aparecer. Hoje em dia falar que é bruxa, tu acha até que é moda.” (Adriana) “Existe o modismo. Uma mulher que vai colocar o estigma de bruxa porque está na moda, entre aspas. Isso tudo virou uma grande fantasia na cabeça das pessoas.” (Ronaldo) As bruxas que entrevistamos se declaram bruxas “desde sempre” ou desde que descobriram a bruxaria. Este interesse inicial certamente entra em choque com a idéia de ser bruxa porque está na moda ou para afrontar a família. Também se enquadra nessa quebra de ethos a bruxa acusada de alardear que possui poderes mágicos e muito conhecimento. Este tipo de comportamento suscita desconfianças sobre ser ou não uma bruxa verdadeira. Ela pode estar relacionada com a aparência da bruxa. “Eu tendo a ver com desconfiança as pessoas que se fantasiem de bruxa. Ou aquelas que te cumprimentam e dizem: boa tarde, eu sou uma bruxa. Ela [a falsa bruxa] quer enfeitar muito, saca? Ela quer botar que ela tem muitas coisas, ela tem muitos poderes, e fez muitas coisas, entendeu? É verdade que nesse ponto de vista, às vezes você esbarra com o deslumbrado. Tem muita gente que gosta de dizer que tem poderes.” (Vanessa) Aquele que também proclama possuir antepassados bruxos pode ser mal visto, especialmente se este antepassado foi quem ensinou a bruxaria para a bruxa em questão.

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Interessante observar que praticamente todos os entrevistados declaram que havia bruxas em suas famílias, mas nenhum afirma ter aprendido a bruxaria com algum membro da família. O caso mais explícito é o da própria Márcia Frazão, que na maior parte de seus livros conta estórias de como sua iniciação no mundo da bruxaria se deu através de suas avós e tias. “Ah, eu sou especial, eu sempre fui bruxa, não sei o que, eu tive uma vida de bruxaria desde criança porque a minha mãe me ensinou a ser bruxa. Não, não é assim, sabe? A cada mil, uma teve a mãe do lado pra poder ensinar, entendeu?” (Carla) Quanto às acusações externas, elas são fruto, na maior parte das vezes, da própria família da bruxa e confundem-se com situações de franca hostilidade, onde percebe-se o deboche, a incredulidade, o preconceito, o medo, as ameaças, a acusação de loucura e a violência aberta. As acusações externas oriundas da família e/ou amigos são a suspeita de satanismo e de que a bruxa lide “com coisas pesadas” ou “feitiçaria braba”. O medo, o preconceito, o deboche e a incredulidade também podem fazer parte da reação da família frente à descoberta de que um de seus membros é adepto da bruxaria. Estas reações se mantêm ou não com o tempo. “O meu padrasto sabe e morre de medo. Acha que eu lido com umas coisas pesadíssimas.” (Vanessa) “A minha mãe às vezes diz que eu cultuo o demônio. A minha própria família, tem uma parte da minha família que... é... fala horrores de mim e pra mim. Tios. Tem a ala crente da família.” (Ana) “Segregação social, é a pior, na própria família. Você é tida como uma pessoa louca, as crianças não podem chegar perto de você porque os adultos não confiam em você porque você é bruxa e eles acham que você vai fazer algum mal.” (Edna) “Alguns temem, né. Eu passo na rua e alguns aqui olham assim: ‘mexe com ela não; faz feitiço’.” (Adriana)

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As hostilidades sofridas por pessoas desconhecidas da bruxa tomam outras características que aquelas da família e amigos. As bruxas mais expostas ao público, aquelas que aparecem em programas de televisão ou apresentam-se publicamente como bruxas, são as mais suscetíveis a ataques violentos ou ameaças. “A Confraria do Garoto, na Rua da Carioca, queimou uma bruxa de palha com a cabeça de abóbora: ‘vamos queimar as bruxas do mundo, vamos queimar todo o mal, não sei o que’. [E existe o] Deboche, tipo assim: e aí, estacionou a vassoura? De uns cinco anos pra cá, eu comecei a dar entrevistas em televisão sobre o [sabá de] Samhain. Todo Samhain, que é Halloween nos Estados Unidos e aqui é [o sabá de] Beltane, sempre pedem pra dar entrevista. Então, desde aí, começaram, porque lá tem meu número de contato e as pessoas ligam, e geralmente liga um fanático, crente, alguma coisa assim, esses loucos que tem por aí, né, ligam também. Só que isso tudo eu sempre levei numa, tipo assim, é falta de cultura, né.” (Carla) “Já cuspiram em mim. Eu estava andando na rua e uma pessoa de um ônibus que passava cuspiu em mim. A pessoa gritou: ‘bruxa maldita!’ e cuspiu.” (Ana) De um modo geral, as bruxas lidam com estas situações com mecanismos de defesa como o contra-ataque e estratégias para impedir possíveis problemas. O contra-ataque consiste em categorizar o acusador – seja ele da família ou não – como uma pessoa preconceituosa, ignorante, analfabeta, fanática, louca, crente ou com “falta de cultura”. “[Ela, a mãe, diz que cultua o diabo] porque ela é uma preconceituosa, e não entende nada, uma pessoa analfabeta, né. Só existe a verdade dela e nenhuma outra mais.” (Ana) “Mas é um tipo de preconceito. Mas ela, por exemplo, coitada, é uma ignorante. É só o que eu posso dizer pra ela. Fico com pena dela porque ela não sabe o que está falando. Fala de uma coisa que não tem o menor conhecimento, né.” (Cíntia)

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As estratégias de defesa são o silêncio quanto à condição de bruxa, a discrição na vestimenta e a procura por empregos onde a prática da bruxaria não traga problemas. “Eu, sinceramente, eu me reservo muito no dia-a-dia a sair às ruas. O máximo que eu faço é levar esse pentagramazinho. Uma coisa discreta.” (Carla) “No trabalho, se eu acho que não é conveniente falar, eu não falo, entendeu? Em geral, eu opto sempre por trabalhar em lugares onde eu possa ter a minha liberdade religiosa.” (Ana) A bruxaria em família Como vimos acima, afirmar que se possui antepassados bruxos pode tornar a bruxa alvo de desconfianças. Contudo, a grande maioria de nossos entrevistados declara algum parente como sendo bruxo. Na verdade, são sempre mulheres que são apontadas como bruxas. Podem ser tias, tias-avós, avós, irmãs, a mãe ou mesmo antepassados mais longínquos. Excepcionalmente, homens também podem ser apontados como bruxos, mas o são normalmente em ocasiões especiais: quando há um pai cigano, por exemplo, ou um antepassado mítico. Carla, uma das entrevistadas, reformulou sua árvore genealógica de modo a fazer-se descendente - segundo ela do primeiro rei da Espanha, uma figura mitológica ligada ao paganismo europeu pré-cristão. Ela também vinculou sua família ao aparecimento da bruxaria no Brasil, por volta da década de 40. Como bem sabemos, a bruxaria - pelo menos a bruxaria européia - existe no Brasil desde a chegada dos primeiros degredados de Portugal por motivo de bruxaria, na época da Colônia (SOUZA, 1989). Outros entrevistados não demandam parentesco tão nobre, mas trabalham com a hipótese de que determinados parentes sejam bruxos, não no sentido da bruxaria wicca, mas no sentido de terem dons e/ou conhecimentos especiais que as definiriam como bruxas. “Minha mãe sempre foi meio bruxa, mas ela sempre ficou quieta, na dela e tal. A minha avó, a mãe da minha mãe, era bruxa, bruxa, bruxa, bruxona. Ela botava carta.” (Carla)

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“Bruxas, muitas. Sem saber, totalmente inconscientes. A minha avó é uma bruxona [mas] ela não tem noção do poder dela. A Marta, a minha irmã [é bruxa]. Minha mãe. Não adianta você mentir pra ela, ela sabe exatamente o que está passando na sua cabeça. A mãe da minha avó é profundamente católica, mas era uma católica muito bruxa. Achei na caixinha de carta dela vários feitiços com cabelo, com laço. A avó da tia Dora, a mãe da tia Dora conversava com os espíritos o dia inteiro. Essa foi a bruxa mais consciente mesmo. E era benzedeira.” (Edna) A bruxaria em família, no entanto, não se limita aos antepassados. As entrevistadas que têm filhos declaram, muitas vezes, que suas filhas são bruxas, exceção feita a Vanda, que declara que, embora sua filha tenha dons, é o filho quem seria bruxo. O filho dela, entretanto, freqüenta um centro de umbanda. No caso de Adriana, embora tenha apontado algumas irmãs como possíveis bruxas, ela recusa a possibilidade de bruxaria aos filhos. Soubemos alguns meses após realizada a entrevista, através de nossa informante, que Adriana montava um coven em Porto Novo, onde reside, do qual fazia parte sua filha. “Eu acho até que [minhas filhas] já são [bruxas]. Inclusive, né, a Daniela, que é a mais velha, porque quando eu me iniciei, eu estava grávida dela, né, então ela já nasceu bruxa. Ela já recebeu, é, a ordenação dentro do meu ventre, né.” ( Ana) “Minha filha é uma bruxa. Ela vai ser uma bruxa. Ela nasceu bruxa, ela tem o dom de bruxa, e se ela vai querer ser uma bruxa ou não, ela vai escolher sozinha.” (Cíntia) Por que mulheres, em sua maior parte, são as indicadas como possíveis bruxas? Os únicos casos que rompem a regra são o de Ana, Vanda e Carla. A primeira aponta o pai como sendo bruxo, mas convém lembrarmos que ele tinha origem cigana, e talvez isso constitua um dado na formação dessa identidade de bruxo tanto quanto seus possíveis dons, já que é parte do senso comum a idéia de que os ciganos são praticantes de magias. No segundo caso, o filho homem é apontado como bruxo porque foi, de livre vontade, freqüentar um centro de umbanda. No terceiro caso, o antepassado mítico se torna bruxo por suas características especiais de herói mítico.

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Somos levados a manter nossa hipótese de que a bruxaria é um espaço de construção de uma identidade feminina. Ela não é um espaço restrito a mulheres, mas locus privilegiado de construção de uma identidade feminina, e com isso leva a que as bruxas visualizem em sua família uma estória de bruxaria, ligada prioritariamente ao feminino, que articula uma identidade global e dá sentido à identidade de bruxa. Já vimos em Frazão e veremos nas bruxas internautas como a existência de outras bruxas na família é um ponto importante do discurso das bruxas. Uma outra questão surge. Como esses parentes são reconhecidos como bruxos? Como reconhecer uma bruxa? Afinal, o que faz de uma pessoa uma bruxa? Seguindo o discurso dos entrevistados, percebemos que seis deles acreditam que a bruxaria é um dom, constitui um poder inerente à bruxa, dado desde sempre e que ela possui desde o seu nascimento. Uma entrevistada acredita na herança familiar como um dado importante da obtenção desse dom. Dois entrevistados afirmam que todas as pessoas são bruxas em potencial, bastando apenas desenvolver os dons. Outras duas entrevistadas crêem que todas as mulheres são bruxas, pois a bruxaria seria inerente a elas. Uma entrevistada acredita que a bruxaria é uma escolha entre desenvolver ou não estes dons (é uma escolha mas também um dom). Uma entrevistada acha que a bruxa ou o bruxo é simplesmente aquele que lida com magia, não apresentando necessariamente nenhum dom naturalmente dado. Apenas esta entrevistada não acredita na bruxaria como um dom, mas como fruto do esforço de aprendizagem da magia. Podemos observar que a maioria dos entrevistados assume o ponto de vista de que a bruxaria é um dom que não se adquire, mas de algumas pessoas específicas, com herança ou não. A bruxaria seria, portanto, inerente, natural, e - por que não? – biológica. Tão biológica quanto a bruxaria Zande mas, diferente desta, não é apontada como pertencente a um órgão específico do corpo, nem toma uma forma material específica como a substância-bruxaria (EVANS-PRITCHARD, 1976). “Quando eu falo bruxa, pra mim é aquela que tem o poder de modificar as coisas. A minha avó já tinha, minha mãe, minha bisavó. [O poder] nasce com ela. Eu não acredito que você adquire.” (Vanda) “É, eu te falei que toda mulher já é. É bruxa por natureza e ela só precisa acender aquilo, né. Se tem ventre, é bruxa.” (Ana)

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“Todas as mulheres são bruxas em potencial.” (Carla) “Na verdade, se você buscar dentro de você o poder interior, você vai descobrir um dom seu. Uma bruxaria, um potencial dentro de você, que você dá o nome que você quiser. Paranormalidade, é um potencial, um dom extra-sensorial. A diferença é que uma tem consciência do que é e a outra não, mas a maioria das pessoas sabe. Eu acho que as pessoas nascem [bruxas]. Elas só são esquecidas.” (Edna) O questionamento acerca da natureza da bruxaria nos remete a outra discussão, também presente no estudo clássico de Evans-Pritchard sobre os Azande: qual a diferença entre o bruxo que nasce com o dom da bruxaria, e aquele que só é bruxo por praticar magia? Essa diferença é apenas um choque de pontos de vista entre os entrevistados? A resposta nos parece ser negativa. Existe uma diferenciação entre a bruxa, a feiticeira, o mago, o xamã, o wiccano. Embora encontremos na literatura produzida pelos wiccanos um uso comum para os termos bruxa(o) e feiticeira(o), bruxaria e feitiçaria, nossas entrevistadas formularam uma distinção entre eles. O feiticeiro seria aquele que faz feitiços. A bruxa, além dos feitiços, buscaria um autoconhecimento, estaria lidando ainda com ervas e cura. O mago é um cientista da magia. O wiccano é aqueles que possui uma ligação religiosa e opera magia, é uma bruxa no meio termo entre o mago e o xamã. O xamã é um ser puro, passivo às forças do cosmos. Notemos que as construções são todas feitas de maneira comparativa entre as diversas categorias criadas pelas entrevistadas. O mago se difere da bruxa em determinados aspectos. Quando posta em relação ao xamã, a bruxa toma características do mago. É possível notar uma gradação entre esses três personagens na relação que mantém com o cosmo e os processos mentais de perceber o mundo. O xamã é aquele mais “puro”, mais ligado à natureza. A bruxa, em contraste com ele, se torna dotada de “senso crítico”, sujeito que trabalha níveis mentais, intelectuais, ou seja, ela é menos pura que o xamã. A não-pureza parece se definir na avaliação do mundo baseada nos processos mentais e intelectuais. O xamã é passivo, é passagem, é natureza. A bruxa é intermediária entre a humanidade e a natureza, e portanto dotada das capacidades intelectuais que diferem a humanidade da natureza. Essas capacidades de avaliação e de “senso crítico” são mal vistas. A bruxa não é mais pura, ela agora é meio sacerdote, meio mago. Este, por sua vez, ocupa o extremo oposto onde reina a razão, o processo experimental,

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processo científico. Ele pode não ser ético. Ele não possui uma ética pré-estabelecida a ser seguida. A bruxa é ética. Ela é um ser religioso, e a religião fornece a ela uma ética a ser seguida. A idéia central que diferencia a bruxa dos demais praticantes de magia é o arcabouço religioso. Neste ponto, ela pode ser associada ao xamã. O feiticeiro é que figura como personagem em oposição. É aquele que se limita a praticar feitiços, sem nenhum conhecimento que vá além disso. A bruxa procura auto-conhecimento. Em alguns momentos ela pode ser posta em comparação com o wiccano. Nesta nova correlação, a bruxa passa a ser a operadora de magia, próxima do feiticeiro. O wiccano é o personagem que assume a devoção religiosa, sacerdotal, específica da wicca, embora não abra mão do uso da magia. “A bruxa é uma operadora de magia. Ele quer lá fazer suas curas e mexer com as suas ervas e fazer seus feitiços. A bruxaria em si é um termo meio genérico, entendeu? Agora, a wicca especificamente como prática de bruxaria, pra mim, é sim uma religião. E você pode dizer assim, existem bruxos de todas as religiões, agora, praticante de wicca, ou seja, aquele que, né, realiza os sabás, que... que cultua o Deus e a Deusa como imanente e transcendente. Feiticeiro, você compra ali na banca de jornal ‘Simpatias da Juju’, entendeu, e você vira um feiticeiro, saca? Mas bruxo eu acho que é um processo de auto-descoberta, de auto-aprendizado, de auto-observação.” (Vanessa) “Na verdade, você pode até ser bruxo sem ser wiccano, tá. O que diferencia o bruxo wiccano dos outros bruxos é que a gente a gente não só pratica feitiço, né. O que diferencia é o amor pelos deuses e pela natureza. É a parte devocional. Você pode ter a ligação religiosa como os wiccanos, como os xamãs, que têm todo um, uma parte religiosa, como você pode simplesmente ser o bruxo, assim, o feiticeiro, na verdade. E aí na feitiçaria você não precisa, efetivamente, ter vínculo religioso.” (Ana) Resumimos em um quadro os atributos dados a cada categoria pelas entrevistadas.

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MAGO

BRUXA

XAMÃ

FEITICEIRO

WICCANO

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------mental

mental

não compreende

experimental

intelectual

não qualifica

cientista

auto-conhecimento

passivo

com ou sem ética

ético

não-religioso

religioso

religioso

meio mago,

puro

não-religioso

religioso

feitiço

feitiço

meio bruxo avaliador

não julga

senso crítico

não hierarquiza

cura opera magia intermediário entre a natureza e a humanidade Quadro n. 2: Diferenças entre os operadores de magia.

Definidas as categorias, resta perguntar ainda quais são os saberes específicos da bruxa e quais são os dons que elas possuem que fazem delas bruxas. No discurso das entrevistadas, alguns dons se tornam comuns, tanto para se definirem como bruxas “desde sempre” quanto para definir outras pessoas, os parentes incluídos, como bruxos ou ainda como maneira de reconhecer uma bruxa. Entre os dons destacados encontram-se: vidência ou capacidade de profetizar o futuro e/ou o passado; intuição; capacidade de ver e/ou se comunicar com seres como espíritos, vento, fadas, árvores; conhecimento intuitivo, que consiste em saber procedimentos tidos como mágicos ou típicos de bruxas, feiticeiros ou magos, sem que esses conhecimentos nunca tenham sido ensinados à pessoa em questão; projeção astral; poder espiritual; campo áurico diferente; poder de matar alguém com o olhar; poder de mudar o curso do destino; poder de modificar situações; poder de interferir na matéria (desligar um carro, fazer alguém cair ou movimentar a cama apenas com alterações de humor ou com a força exclusiva da vontade); potencial de cura; posição

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intermediária entre as forças naturais e a humanidade; poder de evitar doenças, confrontos e problemas; percepção energética; magia. Como saberes específicos da bruxa, através das entrevistas e da literatura específica sobre o assunto, podemos destacar: leitura de oráculos, conhecimento fitoterápico e mágico sobre ervas e plantas em geral, conhecimento terapêutico e mágico sobre pedras e cristais, conhecimento terapêutico e mágico sobre as cores, confecção de perfumes, poções e talismãs, realização de feitiços e magia, leitura de oráculos, interpretação de sonhos, mitologia, ritualística da wicca. Alguns outros conhecimentos esotéricos específicos podem também ser utilizados dentro do manancial de conhecimento oculto das bruxas, mas os listados acima foram aqueles que apareceram em entrevistas e livros mais claramente com alguma utilidade prática além de representar conhecimento formal. Feitiços Como percebemos acima, bruxas fazem feitiços. Nossas entrevistadas não são exceção. Poucas fazem feitiços para outras pessoas. Nenhuma delas, contudo, cobra qualquer importância em dinheiro ou espécie como pagamento pelo feitiço. A maioria já fez feitiços para outras pessoas, pelo menos uma vez, mas poucos assumem que essa seja uma prática comum. Para si mesmos elas fazem feitiços também: para atrair dinheiro, para purificação e proteção, para atrair amor, para o tempo, para equilíbrio interior. Para outras pessoas, ou em conjunto com elas, faz-se feitiços para ganhos materiais, para amor/auto-estima, para fertilidade, para proteção e para cura. “Eu fiz um feitiço pra ganhar na Raspadinha. Eu acabei ganhando na Raspadinha: outra Raspadinha! Pô cara, a maioria esmagadora era de proteção. Eventualmente rola um feitiço sim pra amor, rola um feitiço sim pra dinheiro.” (Vanessa) “Ontem eu fui fazer uma poção do amor e fiz um doce pra ser distribuído em uma empresa. Os feitiços que eu mais pratico é de cura e de amor. [Para mim] é só banho, só limpeza. A não ser esse que eu fiz de amor. O Ronaldo é mais feitiço pra dinheiro. Ele é bom nisso.” (Edna)

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Os feitiços de amor, apesar de praticados, têm suas regras próprias e parecem ser proibidos, ou pelo menos mal vistos. Nenhum entrevistado admite jamais fazer ou ter feito, para si ou para outro, feitiços de amor para conquistar uma pessoa específica. Pedidos de amigos interessados não faltam, mas a bruxa se exime. Em alguns casos, um perfume para levantar a auto-estima parece ser o suficiente para que o solitário consiga um namorado. “Não faço feitiço pra amor. Acho que feitiço de amor é uma coisa meio ingrata. Um dia você pode acordar e dizer assim: puxa, eu enfeiticei esse cara, ele está comigo por causa da magia e não por causa de mim. Eu costumo fazer um perfume. Eu falo pras pessoas que é pra amor, mas na verdade é um perfume pra auto-estima. Não tem poção mágica pra amor melhor do que perfume pra auto-estima.” (Adriana) Embora incorrendo em tabu, os feitiços de amor são muito apreciados por algumas das entrevistadas, como Adriana e Edna. Frazão lançou um livro sobre feitiços e rituais para amor (Manual Mágico do Amor, 1995). Este é sempre o livro mais lembrado pelas entrevistadas quando perguntadas se leram a obra de Frazão. É considerado um livro belíssimo, bem escrito, quase um livro de poesia. Neste livro, o feitiço destinado a conquistar um homem ou mulher específicos não é condenado, pelo contrário, é encorajado, mas desde que o que mova esta conquista seja o amor e não a dependência financeira, a vingança, ou o malefício. O feitiço de amor só deve ser usado em nome de algum amor e sempre com o cuidado de não machucar ninguém. Dois casos nos chamam atenção entre as entrevistadas. Duas bruxas afirmam que realizaram um feitiço de amor buscando um companheiro ideal. Uma delas estava se separando do primeiro marido, a outra procurava um relacionamento. Em ambos os casos, o feitiço não tinha como alvo nenhum homem em particular, mas características específicas eram exigidas do futuro par. Nos dois casos, ocorreu um relacionamento com homens com as qualidades descritas no feitiço, relacionamentos estes que, em poucos meses, se transformaram em casamentos. “E eu resolvi que ia fazer um feitiço de amor, de noite, pra trazer a pessoa ideal pra mim. E eu comecei a pedir coisas assim imaginárias, de brincadeira, tipo: eu queria

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um homem de cabelo comprido, um homem que tocasse violão, coisas assim que já não eram mais o pedido central da coisa. E veio, né amor?” (Edna) “Quando eu cheguei em casa, eu olhei pra ele [o ex-marido] e falei assim, com um ódio. Eu olhei pra ele de frente pro meu espelho e falei pra ele: a partir de hoje eu vou estar com um homem que seja do meu nível social, cultural e intelectual, que tenha dois olhos azuis, que seja judeu e que goste muito de bruxa, que me entenda, que seja compatível comigo, tenha quarenta anos, solteiro e sem filhos, de uma família rica. E comecei a gritar na frente do espelho com um ódio, um ódio, e falei: daqui a dois meses eu estou com ele. Isso foi dia doze de julho. O Marcelo [atual marido] é louro de olhos azuis, tem quarenta anos, solteiro. Ele diz que no primeiro dia se apaixonou por mim. Dia vinte e nove de agosto a gente ficou junto. Aí no dia trinta de agosto, ele me pediu em casamento e eu aceitei.” (Carla) Embora os feitiços façam parte da bruxaria e no senso-comum sejam mesmo tomados como sua última finalidade, no discurso dos entrevistados é possível perceber uma diferenciação entre a prática de feitiços e o objetivo da wicca. Como religião, a bruxaria não se destina exclusivamente à preparação de feitiços, daí surgir a distinção com o feiticeiro, vista anteriormente. Os feitiços, contudo, fazem parte dela sem dúvida alguma. O uso do feitiço como meio de se atingir um objetivo é escolha única e exclusiva do bruxo(a) em questão. Chama a atenção os feitiços de proteção: eles indicam que ataques mágicos são desferidos e precisam ser rompidos. O feitiço de proteção é, como o nome diz, uma maneira de se proteger de ataques mágicos de terceiros e uma maneira de quebrar os feitiços lançados contra si. Os banhos de ervas podem ter também essa finalidade. Como no incenso, a finalidade do banho depende das propriedades das ervas utilizadas. Podem ser preparados banhos para proteção, para atrair o amor ou o dinheiro, para acalmar, para limpeza da aura, enfim, para uma infinidade de objetivos. Concepções sobre masculino e feminino Sobre as concepções de gênero, o discurso das entrevistadas apresenta, como a literatura escrita a respeito da wicca, diferentes atributos para masculino e feminino. Na wicca, homens e mulheres são pensados como tendo atributos inerentes a cada gênero, próprios a cada essência.

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Esses atributos devem ser mantidos. A mulher que se masculiniza ao ingressar no mundo competitivo do trabalho não é bem vista. Ela deveria manter suas características femininas. Por outro lado, como masculino e feminino são complementares, um mundo visto como essencialmente masculino ou o sonho de um mundo essencialmente feminino podem não ser bem recebidos. É a integração entre esses opostos complementares que encerra a harmonia. A sobreposição de qualquer um deles acarretaria um desequilíbrio. É sobre esse desequilíbrio atual, com o pólo masculino mais em voga, que recaem as críticas das bruxas. “O mundo ainda é muito masculino e as mulheres ainda são profundamente masculinas. Elas não conseguem se manifestar num modelo que não seja masculino. A minha briga com o feminino é exatamente que a mulher resgate o feminino original dela, sem usar o modelo masculino.” (Edna) Ao ser perguntada sobre qual é esse modelo masculino, Edna reforça a idéia do homem como o guerreiro, o pólo de força, de agressividade, de razão, de destruição. Essa perspectiva fica clara também quando a entrevistada diferencia o matriarcado do patriarcado e demonstra como os esquemas usuais de oposição e complementaridade entre masculino e feminino estão presentes na wicca, mas com o pólo feminino recebendo a valoração positiva. “[O modelo masculino é a] Competitividade, racionalidade, supressão das emoções, [a mulher masculina é] a mulher que é auto-suficiente o tempo todo, só trabalha, ela quer ser única para ela mesma, ela é guerreira. Mulher para ser respeitada pelos homens, ela bota logo no peito que é guerreira: eu sou macho. Então elas pensam que estão lidando com o feminino delas, mas não estão. Elas estão lidando com o masculino delas. E essa coisa das mães também, da mulher absorvendo o papel do macho e da fêmea, elas são as mães, são as psicólogas, são provedoras, ela está sobrecarregada, ela não consegue mais ser feminina. Ela tem até que ficar forte fisicamente para agüentar o dia-a-dia dela. Acho que é por isso que a mulherada está entrando muito para malhação, senão elas não agüentam. Não tem condição, elas são tudo, tudo, então não dá para viver num sistema desse. Ou os dois vão dividindo todas as manifestações, desde a maternidade e paternidade... Está invertendo os papéis, mas o

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inverter os papéis também não é legal. O ideal seria a divisão das obrigações. A mulher hoje em dia não sabe mais ser condescendente. São agressivas, são profundamente críticas e são profundamente desagradáveis quando elas querem, no sentido de destruir as outras pessoas. Elas usam a sabedoria feminina de perceber a fraqueza do outro não mais para curar, mas para destruir.” (Edna) Se o homem é o pólo de força e razão, como vimos, a mulher não deve, no entanto, estar submetida a ele, até mesmo porque os atributos do feminino são vistos como positivos. É no patriarcado, segundo Edna, que reside a fórmula da submissão feminina. Se a mulher não deve se masculinizar, deve menos ainda tornar-se submissa ao homem. O mundo moderno constitui uma armadilha para a mulher. “O mundo é muito patriarcal. Eu sou muito patriarcal, eu me vejo sendo patriarcal quando eu cuido do Ronaldo. Eu tento o tempo todo lutar contra isso, mas é uma coisa que está tão arraigada em mim que, quando eu me vejo, eu estou fazendo a comida dele na hora, eu estou fazendo o prato dele. Muito mais por uma questão de carinho do que por obrigação, é verdade. Não por uma questão de que ele me exija isso, nada disso. Por carinho, mas é um carinho típico de, uma coisa servil, né, de macho na frente. Sem querer você faz. Eu sempre luto comigo mesma o tempo todo.” (Edna) O patriarcado é visto como o sistema que oprime a mulher, oprime os mais fracos. Ele é a “lei do mais forte”. Neste sentido, é individualista, pois não cuida dos “mais frágeis”. A mulher é colocada neste pólo de fragilidade. A individualidade aparece como um valor negativo. O ideal é a coletividade do matriarcado, é a vida em comunidade onde uma individualidade não pode suplantar o coletivo. O tempo de hoje é o do patriarcado, o da individualidade. A modernidade é individualista e, como veremos adiante, a wicca é fruto dessa modernidade individualista e uma reação a ela. O relato de Edna demonstra que, na wicca, os papéis de gênero estão bem marcados, tanto de maneira complementar quanto valorativa. Embora pareça um retrocesso a padrões tradicionais, indica que os papéis de gênero devem estar marcados com atributos valorativos específicos em

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que os atributos femininos são os mais positivos. Contudo, eles não devem ser dominantes, uma vez que os atributos masculinos lhes são complementares. “Se não tem polaridades opostas, não tem movimento. Se não há dualidade, não há movimento, há estagnação. Não adianta fazer um mundo feminino porque vai ficar um mundo profundamente emocional. Você não pode ser profundamente energética, dominadora e forte. Você não pode ser profundamente fraca, sensível, emocional, instável, histérica. Os homens, ao invés de chorarem desesperadamente, botar tudo que é neura para fora, eles brigam, ficam agressivos. Isso não é a maneira feminina. A maneira feminina é chorar, sabe, enlouquecer um pouco, botar para fora, mostrar a frustração.” (Edna) As representações de masculino e feminino passam por uma oposição complementar. O pólo masculino é o pólo da força, da agressividade, do domínio, da opressão, da energia, da atividade. O pólo feminino é o da emoção, da loucura, da sensibilidade, da instabilidade, da passividade. Passividade e atividade passam, então, a constituir um pólo de oposição. O homem representa a força, o Deus que insemina a Deusa, o sol que traz vida á terra. A atividade passa a ser uma qualidade inerente ao masculino e tudo que está numa posição ativa pode ser vista como masculino em essência. Do mesmo modo, a passividade da terra que precisa ser plantada passa a ser a passividade da mulher e da Deusa, relacionada à Lua, às águas, ao domínio emocional. Tudo que está numa relação de passividade passa a ser visto como feminino. Aquele que doa, que fornece, que age, é masculino. Aquele que recebe, que está numa atitude passiva, é feminino. “Entrou num ritual, você tem que puxar a energia e emitir a energia, mesmo que esteja trabalhando só com a energia feminina. O simples ato de lançar alguma coisa no cara é masculino, então sempre vai ter.” (Ronaldo) O discurso dos entrevistados deixa claro essa divisão de mundo entre aquilo que é masculino, que é ativo, que é movimento, e aquilo que é feminino, passivo, contemplativo. As posições femininas e masculinas podem ser ocupadas por homens e mulheres, é a atitude de passividade ou atividade que vincula a idéia de uma posição feminina ou masculina.

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O feminino é visto, ainda, como agente civilizador. Neste caso, enquanto o masculino assume os atributos de destruição, e desta forma se torna próximo à idéia de natureza sem controle, o feminino assume os atributos do pólo oposto, a cultura e a civilização. Mas a civilização no sentido feminino não é a mesma civilização que o masculino constrói. Atuando com valores distintos, estes dois pólos constroem “culturas” distintas. A civilização masculina é a que vivemos hoje, a do patriarcado, do domínio da natureza pela técnica e a ciência. A civilização feminina é a da arte, da beleza. “O feminino civiliza. E aprimora. O feminino traz a sutileza, a arte, a beleza, o refinamento das coisas. Sem o feminino não existe refinamento, uma ciência da estética, e aí aquilo me incomodava.” (Edna) Arte e técnica como pólos opostos e atributos respectivamente feminino e masculino não entram em choque com os demais atributos acima apresentados. O feminino mantém sua posição valorativa positiva enquanto o masculino mantém sua posição valorativa negativa. A sociedade da arte traz os valores do feminino: a arte não domina a natureza, ela expressa a realidade sem modifica-la como a técnica, ela traduz a beleza e depende da sensibilidade. Quem são as bruxas entrevistadas? O perfil das bruxas entrevistadas se afina com aquele apresentado por diversos autores (MAGNANI, 1999; TERRIN, 1996) para o universo consumidor da Nova Era: os praticantes da Nova Era são majoritariamente habitantes urbanos do Ocidente, com altos graus de educação formal e acesso a informação. O entrevistados têm formação superior completa ou incompleta, ou estão se encaminhando para a formação superior, como no caso de Ronaldo, que irá prestar vestibular. São todos residentes em bairros de classe média do Rio de Janeiro, à exceção de Adriana. Têm acesso a informação, pois vimos que revistas, livros, livrarias e a internet são os meios preferenciais para conhecerem outras bruxas e ter contato com a wicca. A Nova Era se apresenta também nas escolhas profissionais: embora metade dos entrevistados mantenha profissões estreitamente vinculadas ao universo esotérico da Nova Era, podemos agregar a esta conta mais duas entrevistadas. A Dança do Ventre que Edna leciona é

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uma atividade também do mercado Nova Era, ensinada nos espaços esotéricos espalhados por toda a cidade, tanto quanto em academias de dança. A psicologia de Vanda, do mesmo modo, que se define como junguiana, está de acordo com a preferência dos new agers, visto que Jung é um autor muito citado entre eles, como pudemos perceber. Desta forma, sobe para seis o número de bruxas que mantém atividades relacionadas à Nova Era, por menos que gostem de ser confundidas com este segmento. Quanto ao discurso das bruxas, percebemos que o dom constitui indício legitimador da condição de bruxa. O dom de jogar cartas, a mediunidade, a intuição, tudo isto é indício que leva a caracterizar uma conduta desviante propícia à prática mágica (MAUSS, 1976). Ao mesmo tempo, a influência espírita se faz presente em alguns perfis. Muitas vezes ela é o começo da busca por um caminho mágico. Veremos adiante como a influência do espiritismo pode ser forte entre as bruxas brasileiras. A própria concepção de que a religião não se mistura com dinheiro, de que a bruxa não cobra pela confecção de um feitiço, de que age imbuída de amor ao próximo e caridade, de que as bruxas verdadeiras não cobram para ensinar a bruxaria está ligada a uma concepção fortemente influenciada pelo espiritismo e suas noções de dom, mediunidade, caridade. O dinheiro, como elemento poluidor, desvirtua o dom, que é talento inato. Este dom, ganho sem esforço, deve ser empregado para promover o bem ao próximo. Ele deve ser desenvolvido, como na linguagem espírita, para atender ao próximo e a si mesmo. Contudo, nem todas as bruxas se vêem em posição de atender ao próximo, embora tenhamos visto que algumas já fizeram feitiços para ajudar amigos. O ganhar a vida com a leitura de oráculos e demais conhecimentos ocultos não é visto pejorativamente. Por um lado, constitui conhecimento, e não dom, embora possa ser conhecimento desenvolvido intuitivamente. Por outro lado, não é prática de magia, pela qual não se cobra em hipótese alguma. Estabelece-se assim uma brecha para a ocupação integral como bruxa, para a construção da profissão de bruxa. O conhecimento pode ser passado, pois o dom é inato, mesmo que haja uma ética sobre qual conhecimento está passível de cobrança material e qual não está. O que tange ao dom não é cobrado. O que tange o conhecimento, pode ser. O feitiço, medida da força mágica da bruxa – medida do dom -, não é cobrado, é dado àqueles que se ama, uma forma de caridade e cuidado ao próximo. É neste sentido que a ética da bruxa enquanto profissional se desenvolve.

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Sobre as diferentes concepções que as bruxas entrevistadas guardam acerca do wiccano, o feiticeiro, a bruxa e o xamã, cabe ainda uma observação. Como vimos, para Frazão o “primitivo” está em oposição ao “civilizado”. Para as bruxas entrevistadas, especialmente Edna, o xamã é o pólo primitivo, aquele que é todo passagem, anulação do ego, natureza. Ele apresenta as mesmas qualidades que o feminino apresenta na wicca, qualidades pelas quais ele foi mais valorizado. O mago é o cientista, e recebe a mesma valoração negativa que o civilizado cientificizado recebe no discurso de Frazão. A natureza é a magia, enquanto a ciência é a civilização. A bruxa aparece entre estes dois pólos extremos, como um intermediário. Reportando-nos ao quadro acima, veremos que ela porta propriedades dos dois pólos. Ela toma, na verdade, o melhor de dois mundos: tem a consciência que apenas a razão pode trazer, mas mantém o contato com a natureza, a fonte da magia. Ela não é um ser mental e obtuso, nem um primitivo inocente, um passivo sem vontade e sem discernimento. A bruxa é o ser que opera magia e discerne entre o que é e o que não é ético. Responde-se, desta forma, porque ser uma bruxa e não um xamã, já que aquele é mais próximo ao que o feminino parece encarnar na wicca. De fato, o xamã é apresentado com uma forma tão passiva, que nele quase não há vontade, como no mago só há vontade. A bruxa se torna o equilíbrio. De qualquer forma, é interessante perceber como as concepções das entrevistadas, neste sentido, se alinham com aquelas de Frazão. Apenas em Frazão o primitivo não é este ser totalmente passivo, sem razão nem vontade. Os pólos não precisam de intermediário. A bruxa descrita por Frazão tem as mesmas qualidades que a bruxa descrita pelas entrevistadas, apenas as concepções do primitivo/xamã é que se tornam relativamente diferentes. Percebemos, portanto, um alinhamento nestes diferentes discursos.

FORMAÇÃO E CONCEPÇÕES DE COVEN.

Como vimos anteriormente, o coven é o grupo de prática ritual wiccana. Tradicionalmente, como apresentado nos livros de wicca (STARHAWK, 1989; FARRAR, 1999), é formado por um grupo de 13 pessoas sob o comando de uma Alta Sacerdotisa e um Alto Sacerdote. Arranjos mais modernos, contudo, viabilizaram diversas formas de liderança que não

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se expressam exclusivamente através destas duas figuras. A liderança pode ser estabelecida em sistema de rodízio, por tempo determinado, ou as tarefas podem ser delegadas a cada membro do grupo conforme a ocasião, ou as decisões podem, ainda, ser tomadas em conjunto por todos os membros do coven. Modernamente, existem tantas formas de se organizar as tarefas e a liderança de um coven quanto a criatividade de seus membros permitir. As tradições da wicca podem vir a preferir uma ou outra forma de organização. O número de participantes de um coven também sofreu algumas modificações do que era tradicionalmente a regra. Atualmente, um coven pode ser formado com um mínimo de três pessoas e não há mais um número máximo de participantes (LAGÔAS, 1998). Tradicionalmente, o número de homens e mulheres deveria ser o mesmo, de modo que se formassem duplas, mas hoje isto não é mais uma regra (FARRAR, 1999). Como podemos perceber, muito do que é tido como tradicional na bruxaria wicca foi adaptado a padrões mais flexíveis. O tradicional, neste caso, remete normalmente às informações históricas sobre bruxas européias da época medieval, ao que foi escrito por Gerald Gardner - para alguns, o fundador da wicca, para outros apenas disseminador - e ao que foi aceito como ideal pelas diversas tradições wiccanas. Em campo, pudemos observar que o desejo de participar de um coven é forte nos bruxos iniciantes. O aprendizado feito normalmente através de fontes escritas, como livros e sites de internet, desperta no iniciante a vontade de entrar em contato com outros bruxos, praticar em companhia destes e aprender com eles o que não está acessível através destas fontes. Muitos são os que acessam as listas de discussão da internet à procura de outras bruxas de sua região do país e à procura de um coven que possa recebe-los e operar sua instrução formal na wicca, com os devidos ritos iniciatórios. Ao mesmo tempo, a literatura produzida pelas bruxas dissemina a idéia de que o coven não é apenas um espaço de culto ou um grupo de estudos religiosos. Ele é mais, é uma família na qual se convive “em perfeito amor e perfeita confiança”. Este mote encerra todas as atividades rituais de um coven (STARHAWK, 1989), e afirma a interação daqueles presentes em bases mais íntimas do que se poderia supor. Entrar em um coven não é tarefa fácil. Sendo um grupo que deve trabalhar em amor e confiança perfeitos, o coven se torna, na maior parte das vezes, um grupo fechado que só criteriosamente aceita novos membros. Estes, segundo as bruxas, devem procurar o coven e não o contrário. Isto significa que um coven não costuma procurar por novos membros. Ele apenas aceita ou não aqueles que o procuram. Mas como um grupo fechado, sua existência não é

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alardeada, o que torna muito difícil a tarefa de encontrar um coven propício a aceitar novos membros. Os covens acabam se formando, então, de duas formas diferentes: ou por um grupo fechado de amigos ou por pessoas que desejam exclusivamente estar em um coven mas que não tinham laços anteriores de amizade. É importante salientarmos aqui que o coven é um grupo constante de prática ritual e estudo. Um grupo reunido ao acaso para a celebração de um único ritual qualquer não é considerado um coven. Além do coven, há uma outra organização wiccana, que difere deste, chamada círculo. O círculo é um grupo de estudos que troca informações sobre qualquer assunto relacionado à wicca, de oráculos e artes divinatórias às terapias alternativas, mitologia, magia cerimonial ou teosofia, qualquer assunto que o grupo se disponha a estudar. O que diferencia o círculo do coven é a ausência de prática ritual sistemática (STARHAWK, 1989). A partir da literatura produzida pelas bruxas e de nossas observações de campo, notamos que nem todas as bruxas participam de covens. Enquanto víamos algumas almejarem ardentemente o ingresso em um deles, outras afirmavam que a prática em grupo não era seu ideal. Na wicca, há a possibilidade de prática solitária, portanto o ingresso em um coven não é inevitável. Porque, então, seria tão importante a experiência de pertencer a um coven? O que o pertencimento a um grupo significa para estas pessoas e porque é tão buscado? Como vimos, na wicca a estrutura organizacional tradicional de um coven é muito representativa sobre as concepções de gênero que a bruxaria moderna guarda. A partir destas observações, sentimos a necessidade de entender qual o processo maior de formação e funcionamento de um coven. Não houve oportunidade, durante a realização desta dissertação, de acompanharmos de perto as atividades de um coven, mas foi possível reconstruir o perfil de um grupo a partir das narrativas dos três personagens mais importantes do drama. É a partir de seus pontos de vista que o perfil de um coven será apresentado a seguir, desde o seu surgimento até a sua desagregação e os acontecimentos posteriores entres os membros do grupo. O grupo do coven Segundo relato de três integrantes, o coven surgiu em outubro de 1998. O processo de formação do grupo durou cerca de dois meses até o estabelecimento oficial do coven. A data dada

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pelos membros como a data de início é, na verdade, o mês em que o grupo executou seu primeiro sabá. Ao todo, três sabás foram celebrados. Durante este período, o grupo foi se desagregando internamente até a declaração de que o coven estava desfeito. Este processo de desagregação foi lento e dolorido para o grupo, o que se refletiu no fato de cada integrante entrevistado fornecer uma data diferente para o fim do coven. As entrevistas foram realizadas separadamente com cada um, em ocasiões diferentes. Vejamos, primeiro, quem eram os participantes do coven, que posições ocupavam neste drama e até onde acompanharam o grupo: 1) Vânia – na época com 23 anos, era uma das mais velhas. Morava no Lins com a mãe e o padrasto. Trabalhava como funcionária pública e estudava Direito na UERJ. 2) Maurício – mais novo do grupo, tinha quinze anos. Completou 16 ainda dentro do coven. Morava com a mãe, a tia e a avó no Lins. Era estudante. 3) Valter - com dezoito anos, morava em Olaria com a mãe, a tia, o irmão e o primo. Estava estudando. Estes três são os narradores. Para Vânia, o grupo se dissolveu em abril de 1999. Para Maurício, foi entre fevereiro e março de 1999. Para Valter, a data é agosto de 1999. A dificuldade em estabelecer a data exata do fim do grupo reflete, como confusão interna e subjetiva, a confusão real e concreta que os membros experimentaram quando da desagregação do coven. A data do começo do grupo é assinalada por um ritual, portanto não há dúvidas. A data do fim, por outro lado, é o ápice de um processo lento, que se inicia assim que o grupo é formado, e só termina depois que ele é desfeito formalmente, quando as relações entre os membros se tornam mais difíceis e algumas são definitivamente rompidas. Uma vez realizado o primeiro ritual do coven, Vânia, Valter e Maurício se firmaram como figuras proeminentes, e se transformaram, segundo os três, em lideranças. Essa liderança foi disputada palmo a palmo entre eles, de maneira cada vez mais acirrada, com o tempo. Eles eram, além disso, os únicos que compareceram a todos os três sabás realizados pelo coven. Os demais integrantes aparecem em seus relatos como figuras de um “eixo secundário”, nas palavras de

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Valter: compareciam, com maior ou menor freqüência, aos rituais e reuniões do grupo e se imiscuíam em maior ou menor grau nas acaloradas discussões teóricas que travavam na época. Não exerciam, contudo, nenhum tipo de liderança, o que marcava seu papel secundário. São estes sujeitos que, ao abandonarem paulatinamente o grupo, colocam em cheque suas bases e causam o enfrentamento de nossos três narradores com a realidade: o coven estava se desagregando. Vejamos estes personagens secundários antes de entendermos como se deu o processo. 1) Mara e Sílvio – ambos com 18 anos, eram um casal de namorados. Aparecem nos relatos antes da formação oficial do coven. Mara trabalhava como secretária e Sílvio estava desempregado. 2) Joana - cada narrador lhe dá uma idade diferente: teria entre 15 e 17 anos. Morava em Icaraí, Niterói, com a família. 3) Douglas – com 18 ou 19 anos, morava no Méier com a família. Era estudante. 4) Wagner - tinha 20 anos e morava na Ilha do Governador com a tia. Estudava Farmácia na UFF. 5) Santos – o mais velho do grupo tinha entre 22 e 26 anos, segundo os narradores. Morava com a mãe e o irmão em Bonsucesso ou Higienópolis. A princípio desempregado, ainda fazia parte do coven quando passou a trabalhar no serviço de atendimento ao cliente de uma grande seguradora. Estudava Letras na UERJ. 6) Lúcio – tinha 17 anos e morava com a família. Estudava e trabalhava num restaurante fastfood. Morador do Méier, depois se mudou para a Penha. 7) Ricardo – com 17 anos, morava na Tijuca ou Grajaú com os pais. Era estudante. Como é possível perceber, todos tinham menos de trinta anos. Há uma preeminência maior de homens, que se torna mais forte posteriormente, quando resta apenas uma mulher no coven. A maioria dos integrantes estudava e/ou trabalhava e era habitante da Zona Norte do Rio

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de Janeiro, com exceção de Joana, que morava em Icaraí, Niterói. Aqueles que eram universitários estudavam todos em faculdades públicas. O tempo de permanência de cada um no coven e o grau de envolvimento são diferentes. Antes mesmo do primeiro ritual, Mara, Sérgio e Joana já não estavam mais incluídos no coven. Sua saída do grupo se deu ao mesmo tempo em que Lúcio e Ricardo ingressaram. O coven se estabilizou com oito membros: sete homens e uma mulher. Estes foram os que participaram do primeiro sabá do coven. Ao contrário do que foi observado em outros grupos no campo, este era composto majoritariamente por homens. Não encontramos no campo nenhum outro grupo em que a discrepância entre membros de cada sexo fosse tão grande, embora seja possível encontrar, em grupos de cerca de cinco membros, um desvio para a predominância masculina. Há também covens numerosos compostos quase ou exclusivamente por mulheres, mesmo quando o ingresso de homens não é proibido. Parte dos integrantes do coven já se conhecia antes de o grupo ser formado, e parte se conheceu em encontros promovidos pelos integrantes de uma lista de discussões da internet. Wagner, Valter e Lúcio se conheciam há muito tempo, e eram amigos. Vânia e Santos também já eram amigos quando conheceram as demais pessoas do grupo. Não importa aqui a ordem cronológica em que cada integrante se conheceu. Basta dizer que, à exceção deste dois núcleos, todos os outros integrantes se conheceram através destes encontros promovidos por uma lista de discussões. Através da interação face-a-face amizades foram sendo feitas e o grupo foi tomando forma. Houve um total de cinco encontros desta lista. A moderadora da lista, isto é, a pessoa que tinha o papel de cicerone, era Joana. Vânia afirma que esta era uma das listas de wicca mais renomadas da época, e contava com um grande número de participantes. Os encontros eram promovidos por Joana com a ajuda de Valter. No terceiro encontro, realizado no Jardim Botânico, aqueles que viriam a se tornar participantes do coven se conheceram, com exceção de Lúcio e Ricardo. Estavam presentes todos os outros personagens do drama e outros membros da lista num total de quinze pessoas. Este encontro foi realizado em outubro de 1999, segundo Vânia. Realizou-se um “mini ritual” com treze pessoas: Joana e Valter fizeram as vezes de Sacerdote e Sacerdotisa e abençoaram as comidas e bebidas levadas pelos participantes, segundo Valter. Neste momento, Vânia e Maurício afirmam que já havia uma grande empatia em jogo entre os futuros membros do coven.

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Os personagens envolvidos no drama, com exceção de Lúcio e Ricardo, deixaram o Jardim Botânico em direção ao Méier. Instalaram-se em um bar da região onde tomaram vinho e conversaram. Joana teve, então, a idéia de iniciar o que Valter chamou de uma “brincadeira de associação”. Sentados numa mesa, começaram a associar palavras livremente. Joana resolveu mudar o tom da brincadeira, e propôs que cada um falasse “o que não gostava”. Os relatos dão a entender que aquilo que incomodava no outro é que deveria ser exposto. Essa idéia não foi aceita pelo grupo a princípio, mas frente à insistência de Joana alguns se manifestaram e expuseram suas opiniões como ela havia sugerido. Os narradores são unânimes em apontar um “clima pesado” decorrente desta segunda brincadeira. Tanto Vânia quanto Valter e Maurício se referem a ela como a “brincadeira da catarse” ou o “mini ritual da catarse”. A escolha da palavra catarse revela o teor da situação: houve um descontrole dos participantes. Em muitos o descontrole foi emocional, o que levou alguns a saírem do grupo. Em outros houve um descontrole físico, psicológico ou energético, como veremos. A referência ao “clima pesado” nos remete ao desconforto experimentado na situação. Ao mesmo tempo, os relatos indicam que foi a experiência da catarse, forte e extremamente subjetiva, que uniu o grupo e deu a eles a certeza de que eram um grupo, levando à formação do coven. Embora tenha proporcionado os laços que levaram à formação do coven, o ritual de catarse também o marca como um empreendimento fadado a não ter bons resultados, pois o que começa mal não pode terminar bem. Para Valter e Maurício, o episódio marca a inexperiência e a imaturidade que permearam toda a vida do coven. Marca, ao mesmo tempo, a posição incômoda de Joana frente ao grupo, que culmina posteriormente em sua saída. Moderadora da lista, organizadora dos encontros, instigadora da catarse e candidata a Sacerdotisa do coven, sua posição de nítida liderança interfere em sua relação com os outros membros do grupo e se torna indesejável. Ela passa a sofrer acusações como a de atacar magicamente o coven estabelecido, fazer intrigas e fofocas após sua saída do grupo e de ter deliberadamente manipulado o grupo no ritual de catarse, quando seus membros estavam emocionalmente fragilizados. A acusação de “vampirizar”, feita por Vânia, é uma acusação corrente na Nova Era, e refere-se ao sujeito que suga a energia alheia em proveito próprio, como um vampiro suga o sangue de suas vítimas. Deste modo, Joana passa a encarnar o mal superado na primeira fase do drama, o período em que o coven está sendo estabelecido.

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“Foi a Joana que teve essa idéia e o povo cheio de uca na idéia embarcou, de fazer tipo um mini ritual lá de catarse, coisa assim. Os resultados, obviamente, foram desastrosos. Um menino ficou puto, o outro quis bater com a cabeça (...) na parede. Foi um terror! E depois rolaram uns papos posteriores a esse respeito: que a garota vampirizou, que não vampirizou. Mesmo assim, com todo esse resultado desastroso, aquele bando de pinks, eu incluída, a gente achou o seguinte: bom, se formou um laço, então vamos praticar juntos, vamos fazer magia. E foi mais ou menos assim que surgiu, quer dizer, já começou errado.” (Vânia) O que começa errado está fadado ao fracasso. As acusações abundam no relato acima. Joana poderia ter vampirizado os participantes da catarse. A catarse, por si própria, independente da atuação de Joana, foi uma situação que produziu resultados desastrosos, levando os participantes a desequilíbrios emocionais extremos, como o de bater com a cabeça na parede. Frente a isso, o bom senso deveria ter levado o grupo a se dissolver. Mas, pelo contrário, a catarse levou ao estabelecimento de um laço, um vínculo de vários níveis – psicológico, emocional, experiencial - que manteve o grupo unido e levou-os a considerar a idéia de que deveriam praticar magia juntos através de um coven wiccano. A incapacidade de refletir sobre os acontecimentos e a postura tomada, a união do grupo quando este deveria ser dissolvido, levam Vânia a formular uma nova acusação: os presentes eram todos pinks. Esta é uma acusação comum no meio wiccano brasileiro, e se refere sempre à bruxa deslumbrada, àquela que gosta de aparecer publicamente como bruxa quando não tem um conteúdo satisfatório a apresentar, àquela que não segue as tradições corretamente, e aos ignorantes. É um termo sem dúvida pejorativo. Esta acusação tem o mesmo teor das declarações de Valter e Maurício sobre a imaturidade e inexperiência dos participantes da catarse. Está claro que os resultados da catarse não foram bem assimilados pelo grupo. Segundo Maurício, alguns participantes foram levados a crises de choro, ele incluído. Valter conta que Douglas, Mara e Sílvio choraram enquanto Maurício estava muito nervoso. Wagner, que segundo Valter tinha uma mediunidade desenvolvida – teria sido espírita por algum tempo – apresentou uma dor-de-cabeça crônica que o levou a bater com a cabeça na parede do bar e posteriormente fez com que ele se deitasse sobre o chão da rua, numa atitude que Valter minimiza e trata como costumeira para ele e o amigo. A dor-de-cabeça teria advindo do “clima pesado” instalado pela

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catarse, e acometeria Wagner toda vez que “acontece alguma coisa”. Segundo Valter, ainda, Santos e Vânia estariam “razoavelmente inteiros” enquanto ele próprio havia passado por uma situação que define como “estressante”. Afirma que saiu do local “mentalmente são”, mas “fisicamente esgotado”. “Eu instintivamente joguei minha energia ao redor do grupo, tentando prender e proteger, mas eu saí dali arrasado fisicamente. Mentalmente eu saí são. Eu saí fisicamente esgotado. Tinha umas amigas nossas por ali, e eu fui dar um abraço. Nossa, eu me senti sugando [a energia da] a menina. Eu me assustei. Eu senti o fluxo vindo e foi uma catarse bastante pesada, quer dizer, as pessoas botam para fora seus traumas.” (Valter) A necessidade que Valter experimentou de proteger o grupo reafirma a idéia de que estavam numa situação vulnerável. O grupo não tinha defesas, precisava ser protegido. Segundo Maurício, estavam todos bêbados. Os traumas postos para forma exibem a fragilidade emocional dos participantes e expõe a pressão que o grupo experimentou, a ponto de ser chamada de catarse. Tal foi o grau de pressão, que Valter se sentiu física e energeticamente esgotado, a ponto de quase “vampirizar” suas amigas. A expressão deste episódio nos remete às acusações de Vânia: estaria Joana tentando “vampirizar” o grupo? Quando Valter se encontra na mesma posição, sugando as energias das amigas, ele se assusta. Se os atos de Joana foram intencionais, os dele não foram. Ao contrário de Joana, ele tentava proteger o grupo e não expor suas entranhas. A única pessoa que sai sem arranhões da experiência é a própria Joana. É ela quem proclama que, após a catarse, laços teriam sido estabelecidos e o grupo teria se transformado em um coven. Frente à declaração e após uma forte experiência caracterizada como emocional e psicológica, os personagens deste drama sentem uma “necessidade de um compromisso”, e voltam a se reunir com o intuito de formar o coven, organiza-lo, estabelecer metas e formas de trabalhar ritualmente em conjunto. É neste período que começa a se formular o claro antagonismo de alguns membros do grupo contra Joana, estabelecendo as bases para sua saída do grupo. Na primeira reunião agendada, Sílvio e Mara não compareceram, e posteriormente avisaram ao grupo que não era de seu interesse participar do coven. A negativa do casal é relatada pelos narradores como uma

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incompatibilidade ritual. Eles não seriam wiccanos, mas estariam estudando outros tipos de religiosidade e direcionando-se claramente para elas. Ao mesmo tempo, sentiam-se inexperientes e não desejavam trabalhar com um grupo. A reunião, marcada no mesmo lugar da catarse, já definia o grupo com todos os seus membros. Ricardo já havia sido convidado a participar. Segundo Valter, Ricardo já havia realizado rituais com ele e com Joana, o que o habilitava a ser integrante do grupo. Lúcio foi igualmente convidado a entrar no coven por suas ligações com Valter. Amigos de longa data, considerando-se irmãos, começaram a estudar wicca juntos e apresentavam um perfil religioso bem próximo. Valter afirma que não faria nada na wicca que não pudesse ter a participação de Lúcio. Nesta primeira reunião, Ricardo não pode comparecer, mas todos os outros membros estavam presentes: Valter, Vânia, Maurício, Joana, Santos, Lúcio, Douglas e Wagner. Após se encontrarem no bar, o grupo foi para o Jardim do Méier, praça arborizada do bairro. “A gente foi pro Jardim do Méier e aí já começou todo o estresse. Porque começava da concepção que a gente tinha de coven. A Joana dizia ‘meu coven’ e isso incomodava a gente um bocado. Ela se sentia, de alguma forma, que o coven era dela porque ela [estava numa posição] de cicerone e intermediária, porque sendo a moderadora da lista, foi a pessoa que causou o encontro de todos nós. Ela se sentia como se o coven fosse dela e mais tarde ficou mais claro porque ela começou a dizer: não, vocês não podem fazer isso no meu coven. É a sensação de que ela juntou todo mundo e isso foi o único fator que impediu a gente de imediatamente causar um racha com ela, porque de oito ela era a única com opinião diferente em relação a como organizar, como fazer. De início seis falaram: vamos trabalhar com panteão celta. Um falou: eu trabalho com qualquer panteão, desde que seja coerente. E ela falou: vamos trabalhar com panteão helênico. E na época rolava a maior discussão, a questão do celtismo e do helenismo tinha meio que uma birra. E seis ou sete queriam comemorar pelo norte, e ela queria comemorar pelo sul”. (Valter) Em todas as questões mais importantes dentro da prática wiccana, como o calendário a ser seguido – pelo hemisfério norte ou sul – e o panteão de trabalho do grupo, Joana foi voto vencido. O panteão a ser usado era uma questão especificamente importante para os membros

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deste grupo. Valter e Maurício relatam que seu ingresso na wicca se deveu, em grande parte, ao seu interesse pela mitologia celta e assuntos relacionados ao celtismo. Ainda assim, Valter narra a tentativa do grupo de conciliar as posições divergentes. É compreensível, portanto, que a conciliação viesse na forma da divisão dos cargos e na formulação de um calendário híbrido, pontos que não colocavam em cheque a ligação do grupo com o panteão celta desejado. “[Tentamos] fazer um calendário meio híbrido. Sabás maiores a gente comemora pelo norte, solstícios e equinócios a gente faz pelo sul. A Joana fica a Sacerdotisa dos equinócios e solstícios e a Vânia do norte, que era o voto da maioria das pessoas para ser a Sacerdotisa do coven. Isto também era uma coisa que contrariava muito a Joana, porque ela não queria estar num coven para não ser a Sacerdotisa. Ainda mais com o sentimento de ser meu, etc. Então ficou assim: a Joana faria alguns, a Vânia outros e eu fui eleito o Sacerdote, grande líder, Pendragon.” (Valter) Desajustada dentro do grupo, Joana é forçada a sair. A posição desviante faz com que as acusações de ataque mágico, manipulação, domínio e intrigas recaiam sobre ela. Ela se torna um sujeito impuro e perigoso que deve ser excluído em prol do bom funcionamento daquela microsociedade (DOUGLAS, 1976). Não esqueçamos de que esse relato é posterior aos acontecimentos, e já engloba uma análise individual de cada narrador a partir dos encaminhamentos tomados pela situação. Neste processo, o grupo firmou ainda mais a sua união e seus objetivos, alianças tiveram que ser feitas e novas liderança despontaram. Valter deixa muito claro que sua liderança não estava em cheque. Ele foi eleito “grande líder” e Sacerdote do coven, embora este contasse com mais homens do que mulheres. O cargo de Sacerdotisa, no entanto, pelo qual ele deixa claro que Joana lutava, podia ser dado a alguém mais: Vânia, a única outra mulher do grupo. Não só o cargo poderia ser dado a ela, como ela era a escolha da maior parte do grupo. A solução foi dividir o cargo segundo os rituais. A saída de Joana do grupo marca sua recusa em participar do empreendimento nos moldes em que ele se apresentava, ou seja, desprovido daquilo que ela almejava: o panteão helênico, o calendário do sul, o cargo de Sacerdotisa. Vânia, contudo, tinha requisitos para o cargo, como ela mesma afirma. Além disso, Valter sugere que ela e Joana tinham desentendimentos pessoais, o que teria influenciado a escolha do

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grupo de alguma maneira. Aberto à influência de Vânia, o grupo teria passado a hostilizar Joana. Como vimos, a posição de Joana já havia sido marcada por outros fatores. O relato de nossos três narradores apresenta Joana como pessoa que não se ajustava ao grupo, portanto desviante e passível de ser excluída. “Pra mim era muito claro uma coisa: eu era nova, muito nova em wicca, mas era bem mais velha em wicca do que aqueles meninos, entendeu? E, independente disso, eu já tinha estudado outras coisas de magia, alta magia, teosofia. Aí, então, qualquer pessoa que tivesse esse atributo, que não fosse eu, eu iria contestar. (...) ‘Você não sabe, porque isso aqui precisa ser estudado, o buraco é mais embaixo e tal’.” (Vânia). “A Vânia, de certa forma, era quem pregava toda a parte teórica porque ela era quem tinha mais experiência.” (Valter) O domínio de um campo de saber era o diferencial de Vânia. Como Yvonne Maggie (1977) apresenta a respeito da umbanda, o código do Santo deve ser dominado pelo pai-de-santo ou mãe-de-santo de um terreiro. No caso de nosso grupo, era o código mais amplo da magia européia, das artes e ciências ocultas, do esoterismo que estava em jogo. E mesmo não dominando completamente este código, Vânia se via na posição de quem melhor o dominava. Apesar de ser “nova em wicca”, ela estava na bruxaria há mais tempo que os outros integrantes. Tinha entre um ano e um ano e meio de estudo da wicca enquanto Valter, o Sacerdote do grupo, apenas começava a se organizar para uma prática solitária. Seus conhecimentos, ela conta, só eram comparáveis aos de outro membro do grupo: Santos. Mas em compensação, ele não tinha a experiência prática que ela tinha. Deste modo, ela desponta duplamente no código: possui conhecimento teórico e prático. De fato, Vânia era a única auto-iniciada no grupo. Como veremos, o primeiro sabá realizado pelo coven foi também o momento de auto-dedicação dos demais membros. O problema da liderança dentro do coven será exposto mais tarde. Vejamos primeiro como Joana saiu do grupo em questão. Para Maurício, a saída se deu no primeiro encontro do grupo a fim de discutir as bases organizacionais do coven. Para Vânia, foi após algumas reuniões. Valter é mais preciso a respeito do processo. No dia em que o grupo experimentou o que chamam

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de catarse, Valter recorda que conversou longamente com Wagner. Os dois levaram Mara e Sílvio em casa. Ao mesmo tempo, Santos e Vânia estariam conversando sobre os mesmos assuntos. Teria havido uma enorme empatia e uma “afinidade de idéias” entre os quatro, o que possibilitou a formação de um núcleo. Nas semanas após a primeira reunião do grupo no encontro para a discussão sobre a organização do coven, os quatro teriam se visto com freqüência e conversado sobre o coven apartados do resto do grupo. Na segunda reunião do grupo, exclusivamente para discutir assuntos relacionados ao coven, Joana já não estava mais disposta a pertencer ao coven. Segundo Valter, suas opiniões não haviam mudado, e ela não queria ingressar num coven que não estivesse de acordo com o que pensava. O grupo, no entanto, entendeu que ela não queria um coven que não fosse do seu jeito, e enxergou nela um empecilho ao que almejavam como coven. Entre a primeira reunião e a saída oficial de Joana do grupo, passaram-se cerca de dois meses, segundo Valter. “Eu comecei a ver: é, não vai dar jeito. Ou a gente acabava botando ela para fora ou a gente vai acabar fazendo a guerra fria, que foi o que aconteceu, e ela vai acabar saindo.” (Valter) A posição escolhida por alguns membros do grupo, então, foi a da “guerra fria”, ou da “conspiração”, nas palavras de Maurício. Como as posturas e opiniões de Joana não mudavam, pelo contrário, se acirravam, a escolha de alguns membros foi por uma articulação pessoal que englobasse todos os outros de modo a torna-la marginal e, por fim, retira-la do grupo. Em uma das reuniões para o coven, Joana teria levado consigo um amigo que desejava inserir no grupo. As atitudes dele, no entanto, não foram bem vistas pelos demais: homossexual declarado, fazia questão de falar de sua vida íntima, contando detalhes de sua sexualidade, o que fez com que o grupo rechaçasse a possibilidade de que ele viesse a participar. Contando já com dois homossexuais, Valter garante que não foi a sexualidade do amigo de Joana que chocou o grupo, mas sua postura escandalosa para os parâmetros deles. A própria Joana teria considerado, mais tarde, que ele era impróprio para pertencer ao coven. Interessante notar que cada nova ação de Joana é marcada por uma repulsa e contra-ação do grupo. Quando ela reflete acerca de suas posições sobre a organização de um coven, ela se torna um empecilho. Quando leva um amigo para o grupo, ele não é aceito.

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Numa reunião posterior feita pelo grupo na Quinta da Boa Vista, Joana marca sua saída. Neste mesmo dia, Valter a leva até a Praça XV – ela morava em Niterói - e eles têm a oportunidade de conversar, quando ela reafirma sua saída do grupo. O que parecia esclarecido, no entanto, revelou-se posteriormente um problema. Aparentemente, Joana havia saído sem maiores brigas ou complicações. Mas Valter afirma que essa paz foi ilusória, pois ela teria começado a tecer intrigas sobre o grupo, afirmando que havia sido expulsa do coven. Notemos que Joana era uma pessoa de destaque na wicca carioca, pois era a organizadora de encontros da lista de discussões da qual era moderadora, umas das mais famosas da época. Seus comentários, portanto, tinham algum peso. Embora os comentários tenham sido mal recebidos pelo grupo, Valter afirma que, de certa forma, Joana havia sido realmente expulsa do grupo. Para Maurício, ela nem chega a participar efetivamente de alguma atividade considerada do coven. Este é mais um episódio que marca o começo do coven como um empreendimento fadado ao fracasso. “Foi uma guerra fria do pior tipo possível, quando as pessoas não têm coragem de assumir suas posições, que foi o que aconteceu com a gente. Ninguém queria botar ela para fora, mas todo mundo queria que ela saísse. (...) Depois da Joana, a gente começou conturbado.” (Valter) “Eu, Wagner e Vânia, eu e Wagner principalmente, quando a gente resolveu apresentar todos esses problemas da Joana, a gente bancou o illuminatti mesmo. A gente falou com o Maurício, saímos para conversar só com o Maurício e vimos que ele estava achando a mesma coisa mas estava receoso de falar. A mesma coisa com o Douglas. Ele já estava chateado com a Joana. E fomos arrendando politicamente mesmo.” (Valter) “No caso da Joana, que foi inclusive a pessoa que o pessoal conspirou contra, realmente é uma estória estranha até hoje. E eu acho que uma conspiração da gente contra ela. Ela acabou não sei por que dizendo que ia sair. Ela acabou não participando de nada com a gente.” (Maurício)

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A formação do coven A saída de Joana do grupo define, por fim, quem ficaria no coven: Lúcio, Ricardo, Douglas, Santos, Vânia, Maurício, Valter e Wagner. O primeiro ritual realizado pelo grupo firmou o compromisso entre seus membros e oficializou o coven. Este ritual foi um sabá de Samhain no final de outubro de 1998. Neste mesmo ritual, todos os homens do grupo realizaram sua auto-dedicação na wicca. Vânia já havia se auto-iniciado. O ritual foi realizado na Floresta da Tijuca. O coven costumava realizar seus rituais sempre em lugares abertos e em contato com a natureza. Notemos que mesmo na fase de reuniões e encontros, estes são os locais preferidos pelo grupo, que já havia se encontrado na Quinta da Boa Vista, no Jardim Botânico e no Jardim do Méier. A praia era um local também utilizado pelo grupo, mas com menor freqüência. O coven realizou três sabás ao todo: Samhain, Yule e Imbolc. O sabá seguinte, Ostara, marcou sua dissolução. Ao primeiro sabá compareceram todos os membros do grupo. Nos rituais subseqüentes, nem todos estavam presentes. Santos compareceu apenas ao primeiro, e não comparecia às reuniões que o grupo organizava nos fins-de-semana, quando se encontravam para beber e conversar. Vânia, Maurício e Valter compareceram a todos. Ricardo, Wagner e Douglas faltaram a apenas um sabá cada um. Houve, ainda, dois rituais realizados pelo grupo: um, quando foi constatado que havia ataque mágico, e outro quando o primeiro membro do coven desligou-se oficialmente. Dos três membros do coven entrevistados, apenas Vânia lembrou-se que estes rituais haviam sido realizados. Maurício afirma que apenas os três sabás tinham sido realizados como rituais do coven, e Valter acrescenta a auto-dedicação realizada na mesma data do primeiro sabá do grupo. Em determinado momento, o coven teria se sentido sob ataque mágico, e um ritual foi executado buscando o fim daquela situação. Segundo Vânia, o grupo apresentava sintomas de ataque: uma sensação estranha de dormência nos pés, uma sensação emocional de opressão, e alguns estariam tendo, ainda, muitos pesadelos. Após o ritual de banimento, a situação teria melhorado. O outro ritual de banimento foi realizado quando Douglas abandonou o grupo. Vânia sentiu que as circunstâncias da saída dele exigiam um ritual formal de afastamento de um membro de coven. Este ritual tinha por objetivo fazer com que o karma de Douglas não repercutisse mais sobre os membros do coven. Deste modo, as ligações mágicas entre ele e o grupo estariam definitivamente cortadas. Consistiu num círculo formado pelos membros e uma

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mentalização, realizados no apartamento de Vânia no mesmo dia em que Douglas comunicou sua saída. Como veremos, ele o fez em casa de Vânia, durante sua festa de aniversário. Este foi um procedimento de proteção do grupo quanto aos atos futuros de seu ex-membro, e caracterizava, dali em diante, o seu não-pertencimento ao grupo. Interessante notarmos que nenhum outro membro, após a dissolução do coven, sofreu qualquer tipo de ritual de afastamento. Mesmo quando o coven foi declarado dissolvido, nenhum tipo de ritual foi executado por seus antigos membros para este fim. Além dos rituais, o grupo se via com regularidade nos fins-de-semana. Encontravam-se normalmente no mesmo bar, no Méier, onde bebiam vinho e conversavam. Costumavam também comer na cadeia de fast-food onde Lúcio trabalhava. Apesar de a maioria dos membros do coven ter se conhecido através de uma lista de discussões, o grupo formado tornou-se muito unido. Segundo os três narradores, eles eram muito amigos. Maurício afirma que queriam fazer tudo juntos: saíam à noite, iam ao shopping, a festas, se encontravam para ler, conversar, beber e comer. Para Valter, eram amigos antes de serem parceiros mágicos, o que, em sua opinião, foi um dos motivos pelos quais o coven enfrentou os problemas que causaram sua dissolução. As noites e fins-de-semana nos quais o grupo se encontrava era sempre ocasiões para se discutir assuntos relativos ao coven, mesmo não sendo reuniões especificamente programas com essa intenção. De fato, toda a prática dos membros era feita em conjunto. Maurício, que quando ingressou no coven estudava wicca há apenas seis meses, afirma que não se sentia confortável em realizar práticas mágicas e rituais sozinho. Achava que não podia faze-lo. Valter também não realizava práticas solitárias, embora faça questão de frisar que tinha conhecimentos para isso. Apenas preferia trabalhar em grupo, como faz até hoje. Vânia, por outro lado, diz que realizava algumas práticas solitárias, especialmente esbás, que o coven não realizava. Eventualmente, ela também fazia alguns feitiços de proteção e prosperidade para si. Vânia, em sua prática solitária, estava na verdade buscando o que o coven deveria oferecer-lhe mas não oferecia: parte da prática wiccana que não estava sendo realizada. Havia, além disso, uma preocupação mágica de sua parte: única mulher num grupo de sete homens, temia que sua “energia” pudesse ser “desequilibrada” de alguma forma pela influência masculina a que estava sujeita. Os esbás, rituais de ligação com a lua, proveriam a ela energia feminina suficiente para manter seu equilíbrio energético e mágico. O coven fazia feitiços também, destinados à cura, à solução de problemas de não-membros e à prosperidade.

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Após a saída de Joana, o grupo teve que discutir como organizar uma liderança dentro do coven. Vânia recorda que Santos havia se manifestado a favor de uma autoridade formal, com o argumento que sem isto a organização estaria comprometida. Ele, no entanto, não desejava exercer essa autoridade. O restante do grupo não desejava que houvesse uma autoridade e, por consenso, definiu-se que Vânia seria a Sacerdotisa do grupo – visto que era a única mulher - e que Valter assumiria o posto de Sacerdote. “Eu lembro que o Santos falou: não, eu quero um coven com alguém que mande porque senão as coisas não funcionam. Num coven cheio de aquariano, se você falar que alguém manda todo mundo pula, né? A única pessoa que se posicionou mais ou menos a favor, até porque queria obviamente isso, foi a Joana.” (Vânia)

Segundo Vânia, a os cargos de Sacerdote e Sacerdotisa indicavam uma liderança apenas nominal dentro do coven, e não factual. As decisões eram tomadas por todo o grupo, a partir de discussões intelectualmente elaboradas que não raro não chegavam a consenso algum. Este foi indicado pelos três narradores como um dos motivos do fracasso do coven em permanecer ativo. As discussões sucediam-se e nelas as lideranças foram definidas: Vânia, Maurício e Valter, que eram também os mais assíduos do grupo. Apesar dos rituais serem nominalmente organizados pelo casal sacerdotal, o segundo sabá do grupo foi dirigido ritualmente por Maurício sozinho. Os rituais eram escritos por estes três membros. As discussões intelectuais passaram a girar mais em torno destes três personagens. Segundo Maurício, a liderança definida de Vânia e Valter foi sendo modificada a partir de sua inserção mais direta nas questões do coven. Ele recorda que as discussões eram muito freqüentes, mas que não constituíam brigas. Estas discussões, entretanto, formularam um padrão que definiu uma política de acusações após o término do coven. Para Maurício, seus desentendimentos freqüentes com Vânia eram, apesar de tudo, os mais saudáveis, pois eram às vistas de todos. Ele faz uso de sua amizade contínua e duradoura com ela até o presente momento como exemplo de que estes desentendimentos eram exclusivamente intelectuais e não pessoais. Vânia é de mesma opinião, e usa o mesmo argumento de Maurício para exemplificar seu ponto de vista. Valter, por outro lado, se torna sujeito acusado de desentendimentos velados e disputas não claramente postas. É possível observarmos que a partir daí o momento das acusações emerge para nossos três narradores. A liderança do grupo,

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repartida por três, estava sendo disputada entre eles. A expressão do grupo para esta disputa é o “conflito de ego”. Este consistiria na tentativa de cada um dos três de afirmarem suas próprias opiniões como as melhores para o grupo. Esta disputa é o que chamam de “discussão intelectual” e “conflito de ego”. Em algum momento, a discussão que parecia meramente teórica passa para o plano pessoal da disputa por liderança e se transforma no “conflito de ego”. O conflito, contudo, só foi observado por eles após a dissolução do coven, segundo Maurício. Já faz parte, portanto, do âmbito acusatório. Vejamos agora a saída de cada membro do coven até sua dissolução para então observarmos os elementos indicados pelo grupo como responsáveis pelo seu fim.

A saída de Douglas As primeiras faltas sentidas no grupo foram Santos e Lúcio. Em um primeiro momento desempregados, passam a trabalhar quando já participavam do coven. No caso de Lúcio, o trabalho em uma lanchonete de fast food tornava seu tempo disponível escasso para que se engajasse nas atividades do coven. Mesmo assim, ele costumava freqüentar os encontros do grupo nos fins-de-semana. Santos, por outro lado, era um membro ausente. Como Lúcio, compareceu apenas ao primeiro sabá, mas dificilmente encontrava os membros do grupo pois gostava muito de ficar em casa. Quando da visita ao Rio de uma bruxa de Brasília conhecida nas listas de discussões da internet, Santos voltou a reencontrar o grupo. Sua motivação, entretanto, era conhecer a bruxa brasiliense e não encontrar-se com seu coven. Para Valter, Santos nem chegou a se firmar como um membro efetivo do grupo, tal era a sua ausência. Deste modo, o único membro que possuía o mesmo grau de conhecimento que Vânia era ausente, e não poderia, de fato, ter ingressado nas disputas pela liderança do coven. Embora tenham comparecido ao primeiro ritual e a nenhum mais, estes dois membros foram considerados ausentes mas não foram retirados do grupo. Em nenhum momento de seus relatos os narradores souberam precisar o momento de saída destes dois membros. Eles foram tratados mais como membros ausentes ou não-membros do que como ex-membros. Após a recusa de Mara e Sílvio de ingressarem no coven, após a expulsão de Joana do grupo e com a falta constante de dois membros – Santos e Lúcio -, o grupo enfrentou uma nova perda, a primeira oficial do coven. Na festa de aniversário de Vânia, em fevereiro de 1999,

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Douglas comunicou ao grupo que estava se afastando. A notícia se tornou um balde de água fria para o grupo. A data, que era comemorativa, transformou-se em trágica. O fim do grupo estava se anunciando naquela ocasião. Valter recorda que a saída de Douglas foi muito dolorida para ele na época. Para o grupo, teria sido um choque. Aparentemente, ele não forneceu os motivos para sua saída, o que fez com que Vânia a considerasse misteriosa até hoje. Maurício afirma que Douglas estava desiludido, se perguntando se a wicca era realmente o seu caminho, e se aquela era a hora de decidir. No meio de tantas dúvidas, pensava que poderia causar um “atraso” no desenvolvimento do coven. Seus argumentos foram rebatidos, mas ele não foi convencido a ficar. Valter afirma que Douglas pensava o seu caminho de bruxo como algo solitário naquele momento. A saída de Douglas aparece como um fator desagregador para o grupo. Ela desencadeia uma sucessão de afastamentos que, conjugados com a disputa por liderança já em jogo, precipitaram a desagregação do coven. “Ele resolveu sair. Aquilo ali foi um choque para a gente. Era um dia que era para ser uma comemoração e acabou que foi um dia brabíssimo. Foi o aniversário da Vânia. Logo depois o Wagner avisou: estou fora, e dali não teve jeito. Não adianta recuperar algo assim que não dá certo. Acabou.” (Maurício) Segundo Maurício, após a saída de Douglas, Wagner decidiu também abandonar o grupo. Valter se recorda que foi após a saída de Douglas que Santos também optou por deixar o coven. Nenhum dos dois, aparentemente, apresentou motivos para sua saída do coven. Com menos três membros e um ausente – Lúcio -, o grupo se encontrava numa situação instável. As três lideranças disputavam espaço para apenas uma audiência: Ricardo. O que marca realmente a dissolução do grupo é o seu quarto sabá, que não chega a ser realizado. Segundo Vânia, Valter havia ficado responsável por escrever o ritual em questão. Ao invés disso, o rapaz desapareceu deixando Vânia, Maurício e Ricardo sem saber qual seria o futuro do coven. Quando Valter “some”, ele abandona o coven sem dar explicações e, por conseguinte, leva consigo seus amigos Lúcio e Wagner. No relato de Vânia, o “desaparecimento” de Valter é mais significativo para a desestruturação do coven do que a saída de Douglas, pois ele desencadeia a ruptura dos membros restantes. Suas acusações, então, se voltam mais para a

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conduta de Valter, a partir deste período, do que para os outros membros do grupo. A ruptura retratada no relato de Vânia fica ainda mais patente quando ela afirma, e Valter confirma, que ele, Lúcio e Wagner voltaram, posteriormente, a trabalhar ritualmente juntos num outro coven. “Tudo começou nos preparativos do Ostara. As coisas já não estavam indo bem. A gente não conseguia avançar no sentido, primeiro de aumentar os conhecimentos de magia teórica, prática, mitologia (...). Eu estava ficando puta e estressada já. Aí depois aconteceu do Valter sumir. E por tabela sumiu o Lúcio, o Wagner meio que sumiu mas, enfim, sumiu um pouco menos. Mas o Valter tinha ficado, a gente tinha tirado que ele ia escrever o ritual de Ostara. O Valter sumiu, virou pó.” (Vânia) O afastamento momentâneo de Valter fez com que Vânia e Maurício decidissem escrever o ritual e realiza-lo assim mesmo. Foi neste ínterim que Wagner comunicou a Vânia que estava se afastando do coven. Alegou que estava cansado de pertencer ao grupo e que “as coisas não iam para a frente”. Maurício, em seu relato, usa muito esta expressão com o sentido de que o grupo não estava alcançando os objetivos a que tinha se proposto. Vânia conta que ainda tentou argumentar com Wagner, e marcaram um encontro onde ele não compareceu. Vânia havia avisado Maurício deste encontro, e ele acompanhou-a. Wagner disse que havia se esquecido do encontro, e por isso não havia comparecido. Com um futuro incerto, o grupo não celebrou o sabá de Ostara. Neste ponto, uma outra personagem entra no drama: é Ana, bruxa wiccana que os membros do coven já conheciam. Ana organizava encontros de bruxos na Floresta da Tijuca, e eventualmente convidava alguns para celebrar os sabás com ela. Com a situação indefinida, Vânia entra em contato com Ana a fim de participar de sua celebração. Para sua surpresa, Ana comunica que além de Maurício, Valter e Wagner também iriam e que haviam comentado que não se sentiam mais obrigados às decisões do coven pois haviam abandonado-o. O fim do coven, neste ponto, se torna claro e iminente. O que ocorre a seguir no drama é uma sucessão de acusações que termina por abalar a amizade dos membros do grupo. Vânia entrou em contato com Valter, que desmentiu a estória alegando que era uma “interpretação pessoal” de Ana. Ana, por sua vez, confirmou a Vânia o que Valter teria lhe dito. Neste momento, Vânia diz que percebeu que o fim do coven havia chegado. Ela decidiu, então,

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não continuar trabalhando apenas com Maurício, visto que na época eles mantinham divergentes opiniões sobre a prática da bruxaria. Neste ponto, Vânia decide celebrar o sabá com um outro amigo de fora do grupo. Foram juntos para a Floresta da Tijuca e encontraram alguns amigos que os levaram para a celebração de Ana, onde Vânia encontrou Maurício e Valter. “Esse casal nos levou ao ritual deles e acabamos fazendo lá. É verdade que o Valter não participou. O Maurício entrou no círculo e me disse que só entrou porque eu tinha entrado também, enfim... mas o Valter não entrou não, não sei por quê.” (Vânia) O círculo a que Vânia se refere é o espaço ritual da wicca, que funciona como templo. Ele é desenhado no chão antes de qualquer ritual e apagado posteriormente. O fato de Valter não ter entrado no círculo marca, simbolicamente, a sua recusa em pertencer àquele grupo. Já a entrada de Maurício, influenciada pela entrada de Vânia, marca o alinhamento daquele com esta nas questões posteriores ao final do coven. Após este acontecimento, uma troca de acusações e uma série de desentendimentos ocorrem entre Vânia e Maurício, de um lado, e Valter do outro. Simbolicamente, o círculo definiu os grupos em disputa. Para Valter, o coven havia decidido que o ritual de Ostara não seria celebrado devido à falta de tempo de seus membros. Paralelamente a isso, o coven teria se atido a uma discussão sobre o calendário. Celebrando os sabás pelo calendário do hemisfério norte, estariam vislumbrando a possibilidade de fazer as celebrações pelo sul. É neste sentido que ele não estaria obrigado às decisões do coven no episódio acima relatado. Ana celebrava os sabás pelo calendário do hemisfério sul, portanto Valter não poderia estar obrigado às celebrações do norte para poder participar. Isto, contudo, não é uma proibição wiccana, mas uma questão interna a este coven. Neste ponto, o calendário causa uma confusão no relato de Valter. A data das festividades de Ostara é diferente em cada hemisfério. Quando se celebra Ostara no hemisfério norte, o calendário do sul marca o sabá de Mabon. Este foi, segundo Vânia, o sabá realizado por Ana naquela ocasião. Pensando no Ostara do hemisfério sul, Valter transporta a celebração de março para setembro, e passa a contabilizar quase um ano de coven, quando este se dissolveu, na verdade, em março de 1999.

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Este ritual organizado por Ana foi, nas palavras de Valter, um encontro de seu coven sob a supervisão de uma pessoa que não fazia parte dele. Dos membros do coven, estavam presentes apenas Vânia e Maurício. Valter afirma que não participou do ritual por não se sentir à vontade. Deste modo, ele marca igualmente, de maneira simbólica, o seu não-pertencimento ao coven. Na celebração, o seu coven estava reunido, mas como não fazia mais parte dele, ele não se sente à vontade para participar. Para ele, aquele ritual foi o momento no qual tomou consciência de que o grupo havia se dissolvido. Mesmo após a desagregação do coven, seus membros continuaram amigos e encontravam-se com certa freqüência. Neste período, houve a tentativa de formular um novo coven, que fracassou. É a partir daí que as acusações trocadas se fazem mais fortes. O segundo coven Segundo Maurício, ele, Vânia, Valter e a namorada encontraram-se, certa vez, na Floresta da Tijuca. Como no dia da catarse, mais uma vez houve uma sensação estranha que perpassou o grupo. Quando a namorada de Valter foi embora, os três remanescentes se dirigiram à praia para conversar. Nesta conversa, chegaram à conclusão de que deveriam voltar a trabalhar juntos em um coven, mas apenas os três. Em muitas passagens das entrevistas, eles deixam claro que, apesar das inúmeras discussões que tiveram dentro do coven, os três se entendiam muito bem e gostavam de trabalhar ritualmente juntos. Esta empatia, palavra usada por eles para definir o sentimento que os havia unido em seu primeiro encontro, perpassou especialmente nossos narradores. Por isto afirmam que o término do coven, apesar de conturbado, era inevitável, e não abalou a amizade que nutriam um pelo outro. Os relacionamentos foram abalados pela sucessão de fatos posterior ao fim do coven, e que deu origem a uma série de acusações. A tentativa de formar um novo coven, e os acontecimentos que se sucederam, foram o momento de abalo do relacionamento entre nossos três narradores, momento de ruptura de um relacionamento que se desgastava continuamente. Haviam se passado três meses do término do primeiro coven e a idéia do novo coven fora aceita pelos três, mas como um grupo fechado que não estaria disponível a novos membros. Maurício recorda que foi Valter quem burlou a regra instituída, e insistiu em trazer de volta todos os membros do antigo coven. Ao mesmo tempo, ele também passou a convidar novas pessoas

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para que ingressassem neste novo grupo. Aos poucos, as opiniões de Valter foram se tornando dominantes, mudaram os primeiros planos do trio e acarretaram a saída tanto de Maurício quanto de Vânia. Frente à mudança do que havia sido combinado, Maurício recorda que Vânia decidiu abandonar o projeto. Nos relatos de Vânia, esse segundo coven não é mencionado. Para Valter, este era um empreendimento conjunto dele e de Maurício, e Vânia não é mencionada como parte dele. Este coven, segundo Valter, teria sido organizado por ele e Maurício apenas, segundo uma lista de quinze pessoas que seriam convidadas a fazer parte do novo grupo. Na lista estariam algumas “meninas bonitas”, exigência de Maurício, que já estava farto de trabalhar num grupo essencialmente masculino. Notemos que aqueles que são convidados para este segundo coven não o são por quesitos como o domínio do código da wicca ou pela empatia e amizade nutrida, mas por outros motivos. Na escolha dos novos integrantes, valores que não pertencem ao código passam a ter maior peso. Como veremos, a amizade entre os membros de um coven está em acordo com o código da wicca. Toda semana este segundo grupo discutia em que bases o coven seria organizado. No período destas reuniões, Valter fez uma viagem para Brasília, para encontrar-se com bruxas de lá. Este é o momento de ruptura entre Valter e Maurício. Maurício afirma que Vítor aproveitou a viagem para fazer intrigas a seu respeito. Ao voltar de viagem, não conseguiu encontra-lo e percebeu que o amigo já havia tomado as decisões para o coven sozinho, sem consulta-lo. O próximo passo de Valter foi tentar remover Maurício do coven. Nesta época, Maurício estava envolvido com estudos de outras correntes de magia e esoterismo. Valter não via esse envolvimento com bons olhos e instou o colega a escolher entre seus estudos de outros sistemas mágicos e seu pertencimento ao coven. “E ele falou: ou fica na magia ou fica no grupo. Ou seja, rolou uma sacanagem, rolou um boicote. E hoje eu vejo assim, foi por lance de liderança, porque aí eu volto ao passado. Na época ainda da Joana, (...) quem podia manter uma liderança? Valter e Joana. A Joana saiu logo depois. E quem contou umas estórias da Joana, que rolou realmente a conspiração, foi o Valter. (...) O coven acabou. Tentou montar outro. Quem poderia, nesse coven, ter uma posição de liderança? Eu, Valter e Vânia. Logo a Vânia pulou fora, aí rolou isso e quem caiu fora fui eu. Foi uma sacanagem. Falasse na frente, sabe? Não precisava ter ido para Brasília, ter ido para aquela turma falar

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mal de mim. Ele parece que se deslumbrou com o que viu lá. (...) Eles têm a opinião formada deles e acham que o que eles fazem é que é o certo. Então voltou com essa idéia na cabeça. E estão falando que eu, por estudar Magia do Caos, não posso fazer wicca.” (Maurício) Frente o comportamento de Valter, Maurício toma sua escolha e decide se retirar do grupo. O ponto de discórdia é o interesse do rapaz por outro sistema mágico. Percebemos que, mais uma vez, é o código da wicca que está em questão e que vai definir quem está apto a liderar um coven e quem não está. Reunindo-se com bruxas de Brasília, cidade onde desde 1999 é promovido o Encontro das Bruxas Brasileiras em Brasília, congresso wiccano que reúne bruxas de todo país, Valter assume a postura de defensor do código, e exige que Maurício faça sua escolha. Ao mesmo tempo, a ida para Brasília legitima seu papel de liderança através do domínio do código, ditado agora pelas bruxas brasilienses. Sua familiaridade com elas é a marca de sua familiaridade com o código. Ao voltar de Brasília, ele toma decisões sem consultar o amigo: ele agora domina o código, e o amigo não; este deve escolher a qual código deseja pertencer. Se em um primeiro momento o domínio de distintos códigos de magia fez com que Vânia fosse alçada à categoria de mais experiente do grupo, agora Valter instituía o código da wicca como único aceitável para quem exercesse liderança no grupo. Valter recorda que fora a Brasília para participar de “vivências”, espécie de wokshops, ministrados pelas bruxas da cidade. “Eu fui a Brasília, participei de umas vivências que fizeram eu mudar completamente a minha visão de coven. E quando eu voltei, eu falei: vamos mudar. Nesse muda, não muda, o Maurício já estava engrenando na filosofia caoísta e ele queria ser caoísta e usar a wicca e a gente começou a se sentir mal com aquilo.” (Valter) Ao retornar, ele decide modificar o coven. O domínio do código é o que possibilitou esta inserção direta sobre o grupo. Maurício, encaminhando-se para outro código, não era mais bem vindo no grupo. Deste modo, Valter firmou-se como liderança deste segundo coven, que foi reformulado diversas vezes até chegar à estrutura em que se encontrava quando da época da entrevista.

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A acusação de que Maurício não era um bruxo wiccano são parte de uma estratégia de Valter de afastar do grupo aqueles que poderiam oferecer perigo à sua posição de liderança, segundo o relato de Maurício. Deste modo, Valter minimiza a condição de bruxo wiccano de Maurício, e transforma-o em praticante de outro sistema mágico-filosófico, sujeito desviante do grupo, passível de ser alienado, exatamente como ocorrera com Joana. “[o Maurício] Ele foi a pessoa que me falou: eu não quero mais ser wiccano porque eu quero magia de verdade. Isso para mim doeu. Eu sempre fiz questão de ser wiccano.” (Valter) O teor das acusações de Valter a Maurício abalaram profundamente o relacionamento dos dois. Mágoas e contestações surgiram dos dois lados, até que eles se entendessem novamente. Nenhuma das partes nega, no entanto, que o envolvimento nos covens tenha, de alguma forma, sido um problema para a amizade do grupo. Como veremos adiante, o coven é concebido como uma família, e a sua desagregação é sentida de maneira muito profunda por seus membros. As amizades que se colocam em jogo quando um coven termina são amizades que se formaram, muitas vezes, fora do coven, e que sofrem abalos por causa deste. Valter também teve sua amizade com Vânia abalada. A situação foi muito parecida com aquela experimentada por Maurício. Após sua saída deste segundo empreendimento, Vânia encontrou-se com Valter e Wagner para conversarem. Segundo Valter, ela teria falado sobre suas práticas rituais como bruxa solitária e também de seu interesse por uma outra corrente mágicofilosófica que não a wicca. Valter afirma que de um comentário seu a este respeito, formou-se uma tempestade, que acabou por destruir a amizade entre os dois. “Ela falou de Maat e Nema. Tudo bem, só que eu não gosto. E fiz um comentário com o Wagner: puxa, acho que ela está impregnada de energia thelêmica. Pois é, e caí na asneira de comentar isso com o Maurício e mais um ou dois. Comentei, sabe, mas não foi uma coisa pejorativa, foi um comentário inocente. E deu nisso. Ela baixou o nível comigo num encontro, numa mesa de bar.” (Valter)

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Nema é a autora do livro “Magia de Maat”, pelo qual Vânia estava interessada na época. É um livro sobre Thelema, corrente mágica criada por Aleister Crowley, conhecido mago do esoterismo ocidental. O próprio Valter já havia estudado Thelema antes de ingressar na wicca, portanto isto lhe dava aval para o comentário que fez. Novamente, estamos diante da disputa pelo domínio de um código. Familiarizado com o código de Thelema, ele fora capaz de observar que a ex-companheira de coven inclinava-se nesta direção. Ao mesmo tempo, caracterizando-a como uma praticante de Thelema, ele afastava-a do código da wicca, como fizera com Maurício. O que afastava, na verdade, eram os rivais para sua liderança no coven. Quando o comentário de Valter chegou aos ouvidos de Vânia, ela rompeu definitivamente com ele. Em público, numa mesa de bar repleta de conhecidos, ela afirmou que não era praticante de Thelema, e que se fosse aquilo não dizia respeito a ninguém a não ser ela mesma, e saiu do bar dando alguns tapinhas no ombro de Valter, indicando, deste modo, que ele estava envolvido nos boatos. Valter recorda que não proferiu palavra frente à acusação, mas em seu relato ele se defende. Afirma que o comentário não havia sido somente dele, mas partia também de Wagner. Ao mesmo tempo, sentiu-se magoado com a atitude de Vânia, que o expunha publicamente como acusador e fofoqueiro. Ela poderia ter se dirigido a ele em particular, diz, pois tinha liberdade de esclarecer qualquer assunto com ele. A ruptura veio de ambos os lados: Valter faz questão de não se encontrar mais com Vânia, pois não deseja passar pela situação novamente. Vânia também não considera mais Valter como um amigo. O que move as acusações de Valter, como vimos, é a luta pelo domínio de um código que faria dele a liderança do coven. Exatamente como Maggie (1977) retrata, é o domínio de um determinado código que fornece as bases para se legitimar a liderança em um grupo mágicoreligioso estabelecido. Na obra de Maggie, os códigos em disputa são o código do Santo e o código burocrático. No nosso caso, os códigos não estão propriamente em disputa, mas há uma disputa pelo domínio do código. Na primeira fase do primeiro coven, Vânia afirma que quem melhor dominava o código era ela, e faz recurso a outros tipos de sistemas mágicos – como a alta magia e a teosofia - para legitimar sua posição. Num segundo momento, quando a liderança do segundo coven está francamente em disputa, é Valter quem usa do argumento para banir em definitivo aqueles que não têm um domínio estrito do código da wicca. A familiaridade com os códigos da Magia do Caos e de Thelema, exercidos por Maurício e Vânia, fazem com que eles sejam acusados de não pertencerem à wicca, e de não dominarem seu código. Tornaram-se

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excluídos do grupo. Valter se coloca numa posição purista: ele é o único que lida apenas com wicca, e por isso o mais apto a liderar o grupo. Seu interesse por outros sistemas mágicos havia ficado no passado, num tempo em que ainda não havia encontrado a wicca. Ao mesmo tempo, ele se alinha com as conhecidas bruxas brasilienses num movimento em busca de legitimidade para sua posição. É a partir de sua estadia com elas que ele reformula o coven e decide colocar em cheque o pertencimento de Maurício a ele. Ao mesmo tempo, a reação de Vânia e Maurício às posições de Valter são de uma contraacusação. Vânia tenta desmascarar Valter publicamente, levando para fora do grupo assuntos que até então eram internos. Maurício, por outro lado, enxerga em Valter uma posição análoga à de Joana. Para ele, ambos desejavam a liderança formal de um coven, e usaram de todos os artifícios para alcançar suas metas, mesmo que para isso tivessem que romper com os amigos. A briga de Maurício e Valter deixou seqüelas no relacionamento de ambos, mas foi parcialmente superada, pois eles ainda se falam. Valter e Vânia, ao contrário, não se falam mais. Como esta disputa se acirrasse, Valter guarda ainda, em relação a Vânia, o mesmo tom de acusações que Maurício fez a ele. Dentro do coven, Valter indica que Vânia manipulava-o e disputava com ele a liderança do grupo, mas ainda com base no código da wicca. “Eu fiquei um pouco perdido e algumas pessoas sentiram e vieram reclamar comigo que a Vânia estava sendo muito autoritária nas opiniões dela e eu estava indo na onda dela. E realmente, depois eu parei para pensar e vi que ela estava sutilmente impondo as opiniões dela e me usando, não por mal nem nada, mas me usando para validar as opiniões dela. Então ela conversava primeiro comigo, me convencia porque os argumentos dela sempre foram muito legais, e eu gostava, me identificava muito com o jeito da Vânia trabalhar.” (Valter) Embora a liderança fosse exercida por nossos três narradores, havia uma disputa interna entre eles. As acusações trocadas a partir do fim do coven demonstram que, mesmo que pudessem não perceber, estavam envolvidos em uma disputa. A passagem acima demonstra bem o tom velado da disputa de que Maurício muito fala. Ele e Vânia fazem questão de frisar que só conseguiram superar suas diferenças dentro do coven porque discutiam – ou disputavam – abertamente. Na passagem acima, Valter demonstra que sua disputa com Vânia não era tão clara.

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Na verdade, os dois, como casal sacerdotal do coven, disputavam a liderança com Maurício. Ele é, a princípio, o principal oponente. Por isso Vânia recorda que ela discutia muito com ele e Valter também, mas que Valter e ela raramente discutiam entre si. Suas divergências ocorriam “por debaixo dos panos”, como diz. É a partir do “desaparecimento” de Valter, conforme o relato de Vânia, que ela e Maurício vão tomando o mesmo lado em oposição a Valter, que se alinha com seus amigos de longa data, Lúcio e Wagner, e com pessoas estranhas ao grupo, como Ana e as bruxas brasilienses. Vejamos agora que motivos os narradores apresentam como causas para o término do coven. Os motivos para o fim Os motivos apresentados pelos narradores para o fim do grupo têm pontos em comum. Fala-se muito nas discussões e desentendimentos intelectuais que o grupo teria experimentado. Para Valter, estas discussões não se resumiam às três lideranças, mas se estendiam a todo o grupo. Todos ali seriam capazes de sustentar suas opiniões, o que dificultava o consenso. Como vimos, são estas discussões que dão origem ao que o grupo chama de “conflito de ego”, desentendimentos baseados na disputa pela liderança através da imposição de opiniões próprias no encaminhamento dos trabalhos mágicos e religiosos do coven. De uma certa forma, esta disputa implicava também o domínio do código em questão. O “conflito de ego” é outro dos motivos apresentados para o fim do coven. Outros motivos comuns seriam a negligência de seus membros, irresponsabilidade, indisciplina, falta de comparecimento, falta de organização. Esses motivos são apontados como parte do processo de desagregação do grupo. Eles se reportam à dificuldade que seus membros tinham em trabalhar em conjunto e de tratar o coven como uma obrigação ritual. Teria influência aí também a falta de conhecimento do grupo e de alguns membros em especial (falta de domínio do código), a falta de afinidade e as dificuldades de interação. Afinidade é outra palavra para empatia, que Maurício usa muito ao se referir à formação inicial do grupo. Vânia, ao contrário, achava que aquelas pessoas tinham se reunido exclusivamente para a prática wiccana, o que dificultava sua interação, pois fora a religião elas não tinham outras afinidades.

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Valter apresenta motivos análogos aos de Vânia para as dificuldades que o grupo enfrentou em termos de organização interna, mas em sentido contrário. Para ele, a amizade entre os membros dificultava o estabelecimento de uma disciplina para o grupo. Como vimos, Valter era um dos centros do grupo, pois além de organizar os encontros da lista de discussões, era o membro que há mais tempo conhecia Joana, Wagner e Lúcio, e foi quem convidou Ricardo a entrar no coven. Ao contrário de Vânia, que ao ingressar no grupo conhecia apenas Santos, Valter tinha amizades de longa data com vários membros do coven. Para ele, portanto, este pode parecer um fator de maior peso do que para Vânia. Do ponto de vista dela, foi a situação que ela própria vivia, ou seja, a falta de laços de amizade anteriores à formação do coven, que se tornou uma das causas dos problemas enfrentados pelo grupo. Valter foi capaz de apontar, em diferentes passagens, tanto o excesso de democracia quanto o autoritarismo de Vânia e um excesso de burocracia como possíveis motivos para a desagregação do coven. A princípio, nos parece que o excesso de democracia tem uma relação direta com o “excesso de amizade” entre os membros. A necessidade de tomar decisões por consenso pode ter atrapalhado o grupo. Neste sentido, Valter afirma que grupos pequenos não conseguem trabalhar democraticamente. A falta de mando e de autoridade, embora não tenha sido apontado por nossos narradores como um possível motivo, já havia sido apontado anteriormente, quase num tom de profecia, por Santos, que afirmava que um coven em que ninguém manda não consegue trabalhar. Esta é uma discussão que nos remete, novamente, às disputas de liderança dentro do coven. Um outro ponto é definido pelo grupo como causador de sua desagregação. Segundo Vânia, além de coven, o grupo deveria se tornar um círculo de estudos onde o conhecimento do grupo e de cada um pudesse ser desenvolvido. Isto, no entanto, não ocorreu. Maurício é de mesma opinião, expressa na idéia de que “as coisas não andavam para frente”, e que o grupo “não se desenvolvia”. Individualmente, ele diz, as pessoas poderiam estar ganhando conhecimentos, mas o grupo não sentia que estivesse evoluindo nesse sentido. Este foi, inclusive, um dos motivos alegados por Douglas para abandonar o coven. Ele dizia que não estava se desenvolvendo como deveria e que poderia “atrasar” o coven. Embora o vocabulário usado – evolução, desenvolvimento, atraso – no remeta às tradições espíritas, para este grupo ele indica a busca pelo conhecimento e a prática efetiva de magia. É nesse ponto que o grupo se sentia insatisfeito, e

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surgiu a sensação de que estavam estagnados. O conhecimento, o estudo de magia, mitologia e assuntos afins, não avançava, e não só desagregava o grupo como prejudicava sua interação. É possível perceber que os motivos apontados como os causadores da dissolução do grupo orbitam, de uma forma ou de outra, sobre um mesmo eixo: a amizade entre seus participantes. Este eixo é fundamental na compreensão da dinâmica de um coven e se reporta às concepções que o grupo mantinha acerca do que um coven deveria ser. O excesso de zelo para com esta amizade teria, segundo Valter, impedido posturas de disciplinarização mais firmes. Já para Vânia, a amizade não era suficiente para tornar o grupo coeso. Ela expressa isto em termos de falta de afinidade entre os membros. Valter formula, ainda, uma explicação cosmológica para a falta de coesão e integração no coven. Para ele, havia um conflito de egrégoras pessoais, o que fazia com que os objetivos de cada um fossem diferentes e que algumas pessoas não conseguissem trabalhar em conjunto. O termo egrégora é muito usado pelas bruxas, e refere-se a uma concepção em que cada grupo, tradição, panteão, coven, bruxa, ou qualquer outra instância de trabalho mágico, teria um reflexo metafísico que consistiria de energia mágica, acessada nos feitiços, rituais, meditações, e outras atividades correlatas. Se as egrégoras entram em choque, seus reflexos concretos não conseguem cumprir seus objetivos. Na verdade, esta é uma explicação mística que Valter dá para a mesma sensação que Vânia exprime: a de que a interação das pessoas no coven estava, de algum modo, comprometida, e que esse era um dos motivos pelos quais o coven “não andava para frente”. Concepções de coven O grande drama experimentado pelos narradores, que levou ao rompimento de alguns laços de amizade, foi causado por eventos posteriores ao fim do primeiro coven. Durante sua existência, os desentendimentos entre seus membros eram, de alguma forma, contornados. Com o fim do coven, no entanto, nem todos mantiveram as amizades anteriormente construídas. Valter recorda que apenas com Vânia e Maurício sua amizade foi abalada. Contudo, Vânia era a única com quem ele tinha perdido contato. Santos, todavia, configura-se, também, em um dos exmembros de quem se ressente, pois era completamente ausente. Valter faz questão de frisar que ainda é amigo de todos os outros membros do coven. Hoje, ele mantém um outro coven do qual fazem parte Wagner, sua namorada, Lúcio e mais uma menina. Deste modo, podemos observar

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que o núcleo formado por Wagner, Lúcio e Valter não se dissolveu, embora o último tenha despontado como uma liderança no coven. Maurício e Vânia, por outro lado, perderam contato com vários membros do coven. Vânia afirma que Maurício e Santos, que já era seu amigo quando o coven foi formado, são os únicos com quem mantém contato hoje. Maurício ainda é amigo de Valter, embora reconheça que tem algumas mágoas. Encontrando-se raramente com este, Maurício acabou por manter um eventual contato com Wagner e Lúcio. Com Vânia, ele diz que fala por telefone com alguma freqüência. Dos membros do coven, ela é a mais próxima dele. A situação vivenciada por estes três personagens, diante das situações apresentadas, marcou definitivamente o tipo de relacionamento que mantinham entre si. Por que o coven teve um efeito tão avassalador no relacionamento de seus membros, mesmo após o seu fim? Por que houve a necessidade de formar-se um novo coven, fazendo com que a disputa por liderança fosse ressuscitada? E por que disputas internas ao trabalho ritual de um grupo afetaram tão diretamente o seu relacionamento fora do âmbito religioso? As respostas a estas questões estão intimamente associadas ao que o coven representa para uma bruxa e às concepções de coven que os bruxos em questão tinham. Na crença wiccana, todo ritual deve ser realizado em “perfeito amor e perfeita confiança”. Um coven, por conseguinte, deve ter este sentimento cultivado entre seus membros. Como vimos antes, autores de manuais sobre wicca (STARHAWK, 1989) afirmam que o coven deve surgir a partir da prática freqüente e conjunta de um grupo de amigos. Deste modo, o coven passa a significar uma família. “Eu tinha uma visão muito idílica da coisa. Eu achava que ter um coven era aquela coisa que todo mundo fala, mas que na prática é mais complicado porque você constrói, que é aquela coisa da segunda família, e de você poder fazer magia junto e descobrir muita coisa junto e, enfim, aquela coisa do perfeito amor e perfeita confiança. (...) Mas eu tinha essa visão bem idílica, bem pink: a Deusa é amor, o coven é amor total, quando no fundo as coisas não funcionam assim. E se talvez elas, muito raramente, funcionarem assim, não é num coven que começou do jeito que o meu começou.(...) Se é uma família, então não vai começar numa esquina maldita, num ritual com todo mundo cheio de cachaça na idéia, em que rolaram coisas terríveis.” (Vânia)

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Na pesquisa de campo realizada, pudemos perceber que a noção do coven como uma família não era exclusiva a esse grupo. O espaço de perfeito amor é comparável ao espaço familiar. Os membros de coven passam a ser a segunda família, aqueles nos quais se confia plenamente. Encarar o fato de que, nesse grupo familiar, nem todos são confiáveis é uma experiência dolorosa. Para Vânia, após o término do coven, o perfeito amor e perfeita confiança se tornaram ilusórios. Principalmente quando ela recorda que o grupo tinha se estabelecido em função da saída de Joana. Ao mesmo tempo, ela afirma que o amor e a confiança que devem existir entre os membros de um coven devem ser construídos nas relações mantidas entre eles. É fácil entender agora porque a questão da empatia entre os integrantes do coven tomou vulto nos relatos de Maurício. A empatia a que ele faz menção é o “perfeito amor e perfeita confiança” dados a priori, sem a necessidade da construção desses sentimentos entre as pessoas. Vânia rompe com essa idéia, e por isso ela é capaz de enxergar no grupo uma falta de afinidade para o trabalho em conjunto. O grupo que se uniu em função da saída de Joana, não foi capaz de encontrar outros motivos para permanecer coeso. O “amor total” não permeou o coven, e ele se dissolveu. Ao mesmo tempo, ela reafirma a idéia de que aquilo que começa mal, não pode terminar bem. A experiência da desagregação do coven foi definida por Vânia como traumática. O ingresso no coven é hoje definido como um erro. Suas idéias sobre este ser um lugar de perfeito amor e confiança não mudaram, mas os critérios para encontrar parceiros sim. Os parceiros não devem mais ser procurados entre os praticantes de bruxaria, mas entre os amigos que praticam ou desejam praticar a bruxaria. Deste modo, ela reafirma o coven como segunda família, e expressa que o destino de fracasso de seu coven deveu-se à falta de amizade entre os membros, que se expressa como falta de amor e confiança. No relato de Maurício, o coven aparece como um lugar de aprendizado e de troca de experiência. Por isso sua insistência em dizer que o que levou o grupo à ruína foi a estagnação desses objetivos, foi o “não andar para frente”. Era também o lugar de perfeito amor e confiança, que viu ruir quando foi alvo das intrigas de Valter, como relata. Ele recorda que vivia muito intensamente a idéia de estar em um coven, mais até do que outros membros. Dos trabalhos de escola às músicas que ouvia, seu mundo girava em torno da bruxaria. Quando sentiu que o coven estava se desmantelando, ainda tentou reergue-lo, mas seus esforços foram em vão. Maurício

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ingressou em outro coven após todo o processo, e passou a praticar com a namorada e um grupo de amigos dela. Para Valter, o coven era a realização de um sonho. E quanto mais parecido com o ideal de um coven como o descrito nos livros, melhor seria. Tanto que ele se refere a isto como uma utopia, um grau de analogia próximo ao conceito de ilusório que Vânia usa para definir suas próprias concepções de coven. Era a utopia de uma prática perfeita, como o amor e a confiança que deviam perpassar seus membros. “Coven para mim significava o máximo, né. Dentro do que eu sabia de wicca, aquilo ali para mim era a realização de tudo que um wiccano podia querer: participar de um coven. Se tivesse treze pessoas, melhor. Participar de um coven, fazer altos rituais. Aquilo ali para mim era a utopia da perfeição da prática. Hoje eu entendo que não é bem assim. Como toda utopia, com o tempo ela se desfaz. Mas para mim aquilo ali era a minha vida. Eu vivia em função daquilo, matava aula, fazia o caramba para aquilo dar certo. Para mim era tudo.” (Valter) O comprometimento de Maurício e Valter com o coven era muito grande. Ambos refletem sobre isto e afirmam que o coven era o principal objetivo de suas vidas naquele momento, e que não se dispunham a mais nada, vivendo aquela experiência de maneira integral e intensa. Suas identidades de sujeito estavam entrelaçadas com a idéia do coven, o que fazia deles bruxos vinte e quatro horas por dia. Maurício se recorda, inclusive, que não tinha outro assunto, e havia se tornado uma companhia chata e impertinente, pois queria falar sobre o coven em qualquer momento e em qualquer lugar, tal o grau de comprometimento. Valter, por outro lado, mostrava que sua lealdade era primeiro ao coven, pois até da escola ele se desincumbia em favor da prática religiosa. Nesta época, nenhum dos dois trabalhava. Outros membros do coven, no entanto, trabalhavam, e por causa disso se comprometiam menos com o grupo, como Santos e Lúcio. A saída de Douglas expressa, também, que seu grau de comprometimento com o grupo não era grande, pois ele tinha dúvidas sobre se tornar ou não um bruxo wiccano praticante. Na verdade, suas dúvidas eram mais acerca da bruxaria do que do grupo em questão. Ele não havia ainda

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conseguido formular uma identidade de bruxo wiccano, como Maurício e Valter haviam conseguido. Isto o levava a ter dúvidas sobre o que estava fazendo e sua influência sobre o grupo. Embora Valter, na passagem acima, não fale no coven como uma família, quando perguntado a respeito de suas concepções atuais do que deva ser um coven, ele evoca este tipo de imagem. Seu coven atual estaria “evoluindo para uma concepção familiar”. Os rituais são feitos na cozinha, a partir de uma ceia preparada por Lúcio. Dos cinco membros, dois se casaram num ritual wiccano, e os outros são considerados como irmãos. A concepção de família se tornou tão forte, que levou Valter a afirmar que não deseja mais um coven, mas um clã, um lugar para criar os filhos de acordo com as crenças pagãs da bruxaria wicca. “Só que agora eu não quero mais um coven. Eu quero mais um clã. Eu quero que meus filhos sejam bruxos e que eu possa dizer que eles são fulano de tal do clã de tal. Eu pretendo transformar o meu coven numa tradição familiar.” (Valter) A idéia do coven como segunda família se tornou tão forte para Valter, que ele quer transformá-lo em sua primeira família. Seu coven está vinculado a laços de parentesco: Luís, Wagner e Marta são considerados seus irmãos, e Wagner casou-se em um handfasting com Sônia. Logo, eles já estão trabalhando em família. A idéia agora é alcançar o modelo de um clã. O coven como a família da bruxa Não é só para Valter, Vânia e Maurício que o coven sugere a idéia de família. Como vimos, esta é uma idéia arraigada no próprio discurso das bruxas e de sua religião. A idéia do amor e confiança perfeitos é, nesse sentido, crucial. Edna, uma das bruxas cariocas que entrevistamos, relata o fim de seu coven como uma falha nessa relação “perfeita”. Edna tem 34 anos e há sete é bruxa wiccana. Foi iniciada em um coven no Rio Grande do Sul e quando retornou ao Rio de Janeiro, onde nasceu, organizou um coven próprio, que durou dois anos. “Os covens, eles se formam por afinidade, não é uma coisa que se forme aberto a qualquer pessoa. Você forma com amigas bruxas que chegaram no seu caminho, que você tenha afinidade porque se não tiver afinidade acaba dando problema, pessoas

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que se desentendem e acaba afetando o trabalho, porque o ser humano é muito egocêntrico, muito infantil para trabalhar. Quando uma menina se ofende com a outra, elas não conseguem desviar a raiva e a frustração e trabalhar o trabalho mágico independente disso. Foi por isso que eu parei. Porque eu tinha começado um covenzinho assim, mas não deu certo exatamente por causa disso. Administrar egos é uma coisa muito desgastante.” (Edna) No relato de Edna a afinidade é fator fundamental para o sucesso de um grupo como coven. A amizade entre os membros, sua afinidade, pode vir a determinar as relações que os membros manterão entre si. Lembremos que Vânia via a falta de afinidade entre os membros de seu coven como um dos motivos que levaram aos problemas acima relatados e ao fim do grupo. Para efeito comparativo, retomaremos o discurso de uma outra entrevistada, Carla. Carla é uma bruxa carioca de 32 anos, cujo primeiro contato com a wicca se deu através de um grupo de praticantes que propiciou seu ingresso a um coven. Carla passou treze anos como uma bruxa que pertencia a covens. A princípio, no coven onde foi iniciada e instruída; posteriormente, em um coven que ela mesma montou e do qual é a Alta Sacerdotisa. Na entrevista que nos concedeu, a idéia de um coven como família é clara e reforçada constantemente em seu discurso. A Alta Sacerdotisa é comparada a uma mãe, como a própria divindade wiccana que ela representa, a Grande Mãe. O Alto Sacerdote, no entanto, jamais é visto como um pai. A iniciação ritual é um dos meios de formular esta idéia do coven como uma instância familiar e da Sacerdotisa como uma figura maternal. Mauss (1979) indica que a iniciação é um mito ritual de morte e renascimento. De fato, a primeira iniciação das bruxas marca a morte de seu velho ser e o nascimento de uma nova persona, comprometida com obrigações rituais e a revelação de segredos mágicos e cósmicos. Ela deve, apropriadamente, ser realizada na época do solstício de inverno, pois este é o período do sabá que marca o nascimento do Deus. “A primeira iniciação é no solstício de inverno, no Natal, o nascimento. Quando você nasce, então você cria o vínculo, o cordão umbilical com a sua Grande Mãe, a sua Sacerdotisa.” (Carla)

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A bruxa iniciada é uma bruxa renascida do útero da Grande Mãe, mas a pessoa que a representa na Terra é a Sacerdotisa. Deste modo, o vínculo criado é idêntico ao do nascimento real de uma criança; há uma mãe, um bebê a ser nutrido e ensinado, e um cordão umbilical que os une. O iniciado passa a ser um produto da Sacerdotisa exatamente como um bebê é produto de sua mãe. Explicações cosmológicas entram em ação, também, para definir esta posição materna da Sacerdotisa. Para Carla, o hemisfério sul e sua posição astrológica são definitivos nesta identificação da Sacerdotisa com o papel maternal, coisa que não aconteceria no hemisfério norte. Duas concepções de mulher e de mãe entram em choque: no sul, teríamos uma mãe zelosa e atenta, disposta a viver em função de seus filhos; no norte, as mães estariam mais em atividade e disposta a viver sua própria vida ao invés de se dedicar totalmente aos filhos. “As mães do hemisfério norte, elas trabalham. São aquelas mulheres que o filho desmamou, já está em creche, elas já estão em atividade. Aqui não, as crianças mamam até dois anos às vezes. A mulher pára de trabalhar por causa dos filhos, engorda por causa dos filhos. Tem aquela dependência da mãe, muito mais daquelas mães tipo mãe italiana, mãe judia, bem apegada. Então é bem diferente o contexto de ser mãe aqui do que no hemisfério norte.” (Carla) O trabalho e o cuidado pessoal aparecem como categorias determinantes do grau de dedicação da mãe ao filho. O trabalho, como atividade individual, se contrapõe ao cuidado com os filhos. Ao retornar ao trabalho, a mãe deixa de se dedicar à prole, e passa a se dedicar a si mesma. Por isso o cuidado pessoal também está em jogo na medida dessa dedicação. Ao se dedicar a si, a mulher não está se dedicando ao filho. A mãe que pára de trabalhar, que perde a silhueta esbelta, engorda e dá o seio por até dois anos forma um modelo de mãe mais comprometida com a criação da prole: é a mãe apegada, a mãe que, de tão dedicada, torna seus filhos dependentes dela. Sua vida é ser mãe. Se os aspectos astrológicos influenciam a maternidade e as mulheres, poderíamos esperar que influenciassem também as bruxas. Como mulheres mais próximas ao ideal de mãe dedicada, as bruxas do sul incorporam categorias que reafirmam esta posição. São dotadas de qualidades próprias ao feminino, exatamente como a maternidade. Seriam mais intuitivas, mais mágicas,

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xamânicas, emotivas, passionais. As bruxas do norte seriam, ao contrário, mais frias, racionais, dedicadas ao estudo e ao trabalho. Elas incorporam adjetivos usualmente masculinos. “As bruxas do hemisfério norte, elas estudam muito. (...) As bruxas aqui no hemisfério sul são basicamente intuitivas. Elas têm um poder de intuição que equipara as do hemisfério norte, porque elas [do norte] têm o princípio hermético, e elas aqui [do sul] têm o princípio mágico incutido dentro delas. E a intuição, que é muito mais, é como se fossem xamânicas até. Há uma diferença, porque a canalização das emoções para as bruxas do hemisfério norte é muito mais difícil. Elas são muito frias. Aquela coisa do ódio e do amor, do ser passional, é muito mais difícil.” (Carla) O “princípio hermético” da magia refere-se a padrões de pensamento, enquanto a idéia de xamanismo se refere à experiência de contato total com a natureza e supressão do ego. As bruxas do sul se mantêm como emotivas, vinculadas à magia – em oposição à razão e ao estudo -, intuitivas. Formula-se, no discurso de Carla, o mesmo tipo de oposição que observamos em Frazão. De um lado, o pólo constituído pelo trabalho, indivíduo, ego, razão, obrigação, um pólo masculino ou referente à civilização; de outro, o pólo formulado a partir das concepções de irracionalidade: a magia, a emoção, a intuição, o xamanismo. Para a bruxa, como para a mãe, é o lado mais emocional que dá a dimensão de seu poder. A mãe dedicada, que esquece de si e vive para os filhos é o modelo ideal de maternidade positivamente valorado. A bruxa intuitiva, xamânica, movida pelas emoções, é a única que consegue romper com a ordem racional da civilização da qual ela não faz parte, pois está mais alinhada com a natureza – pelo menos em discurso. Formula-se, a partir deste discurso, uma concepção tradicional de feminino, mas cuja valoração é invertida e tomada agora como positiva. Não podemos esquecer que a própria divisão geoeconômica do mundo atual indica, para o senso comum, uma visão das categorias de racionalidade e trabalho como categorias do próprio hemisfério norte – ocidental -, mais industrializado e rico que o sul, mais propício à razão em suas invenções e descobertas, e mais afeito ao trabalho e aos princípios do individualismo. Dumont (1992) classifica a estrutura social ocidental como individualista, enquanto a Índia, em comparação, apresentaria uma estrutura holista. O Brasil, na visão de DaMatta (1991), estaria entre esses dois padrões, tendendo para uma organização holista, de cunho relacional em alguns

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momentos e para o individualismo em outros. O discurso de Carla se encontra claramente afinado com estas concepções, ele apenas apresenta uma valoração própria da bruxaria no tocante a estes temas. A sua “bruxa do norte” se apresenta como individualista enquanto a “bruxa do sul” tem um comprometimento maior com a idéia de família e, em conseqüência, com o universo relacional da casa que DaMatta aponta como um processo tipicamente brasileiro. A partir de Birman (1995), encontramos um modelo de Dumont (1978) para a família mediterrânea, onde a idéia de totalidade é central. É ela o elemento englobante que antecede e define as relações entre as partes. Este tipo de modelo nos remete ao modelo hierárquico que Dumont formula para o caso indiano. Entendemos que o modelo de maternidade formulado por Carla para as mulheres do hemisfério sul está em acordo com este modelo mediterrâneo, embora os papéis masculinos não estejam claramente dispostos em sua fala. Poderia-se pensar em um modelo matrifocal, mas a recusa da mãe ao trabalho não possibilitaria isto se o trabalho é entendido como fator de afastamento. De qualquer forma, não nos parece que a “mãe italiana” tenha sido evocada em vão como um modelo desta mãe dedicada. Esse apego entre mãe e filhos, no modelo de Carla para o sul, se reflete na própria relação da Sacerdotisa com os membros do coven. Ela passa a simbolizar este modelo de mãe e o rompimento com o grupo se torna doloroso e negativo. Carla trata esta relação em termos de dependência. “Aqui no hemisfério sul elas são completamente passionais e dependentes da Sacerdotisa. Quando você tem uma bruxa em um coven, o dia do rompimento, de você pegar e tomar um tapa na bunda, de você sair do coven, parece que tiram teu chão. Você parece que não consegue andar. É um desespero. Aquela coisa da mãe, do vínculo com a mãe, quando desmama o neném. Então elas ficam muito mais emocionalmente dependentes da Grande Mãe, da Grande Sacerdotisa.” (Carla) Na passagem acima, o coven é a própria mãe, simbolizada na figura da Sacerdotisa. A saída do coven é a saída da mãe, o nascimento, o abandono do útero. Todas as metáforas usadas por Carla para esta saída nos remetem à idéia do nascimento de um bebê: o “tapa na bunda”, o desespero, a incapacidade de andar e, em outro nível, o desmame.

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Em outro momento, Carla volta a tratar o coven como família, e não apenas como mãe. A idéia de “perfeito amor e perfeita confiança” se mostram vitais para o ingresso e a manutenção de um coven. “Por isso é que se fala: em perfeito amor e perfeita confiança. Por que você tem que amar quem está dentro [do coven], você tem que confiar, porque na hora que você está entrando dentro do círculo você está confiando a sua vida.” (Carla) Há uma idéia mágica em jogo de que o círculo, espaço referente ao templo wiccano, é o lugar de trocas energéticas de tal intensidade que o elo formado entre seus membros não é facilmente dissolvido. Caso haja problemas mágicos, a vida dos participantes é posta em risco. Por isso a perfeita confiança é necessária. Esta idéia corrobora a noção do coven como uma família cujos laços não se dissolvem e cuja vida depende uns dos outros. Desta última idéia, surge a concepção de uma religião tribal, uma religião de apoio mútuo de grupos que bem poderiam ser o clã que Valter almeja formar. “É uma religião que é basicamente tribal. É a sobrevivência dos seus semelhantes. É a sobrevivência, é o amor do coven, é o amor da sua família”. (Carla) A concepção de família que vem à tona é o de uma unidade de produção fechada em si. O grupo, a família extensa, produz para si e toma conta de seus membros, suprindo suas próprias necessidades. Esta é a noção de sobrevivência. Dependendo da cooperação mútua, ela só pode ter lugar num ambiente de amor e confiança, um ambiente de solidariedade. Este ambiente era aquele almejado não apenas por Valter, mas por Vânia e Maurício. Este buscava a cooperação em termos intelectuais, no âmbito do estudo e da prática ritual. Aquela buscava, além da cooperação intelectual, o amor familiar irrestrito. E, neste sentido, o que estes três personagens buscavam em um coven não foi alcançado. A idéia de que o coven é uma família é próxima da idéia de que um terreiro de candomblé e sua estrutura hierárquica em termos de parentesco formam uma concepção de família. Birmam (1995) assume que a “família de santo” seria uma família de único genitor, no caso a mãe ou pai-

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de-santo que chefia o terreiro. Esta é a visão de Carla quando aponta a Alta Sacerdotisa como uma mãe, mas não aponta o Sacerdote como um pai. No caso da wicca, podemos dizer que o coven é uma família de único genitor, a mãe. Em nenhum momento o discurso de Carla permite que o papel desempenhado pela Sacerdotisa seja transpassado ao Sacerdote. A relação entre membros de coven e sua chefia é uma relação de mãe e filho, jamais de pai e filho. A mãe, como vimos, encarna preceitos de amor e dedicação que estão em oposição ao pólo masculino. Esta família formada pelo coven, como a “família de santo”, é constituída a partir de relações de cunho religioso e ritual. A idéia de que os terreiros constituem “famílias de santo” está de acordo com a idéia expressa por Maggie (1977) de que a segmentação contínua destas “famílias” dá origem a linhagens. Um filho-de-santo que se afasta de seu pai ou mãe-de-santo para constituir seu próprio terreiro está dando origem a uma segmentação em termos de linhagem, pois se torna um “descendente” de seu terreiro original. Os covens funcionam da mesma forma. O rompimento com o coven a que Carla se refere é a constituição de um novo coven pelo ex-membro, agora na qualidade de liderança. Reflexões sobre o grupo estudado Embora o cerne dos desentendimentos entre os membros do coven de Valter, Vânia e Maurício fosse as diferentes concepções de coven e as diferentes disponibilidades de se efetivamente participar dele, existem outras questões na análise deste caso que devem ser levantadas. Para isto, vamos partir da obra de Maggie (1977) para uma análise conclusiva sobre o caso. No grupo descrito pela autora, a formação de um novo terreiro se dá após o rompimento com uma mãe-de-santo. O grupo formado por pessoas que já se conheciam, como era o caso da maior parte dos membros de nosso coven, parte para formar um novo terreiro. Um das primeiras dificuldades que enfrentam é o desvio de conduta de sua nova mãe-de-santo. Este desvio é visto como fruto de uma condição de doença e loucura. Após afasta-la do cargo, o grupo busca um paide-santo. A saída da mãe-de-santo, contudo, gera no grupo o medo da demanda. A demanda é o ataque mágico, iniciado com uma acusação. No caso do coven em questão, Joana estaria exatamente na posição da mãe-de-santo afastada do cargo. Incapaz de seguir a conduta esperada

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pelo grupo, ela sofre acusações de ser sujeito de magia maléfica, a demanda, experimentada pelo coven como vampirismo e ataque psíquico. Mesmo após a sua saída, o grupo ainda experimentava a possibilidade de que ela viesse a demandar contra eles. A demanda é uma peça chave na compreensão do caso estudado pela autora. Ela era a expressão de uma crise. Definia as fronteiras internas tanto quanto as fronteiras externas do grupo. Os acusados da demanda, no caso do coven em questão, eram sujeitos de fora do grupo, mas que dele já havia participado. É uma acusação que marca a ruptura com o grupo, ao mesmo tempo em que afirma quem são seus membros de fato. O ritual no qual Douglas é oficialmente banido, é um ritual demarcatório de sua condição de não-membro. E como ex-membro, ele era um sujeito preferencial para a acusação de ataque mágico. O ritual formula, portanto, não apenas sua saída, mas a proteção que o grupo precisa contra seu eventual ataque. Seguindo a narrativa de Maggie, o que sucede o ingresso do pai-de-santo como liderança do novo grupo é uma disputa entre ele e o presidente do terreiro, disputa por liderança que se dava em termos de distintos códigos. O pai-de-santo afirmava seu poder com base no código do santo, já o presidente usava do código burocrático e dos valores da sociedade mais ampla para se impor como liderança. Esta estrutura de disputa é aquela que Vânia, Maurício e Valter experimentaram. Valter mantém-se fiel ao código da wicca, e passa a desmerecer seus companheiros como detentores deste código. Deste modo, ele coloca-os como praticantes de outros sistemas mágicos, e com isso os exclui da possibilidade de liderar o grupo. Suas acusações servem para delimitar novamente o grupo, desta vez excluindo os únicos que ofereciam algum perigo ao seu papel como liderança. Embora Maggie observe que o terreiro pode ser visto como um sistema simbólico que representa determinados aspectos da sociedade brasileira, estes aspectos não são os mesmos levantados na análise deste coven. O grupo não era organizado de uma maneira tão hierárquica quanto um terreiro. Ao contrário, a disputa pela liderança exercida de maneira descomprometida demonstra que não havia uma hierarquia em cheque. Enquanto o coven funcionou, a amizade entre Vânia, Valter e Maurício permaneceu intocada. Mesmo sabendo que disputavam, de alguma forma, a liderança do grupo, isto não foi motivo para que rompessem. Este rompimento só vem depois do fim do coven e na tentativa de formar um novo coven. São os processos posteriores ao fim que indicam a ruptura entre os três, ou melhor, o rompimento de Valter com Vânia e Maurício.

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Por outro lado, a autora indica que o terreiro estudado apresentava uma hierarquização que revelava, de uma forma invertida, a representação do grupo com referência à sociedade mais ampla. Em termos hierárquicos formais, isto não pode ser dito sobre a bruxaria wicca, nem sobre o coven estudado. Em termos de gênero, esta é a hipótese que desejamos alcançar. Se retomarmos as concepções de família e de feminino apresentadas por Carla, esta comparação se torna possível. Landes (1967) indica que os terreiros eram o lugar privilegiado para esta inversão, em termos de gênero. O status negado a uma mulher na sociedade brasileira podia ser alcançado através do cargo de mãe-de-santo. Da mesma forma, entendemos que aquilo que é negado em termos de status à mulher ainda hoje no Brasil pode ser alcançado através da identidade de bruxa. É esta identidade que permite que a mulher não apenas seja uma liderança religiosa – como a mãe-de-santo – no cargo de Alta Sacerdotisa, como também permite que ela rompa com a valoração imposta ao feminino pelas sociedades patriarcais. Não há um rompimento completo com o esquema de pensamento patriarcal, pois a wicca é uma religião que se remete constantemente à tradição, mas há uma inversão na valoração apresentada para a sociedade mais ampla. Nessa inversão a menstruação, freqüentemente considerada suja, é reapropriada como um poder feminino; a faceta emotiva e intuitiva da mulher passa a ser valorizada; a maternidade passa a ser uma força da mulher, e não um estado de apreensão e vergonha; a sua vida sexual não é mais regulada ou apresenta sentimentos como culpa e vergonha; o útero subjuga o falo em importância; o cuidado do lar e da família é valorizado numa ordem em que o trabalho é o que forma a personalidade e o gosto; a ludicidade do amor e da magia são expostos como um bem, e não um produto irracional. Desta forma, aquilo que fazia da mulher ser inferior ao homem, passa a fazer dela ser mais poderoso.

INTERNET NA FORMAÇÃO E DISPUTA DE UM GRUPO

A internet tem se apresentado como um dos meios de comunicação mais usados no Ocidente. Pode-se encontrar qualquer tipo de informação através deste sistema. Sua estrutura em rede permite que muitas pessoas se comuniquem ao mesmo tempo, participando de salas de batepapo, ou chats, e listas de discussão. Observamos que a internet se tornou um veículo

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preferencial de comunicação também para as bruxas brasileiras. Em dez entrevistas realizadas com diferentes bruxas e bruxos cariocas, percebemos que a internet havia tido uma importância crucial para quatro deles. Em todos esses casos, a internet havia sido veículo para um primeiro contato com a bruxaria wicca ou com outras bruxas praticantes de wicca. Em função disto, até mesmo um coven foi formado com pessoas que se conheceram através da internet. Diante dos fatos, acreditamos que seria interessante formularmos um perfil do âmbito virtual da wicca no país. Ao ingressarmos neste momento do estudo de campo, descobrimos que parte do que ocorre no meio da bruxaria wicca se desenvolve através da internet, e de lá se propagada no universo concreto. Podemos subdividir a informação encontrada sobre wicca na internet em dois grupos diferentes: aquela que é veiculada através de páginas ou sites, e aquela que é veiculada através de chats e listas de discussão. No primeiro caso, há uma única pessoa ou grupo que assina a página, responsabilizando-se desta maneira pelo seu conteúdo. No caso dos chats, ou salas de bate-papo, conversas paralelas são mantidas pelos presentes e cada um divulga a informação que lhe convém. O chat se diferencia da lista de discussões pela fugacidade de sua existência. Ele é como um bate-papo real. Os chats acessados pelas listas da qual participamos eram o Wicca e Bruxaria, encontrados em um grande portal e provedor. A lista de discussões funciona com procedimentos outros: um gerenciador de e-mails faz com que o assinante da lista receba todos os e-mails postados a ela. Deste modo, a troca se faz através de correspondência escrita, o que permite com que os participantes troquem fotos, gravuras ou outro tipo de imagens, arquivos com documentos e livros inteiros, ou apenas compartilhem suas idéias e opiniões. Para o corrente trabalho, acompanhamos três diferentes listas de discussão na internet. Cada uma mantinha regras próprias de funcionamento e tinha diferentes moderadores. Tratá-laemos como listas A, B e C, cada uma com cerca de 200 a 300 membros inscritos. As listas A e B destinadas à discussão e troca de informações sobre a wicca apenas, e mantinham a peculiaridade de serem coordenadas por duas diferentes pessoas, de estreita amizade, que eram respectivamente o presidente e a diretora de assuntos jurídicos da única associação brasileira de praticantes de wicca, conhecida como ABRA-WICCA. Funcionavam, deste modo, como listas irmãs, ou correlatas. Era possível perceber como, freqüentemente, assuntos de uma lista passavam, através de membros comuns, para a outra lista. Participamos destas listas no período de fevereiro a

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setembro de 1999. Interessante notar que os membros de uma lista são, freqüentemente, membros de mais listas sobre o mesmo assunto. A lista C foi mantida por diferentes moderadores no período em que dela participamos, de junho a dezembro de 1999. Diferente das outras duas listas, não tinha nenhum tipo de vínculo com alguma instância institucional nem se destinava exclusivamente a discussões sobre a bruxaria wicca. Era possível trocar informações acerca de qualquer assunto mágico e religioso nesta lista. Foi possível perceber que alguns de seus membros eram também membros das listas A e B. Não coletamos dados desta lista, mas apenas acompanhamos suas dinâmicas e discussões, visto que esta lista era freqüentada pela escritora Márcia Frazão. Ela se tornou importante para acompanhar a disputa pela liderança no grupo da wicca no Brasil. Na medida em que Frazão e os coordenadores da ABRA-WICCA passaram a exercer uma constante disputa por espaço como figuras mais importantes da bruxaria no país, as listas se tornaram seu campo de batalha, pois era onde se “encontravam” e debatiam suas opiniões. Neste processo, Frazão deixou a lista A e apenas pudemos acompanhar seus movimento nesta disputa através de suas mensagens na lista C. Uma vez membro destas listas, pudemos perceber como o grupo da wicca no Brasil está em franca disputa por sua liderança. Nesta disputa, alinha-se a ABRA-WICCA, de um lado, e Márcia Frazão, de outro. Como os coordenadores da ABRA-WICCA moram em Brasília e São Paulo, enquanto Frazão reside em Nova Friburgo, interior do estado do Rio, a internet se transformou em veículo chave para o domínio do grupo. Não só porque é na rede virtual que suas opiniões podem entrar em debate, mas também porque esse debate se dá em público. A internet se tornou, deste modo, um elemento chave nesta disputa, tanto mais quando observamos que é através dela que muitos têm o seu primeiro contato com a wicca. Eles chegam a este contato, portanto, num território sitiado, e são instados desde o primeiro momento a tomarem um lado nesta disputa. Antes de nos aprofundarmos nestas questões, vejamos primeiro o perfil dos membros das listas A e B. A lista C não apresentou oportunidades para que o perfil de seus membros fosse analisado.

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Perfil das bruxas internautas Para traçarmos o perfil das bruxas internautas fizemos uso de mensagens postadas voluntariamente pelas mesmas às listas A e B. São informações não-requisitadas por nós, das quais nos aproveitamos para este estudo. Muitas bruxas deixaram claro que a informação que prestavam era fator de insegurança pessoal e que só davam tal tipo de informação sobre si mesmas porque os moderadores da lista garantiam “que não haveria problemas”, por isso omitimos seus nomes. O problema a que se referem é, possivelmente, a idéia de que suas identidades de bruxa possam se tornar públicas e que isto venha a prejudicá-las de algum modo. O preconceito contra as bruxas foi um tema de discussão na lista A e desencadeou alguns relatos sobre experiências pessoais de preconceito religioso sofrido. Deste modo, não requisitamos as informações que usaremos aqui, mas apenas nos apropriamos daquelas que foram veiculadas nas listas. Por este motivo, os números para cada variável não completam o número total de questionários obtidos: alguns questionários apresentam maior número de informações que outros. Como as apresentações de novos membros eram comuns nas listas A e B, nos utilizamos delas também para montar um perfil desses usuários. Algumas apresentações definem apenas sexo e idade. De qualquer modo, um universo total de 77 questionários pode ser analisado, traçando o perfil abaixo. •

Universo total: 77



Sexo: para um total de 77.

Homens: 22. Mulheres: 55. •

Idade: para um total de 69.

13 a 15 anos: 11. 16 a 20 anos: 24. 21 a 30 anos: 28. 31 a 41 anos: 6.

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Estado Civil: para um total de 46.

Solteiro: 35. Casado ou co-habitação: 9. Divorciado ou separado: 2. •

Cidade e Estado de residência: para um total de 64.

São Paulo (capital): 11. São Paulo (interior): 8. Rio de Janeiro (capital): 12. Brasília: 6. Belo Horizonte: 6. Minas Gerais (interior): 4. Cuiabá: 1. Goiânia: 1. Recife: 1. Belém: 1. João Pessoa: 1. Vitória: 1. Santa Maria (RS): 1. Maranhão: 1. Curitiba: 5. Londrina (PR): 2. Portugal (Lisboa e região): 2. •

Ocupação profissional: para um total de 53.

Estudante de primeiro e segundo graus ou curso técnico: 7. Estudante universitário: 9. Estudante (graduação indefinida): 9. Advogado: 3.

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Assistente de importação: 1. Assistente social: 1. Astróloga e taróloga: 1. Comerciante: 1. Escritor: 1. Físico: 1. Médico: 1. Pedagogo: 3. Professor: 5. Psicólogo: 1. Publicitário: 1. Relações públicas: 1 Secretária: 1. Técnico em informática: 1. Técnico em química: 1. Técnico em telecomunicações: 1. Tradutor: 1. Outros: 2. A primeira observação a ser feita é a maior presença de mulheres do que de homens entre as bruxas internautas. Seu número é duas vezes e meia superior ao de homens. As faixas etárias representadas demonstram que a internet seduz o público mais jovem, visto que a partir dos 41 anos não há ninguém na amostragem. A bruxaria parece também exercer um fascínio maior sobre os jovens. A maior parte dos membros das listas A e B está na faixa dos 13 aos 30 anos. Quanto ao estado civil, com uma faixa tão jovem de população, é compreensível que o número de solteiros supere o de casados em quase quatro vezes. Da mesma forma, é compreensível que o número de divorciados seja pequeno. Não foi possível averiguar o número de filhos de cada bruxa. A grande parcela de jovens entre as bruxas internautas reflete-se na ocupação profissional. Os estudantes (25) são quase metade do universo de ocupados (53). Apenas quatro bruxas

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estudam e trabalham ao mesmo tempo. Entre aqueles que declararam a natureza de sua ocupação, podemos verificar a predominância de profissões de nível superior ou técnico. A única astróloga e taróloga declarada do grupo não constitui exceção, visto que é necessário determinado conhecimento especializado, embora não educação formal, para o exercício de tal função. Em entrevistas feitas anteriormente, pudemos constatar um número maior de bruxas que se declaravam astrólogas ou tarólogas como profissão. Entendemos que esta discrepância ocorre, sobretudo, devido às listas de discussão não acolherem apenas bruxas praticantes de wicca, mas toda uma gama de esotéricos e ocultistas, ou indivíduos interessados nestes temas. Muitos membros de listas estão, também, em busca de uma religião, não apresentando uma opção declarada ou definida. Apesar disto, sabemos que as pessoas que criaram as listas A e B estão inseridos no mercado esotérico como bruxos. São pessoas que aparecem nos meios de comunicação como praticantes de bruxaria, são membros diretores da única associação brasileira de praticantes de wicca (ABRA-WICCA), são palestrantes sobre o tema e professores de bruxaria em cursos organizados por eles em suas cidades. Os membros das listas estão concentrados na região centro-sul do país, com predominância clara de grandes metrópoles, à exceção do interior paulista. Apesar desta concentração, todas as regiões brasileiras estão representadas nesta amostragem: a região Norte tem um representante; o Nordeste tem três; o Centro-Oeste tem oito, alavancado por Brasília; a região Sul tem 8, a maioria no Paraná; o Sudeste tem 42. Estes números demonstram que os praticantes de bruxaria e internautas são habitantes urbanos, especialmente do Sudeste, e pessoas com altos graus de formação escolar. É interessante observar que os estados de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Paulo são os únicos a apresentarem bruxas residentes fora de suas respectivas capitais. Observamos, também, que o número absoluto de praticantes da wicca no Rio de Janeiro (12) é superior ao de São Paulo capital (11) e São Paulo interior (8), perdendo apenas para o estado de São Paulo como um todo (19). Constitui-se, assim, como o maior pólo de bruxas wiccanas do país, se nos detivermos nos números absolutos por cidade. A busca de uma religião é, muitas vezes, apresentado nas listas como o motivo pelo qual a wicca foi descoberta. Ela é freqüentemente apontada como a religião escolhida após uma longa busca ou a religião adotada “desde sempre”, ou desde o nascimento, pelas bruxas, o que está de acordo com as entrevistas que realizamos. A busca é um conceito usado na narrativa dos

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participantes da Nova Era (HEELAS, 1996), e denota a experiência com várias técnicas e filosofias deste movimento até o encontro com aquele considerado ideal. O encontro da bruxaria após uma busca traz sempre a noção de que aquilo que era uma expressão religiosa interna do sujeito finalmente ganhou corpo doutrinário expresso através da bruxaria wicca. Não foi possível, no universo estudado, realizarmos uma ampla pesquisa sobre os perfis religiosos pessoais e familiares das bruxas internautas como pudemos fazer nas oito entrevistas realizadas com bruxas cariocas. Para a internet, a análise sobre o perfil religioso foi realizada num universo de 15 questionários. Nestas respostas, está sendo considerada tanto o perfil pessoal quanto o familiar, incluindo aí o cônjuge. Algumas bruxas responderam sim a mais de uma opção, formulando deste modo a mudança pessoal ou familiar. •

Perfil religioso pessoal e familiar: para um total de 15.

Espírita: 7. Católica: 6. Candomblé: 2. Umbanda: 1. Evangélico/Pentecostal: 2. Budismo: 2. Judaísmo: 1. Hare-Krishna: 1. Gnose: 1. Teosofia: 1. Ordem dos Cavaleiros do Templo: 1. •

Tempo de ingresso na wicca: para um total de 43.

1 ano ou menos: 21. Mais de um ano: 22. •

Iniciação na wicca: para um total de 31.

Sim: 9. Não: 22.

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O espiritismo parece ser a religião que conta com mais ex-adeptos e familiares adeptos, o que se reflete no próprio discurso das bruxas de uma maneira muito própria. Temas como reencarnação, contato com espíritos, mediunidade e karma, tão presentes na doutrina espírita, são freqüentemente levantados nas listas, especialmente por aqueles que se apresentam como novatos na bruxaria. Para estes, o passado ligado ao espiritismo – ou presente, na forma dos familiares se torna espécie de parâmetro que influencia as opiniões pessoais e as dúvidas a serem tiradas. Questões como a aceitação do aborto e da homossexualidade na wicca também são comumente levantadas por aquelas com alguma ligação com o espiritismo. Veremos o teor desta influência mais a fundo quando nos detivermos sobre os dons que as bruxas internautas dizem possuir. A segunda religião mais influente entre os participantes de listas é o catolicismo. A quebra com os padrões doutrinários desta religião se apresenta como uma das maiores preocupações das bruxas internautas. No período em que fomos integrantes destas duas listas, não era raro ler mensagens onde ser cristão era uma acusação de ser “falsa bruxa”. O uso de símbolos cristãos e o recurso aos santos também foram objeto de discussões acerca da própria natureza de uma verdadeira bruxa. Veremos isto adiante. O candomblé aparece como uma religião pouco influente. Ataques ao candomblé, bem como ao espiritismo, nunca foram formulados enquanto permanecemos nas listas A e B. Estes ataques são dirigidos apenas ao cristianismo, tanto aos católicos quanto aos evangélicos. Estes são o alvo preferido das bruxas, quando se trata de religiosidade, e foram transformados nos inimigos número um da wicca no Brasil. Este é um processo complexo que será detalhado mais tarde. Apesar de ter-se transformado numa religio non grata entre as bruxas, verificamos a existência de dois ex-evangélicos entre os participantes das listas. O budismo apresenta também dois ex-praticantes. As demais categorias do quadro acima apresentam apenas uma resposta. No caso do judaísmo, não fica claro se a bruxa era judia praticante antes de ingressar na wicca ou se esta era a religião de sua família ou cônjuge. O Hare-Krishna, a Gnose, a Teosofia e a Ordem dos Cavaleiros do Templo encontram-se ligados a uma religiosidade que pode ser definida como Nova Era. Junto com o budismo, a religiosidade Nova Era engloba seis participantes, o que a faz a terceira religiosidade mais influente entre as bruxas internautas. Havia, nestas listas, outros participantes de ordens esotéricas secretas, algumas vezes a mais de uma, mas não deixam claro quais são. Deste modo, podemos concluir que as listas de discussão abrangem um público que vai

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além das bruxas wiccanas, mas que é composto também por integrantes da Nova Era. Estes, muitas vezes, acabam por abandonar suas opções anteriores e ingressam na bruxaria wicca. Este fenômeno foi visto também entre as bruxas que entrevistamos: de oito, uma tem o universo de religiosidade familiar vinculado à Nova Era, três passaram por este universo numa busca pessoal anterior à wicca, quatro mantinham profissões vinculadas diretamente a este mercado e duas mantinham profissões correlacionadas. Como foi dito, nem todos os participantes das duas listas são bruxas wiccanas. Entre aquelas que são, há uma ligeira predominância de bruxas com mais de um ano de prática. Num universo de 42 respostas, 21 afirmam possuir menos de um ano de prática. Podemos ver aí dois pontos: como religião recentemente introduzida no país, sua expansão tem se dado neste momento, por isso boa parte dos adeptos tem menos de um ano de prática; os adeptos mais antigos não se interessam em trocar informações em veículos como listas de discussão. Há também a possibilidade de ver na internet um recurso típico dos que estão começando a seguir o caminho da bruxaria, e por isso necessitam – mais do outros, talvez – da troca de informações e do sentimento de pertencimento a um grupo que esta propicia. De nosso ponto de vista, ambas as afirmações estão corretas. Como fenômeno recente, apenas agora a wicca tem ganho maior espaço nos meios de comunicação e no mercado literário, o que pode indicar o volume de consumidores da bruxaria. Ao mesmo tempo, no período em que estivemos em campo, foi possível perceber que pessoas com muitos anos de prática na wicca são dificilmente encontrados, tornando-se espécie de mitos. As bruxas com maior tempo de prática que encontramos foram duas de nossas entrevistadas, com doze e sete anos de prática. Elas não participam de nenhuma lista de internet nem tampouco freqüentam encontros de internautas. Embora os praticantes com mais de um ano sejam maioria, os praticantes iniciados não são. A iniciação na wicca é feita, normalmente, após um ano de prática. Seria lógico que as bruxas com mais de um ano fossem iniciadas. Essa recusa à iniciação nos parece uma recusa a um compromisso mais efetivo com esta religião, pois a iniciação é um marco ritual que indica a perda de velhos hábitos e a recepção de uma nova vida e religião ou tradição. Deste modo, o sentido de busca permanece, pois há possibilidade de que os não-iniciados mudem seu direcionamento religioso a longo prazo. É necessário fazer uma ressalva quanto ao conceito de praticar bruxaria: como muitas vezes as bruxas apresentam idéias como a de que nasceram bruxas e de que são bruxas desde

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sempre, o conceito de prática e a medida temporal do começo desta prática ficam dificultados. Assim, para a internet, o tempo de prática da wicca significa o ingresso na wicca e a autodefinição como bruxa. O primeiro contato com a bruxaria e o estudo desta sem a preocupação de conversão não participam da idéia de prática que as bruxas têm. O tempo de prática por nós estipulado de menos ou mais de um ano segue o padrão tradicional da bruxaria que alega que a bruxa só pode ser iniciada depois de um ano e um dia. Para as bruxas, prática significa o comparecimento aos oito sabás anuais e treze esbás. Não estamos levando isto em consideração quando usamos a noção de praticar bruxaria. Estamos apenas preocupados com a auto-definição como bruxa. Isto nos permite entender porque apenas nove bruxas afirmam ser iniciadas na wicca. Como todo processo iniciatório, o da bruxaria requer comprometimento. Para ser iniciada, a bruxa precisa ter celebrado todos os rituais que compõem a Roda do Ano: oito sabás e treze esbás. É comum, também, que o ritual de auto-dedicação seja feito um ano antes da iniciação. Algumas bruxas deixam claro que a iniciação não é sua meta nem constitui uma preocupação, e mantém suas práticas, solitárias ou não, mesmo sem este rito formal. A idéia de dom Há uma forte influência do espiritismo entre as bruxas participantes das listas A e B. Pudemos verificar isto através de um debate que ocorreu acerca de dons, especialmente formas de mediunidade. Muitas das concepções apresentadas nas mensagens postadas às listas não são de origem wiccana. Idéias como espíritos guias, seres de luz ou mentores não fazem parte do universo da bruxaria. A wicca não faz uso do contato com espíritos, como entendidos no espiritismo, nem qualquer tipo de espírito ou divindade é esperado para possuir o médium. O único ritual da bruxaria wicca que prevê contato com espíritos é o sabá Samhain, que marca o dia dos mortos, e no qual espera-se que entes queridos já falecidos venham visitar os vivos. Mesmo assim, o contato não se dá por meio de possessão. Na noção de dom apresentada através deste debate, percebemos duas linhas distintas: o contato com os espíritos e a explicação para esse contato, e o que foi chamado de paranormalidade, ou a capacidade de realizar feitos fora do normal, entre eles: regressão, telepatia, projeção astral, clarividência, clariaudiência, leitura de mentes, sugestionamento. Na maior parte das mensagens, há uma experiência narrada com algum ou vários destes dons, e um

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pedido de ajuda ou dúvida acerca do que eles significam. Algumas pessoas se colocaram como temerosas frente aos seus dons, outras ostentavam-nos com orgulho. O que chama a atenção é que estes dons não estão expostos em nenhuma literatura produzida pelas bruxas como sendo necessários para se tornar bruxa, ou como sendo a marca de uma verdadeira bruxa. Porque, então, este tema foi suscitado? Frazão, em sua obra, não fala de nenhum dom específico imprescindível à bruxa. Algumas de nossas entrevistadas, contudo, pareciam ter a mesma preocupação que as internautas em expressar seus dons. Há uma cisão entre a literatura e o campo no que tange esta questão. •

Portador de dom: para um total de 17.

Dom individual: 11. Dom individual e presente em familiar: 6. Sobre nossas entrevistadas, seis afirmam que tinham algum tipo de dom anterior à bruxaria e cinco afirmam que havia pessoas portadoras de dom na família. Dessas cinco, apenas três afirmam possuírem dons e familiares que seriam igualmente portadores de dons. Para a internet, verificamos que onze afirmam possuir dons enquanto seis afirmam que possuem dons e pessoas na família portadoras de dons. Nenhuma resposta indica apenas o familiar como portador de dons. Em ambos os casos, a existência na família de uma bruxa portadora de dons é suficiente como mecanismo de legitimação da identidade de bruxa, no caso de não possuir algum dom próprio. Entre os dons encontrados, o mais comum é a clarividência: vultos, pessoas já mortas, espíritos, animais, reflexos são vistos pelas bruxas. As respostas dadas a tais fenômenos estão usualmente vinculadas às doutrinas espíritas: trataria-se de espíritos procurando um médium ou em qualquer outra situação. A única resposta wiccana dada foi de que estas seriam manifestações de outros mundos paralelos a este, o que, de fato, é muito próximo à noção do espiritismo. O contato com os espíritos se dá através da visão, da audição, do tato, da capacidade de conversar com estes e de lhes dar ordens. No ramo da paranormalidade, algumas apresentam dons de ver o passado e o futuro, de comunicarem-se por telepatia, de terem experimentado a projeção astral, a regressão, a leitura e o sugestionamento de mentes. Nestes casos, a experiência pode ser comandada conscientemente

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pela bruxa ou ter sido experimentada apenas uma vez, de forma inconsciente. Ao contrário do contato com os espíritos, estes são dons que não causam temor àqueles que os possuem. Porque lançar mão de tantos dons se a wicca é, claramente, uma religião acessível a todos e que prescinde da aquisição de dons? Ao nosso ver, a necessidade de afirmar o dom é tanto um mecanismo de legitimação da identidade de bruxa quanto uma influência do espiritismo. Há duas questões aí: primeiro, a magia pode constituir dom ou conhecimento passado hereditariamente a determinados indivíduos (MAUSS, 1979); segundo, Maggie (1992) aponta que o espiritismo e a mediunidade foram acoplados à idéia de magia no Brasil. Vejamos cada ponto separadamente. Quando o contato com espíritos é relatado com orgulho e a bruxa afirma ser médium, então a influência espírita fez-se presente de alguma forma. Em outros casos, entendemos que a identidade como bruxa constitui identidade de ser desviante (MAUSS, 1974; DOUGLAS, 1976), portanto o dom se torna parte da construção dessa identidade desviante, pois promove uma ruptura com o ser comum, aquele que não apresenta dons paranormais. Tanto as bruxas internautas quanto as bruxas por nós entrevistadas apresentam a idéia de dom, tanto o dom próprio, individual, quanto o dom de algum familiar. Entre eles estão: a leitura da sorte em oráculos, a leitura de mentes, poder de modificar o curso dos acontecimentos, poder de mover objetos com a força da mente (ou da vontade), poder de prever o futuro, contato com espíritos, execução de feitiços, viagem astral, entre outros. Sete delas acreditam que a bruxaria é um dom que não se adquire, mas é inerente a certos indivíduos, herdados ou não da família. É freqüente que uma bruxa afirme que há outras bruxas em sua família. Este foi o caso de nossas entrevistadas, de algumas bruxas internautas e de Frazão. Para Mauss (1979), os mágicos formam, usualmente, castas ou corporações recrutadas hereditariamente. Pode se tratar de conhecimentos transmitidos em família ou pode haver necessidade de certas condições favoráveis para que o dom aflore. É comum, na wicca, que se veja o conhecimento mágico como uma tradição familiar. Este é o caso de Frazão, que narra suas experiências mágicas com a avó bruxa. Contudo, este não é o caso das bruxas entrevistadas nem das bruxas internautas. Há, de fato, poucas bruxas internautas que afirmam terem parentes próximos que seriam, de fato, bruxas, e não apenas portadores de dons. No entanto, elas não esclarecem se sua condição de bruxa se deve aos ensinamentos obtidos em família ou se procedem de uma condição específica, talvez inata.

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Gostaríamos de chamar a atenção para a freqüente confusão que as bruxas brasileiras fazem entre estes dois conceitos: a bruxaria como conhecimento familiar e o inatismo do dom. Nestes dois casos, há um fator que pode ser transmitido familiarmente, como uma herança. Na verdade, pensamos que estas duas noções estão sobrepostas na bruxaria como é vista no Brasil. Isto se deve, em parte, à própria noção de magia que o país experimenta. O dom, por outro lado, está freqüentemente disposto em termos de mediunidade. Maggie (1977) aponta como, para o grupo estudado em um terreiro carioca, existia sempre um elemento da família do médium que freqüentava terreiros, ou o próprio médium já havia tido experiências mediúnicas antes de entrar “no Santo”. Estas situações indicam um processo de socialização daqueles indivíduos com o código religioso em questão. Do mesmo modo, as bruxas apresentam-se num universo de magia e mediunidade familiar que propicia sua socialização no código mágico. A influência do espiritismo e da magia, contudo, estão amplamente disseminadas pela sociedade brasileira, pois constituem uma de suas crenças (MAGGIE, 1992). Assim, a magia e a mediunidade não são postas em dúvida em nossa sociedade. Paira a dúvida, apenas, sobre quem é o verdadeiro médium e quem é o charlatão. A idéia de falsidade é, ela própria, comum aos terreiros. Esta é uma categoria análoga à acusação feita pelas bruxas wiccanas sobre quem é a verdadeira bruxa e quem é a falsa bruxa. Neste caso, não é o dom e a mediunidade que estão em questão, mas o conhecimento e a conduta da bruxa. Maggie (1992) observa, ainda, que há uma diferenciação entre magia benéfica e maléfica. A primeira estaria alinhada com as concepções das religiões mediúnicas. A segunda indicaria a prática do mal por feiticeiros e criminosos, usualmente tidos como charlatães. É a partir do Brasil republicano que esta diferenciação passa a se fazer mais fortemente. A partir dos anos 1930, o que se considera feitiçaria é o candomblé e a macumba. Vimos, a partir do perfil das bruxas internautas, que o candomblé e a umbanda contam apenas três respostas, enquanto a noção mais ampla de espírita apresenta sete respostas em um total de quinze questionários, ou seja, cerca de metade dos que responderam a esta questão já praticaram o espiritismo ou tem familiares que o praticam, incluindo o cônjuge. Mais adiante veremos a força do espiritismo entre as bruxas. É interessante já concluirmos de antemão, que as idéias das bruxas sobre dons ligados à mediunidade e seu alinhamento com o espiritismo e não com o candomblé, por exemplo – que pareceria estar mais próximo à bruxaria até mesmo em termos de estrutura de gênero, como apontado por Landes (1967) -, indicam, na verdade, um

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afinamento com a estrutura de crenças da sociedade mais ampla, que enxerga no candomblé a magia maléfica e no espiritismo a magia benéfica. Veremos abaixo como a wicca e o espiritismo apresentam pontos em comum que facilitam a superposição destas diferentes crenças na sociedade brasileira. Preconceito contra as bruxas Um dos temas abordados enquanto estivemos participando das listas A e B foi o do preconceito sofrido pelas bruxas. Algumas declaravam-se bruxas escondidas, afirmando que sua opção religiosa era clandestina. Isto era motivado por dois pontos: ou a bruxa em questão era menor de 18, e não tinha a intenção de entrar em choque com os pais, ou as experiências sofridas com pessoas de outras orientações religiosas fizeram com que optassem pela clandestinidade. Um rapaz descreveu, para uma das listas, a dificuldade que encontrava em fazer com que os pais aceitassem sua opção pela bruxaria. Ao ler sobre a wicca no jornal Correio Braziliense, a mãe do rapaz teria dito que “Aceitam homossexualismo. Sumariamente uma religião de mulheres. Fazem rituais e feitiços... nada disso me agrada. Como é que uma pessoa tão inteligente como você foi entrar numa dessa?” Tentando demover o filho das intenções de ser bruxo, os pais do rapaz formularam um acordo: aulas em uma academia de ginástica e uma viagem serviram de incentivo para que abandonasse seus estudos de bruxaria. O rapaz diz que não aceitou. Na passagem acima, fica clara a acusação da mãe: ao ingressar no mundo da bruxaria, a inteligência do filho é questionada. Antes considerado pessoa de bom senso, ele vê seu julgamento frente aos pais mudar. Mas é nas situações de preconceito religioso fora de casa que percebemos que os evangélicos tornam-se sujeitos privilegiados das acusações das bruxas. Em um caso relatado, um rapaz de 15 anos afirma que era ignorado pelos colegas na escola que estudava, de orientação protestante. Transferido para outra escola, ele diz ter encontrado outros bruxos e se sentido mais

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confortável em um ambiente que respeita as opções pessoais. O preconceito é apresentado por ele como parte de um meio arcaico e ligado à orientação religiosa do colégio em questão. A escola aparece, para os mais jovens, como o lugar que estipula as convenções da sociedade mais ampla. No caso acima, a transferência para outro colégio coloca o rapaz em contato com um grupo mais condizente com sua identidade de bruxo. Em um outro caso, uma menina relata que foi na escola que encontrou outra pessoa com quem pode conversar sobre bruxaria. Mesmo assim mantém-se clandestina, pois acha que seria tratada como louca se descobrissem sua identidade de bruxa. Afirma que já a acham estranha, mesmo sem saberem que é bruxa. Outra garota afirma que descobriu que uma das professoras de sua escola era bruxa. Ao conversar com ela, foi ouvida por um outro aluno, que passou, então, a trata-la de maneira diferente, no que ela julga ser medo. Esta mesma garota afirma que “O preconceito contra as bruxas, infelizmente, não se limita ao medo de sermos adoradores do diabo. Se assumimos nossa religião, saem por aí nos chamando de loucos, de modistas, de ridículos. Fazem piadinhas de mal gosto.” Duas observações diferentes devem ser feitas. Primeiro, está presente em dois relatos acima a idéia de que a bruxaria é vista pelos não bruxos como sintoma de loucura, o que se apresenta também nas obras de Frazão. O indivíduo “estranho”, desviante, louco, que perde a razão e a inteligência é inserido novamente como sujeito da bruxaria. No caso do rapaz de 15 anos acima, sua situação em um colégio de orientação protestante lhe conferia o estigma de desviante. Bruxo, ele não conseguia manter amizades e era ignorado pelos colegas. É em outro colégio que consegue fazer amizades, mas com pessoas de sua estirpe: lá ele encontra outros bruxos. A segunda observação a ser feita refere-se à idéia que o senso comum nutre sobre as bruxas. No primeiro caso, as bruxas se apresentam como desviantes. Nesta segunda observação, o senso comum acredita que são desviantes. As duas concepções se alinham, mas de pontos de vista diferentes. Para as bruxas, a sua situação de desvio e marginalidade é valorizada, pois é o ingresso legítimo no mundo da bruxaria. Mas quando este desvio é constatado por alguém de fora deste universo, o tratamento diferenciado recebido pelas bruxas é visto como preconceituoso. No relato grifado acima, o senso comum acredita que bruxas são satanistas, perversas, loucas, ridículas e ávidas pela última moda. Desta maneira, o que serve para caracterizar um desvio que

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permite o ingresso no mundo da bruxaria e legitima esse pertencimento, é visto como preconceituoso por não ganhar a mesma valoração, mas valoração contrária no senso comum. O preconceito também pode vir diretamente de evangélicos. Em uma mensagem, uma mulher diz que a cidade de João Pessoa vive um clima de intolerância religiosa deflagrada pelos evangélicos. Haveria até um livro distribuído por alguns pastores, no qual símbolos comuns à Nova Era eram apresentados como anti-cristãos ou demoníacos. Esta mesma mulher afirma já ter sido abordada duas vezes por pessoas que perguntavam acerca de um símbolo egípcio que usava no cordão, dizendo-lhe que se tratava de símbolo do demônio. Diz, ainda, que havia ganhado vários livros de wicca de uma mulher desconhecida, que desejava livrar-se deles em função da pressão exercida pelo namorado evangélico. As folhas de rosto dos livros, onde supostamente estaria escrito o nome da antiga dona, haviam sido arrancados. Em outras duas mensagens, duas bruxas concordam que “O problema para o neo-paganismo não é a Igreja Católica, mas sim as vertentes radicais evangélicas.” “Se há perigo de novos tempos de fogueira, a ameaça real são os evangélicos, não só os católicos.” As correntes evangélicas são apresentadas como aquelas que oferecem o real perigo de perseguição às bruxas hoje, exatamente como a Igreja Católica medieval fizera no tempo da Inquisição. Esta é uma referência sempre buscada pelas bruxas, e presente em muitos sites na internet, onde uma campanha intitulada “Never again the burnning times” – em português, “Nunca os tempos da fogueira novamente” - é vista em forma de logotipo. Em certa ocasião, recebemos uma mensagem com um boato, supostamente alardeado nas salas de bate-papo, no qual 14 bruxas em Patos de Minas teriam sido espancadas por um grupo de mais de 30 evangélicos, enquanto realizavam um ritual em uma fazenda. Este tipo de boato dá a dimensão que esta inimizade tomou. Em outra mensagem, um rapaz afirmava que a sala de batepapo criada para discutir bruxaria em um grande portal da rede estava sendo freqüentada e atacada pelos evangélicos. Ninguém, em nenhuma lista, confirmou nenhuma das duas informações. Este tipo de informação leva a crer que os evangélicos seriam um grupo organizado

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e disposto a atacar qualquer manifestação da wicca no país. Todavia, nos meses em que participamos das listas A, B e C, em nenhum momento um evangélico ingressou nas listas, que eram abertas a não-bruxos. Na época em que o 2o. Encontro de Bruxas Brasileiras em Brasília (julho de 2000) foi organizado naquela cidade, houve outra informação veiculada pelas listas de que um grupo de evangélicos teria tentado impedir ou interromper as atividades do Encontro, levando seus organizadores a recorrer à força policial. Apresentados agora como os novos inquisidores, os evangélicos se tornaram um inimigo a ser combatido. Este combate não se dá com atitudes, mas no discurso. É fácil encontrar comentários pejorativos a respeito dos evangélicos. Eles são “muito chatos”, pedem que seus fiéis se humilhem – o que causou a indignação de algumas bruxas -, só querem dinheiro, são manipuladores, machistas. Quando uma reza de benzedeira – na qual havia claros símbolos cristãos - foi enviada para uma das listas, a reação de algumas bruxas foi imediata: a reza foi descrita como anti-bruxaria, coisa cristã, coisa de umbanda, pregação da Igreja Universal. Isto nos remete à preocupação que observamos nas bruxas internautas em distanciarem-se de tudo que possa ser definido como cristão. Algumas das acusações feitas aos evangélicos são estendidas a todos os cristãos. É interessante notar que nenhuma igreja pentecostal é atacada diretamente, a não ser por raras referências à IURD. Na visão das bruxas, os evangélicos parecem constituir um bloco homogêneo com motivações bem definidas quanto ao que não consideram cristão. Entre as bruxas entrevistadas, a categoria “crente”, que na sociedade mais ampla define os evangélicos, é usada para acusar aqueles que nutrem preconceitos contra a bruxaria. Crente aparece ao lado de acusações como ser analfabeta, fanática, louca ou apresentar “falta de cultura”. Duas das oito entrevistadas apresentaram a categoria crente desta maneira. Aos poucos percebemos que os pontos de vista e opiniões, bem como os perfis das bruxas por nós entrevistadas não se opõem aos das bruxas internautas, permitindo construir um perfil único das bruxas wiccanas brasileiras. O catolicismo também é alvo de algumas bruxas. As acusações feitas genericamente contra os cristãos acabam por respingar também nos católicos. Há, contudo, uma diferença. O passado pagão europeu é visto como reformulado dentro do catolicismo, num movimento também descrito por Frazão. Essas raízes pagãs permitiriam às bruxas freqüentar lugares de culto católicos, como a gruta de Fátima, em busca de resquícios pagãos. O teor das acusações contra os católicos se apresenta de maneira mais suave. Um dia inquisidores, eles agora são aqueles que

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abraçaram o paganismo sem saber, portanto estão mais próximos que os evangélicos. Nada disso impede que o catolicismo seja visto ainda com inimizade. Em uma mensagem, um rapaz afirma que é uma “religião voltada para pessoas toscas”, embora pense que há estudos religiosos profundos na Igreja. Em outra mensagem, uma moça afirma que os católicos vêem primeiro Deus, para somente depois enxergarem o indivíduo. Também são chamados de machistas na sua concepção de um Deus Pai Onipotente, de se acharem “os donos da verdade” e de mentirosos, pois se guiariam por escrituras não verdadeiras e deturpadas, enquanto esconderiam as “verdadeiras” escrituras porque estas poderiam destruir sua religião. Por todos estes motivos, o afastamento do cristianismo é uma preocupação freqüente das bruxas wiccanas. A reza cristã da benzedeira, personagem que Frazão considera a verdadeira bruxa, é vista como repulsiva. Uma bruxa descreve Maria como uma Deusa “amputada, deturpada, manietada e amordaçada que convém às religiões do patriarcado”. O recurso aos santos católicos também é proibido, embora o recurso aos orixás não seja, pois são vistos como um panteão pagão africano. Rezar para os santos ou freqüentar práticas religiosas cristãs desqualifica a praticante como bruxa. Aquela que ainda acessa símbolos cristãos não é uma bruxa verdadeira. Esta é pagã, rompe com o cristianismo, e deste modo rompe também com o legado judaico-cristão, considerado patriarcal. Observamos a construção da categoria cristão como uma categoria de acusação às falsas bruxas, uma vez que a verdadeira bruxa é pagã e deve se comportar como tal, renunciando a todo tipo de imaginário e símbolo cristão. O pensamento judaico-cristão é dominante em nossa sociedade, mas o verdadeiro pagão deve romper com esta forma de pensamento para ser um wiccano de fato. Uma bruxa afirma que “(...) Você não pode esquecer que o patriarcado judaico-cristão tentou suprimir a Deusa do mundo. Nos últimos dois mil anos Ela foi a esquecida.” Percebemos que este pensamento se tornou um alvo predileto das bruxas internautas, apesar de sabermos que muitos povos pagãos foram e são patriarcais até hoje. Este não é um predicado exclusivo de judeus e cristãos, mas eles se tornaram o alvo das acusações. A acusação mais grave, contudo, não é a de serem patriarcais, mas de terem suprimido a Deusa. Formula-se, deste modo, uma acusação de ataque ao sagrado. Blasfemos e hereges, eles se tornam inimigos preferenciais.

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A luta contra o patriarcado é intrínseco ao pensamento wiccano veiculado pelas listas. Em uma mensagem, a moderadora da lista A afirma que existem dois caminhos de magia: o solar e o lunar. Os solares seriam aqueles das religiões e sistemas mágicos retilíneos, no mesmo significado que Frazão dá para o termo. Colocariam o homem no centro do universo, comandando as forças da natureza. A wicca seria um caminho lunar, feminino, uma religião da terra, que acredita na integração entre homem e natureza. A partir desta diferenciação, observamos que o caminho solar, em oposição ao lunar, é um caminho masculino, de domínio da natureza. Os caminhos lunares não dominam, mas se integram à natureza, que é vista na wicca como feminina. Está reproduzido, assim, o mesmo esquema que Frazão descreve em seus livros, onde a bruxaria é vista como um espaço de atuação da mulher, a partir de poderes intrínsecos ao feminino e a papéis prioritariamente femininos. Vejamos um quadro formulado a partir das adjetivações dadas a cada religião e quais influências estão em jogo entre pagãos e judeu-cristãos. O pólo mais valorizado é o pagão. Estes são conscientes de seus atos e escolhas, pois são intelectualizados e refinados. São livres, pois não há dogmas, têm livre-arbítrio, e se guiam mais pela individualidade do que por uma concepção de obrigação e temor a Deus. Defendem a igualdade de gênero, não são preconceituosos nem manipuladores, e não estão interessados em dinheiro ou proselitismo. Acessam o divino, pois se comunicam com ele através do sentimento e da experiência vivida, e não de palavras. Os cristãos, ao contrário, são vistos como gananciosos e interessados em dinheiro, em ganhar novos adeptos, em afirmar sua verdade como única válida. Por isto são chatos, manipuladores e mentirosos. São também machistas e preconceituosos. Sua primeira obrigação é para com Deus, e depois para com os outros. Não acessam o divino porque estão presos à palavra, muitas vezes falsa e deturpada. São superficiais, inconscientes, dogmáticos e, em função disto, se tornaram maioria entre os pobres, toscos e rudes. Notemos que há, na divisão apresentada abaixo, uma lógica que indica que a bruxaria wicca não é uma religião para pobres de espírito. A liberdade de escolhas, representada pelo livre-arbítrio e pela falta de dogmas, deve ser responsável, consciente. Esta responsabilidade encontra-se entre os intelectualizados, aqueles que não são rudes, toscos ou miseráveis. O poder do capital econômico e cultural parece ser determinante nestas escolhas. Isto está bem de acordo com o perfil sócio-cultural dos praticantes de wicca: indivíduos urbanos de classe média com alto grau de escolaridade formal.

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Judaico-cristão

Pagão

--------------------------------------------------------------------------------------------------------Evangélico

Católico

Wiccano

--------------------------------------------------------------------------------------------------------preconceituoso machista

não preconceituoso machista

igualdade de gênero

palavra escrita

sentimento / experiência

arcaico chato palavra escrita não acessa o divino

acessa o divino

manipulador

não manipulador

proselitista

não proselitista

interessado em dinheiro

não interessado em dinheiro

Deus

Deus

indivíduo

temor a Deus

temor a Deus

livre-arbítrio

religião de pobres, toscos e rudes

religião de intelectualizados

dogmático

não dogmático

inconsciente

consciente

superficial

refinado

Quadro n. 3: Concepções sobre evangélicos, católicos e pagãos. Falamos sobre a visão que a wicca tem do cristianismo, mas ainda não tratamos de todo o escopo da influência espírita entre as bruxas internautas. Vimos como o espiritismo é uma influência forte no escopo das visões e contato com espíritos. Ela é uma influência marcada, também, na insistência de que a wicca é um sistema mágico-religioso completo, e que não deve “misturar-se” com formas que não lhe são próprias. Esta premissa não vale apenas para o universo judaico-cristão, mas estende-se para qualquer manifestação possível de sincretismo. A influência espírita, desta forma, se faz muito mais na estrutura do pensamento, na forma de

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pensar, do que num possível sincretismo. Neste aspecto, uma bruxa afirma que o que é chamado na doutrina kardecista de Pureza Doutrinária deveria também servir de padrão para a wicca. “Se a Federação Espírita está usando esse método (e eles são cristãos e têm mais tempo de Brasil que a wicca), porque a wicca e as religiões ditas neo-pagãs não podem? Sou a favor PLENAMENTE da Pureza Doutrinária em wicca (...).”1 O que é pagão e faz parte da wicca e o que não é pagão e, portanto, não faz parte da wicca se tornaram, entre as bruxas internautas, uma das mais fortes categorias de acusação. Uma bruxa não é acusada se não possui dons, se não possui experiência suficiente, se tem poucos anos de estudo ou não é iniciada. Ela é acusada, como vimos, se ainda não tiver efetuado o completo rompimento com o que é considerado cristão. Mas qualquer outra associação da bruxaria wicca com outro sistema mágico ou religioso é mal vista, e indica que a bruxa em questão não é wiccana. Este foi o caso de Maurício e Vânia, conforme foi visto no estudo sobre seu coven. Acusados de praticar sistemas mágicos que não a wicca, eles foram afastados do grupo por Valter. A idéia expressa acima como Pureza Doutrinária é, na verdade, uma forma de acusação construída na rede. O que é a Pureza Doutrinária em wicca, contudo, não está claro. Ela desempenharia o papel de indicar quem é e quem não é bruxa verdadeira, isto é, verdadeiro praticante de wicca. No espaço mais amplo da wicca na internet, esta acusação tem servido para que haja uma disputa entre duas lideranças: de um lado, Márcia Frazão e, de outro, os diretores da ABRA-WICCA. Antes de ingressarmos neste assunto, vejamos ainda uma influência exercida pelo espiritismo entre as bruxas internautas. Como já foi dito, na wicca é vetado qualquer tipo de sacrifico animal. Embora isto não seja um dogma, é uma interpretação da lei wiccana que diz: “faça o que quiser, desde que não machuque ninguém”. Como o sacrifício implica na morte do animal, ele não se enquadra na lei, e é condenado. No espiritismo kardecista também não há sacrifício, que é mais comum no Candomblé. Deste modo, as concepções espíritas sobre sacrifício foram sobrepostas, por algumas bruxas, às concepções wiccanas. Um rapaz afirma que não pode concordar com a morte de _______________________________________ 1- O grifo está presente na fonte escrita (e-mail).

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nenhum ser, e completa dizendo que acha o sacrifício animal um ato primitivo. Está claro que “primitivo”, para ele, não tem o mesmo peso que tem no discurso de Frazão. Para esta autora, primitivo remete às sociedades tribais, que mantém contato com a natureza e preservam o paganismo como religiosidade. Para o bruxo acima, primitivo significa involuído, bárbaro, desprovido de civilização. Alinha-se com a vertente da magia maléfica. Deste modo, forma-se um elo entre a wicca e o espiritismo, ambas religiões evoluídas que não recorrem ao sacrifício animal, enquanto se exclui as tradições afro-brasileiras que utilizam tal recurso. Esta pode ser uma pista sobre porque a necessidade de acesso à magia por parte das bruxas wiccanas não passa pelos terreiros de candomblé. O candomblé ainda é visto como religião primitiva e involuída, e não se destina às intelectualizadas e conscientes bruxas da internet. Enquanto sistema matriarcal ou matrifocal, o candomblé estaria apto a suprir as requisições de gênero apresentadas pela wicca. Segundo Landes (1967), esta é uma religião onde as mulheres podem reverter seu status social inferior frente ao status masculino. Por que então o candomblé não é uma das religiões de passagem na busca religiosa narrada pelas bruxas? E por que ele não é escolhido, e sim a wicca, se ambos são locus privilegiados para o feminino e lidam igualmente com sistemas mágico-religiosos? Uma das respostas possíveis para este problema reside em dois fatores: 1) há uma busca de identidade que não se limita ao gênero, mas estende-se para uma busca de status social, 2) a classe média de onde as bruxas provem é mais receptiva à magia através da Nova Era do que de sistemas tradicionais vinculados às classes populares e à idéia de malefício. Os perfis levantados, tanto através de entrevistas quanto pela internet, mostram que as bruxas brasileiras estão inseridas no movimento Nova Era – profissionalmente ou em termos de perfil religioso -, são habitantes urbanos com altos graus de escolaridade, e fazem parte da classe média. O perfil religioso que apresentam demonstra, também, o rompimento com religiões tradicionais, como as pentecostais, a católica, a umbanda e a espírita, em direção a formas religiosas típicas da Nova Era, como o budismo, as ordens esotéricas e a própria bruxaria. Seria uma quebra no direcionamento deste perfil o retorno a formas tradicionais e populares, como é o caso do candomblé, mesmo que estas formas ofereçam definições de gênero compatíveis com aquelas da wicca. Estas definições, no entanto, teriam que passar pela crença arraigada na sociedade brasileira de que as práticas de baixo espiritismo são práticas de magia maléfica ou

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charlatanismo, típicas das classes populares, poluídas e perigosas (MAGGIE, 1992). Convém lembrar que, entre as bruxas cariocas entrevistadas, a primeira acusação sofrida – advinda da própria família – seria a de que estariam lidando, de algum modo, com o malefício. Reafirma-se, assim, a idéia de que a magia – “baixo espiritismo” -, que faz parte tanto do candomblé quanto da bruxaria, é uma forma de malefício, enquanto as expressões mágicas do “alto espiritismo” são formas de magia benéfica.

A disputa de liderança entre as bruxas brasileiras Como foi indicado anteriormente, a internet é um dos locus onde a bruxaria no Brasil se desenvolve. Este locus vive uma constante disputa entre duas correntes antagônicas formadas por membros diretores da ABRA-WICCA e pela escritora Márcia Frazão. A ABRA-WICCA é a Associação Brasileira da Arte e Fiolosofia da Religião Wicca. É a única do gênero existente no país, embora haja um braço brasileiro da Federação Pagã Internacional. Ao contrário da FPI, a ABRA-WICCA destina-se exclusivamente aos praticantes de wicca. Não conseguimos obter

informações sobre o local e data de sua fundação, nem sobre a composição completa de sua diretoria. Sabemos que reuniões mensais são realizadas por seus membros em São Paulo e Rio de Janeiro. No Rio, foi apenas em 2000 que a instituição conseguiu manter uma constância das reuniões, formando, inclusive, uma coordenação regional. É possível que outras capitais apresentem grupos de reunião. Seus membros contribuem mensalmente com dez reais, dinheiro que é usado para a circulação de informação escrita nas reuniões. Foi-nos dito que seu serviço jurídico se presta a atender casos de preconceito ou qualquer forma de violência contra os praticantes de bruxaria wicca no país. Os principais personagens que se opõem a Frazão na internet são a diretora jurídica da 2

ABRA-WICCA, Rosa , e seu presidente e fundador, o escritor Claudiney Prieto. Rosa é advogada e

reside em Brasília, onde também ministra cursos sobre wicca. Prieto é bruxo e escritor, tendo lançado duas obras sobre bruxaria: A Religião da Deusa (2000) e Wicca: Ritos e Mistérios da Bruxaria Moderna (1998). A biografia do autor, apresentada neste último, indica que ele se interessa por temas ligados ao mundo mágico e esotérico desde criança, tendo encontrado a ______________________________ 2 – Nome fictício.

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bruxaria apenas em 1993. Foi iniciado por um bruxo inglês em 1994. Reside em São Paulo. Freqüenta programas de TV e rádio, e ministra cursos desde 1997, divulgando a wicca. No Rio de Janeiro, foi apenas em 2000 que a ABRA-WICCA passou a manter reuniões mensais, quando um cadastro de membros foi efetuado. Comparecemos a três reuniões desta instituição: a primeira ocorreu na Floresta da Tijuca e as duas últimas numa residência particular no bairro do Andaraí. A primeira reunião contou com a participação tanto de Rosa quanto de Prieto, que vieram expor os objetivos tanto da Associação quanto das reuniões que ela se dispunha a organizar. Foi dito que as mensalidades de dez reais, futuramente cobradas dos sócios, serviriam para custear o material necessário às discussões travadas nas reuniões. Estas seriam um espaço disponível para troca de idéias, opiniões e informações sobre a wicca. Foi deixado claro que as reuniões se destinavam a bruxas wiccanas, embora praticantes de outras correntes mágicas estivessem presentes nesta e nas outras reuniões. No segundo encontro, onde apenas Rosa representava a diretoria da ABRA-WICCA, conceitos e práticas da bruxaria foram discutidos. Na terceira reunião, nenhum dos dois estava presente, e o debate foi comandado por membros cariocas da Associação. Estes membros ficaram responsáveis pela coordenação da ABRA-WICCA no Rio de Janeiro. Os desentendimentos entre Frazão, Rosa e Prieto são comuns na rede. Trocas de acusação e pontos de vista divergentes sobre o que a bruxaria é e o que deveria ser parecem constituir o cerne da questão. De nosso ponto de vista, o que ocorre é uma disputa pela liderança e domínio do grupo da bruxaria no país, que é travado em todos os limites que este grupo alcança – na grande imprensa, internet, encontros e eventos, mercado literário -, com diferentes estratégias de cada um dos lados. Frazão é contra instituições ou associações de praticantes de bruxaria, tanto quanto é contra os cursos de bruxaria. Nestes pontos, é visível o embate. Estas opiniões levam Frazão a uma posição clara de antagonista frente aos outros dois. Em uma mensagem enviada à lista A, ela afirma que “Um frenesi de ‘quero ser bruxa’, ‘quero aprender a ser bruxa’, se espalhou dando origem a uma infinidade de ‘métodos práticos de feitiçaria’, ‘seja bruxa em um ano e um dia’, ‘curso de bruxas por correspondência’. O frenesi chegou a tal ponto que,

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hoje, no cenário global da feitiçaria, são poucos aqueles que conseguiram resistir às tentações do poder e do dinheiro fácil.” (Márcia Frazão) Acusações de querer “dinheiro fácil”, poder, banalização da bruxaria, vulgarização do paganismo, entre outras, estão normalmente presentes. Nem sempre estas acusações se dirigem diretamente a membros da ABRA-WICCA. Pelo contrário, normalmente são críticas lançadas sem sujeito certo. O teor das acusações é o que permite a associação com determinados indivíduos. É apenas em raras ocasiões que as duas correntes entram em choque direto e trocam acusações diretamente. No mais, estas se fazem de maneira velada e sutil. Na passagem acima, Frazão se coloca contra os cursos de bruxaria. Como vimos, Rosa e Prieto ministram tais cursos em suas cidades. Ao mesmo tempo, a autora indica que aqueles que elaboram tais cursos são pessoas corrompidas pelo poder e pelo “dinheiro fácil”. Esta expressão indica que o dinheiro ganho com tais atividades não é honesto, mas fruto de uma atividade considerada irregular. A demanda do mercado por tais cursos teria induzido alguns a cair neste erro. A necessidade de consumo de uma imagem e de uma identidade de bruxa, que pode ser feita através dos cursos, é criticada. O que Frazão critica, portanto, não é apenas o curso em si, mas a venda de uma identidade que não pode ser alcançada através dele. Esta é a falta que enxerga em tais cursos. Em outra mensagem, deixa clara sua crítica à ABRA-WICCA como uma associação de bruxas. “Sempre fui contra a criação de uma entidade ‘institucional’ (...). Me parece que a instituição que foi formada com a intenção de proteger a wicca não se preocupa muito com a utilização que a mídia irá fazer dela.” (Márcia Frazão) No relato acima, a autora indica que discorda do uso que a imprensa faz do tema bruxaria. Este é um ponto forte nas discussões entre bruxas na internet. A imprensa é um elemento sempre presente, tanto a imprensa escrita quanto a mídia televisiva. Cada programa levado ao ar, com a participação de uma das duas correntes, é ansiosamente aguardado e posteriormente comentado. Não haveria espaço, aqui, para analisarmos todas as aparições de Rosa, Prieto e Frazão na imprensa. Basta dizer que as acusações quanto a este tema giram em torno do que chamam de

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banalização ou vulgarização da bruxaria. Aparições de Frazão montada em uma vassoura ou programas que mostram bruxas ao lado do personagem Zé do Caixão, por exemplo, são mal vistas. Elas estariam reforçando o estigma das bruxas. O ponto de discordância não é a aparição midiática, mas o teor e a motivação para tal. Quando Frazão estava lançando seu livro A Panela de Afrodite, com receitas da culinária grega, ela foi convidada a cozinhar no programa Mais Você, da rede Globo, que tem blocos inteiros dedicados à culinária. As receitas eram feitiços, e duas diferentes foram ensinadas. Ao final do programa, Frazão e Ana Maria Braga, apresentadora, apareceram montadas em vassouras sobre um fundo que mostrava o desenho de uma cidade. A montagem dava a idéia de que estavam voando sobre a cidade, montadas em vassouras de bruxa. Este episódio não foi bem recebido pelas bruxas internautas. Falou-se que Frazão reafirmava os estereótipos sobre as bruxas e a montagem foi chamada de ridícula. Frazão se defendeu, inclusive na entrevista que nos concedeu, afirmando o caráter lúdico da situação. Disse que não se arrependia, apesar das críticas. Também em 2000, o SBT Repórter dedicou um programa ao tema da bruxaria. Entre feiticeiros e o personagem Zé do Caixão, Rosa e Prieto fizeram suas aparições televisivas. Sofreram críticas e elogios das bruxas de suas listas. Os críticos condenavam a aparição espalhafatosa de Prieto, que quase colocara fogo à própria roupa num acidente com uma garrafa de álcool. Questionavam, ainda, a intenção de tais bruxos ao aparecerem em um programa juntamente com Zé do Caixão, que não é bruxo. Falou-se em vulgarização da Arte e banalização da bruxaria. Tanto Prieto quanto Rosa se defenderam, reafirmando seu compromisso com a wicca e sua intenção de divulga-la de modo a retirar qualquer associação entre bruxaria, malefício e satanismo. Os que os elogiavam reafirmavam que suas posições eram de coragem e pioneirismo, pois abriam a possibilidade de que novas pessoas encontrassem seu caminho religioso na bruxaria, ao mesmo tempo em que a desmistificavam. Quanto a isto, foram duramente criticados em réplica, e chamados de proselitistas. Argumentaram, ainda, que em toda aparição midiática não havia como prever o teor da edição final, e que este era um risco a se correr em nome da bruxaria. Frazão aproveitou a ocasião para assegurar que jamais aparecia em qualquer programa em que deixasse a bruxaria exposta ao ridículo, e que avaliava muito bem tanto o conteúdo que desejava passar quanto os programas dos quais participava. Este é outro exemplo de como a televisão é um recurso usado pelas bruxas para marcar uma liderança: quando se espera que

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novas candidatas a bruxa apareçam por intermédio de um programa de TV, o que se está querendo, de fato, é arrebanhar seguidores sobre sua própria liderança. Rituais à luz de tochas, bruxas usando mantos e capuzes, encontros público de bruxas são outros pontos que Frazão critica. Ela vê isto como banalização e se defende de possíveis acusações neste sentido afirmando que nunca fez rituais em frente a câmeras, e apenas dá receitas de feitiços populares e folclóricos. A imprensa não aparece em seu discurso como um meio de divulgar a bruxaria, nem ela parece interessada em faze-lo, embora apareça com freqüência em diversos meios de comunicação. Ela tece críticas também ao uso constante de tradições estrangeiras, chamando a atenção para um estado de “colonização” cultural. Estas críticas atingem tanto Rosa quanto Prieto. Eles argumentam que a wicca é uma religião estrangeira, vinda da Inglaterra e contra-atacam com acusações diretas a Frazão. Deste modo, Rosa enxerga em Frazão um “(...) Nacionalismo exacerbado, aquela pieguice babaca da contracultura dos anos 70. Essa postura infantil de quem não come Big Mac por que não é ‘aculturado’. Quando falamos de wicca, falamos de uma religião nascida na Inglaterra.” (Rosa) “Por que você quer nos fazer engolir suas teorias de que dá para aprender wicca com rezadeiras cristãs? Essa mistureca é uma mixórdia sim, na MINHA opinião.” (Rosa)3 Frazão é atacada em um dos cernes de seu pensamento, o de que a bruxaria deve estar ligada à terra onde ela é exercida. As opiniões de Rosa sobre Frazão descrevem uma pessoa que está presa a concepções ultrapassadas. Estas se expressam tanto no apego à contracultura quanto no apego a tradições consideradas cristãs, como a das rezadeiras e benzedeiras. De fato, Rosa não aceita que estas duas personagens sejam consideradas bruxas, o que Frazão insiste em fazer. Como vimos, as bruxas da internet mantém uma constante preocupação em romper com todo legado cristão que possa vir a influenciá-las. Não se permitindo romper com este legado, Frazão é vista como pessoa que se prende ao passado. Sua preocupação com o que chama de colonização e a tentativa de resgatar traços do folclore e cultura brasileiros para dentro da _______________________________ 3 – O grifo é de Rosa.

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bruxaria não são argumentos convincentes para a corrente antagônica. Sua preocupação com o resgate de tradições familiares e da cultura africana, por exemplo, rende mais críticas de Rosa. “Para mim, os deuses africanos são tão estrangeiros quanto os celtas, gregos, chineses ou hindus. (...) Religião nada tem a ver com genética e ramos familiares. (...) É uma mentalidade profundamente cristã: ‘vou lutar contra o paganismo que não é o MEU paganismo’. Isso me cheira a evangelização.” (Rosa)

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Ao combater o argumento de Frazão, Rosa ataca duas frentes: a preocupação de Frazão com a cultura brasileira de raiz africana não se justificaria, pois os africanos são estrangeiros; e a idéia de um resgate familiar da bruxaria indicaria uma posição biologizante, mas não só, indicaria também uma posição elitista, pois só aqueles com antepassados pagãos poderiam exercer a bruxaria. A acusação usada, neste caso, é aquela que tira Frazão do grupo da bruxaria: a de ser cristã, devidamente em associação com a postura dos evangélicos, que não são bem recebidos pelas bruxas. A acusação de ser cristão implica a acusação de ser falsa bruxa, de não ter abraçado devidamente o paganismo. Embora Frazão não receba acusações de ser cristã, recebe acusações de tornar a bruxaria cristianizada com o intuito de vender livros. Desta forma, a acusação de “dinheiro fácil” se inverte, e agora é Frazão a acusada de flertar com as tentações financeiras. Ela também é acusada de estar numa disputa pela liderança do grupo de bruxas. Como dissemos, esta é uma disputa, mas Rosa e Prieto não se enxergam fazendo parte dela. Em seu discurso, eles indicam que é Frazão quem ataca, deixando-os na posição de defesa. “Bom, Márcia, não é de hoje que você vem me criticando. Desde minha primeira aparição pública sei que você vem me difamando de maneira enfática, dizendo aos quatro cantos que eu não sou ‘um verdadeiro bruxo’, que eu sou um aproveitador da bruxaria (...). Conforme o trabalho de Rosa crescia, você passou também a criticá-la, chamando-a de bruxa colonizada. Você foi a primeira a se colocar contra mim publicamente.” (Prieto) ______________________________ 4 – O grifo é de Rosa.

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“Acho que você se ressentiu quando o Lugh [Prieto] mais, e eu menos, começamos a sobressair no cenário da wicca.” (Rosa) Acusado de ser um bruxo falso, um aproveitador, pessoa desonesta, Prieto se defende. Ao acusa-la de ter sido a primeira a ataca-lo, ele esvazia suas críticas e transforma-as em rixas pessoais e disputa pela liderança, quando insere a idéia de que Rosa só foi atacada quando passou a ser também uma liderança no grupo da wicca. Desta forma, as lideranças constituídas de Rosa e Prieto estariam ameaçando a de Frazão, cujo pioneirismo não é negado. Prieto defende, ainda, a idoneidade da instituição que dirige e aponta seus cursos como não menos instrutivos que os livros publicados por Frazão, pois teriam o mesmo tipo de conteúdo. “Não nego o valor da Márcia como pioneira, só acho que isso não lhe dá o direito de pisar em ninguém.” (Rosa) Aceitar o pioneirismo de Frazão, como Rosa faz em quase todas as mensagens onde a critica, é uma maneira de reafirmar que o grupo dominado por Frazão está agora sendo dividido e disputado. No ponto de vista de Rosa e Prieto, esta disputa se dá apenas em função dos ataques de Frazão, que quer o domínio completo do grupo. As estratégias de Rosa e Prieto para vencer a disputa se dispõem em duas frentes distintas: por um lado, tentam desmerecer Frazão como pessoa e como bruxa, por outro, tentam fazer com que ela não se insira mais no grupo da wicca. Vejamos cada uma mais detalhadamente. No primeiro caso, Rosa e Prieto agem de modo a desmerecer os argumentos de Frazão. Ela é acusada de mesclar bruxaria e cristianismo em prol de uma maior vendagem de livros, de ser cristã, ultrapassada, elitista e de disputar o domínio do grupo. É também acusada de ser mentirosa, vaidosa e autoritária. “Eu NÃO ACREDITO NA HISTÓRIA DA VOVOZINHA que você conta, que para mim isso é tudo uma grande fantasia criada pela sua cabeça, (...) chegando ao ponto ridículo de dizer que só podem ser bruxas aquelas pessoas que têm hereditariedade pagã. (...) Você e mais meia dúzia, ao invés de tentar restabelecer seu contato com a natureza,

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estão mais preocupados com a sua própria vaidade pessoal. Você sempre se coloca contra aqueles que têm idéias diferentes das suas.” (Prieto)5 Ao preocupar-se mais com a vaidade e a liderança, Frazão é acusada de deixar para trás o mais importante para uma bruxa: sua ligação com o sagrado, com o divino. Esta ligação é o cerne da bruxaria. Interessante observar que as acusações contra Frazão trazem a idéia de que não é uma bruxa senão de maneira periférica. Tratando de tradições cristãs e de sua própria vaidade pessoal, ela assinala um certo descompromisso com o sagrado. Prieto segue com as acusações que insinuam a precária condição de bruxa de Frazão, desta vez indicando um ponto chave da bruxaria e do próprio pensamento de Frazão: a luta contra o patriarcado. “Vi certo e-mail onde você dizia: ‘A feitiçaria implica em rigor, compromisso, crítica, luta, etc.’ Não acha estes termos muito patriarcais?” (Prieto) A indumentária de bruxa de Frazão também é criticada, da mesma forma que ela critica a indumentária usada nas aparições públicas dos membros da ABRA-WICCA. Brincos de pata de sapo e afins são vistos por Prieto como um apelo ao marketing e uma tentativa de construção de uma personagem vendável. Deste modo, ele devolve à autora o mesmo teor de crítica que ela lhe destinava.6 Em todas estas acusações, Rosa e Prieto não apenas devolvem as mesmas críticas feitas a eles por Frazão, como acrescentam mais uma estratégia, distinta daquela da autora. Se Frazão afirma que nenhum dos dois é um verdadeiro bruxo, o mesmo não é dito sobre ela. O movimento da dupla é fazer com que Frazão não pertença mais ao grupo da wicca especificamente, mas ao grupo da bruxaria e da magia em geral. Deste modo, eles delimitam o grupo e é apenas através da ABRA-WICCA que se define o que constitui parte integrante da wicca e o que não. Através desta

______________________________ 5 – O grifo é de Prieto. 6 - Em suas aparições públicas como bruxa, Frazão costumava vestir saias compridas escuras com meias listradas de preto e branco, casacos compridos e um chapéu de veludo preto desabado. Em algumas ocasiões, colocava um brinco com uma pata de sapo e um broche de morcego empalhado no chapéu. A autora afirma, em seus livros, que nunca conseguiu combinar bem as roupas. Na verdade, não faz questão de andar na moda.

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instituição e através das listas de discussão, formulou-se a noção de que se tudo é possível, nem tudo é wicca. As regras formuladas servem para regulamentar a wicca no país de maneira direta. Qualquer bruxa que se desvie dos padrões estabelecidos na rede será vista como não-bruxa, ou não-wiccana pela corrente ligada à ABRA-WICCA. Vimos a respeito do coven estudado como este foi um dos artifícios usados por Valter para afastar seus rivais na liderança do grupo em questão. Esta é a mesma estratégia formulada por Rosa e Prieto para afastar Frazão. Delimitando o grupo, eles a excluem, e assim a disputa termina. Em um exemplo, Prieto afirma que Frazão não detém o domínio do grupo, desmerecendo tanto sua crítica quanto sua aprovação. Deste modo, Prieto exclui Frazão do papel de liderança que até então tinha mantido, até mesmo em função de sua atuação como pioneira. A atuação do bruxo é descrita como “em prol da Arte”, ou seja, favorável à bruxaria, enquanto a de Frazão é exposta como de interesse pessoal, movida pela vaidade e pela intenção de vender livros. “VOCÊ NÃO É A GRANDE BRUXA BRASILEIRA e nem a PAPISA DA ARTE e por isso a sua reprovação em relação à minha atuação em prol da bruxaria para mim é inválida.” (Prieto)7 Seguindo esta lógica, pergunta a Frazão se é ou não wiccana, pergunta a qual ela se nega responder. Nesta negativa, Frazão perde a oportunidade de continuar disputando espaço, e tornase uma bruxa de fora da wicca. “Olhe Lugh [Prieto], se eu sou ou não sou wicca, isso não me interessa.” (Frazão) Praticante de wicca ou não, não é este o argumento que usa para se definir como bruxa, e é aí que reside a questão: a bruxaria de Frazão se remete a influências que não constituem aquelas consideradas como parte da wicca por Rosa e Prieto. Deste modo, ela é retirada do grupo da wicca. As tradições cristãs das rezadeiras, o folclore brasileiro, a herança cultural familiar, todas estas são chaves de importância para Frazão, não para a wicca. Seu apego a estes conteúdos fez com que eles pudessem ser definidos, nas listas de discussão, como conteúdos de interesse, mas não intrínsecos a wicca. ____________________________ 7 – O grifo é de Prieto.

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A bruxaria na rede virtual O acesso à wicca no Brasil e a seus grupos de prática passa freqüentemente pela internet. Como a liderança do grupo mais amplo pode ser disputada através da internet? E porque esta disputa passa também pelos meios de comunicação? Se a identidade de bruxa não é uma que se defina através dos processos tecnológicos, é necessário verificarmos o por que disto. Segundo Lévy, a internet e o ciberespaço, definido por ele como o “espaço aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (1999: 92), foram capazes de gerar comunidades virtuais. Este é o conceito chave para compreendermos como as bruxas disputam o domínio de seu grupo pela rede. É a partir da noção de que as listas de discussão formam comunidades que podemos perceber que as idéias veiculadas através delas têm um impacto real. As listas e as salas de bate-papo transformaram-se não apenas em instrumentos de disputa de um grupo como se tornaram parte da própria comunidade. A comunidade virtual, no caso das bruxas, é uma comunidade real, que promove encontros face-a-face e interações de diversos níveis. Ela é uma extensão do mundo concreto vivido por seus atores que, espalhados geograficamente por uma enorme extensão territorial, não seriam, de outro modo, capazes de manter contato. A questão territorial é importante na questão das bruxas: como vimos através dos questionários, mais da metade das bruxas residem na região sudeste, espalhadas por seus quatro estados. Os principais núcleos de bruxaria no país (SP, RJ, MG, DF e PR) estão distantes demais para que se formasse uma comunidade local. A internet tornou-se o único instrumento capaz de aglomerar bruxas de todo país num relacionamento e comunicação contínuos. As comunidades virtuais estão apoiadas no sistema de rede em que a internet opera, bem como na noção de interconexão, que é a idéia de que qualquer possibilidade de comunicação é sempre preferível ao isolamento. Isto significa que as comunidades são formadas com a idéia de que a comunicação entre pessoas afins é preferível ao não-contato. Neste sentido, Lévy conceitua tais comunidades como “construídas sobre afinidades de interesses, de conhecimentos, sobre projetos mútuos, em um processo de cooperação ou de troca, tudo isso independente das proximidades geográficas e das filiações institucionais” (1999: 127). De fato, as listas servem para a troca contínua de informações e opiniões, independente das filiações, pois vimos que há alguns não-bruxos em listas sobre bruxaria. A afinidade de interesse pelo tema, a vontade de

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trocar conhecimento e cooperar é o que faz com que as listas tomem a forma de comunidades virtuais. Como comunidades formadas em um meio de comunicação que funciona em termos de interação mediada pode vir a se tornar fundamental na disputa pela liderança e na sensação de pertencimento a um grupo? Para Lévy, “uma comunidade virtual não é irreal, (...) trata-se simplesmente de um coletivo mais ou menos permanente que se organiza por meio do novo correio eletrônico mundial” (1999: 130). A internet, e as listas de discussão – que funcionam por meio do correio eletrônico -, são meios de comunicação em que os sujeitos interagem de maneira mediada. Para Thompson, “as interações mediadas implicam o uso de um meio técnico (papel, fios elétricos, ondas eletromagnéticas, etc.) que possibilita a transmissão de informação e conteúdo simbólico para indivíduos situados remotamente no espaço, no tempo ou em ambos” (1998: 78). Surge, a partir daqui, a idéia de que a internet é um veículo de interação dos sujeitos. Esta interação não se limita ao ciberespaço. Para Lévy, “é raro que a comunicação por meio de redes de computadores substitua pura e simplesmente os encontros físicos. Na maior parte do tempo, é um complemento ou um adicional” (1999: 128). Compreendemos agora porque as listas de discussão freqüentemente engendram reuniões e encontros, nos quais seus membros vêm efetivamente a se conhecer. A internet torna-se um instrumento da interação, mas não seu único palco. Ela funciona efetivamente para aglomerar as bruxas e fazer com que se conheçam e, mais importante, conheçam outras como elas. É um espaço de sociabilidade que permite a formação de um grupo – uma comunidade – baseado em noções de pertencimento e alteridade. Isto está indicado nas acusações de não-pertencimento ao grupo que vimos acima. A ABRA-WICCA vem, neste sentido, servir como um outro locus de sociabilidade baseada nestas mesmas noções, pois dela apenas fazem parte bruxas wiccanas. A idéia de disputa de liderança na internet pode ficar mais explícita se compreendermos que as comunidades virtuais atuam, também, em uma base forte de moral social e freqüentemente apresentam um conjunto de leis não-escritas que regem suas relações (LÉVY, 1999). Uma espécie de “etiqueta” é formulada onde a moral máxima é a da reciprocidade: o que é aprendido nas trocas e contatos através do ciberespaço deve ser repassado. O que decorre deste procedimento é a construção de uma reputação de competência. Vemos, então, que a participação em uma lista de discussão pode ser importante para a construção de tal reputação entre as bruxas, especialmente quando sua comunidade se encontra mais virtualmente do que concretamente. Na “etiqueta” da

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rede consta, ainda, a idéia de que ataques pessoais e argumentações pejorativas não são bemvindos. Os ataques desferidos entre Frazão e Rosa e Prieto se tornam, a partir deste ponto de vista, uma exceção às regras da rede. Isto implica em dizer que não há simplesmente um desentendimento pessoal ou uma rixa teórico-prática entre os três bruxos, mas uma disputa. Esta disputa está freqüentemente inserida em meios de comunicação que não apenas a internet, mas também a televisão, o rádio, jornais, revistas e livros, como vimos acima. Se partirmos da idéia de que “os meios de comunicação têm uma dimensão simbólica irredutível: eles se relacionam com a produção, o armazenamento e a circulação de materiais que são significativos para os indivíduos que os produzem e os recebem” (THOMPSON, 1998: 19), então entenderemos que eles se tornam recursos que podem aumentar o poder de determinados indivíduos, uma vez acumulados. Isto quer dizer que o acesso e a freqüência deste acesso à imprensa de um modo geral é significativo de uma determinada posição no escopo de liderança, no grupo da bruxaria no Brasil. O maior ou menor acesso a grandes redes de TV e seus principais programas, bem como às principais revistas e jornais, são recursos que a bruxa que disputa a liderança deste grupo tem em mãos para definir a sua posição. Quanto maior o seu acesso a estes recursos, maior o seu poder de competição. É por isto que muitas das acusações que Prieto e Rosa formulam contra Frazão dizem respeito a aparições públicas e midiáticas. Elas são a medida dos recursos disponíveis para se disputar a liderança de um grupo em expansão. Internet e bruxaria: entre o tradicional e o moderno? Bruxa é uma categoria que remete a um sujeito tradicional, um operador de magia, sujeito regional e místico – até mesmo religioso. Como este sujeito tradicional vem aportar nas parias modernas dos computadores e formula, na rede, uma comunidade de sujeitos iguais a ele? A bruxa de hoje é uma pessoa que está constituindo uma identidade: ser bruxa. Esta identidade não apenas se remete aos atributos tradicionais de mágico, curandeiro, adivinho, mas também a um determinado perfil religioso que indica um processo de afastamento da cultura popular, a uma determinada identidade de gênero – feminino ou masculino -, em alguns casos a uma sexualidade e a uma determinada opção religiosa. A bruxa de hoje não é um sujeito fora do mundo, ela mantém contato com a realidade vivida, a modernidade. Como sujeito de classe média, com alto grau de escolaridade e amplo acesso à informação, ela lida com o cotidiano da modernidade. Não

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está auto-exilada em um gueto. A pergunta então se transforma: como a modernidade e a tradição se encontram na bruxaria wicca? Vimos que a wicca faz parte da Nova Era, que é um movimento com faceta religiosa que faz recurso ao tradicional, mas estabelece-se de acordo com padrões modernos. Neste sentido, tradição e modernidade se encontram. Na modernidade, os meios de comunicação têm um papel fundamental. A televisão e a imprensa, no caso das bruxas, servem como veículos que alcançam o público além das bruxas, levando a bruxaria para outros sujeitos. Esperam, com isso, ajudar àqueles que não encontram informações sobre a wicca tanto quanto desmistificar a figura da bruxa da prática do malefício. Além disto, a televisão e a imprensa se tornam espaços do próprio grupo da wicca no país. Aquele que tem acesso a estes meios vê sua identidade de bruxa legitimada e reforçada, especialmente perante a massa de leigos. Pode, também, aumentar seu escopo de influência sobre o grupo: ganha novos alunos para os cursos, novos leitores para os livros, novos interessados; em uma palavra, ganha novos seguidores. Como a liderança da wicca tem sido disputada no Brasil, a mídia se tornou mais uma ferramenta. A bruxa que não é pública é uma bruxa que não existe. A internet se tornou outro veículo de disputa desta liderança quando se apresentou como um meio capaz de formar uma comunidade. Ela permite uma interação mais imediata que a TV ou a imprensa, com uma resposta clara e um resultado que pode ser quantificado mais rapidamente. Também se apresenta como um meio mais contínuo de influência sobre o grupo, por parte das lideranças. Na internet, as bruxas formaram uma comunidade, e é só através dela que uma comunidade em termos nacionais pode ser pensada. Sem a internet, o coven estudado anteriormente nesta pesquisa não existiria. As bruxas não estariam se conhecendo e trocando informações com a rapidez que isto ocorre, contribuindo para uma certa homogeneização das práticas e opiniões. Os encontros anuais de bruxas em Brasília são um reflexo disto. Devemos enxergar a internet como um espaço da wicca no país. Ela ajudou a formar uma comunidade que vai além do coven, mas que atinge todas as bruxas que queiram nela se inserir. Ajuda, desta forma, a definir o próprio grupo.

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PENSANDO O PERFIL DAS BRUXAS ESTUDADAS

Vamos agora rever alguns pontos de modo a efetuarmos um perfil total tanto das bruxas internautas quanto daquelas entrevistadas. A seguir, veremos quais pontos as narrativas destes dois grupos apresentam em comum. Veremos, ainda, como as idéias de hereditariedade e as concepções de gênero apresentadas pelas bruxas se alinham com a idéia do coven como uma família. Em seguida, observaremos as diferentes categorias de acusação em jogo. Para pensarmos o perfil das bruxas estudadas, tomamos cinco diferentes variáveis: escolaridade, sexo, idade, perfil religioso pessoal e familiar. Infelizmente, o material apresentado para as bruxas internautas não nos permite estabelecer comparações quanto à renda. Dadas as ocupações profissionais, há uma tendência de que esta não difira da apresentada pelas bruxas entrevistadas, onde há uma predominância da renda entre R$1500 a R$2000. Para as bruxas internautas, verificamos que, em um total de 53 respostas, há pelo menos 18 profissionais de nível superior e 5 de nível técnico. O restante das ocupações não indica o grau de escolaridade, exceção feita aos estudantes. Para a leitura do quadro abaixo, há que se fazer algumas observações. Em primeiro lugar, o total de material analisado é de 8 entrevistas e 77 questionários, contabilizando um total geral de 85 bruxas pesquisadas. Nem todos os questionários apresentam o mesmo número de variáveis, por isto o total de cada item do quadro é diferente do total geral. De 77 questionários, apenas 69 apresentam informações sobre idade, 53 sobre escolaridade e 15 sobre religião. Os números entre parênteses se referem a estes totais. Quando dois números se apresentam separados por uma barra, dentro de parênteses, o primeiro indicará o número de pessoas respondendo para o total averiguado. Desta forma, a junção (2/8) na variável perfil religioso indica que estamos analisando duas respostas de um total de oito. O tópico que indica Total nada mais é que a soma do material disponível para cada variável: um número constante de oito entrevistas e um número variável de questionários. Lembremos apenas que os questionários foram colhidos de forma aleatória, em listas de discussão sobre bruxaria wicca, e apresentam informações voluntárias das bruxas em questão. As entrevistas, por outro lado, apresentam conscientemente um número maior de mulheres. O sexo,

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nas entrevistas, não foi escolhido aleatoriamente. Todas as entrevistadas residem no Rio de Janeiro ou Grande Rio, enquanto as internautas residem em todas as regiões brasileiras, com predominância do Rio de Janeiro e São Paulo. Bruxas Brasileiras ______________________________________________________________________________ Entrevistadas (8)

Internautas (77)

Total

---------------------------------------------------------------------------------------------------------sexo

(8)

(77)

feminino

7

55

masculino

1

22

(85)

---------------------------------------------------------------------------------------------------------idade

22 a 49 anos (8)

13 a 41 anos (69)

(77)

--------------------------------------------------------------------------------------------------------------------escolaridade

(8)

(53)

(nível superior

7

27

(61)

completo ou não) --------------------------------------------------------------------------------------------------------religião familiar

(8)

(15)

catolicismo

5

6

espiritismo

-

7

(23)

----------------------------------------------------------------------------------------------------------perfil religioso

(2/8)

(6/15)

espiritismo

2

-

umbanda

2

-

Nova Era

2

6

Quadro n. 4: Pensando o perfil das bruxas estudadas.

(23)

247

Para as variáveis de religião, é necessário um esclarecimento. A religião familiar indica religião de algum membro da família ou de cônjuge, no caso das internautas. Para as entrevistadas, indica a religião da família, de modo geral expressa na religião da mãe no período de infância da bruxa. é, portanto, a religião na qual ela foi socializada quando criança. Já o perfil religioso diz respeito à própria bruxa. Neste caso, tomamos os perfis que julgamos serem mais interessantes para a corrente análise. Quanto às internautas, há muitos perfis que começam no catolicismo ou espiritismo, mas há também bruxas que já foram umbandistas ou evangélicas. Do mesmo modo, as bruxas entrevistas apresentam sete perfis que começam no catolicismo, embora apenas cinco destas sete tenham vindo a contrair a Primeira Comunhão. De todos os entrevistados, cinco exprimiram a idéia de que não tinham religião anterior à bruxaria, independente da busca e perfil formulados. Quanto ao sexo, observamos, entre as internautas, um número duas vezes e meio superior ao de homens. A idade destas bruxas não difere muito daquela das entrevistadas, apresentando apenas um desvio em direção aos mais jovens de cerca de dez anos. Nesse caso, a internet pode estar atraindo um público mais jovem. O grau de escolaridade reflete, em certo sentido, a idade. Para as entrevistadas, o único homem e o mais jovem era quem não tinha tido acesso à educação superior, mas apresenta intenções nesse sentido. Para as internautas, cerca da metade exercem profissões que requerem curso superior ou são estudantes universitários (27 em 53). A religião da família da bruxa é, na maioria absoluta dos casos, cristã. Embora a bruxaria seja pagã, e seja relativamente comum que a bruxa afirme que há alguma outra bruxa em sua família, nenhuma das respostas indica alguma família pagã. Veremos mais adiante esta questão da bruxaria como herança familiar. O catolicismo e o espiritismo aparecem como as religiões mais comuns entre os familiares das bruxas. Para o perfil religioso, escolhemos 8 casos correlatos em um universo de 23. No nosso entender, estes casos apresentam percursos mais bem formulados, em termos de narrativa, pelas bruxas, bem como se apresentam como casos paradigmáticos. Entre as entrevistadas, duas realizaram o mesmo percurso: foram da umbanda para o espiritismo e deste em direção à religiosidade Nova Era, especificamente do budismo. Há casos, não tão bem estruturados nas narrativas em questão de bruxas que fizeram caminhos semelhantes, passando também pelo espiritismo ou umbanda até ingressar na Nova Era e a partir dela na bruxaria wicca. As bruxas

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internautas apresentam um padrão correlato: muitas vezes ex-católicos ou ex-espíritas, entre outras possibilidades, estas pessoas direcionam sua busca religiosa para horizontes de Nova Era, onde entram diferentes ordens esotéricas, o budismo e as religiões indianas. Isto nos permite pensar em termos de um perfil comum, em que a bruxa deixa a religião de origem da família e se engaja no que chamam de uma busca. Esta busca encerra a idéia de que há uma religião adequada ao eu subjetivo, interior, que deve ser procurada. Rompe-se - em maior ou menor grau, como vimos – com o cristianismo em direção a religiosidades mais difusas e pertencentes ao âmbito da Nova Era. Esse perfil nos permite supor que a religiosidade expressa na wicca faz parte de um processo de afastamento das religiões populares e tradicionais em busca de formas mais modernas de lidar com este tradicional, apresentado aqui na forma da Nova Era. Dom, hereditariedade e família Tanto entre as bruxas entrevistadas quanto entre as internautas, há sempre a idéia de que há outra bruxa na família, definida mais em termos de dom do que do paganismo. Em Frazão, a bruxa da família – sua avó Vitalina – era benzedeira pagã. No caso destas outras bruxas, o familiar é portador de dom, não de conhecimento mágico específico ou opção religiosa determinada. O dom é entendido em termo de contato com espíritos – o que nos remete à influência espírita sobre as bruxas e as concepções de magia no Brasil – ou de pranormalidade. Entre eles, podemos destacar: regressão, telepatia, projeção astral, clarividência, clariaudiência, leitura de mentes, sugestionamento, a leitura da sorte em oráculos, poder de modificar o curso dos acontecimentos, poder de mover objetos com a força da mente (ou da vontade), poder de prever o futuro, contato com espíritos, execução de feitiços, viagem astral, entre outros. Estes dons podem ser atribuídos a pessoas da família, normalmente mulheres, ou à própria bruxa. No caso das entrevistadas, o dom mais comum é a capacidade de ler oráculos ainda criança, presente em três bruxas. Este dom indica uma intuição aguçada, capacidade fundamental à bruxa. É a intuição que permite às entrevistadas formularem feitiços e rituais sem conhecimento prévio da bruxaria ou a capacidade de prever acontecimentos futuros. No caso das internautas, o dom mais comum é o contato com espíritos, a mediunidade. Notamos aí duas correntes distintas de dom: de um lado, a influência espírita sentida sobre as bruxas internautas faz com que o dom

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de uma bruxa seja compreendido prioritariamente em termos de mediunidade, enquanto para as entrevistadas ele é basicamente a intuição. O dom, assim como a idéia de que há bruxas na família, são formas de legitimação da identidade de bruxa. Quanto à família, a bruxa aparece prioritariamente como uma mulher que pode saber ou não que é ou foi bruxa. Não diz respeito, portanto, a uma condição assumida pelo familiar em questão, como era assumida a condição de feiticeira pela avó de Frazão. Há, portanto, uma história familiar que é recontada de modo a permitir a idéia de uma bruxa na família. No que tange aos dons, percebemos que as entrevistadas tendem a assumir esta mesma posição: experiências de vida são recontadas de modo a permitir uma interpretação de que a entrevistada em questão já nasceu bruxa ou que é bruxa desde sempre. É esse posicionamento que permite a elas afirmarem que não tinham religião alguma anterior à wicca. Como a identidade de bruxa está intimamente ligada com uma determinada identidade feminina, e como a identidade feminina na sociedade brasileira é dada prioritariamente nas relações em família (GOLDENBERG, 1992), é normal que a identidade de bruxa tenha tornado a família um referencial para sua legitimação. Além da idéia exposta por Mauss (1974) de que há, em diversas sociedades, família de mágicos, vemos na wicca um recurso à família também como ferramenta à legitimação de um determinado padrão de gênero. Se apenas a família fosse necessária para legitimar a condição de bruxa, porque prioritariamente as mulheres da família são encaradas como bruxas? Os homens poderiam fornecer a legitimação necessária. Não fornecem porque ser bruxa para estas mulheres é mais do que operar magia. Ser bruxa diz respeito a um determinado padrão de comportamento feminino que transgride o padrão da sociedade brasileira, e, portanto, outras mulheres são acessadas como meio de legitimação. A família também aparece como uma idéia freqüente no imaginário wiccano. Conforme vimos, a Alta Sacerdotisa é freqüentemente comparada a uma mãe enquanto o coven é visto como uma família e até mesmo um clã. A divindade também aparece sob a forma de mãe. Concepções de laços de parentesco se formam, reforçando a idéia de que a magia é para ser praticada em família, dentro de uma tradição herdada de ancestrais. Ao mesmo tempo, o modelo hierárquico de família se alinha com o modelo de complementaridade entre os gêneros que a wicca apresenta. Apenas o topo da hierarquia, nela, é ocupado por uma mulher, como o topo de comando de um coven é ocupado pela Alta Sacerdotisa, como a parte forte da família de Frazão era as mulheres. Os homens, na família da autora, eram fracos, como é fraco o papel que o Alto

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Sacerdote representa no coven, pois ele não é mais que um atendente da Sacerdotisa, poucas vezes desempenhando liderança na esfera tradicional destas posições. Por ser este um papel fraco, Valter – que o desempenhava no coven que vimos - é acusado de querer mais poder dentro de seu grupo. Ele estaria buscando algo que o cargo que ocupava não permitia. É paradigmático, neste caso, observarmos que são suas Sacerdotisas as primeiras pessoas que ele afasta. No primeiro coven, ele ajuda a afastar Joana e depois Vânia. No segundo coven, ele divide a liderança apenas com os homens. As disputas entre bruxas: algumas categorias de acusação A disputa que Valter encaminha com Vânia e Maurício na liderança do coven estudado toma uma forma análoga à disputa que observamos pela liderança do grupo da bruxaria wicca no país. Em ambos os casos, o recurso para dominar o grupo é a retirada do oponente da condição de disputar esta liderança. Essa retirada é efetuada ao se estabelecer que o oponente não pertence ao grupo. Nos dois casos vistos, o mecanismo é de se desacreditar o oponente como bruxo ou como wiccano. Não sendo uma coisa ou outra, ele não está apto a disputar a liderança do grupo, pois não faz parte dele. É uma estratégia de segmentação. É em torno desta estratégia que gira o embate entre Frazão e seus oponentes. Enquanto a autora desacredita-os como bruxos, eles tendem a desacredita-la como praticante de wicca. Conforme vimos, Frazão elaborou uma adaptação da wicca para terras nacionais. Essa adaptação é usada contra ela por seus opositores como forma de retira-la do grupo da wicca. As acusações que vem à tona, então, dizem sempre respeito à condição ou não de bruxa. Mesmo entre as bruxas internautas e as entrevistadas, as acusações trocadas entre as bruxas indicam que a condição de bruxa pode ser posta em dúvida. As acusações de malefício foram vistas apenas entre os integrantes do coven estudado, com respeito a uma única bruxa. Não há acusações de não ser portador de dom. Há apenas acusações quanto à conduta da bruxa, que podem vir a desacredita-la como praticante respeitável da bruxaria. Entre estas acusações, destacam-se: a busca pelo poder, interesse econômico, não ter comprometimento com a bruxaria (ser pink wicca), determinados sensos estéticos – maquiagem exagerada, roupas exóticas -, buscar a bruxaria para estar na moda ou ser de vanguarda, buscar a bruxaria para afrontar a família, ser cristão, não ser wiccano.

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O interesse econômico se traduz no retorno financeiro que a atividade de bruxa traz. A bruxa que dá cursos de bruxaria é mal vista entre as entrevistadas, mas não entre todas as internautas. Na internet, a idéia de que a bruxaria pode ser aprendida em um curso pago, workshops ou outras atividades remuneradas é relativamente bem aceita. Mesmo assim, algumas bruxas ainda apresentam resistência a estas práticas. O poder é uma categoria análoga à de interesse econômico, pois suscita a idéia de que a bruxa não exerce sua posição de pessoa religiosa, mas tenta tirar vantagens materiais concretas ou status ou ainda prestígio do fato de ser bruxa. O ethos quebrado, em ambas as situações, é o da religião como espaço da caridade, da confiança, do amor ao próximo e do desinteresse. As acusações referentes à moda, ao senso estético, a ser pink wicca, ou à família se referem à falta de comprometimento da bruxa, à sua necessidade de ser bruxa para os outros, e não para si. Em todos estes casos, a bruxa busca não a religião, mas uma identidade que serve para um grupo externo ao das bruxas. Os signos estéticos indicam, para quem não é bruxa, que quem os porta é. A idéia de afrontar a família ou estar na vanguarda igualmente remetem à ser bruxa para u grupo alheio, e não por uma necessidade do eu subjetivo. O pink wicca é o sujeito que, embora não seja bruxa para os outros, não assimilou da mesma forma o que a bruxaria realmente é e como desenvolve-la. Ser cristão e não ser wiccano são acusações que se inserem na noção de segmentação e exclusão. Ser cristão, no entanto, é uma acusação que indica que a pessoa em questão não é bruxa. Uma bruxa de verdade rompe com os padrões do cristianismo, especialmente. Como vimos, a grande maioria das bruxas estudadas provém de famílias cristãs. Há, dessa forma, uma ruptura simbólica com a família de sangue para um ingresso na família religiosa, composta pela comunidade das bruxas. Por outro lado, ser cristão é uma acusação que remete a determinadas qualidades atribuídas aos cristãos, negativas na maior pare das vezes. Mais categorias de acusação As acusações acima se dirigem de bruxas para bruxas. Há uma outra série de acusações que se dirige das bruxas a determinados grupos da sociedade, e da sociedade para elas, especialmente a própria família.

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Entre as acusações que as bruxas recebem de sua própria família, especificamente as bruxas entrevistadas, estão a de ser satanista, de “lidar com coisas pesadas”, fazer “feitiçaria braba”, ser louca. Neste sentido, algumas se queixam de as acusações podem vir a ser diretas, causando uma espécie de “segregação”. A bruxa, associada ao malefício, é vista como pessoa poluída, com quem não se deve manter contato. Ela passa a inspirar medo. Quando as acusações da família tomam o tom do deboche e da incredulidade, a categoria loucura entra em ação. Percebemos, assim, que a bruxa ou é vista como louca ou é vista como maléfica. No primeiro caso, ela é desacreditada; no segundo, ela é levada a sério, mas como um agente incômodo. Em ambos os casos, estas acusações reafirmam sua posição de desvio. Todavia, são vistas pelas bruxas como uma espécie de preconceito, pois marcam a marginalidade de sua posição. Nos relatos colhidos, a hostilidade posse se evidenciar com algum grau de violência, especialmente no que tange a estranhos. Uma das bruxas entrevistadas afirma que um desconhecido cuspiu-lhe, de dentro de um ônibus, chamando-a de “bruxa maldita”. Outra relata as ameaças que sofreu por telefone, de sujeitos anônimos, que afirmavam que ela não acredita em Jesus Cristo e por isto “arderia no fogo do inferno”. Nestes dois casos, as bruxas em questão estavam mais expostas que as demais, pois assumiam publicamente sua condição, inclusive freqüentando programas de televisão onde falavam sobre bruxaria. Na internet, pudemos observar que os evangélicos são vistos como os grandes vilões no que tange o preconceito contra as bruxas. Boatos sobre violência física de evangélicos contra bruxas circulam com alguma regularidade, e as próprias bruxas afirmam que eles constituem um perigo real ao seu bem-estar físico. Há, então, uma série de acusações elaboradas para os evangélicos, em especial, e para os cristãos de um modo geral. Cristãos são vistos como machistas, presos à razão na forma da palavra escrita - enquanto as bruxas procuram formas de não-razão, como a sensação e a emoção -, vivem sob a idéia de temor a Deus e orientados apenas pelo divino, sem comprometimento com o indivíduo. Os evangélicos, especificamente, ainda são vistos como interessados em dinheiro – que, como vimos, é uma acusação que pesa entre as próprias bruxas -, proselitistas, manipuladores, arcaicos, chatos, preconceituosos e incapazes de acessar o divino. Forma-se, deste modo, categorias que atacam religiões que as bruxas vêem como perigosas à sua própria sobrevivência como indivíduos e como comunidade. Os atributos dados a cristãos, especialmente católicos, e evangélicos são aqueles rechaçados ao

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comportamento da bruxa, e são inversos àqueles atributos definidos como específicos das bruxas wiccanas. Entre as categorias que as bruxas usam como contra-ataque, num movimento de defesa contra aqueles de quem elas sofrem algum nível de preconceito, está a categoria “crente”. O crente, ou evangélico, não é apenas um ator a ser atacado. É uma categoria que simboliza tudo o que uma bruxa não deve ser: ela não deve orientar suas práticas religiosas em função do ganho material, ela não deve ser proselitista, não deve ser machista e preconceituosa, não deve ser manipuladora, deve respeitar o livre-arbítrio, o indivíduo e acessar o divino não apenas pela mente, mas também pela emoção e pelas experiências sensoriais. Os católicos não sofrem tantas restrições como os evangélicos porque são sujeitos vistos como mais próximos ao paganismo. Seriam herdeiros da tradição pagã européia, superposta por uma roupagem religiosa cristã e o pensamento judaico-cristão. Desta forma, datas e locais santos do catolicismo são freqüentemente associados a datas festivas e locais de culto pagãos. Como vimos, há entre as bruxas um percurso que freqüentemente começa no catolicismo, ou no espiritismo. Há pouquíssimas bruxas provenientes do pentecostalismo. Desta forma, podemos sugerir que os evangélicos se tornaram sujeitos preferenciais das acusações das bruxas não apenas pelo seu comportamento para com relação a elas – de acordo com os discurso das próprias bruxas -, mas também por não constituírem um núcleo religioso com quem elas tenham mantido contato em algum momento de suas vivências religiosas individuais. De qualquer forma, o rompimento com o cristianismo é um ponto sempre apresentado pelas bruxas internautas. Como pagãs, elas mantêm uma preocupação constante com o legado judaico-cristão e sua influência sobre as práticas da bruxaria. A forma encontrada para romper foi dupla: não apenas elas se tornam pagãs, isto é, deixam de ser cristãs e abandonam as práticas cristãs, como aproximam o catolicismo do paganismo, como se a prévia experiência como católica não invalidasse a identidade de bruxa, pois o católico está mais próximo do paganismo do que o evangélico, por exemplo. Algumas oposições poderiam ser apresentadas a este raciocínio. Primeiro, devemos esclarecer que o paganismo a que a grande maioria das bruxas se refere é sempre de origem européia, anterior à conversão cristã. Deste modo, o paganismo da Igreja Católica não se reporta a outras culturas. Estas outras culturas podem ser acessadas na prática da wicca. Isto depende apenas da bruxa, mas notamos uma inclinação maior a mitologias, panteões e tradições européias do que africanas ou indígenas, por exemplo.

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Em segundo lugar, devemos colocar que o movimento duplo de ruptura comporta uma conversão e uma afirmação desta conversão. Quando a bruxa declara que é pagã, ela não é mais cristã, e isto constitui uma conversão. Ela deve, portanto, romper com seus velhos hábitos, hábitos de cristã, abandonando estas práticas. Por outro lado, a bruxa que abandona o catolicismo se converte a uma religiosidade que é vista como anterior àquela. Ela passa a ver no catolicismo práticas do paganismo. Assim, ela une novamente o que havia separado, preservando uma continuidade em seu percurso religioso. No caso das bruxas espíritas, o rompimento não é tão brusco. Muitas das concepções espíritas se mantêm entre as bruxas da internet, especialmente. A idéia de dom vinculada à de mediunidade, a noção de “pureza doutrinária”, a preocupação com reencarnação e o karma são exemplos disto. É no conteúdo cristão que a bruxa espírita efetua o rompimento, não no conteúdo. Exatamente como a bruxa católica efetuou o rompimento no conteúdo cristão, mantendo o pagão já existente. Quanto às demais categorias de acusação que as bruxas usam para aqueles que lhes atacam, além da categoria crente, estão: preconceituosa, ignorante, analfabeta, fanática, louca ou sem cultura. A bruxa que se sente acusada por uma pessoa que não é bruxa, reage a esta acusação com uma contra-acusação. Neste caso, ser preconceituoso, não ter cultura, ser analfabeto ou ignorante formam uma linha única de acusações, que remetem à idéia de que aquele que acusa a bruxa - de malefício ou loucura - não tem noção do que a bruxaria é na verdade. Falando sobre o que não conhece, ele comete erros. Por outro lado, o fanático, o crente e o louco são acusações análogas. O crente é visto como um fanático, e o fanático é visto como louco, pessoa que não tem razão no que diz, que age sem conhecimento e que é direcionado por uma pensamento único e obsessivo que não aceita nenhuma outra forma de expressão que não seja a própria. *

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Há um perfil, que poderíamos chamar de mais comum, para as bruxas estudadas: há poucas diferenças entre os perfis das bruxas entrevistas e das bruxas internautas. As categorias de acusação, a noção de dom, as experiências religiosas, o grau de escolaridade, são muitas as

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semelhanças entre ambos os grupos que nos permitem pensar os dois grupos de uma forma mais ampla, como bruxas brasileiras. A bruxaria wicca é definida em função de práticas que se remetem mais freqüentemente a tradições européias e estrangeiras do que às tradições nacionais. Estas são abandonadas ou mal vistas. De certa forma, o resgate e a defesa destas tradições pode vir a não se alinhar com as práticas da wicca, segundo o discurso das bruxas demonstrou. Formula mais a categoria de bruxa o ser pagã, alinhada à tradição da wicca, do que o operar magia e o cuidado com as formas mágicas nacionais. Não obstante, essas formas mágicas fazem-se sentir no discurso das bruxas, especialmente quanto à influência espírita. Sobre as bruxas de hoje, percebemos que esta categoria engloba uma identidade que não se limita ao gênero ou à opção religiosa, mas vem de encontro a um determinado perfil que envolve a ocupação profissional e o grau de escolaridade, apresentando conotações de classe. Afastando-se progressivamente do que é religião popular em direção a formas importadas de religiosidade, a bruxa se apresenta num movimento de ascensão social. É uma ascensão vista não do ponto de vista financeiro, mas de outros indícios: a religião estrangeira possivelmente acompanha um processo de afastamento do popular em todos os níveis, especialmente quanto à cultura de classe; desta forma, a religião é apenas um dos níveis deste afastamento, e possivelmente uma conseqüência de um movimento individual mais ampla. Os perfis analisados demonstram que o nível superior (universitário) é freqüentemente alcançado, embora nem sempre completo. Residem as bruxas em cidades, especialmente grandes metrópoles como as capitais dos estados, ou ainda cidades menores com algum grau de urbanização. No caso das bruxas cariocas entrevistadas, habitam bairros de classe média ou subúrbio. Têm, quase sempre, acesso ao computador e outros meios de comunicação. Atuam profissionalmente em atividades de nível superior ou técnico, ou no próprio mercado esotérico. Quanto à questão de gênero, a identidade de bruxa se apresenta com uma valoração inversa àquela que consta na sociedade brasileira. A bruxa do malefício desaparece e dá lugar a um operador de magia ligado aos processos da modernidade, um sujeito desse processo. As noções de gênero se remetem à identidade feminina constituída no âmbito da família, como no Brasil, mas de forma a tornar a mulher o ponto forte da relação complementar exercida entre marido, esposa e filhos. Essa identidade também remete a novas expressões de sexualidade que não a dominante: alguns homens aparecem, a partir da pesquisa de campo, como homossexuais.

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Enquanto esperávamos que o mesmo se desse com as mulheres, tal não foi visto. Não foi possível perceber, em campo, se a sexualidade da bruxa brasileira se alinha, de fato, com o padrão da “puta”, como a análise da obra de Frazão sugere. O que percebemos é que a wicca se torna um lugar privilegiado para os homossexuais masculinos, pois sua hierarquia de gêneros valoriza o que é feminino, pólo onde o homossexual se insere. O feminino é visto em relação com o masculino em termos hierárquicos, embora as bruxas pretendam alcançar a igualdade de gêneros. Nesta hierarquia, os atributos do feminino são mais valorizados. Formulam-se, assim, duas lógicas atuantes: embora as bruxas queiram alcançar a igualdade expressa em termos de individualismo e afirmem que homens e mulheres são iguais, elas formulam padrões valorativos hierárquicos de complementaridade para feminino e masculino.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após dois anos de pesquisa o presente estudo finalmente toma forma no papel. Foram horas de fitas gravadas, de conversas com bruxas de várias cidades do país, de convivência com jovens, homens e mulheres que vêem na sua religião a expressão de um sentimento interior essencial e um novo modo de vida. A bruxa deixa para trás velhos padrões, procede a uma ruptura com a religião familiar, constrói uma nova família na bruxaria e busca sua felicidade: no encontro da crença que buscava, na procura por um lugar no mercado de trabalho, na nova identidade que assume. Na análise do trabalho de campo, maior parte deste estudo, tentamos esclarecer o leitor quanto à dinâmica da relação entre as bruxas, o seu perfil, a apropriação da wicca pelo sujeito brasileiro, as trocas que provieram disto, a nova categoria formulada para a bruxa, a nova realidade da mulher bruxa e da mulher de hoje, os contornos tradicionais e modernos desse grupo. A wicca foi retratada in loco, como ainda não havia sido, por um olhar acadêmico, antropológico. Mais um dos ramos que formam a Nova Era teve seu retrato pintado. E a crença na magia que permeia a sociedade brasileira se mostrou tão forte quanto antes do advento da Nova Era e seu reencantamento do mundo. Identidade bruxa Começamos este trabalho com uma pergunta em mente: estaria a bruxaria wicca servindo de local de construção de uma nova identidade feminina? Ao longo da pesquisa, percebemos que não apenas a bruxa moderna constitui uma identidade feminina como ela é uma identidade que vai além do plano de gênero, direcionando a vida da bruxa em outras direções como a inserção profissional no mercado de trabalho. Não deixa, contudo, de se apresentar como espaço para uma determinada identidade feminina. Nesse sentido, a bruxa aparece como uma mulher forte, independente, ligada à natureza, sábia, portadora de um conhecimento específico – muitas vezes visto como feminino -, mulher livre, de sexualidade livre, marginal, revolucionária. Para chegarmos a esta conclusão, partimos da análise da posição social da mulher na sociedade de dominação masculina, da análise do discurso das bruxas e do trabalho de campo

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realizado. Num primeiro momento, a análise do discurso presente na literatura produzida pelas bruxas indicava a wicca como parte de um universo feminino: não apenas ciclos biológicos do corpo da mulher, mas a esfera doméstica, a esfera da cura, dos amores, da natureza. Nos perguntamos, então, que universo seria esse, em que idéias de feminino ele se assentava. Procurando na filosofia, na antropologia, na sociologia e na História, chegamos à conclusão de que o universo feminino retratado na wicca fazia recurso a formas tradicionais, pré-modernas de ver a mulher. A mulher bruxa, intimamente ligada à magia e à natureza, por isso mulher perigosa e temida, vista também como de sexualidade livre, fora da ordem social, fora do escopo de dominação dos homens era a mulher apresentada pelos manuais de bruxaria. Ou pelo menos, é o ideal de feminino que a bruxaria wicca apresenta. A bruxa apresentada segundo a wicca é uma mulher forte, sexualmente livre, revolucionária, em comunhão com a natureza, sábia e por isso marginal. É mulher forte porque o espaço da mulher não é o de submissão ao homem, pólo forte de uma relação complementar que direciona as relações de gênero no patriarcado. É sexualmente livre porque a sua liberdade sexual é uma maneira de fugir à dominação masculina, de romper com esta ordem. É revolucionária porque suas posturas são uma crítica à ordem vigente, tanto nas questões concernentes ao gênero quanto na atitude frente à natureza e à ordem social mais ampla. A bruxa é mulher em comunhão com a natureza, vista como sagrada e feminina. Alinhada duplamente com o que a ordem masculina considera caótico e impuro, a bruxa reafirma sua crítica ao mundo moderno. A natureza vista pela modernidade como o caos irracional que deve ser dominado pela razão civilizadora é um movimento que define, na verdade, a dominação da mulher pelo homem. O que as bruxas fazem, então, em sua crítica, é formular a supervalorização da natureza, que deve agora direcionar os passos e movimentos do homem, pois adquire um caráter sagrado. A natureza sagrada, divinizada, está acima da civilização. Simbolicamente, isto indica que o feminino está acima do masculino, as formas femininas de existência estão numa hierarquia acima das formas masculinas. Daí decorre o movimento de desvalorização do que é considerado masculino: a razão, a civilização, a ciência, o mundo moderno. Observamos esta crítica da seguinte forma: a wicca toma as atribuições para feminino e masculino do próprio modelo patriarcal, invertendo sua valoração e formulando, assim, uma crítica e uma solução ao modelo vigente. Não há uma ruptura total nem tampouco uma construção de um modelo totalmente novo. O que há é a reapropriação do modelo vigente de

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modo a garantir ao feminino uma supervalorização. Espécie de ação afirmativa, a wicca não propõe modelos novos. Ela toma o modelo corrente e re-atribui valores segundo suas prioridades, ao mesmo tempo em que afirma que suas fontes são tradicionais. Entendemos, portanto, que uma das prioridades da wicca é estabelecer novos valores a velhas atribuições de gênero. É neste movimento que a mulher e o feminino se apresentam como centrais à compreensão desta forma de bruxaria moderna, e foi a partir deste raciocínio que levantamos a hipótese de que este seria um locus privilegiado para a construção de uma nova identidade feminina, que até então não sabíamos qual seria, e que se definiu ao longo da pesquisa. Não estamos discutindo qual a ordem dos fatores: não estamos discutindo se a preocupação da wicca é uma determinada mudança social, se é uma determinada crítica à modernidade, se é a mudança dos valores para o gênero, se é uma luta feminista ou ambientalista que tenham levado à construção de novos valores para feminino e masculino. Estamos afirmando que, da maneira como ela é vista em livros que foram escritos pelas próprias bruxas, e por isso definem bem o seu discurso próprio, a wicca demonstra que a questão de gênero é central para a compreensão desse discurso. Toda a crítica social formulada, a crítica à modernidade, à maneira como ela tem lidado com a natureza, à maneira como o masculino tem se relacionado com o feminino, à maneira como a ciência vê a magia, o desencantamento do mundo, isto tudo tem um cerne, que é a visão de gênero que a wicca guarda. Tomando as atribuições de gênero e sua valoração como pólos de uma oposição por vezes complementar, a wicca formula uma teoria explicativa do mundo moderno que é, ao mesmo tempo, uma crítica a ele. O cerne dessa crítica é a desvalorização do que é considerado feminino: a magia, a arte, o sonho, a intuição, a natureza, a calma, a ludicidade, a beleza. Tomando tudo isto como feminino, a wicca afirma que este é o caminho ideal para a humanidade, este o caminho de ruptura com a ordem vigente que é vista negativamente. A centralidade das concepções de gênero permeia todo o sistema wiccano, da organização hierárquica da prática ritual à mitologia. A mulher é sempre apresentada como mais próxima à magia e à natureza já sacralizada. Próxima à fonte do sagrado, ela se torna o próprio sagrado. Assim, no par divino a preponderância é feminina. O processo da magia é visto como um processo feminino (o processo masculino de transformação do mundo seria a ciência). Considerando este caminho um caminho feminino, a wicca supervaloriza este pólo. O que decorre é a constante preocupação com o equilíbrio. Embora apresentados como opostos, estes

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pólos são complementares. Desta forma, a idéia é de que um pólo recorra ao outro para que haja um estado de equilíbrio. Por outro lado, há uma aparente contradição. Se o feminino é supervalorizado, o masculino parece desprezado. A solução para o equilíbrio é a formulação de um novo masculino. É neste momento que percebemos duas lógicas, dois códigos em ação: o masculino criticado é aquele da força bruta, da dominação, do caos destrutivo; o masculino a ser criado é o da força interior, da força construtiva, do caos que possibilita a mudança para melhor, da destruição do velho. No primeiro caso, ele é civilização; no segundo, é natureza (positivamente vista). No primeiro caso, ele se assemelha às concepções que o patriarcado forjou para a natureza; no segundo, ele se aproxima das concepções de natureza da wicca. Este masculino recriado pela wicca não tem ainda um lugar claro em seu sistema. Foi possível observar no campo que há uma confusão a este respeito: algumas bruxas falam em um masculino mais feminino, no sentido de ser menos destrutivo, especialmente no que tange a mulher e a natureza; outras falam em masculino nos termos patriarcais, com as mesmas atribuições. Concluimos que se o feminino ganhou centralidade entre as bruxas wiccanas, o masculino ainda não alcançou um lugar definido. A questão da homossexualidade entre as bruxas deixa isto claro. As homossexuais femininas ocupam as mesmas posições de feminino que suas colegas heterossexuais, sem distinção. Apenas pelo fato de serem mulheres, as lésbicas estão enquadradas no pólo feminino. Os homossexuais masculinos, por outro lado, ocupam um lugar ambíguo. Alinhados no pólo feminino, eles não se identificam com nenhum dos dois modelos de masculinidade em questão, mas com o modelo de feminino, pois este é um modelo novo que permite à mulher a independência e a liberdade sexuais que antes só os homens gozavam. Essa mulher forte que a bruxa representa é um modelo para homossexuais de ambos os sexos, e para as mulheres bruxas de um modo geral. Não há, contudo, um modelo claro para o bruxo heterossexual. O que decorre disto é o número acentuado de mulheres na wicca, e a constatação das próprias bruxas de que a maioria dos homens praticantes de bruxaria é homossexual. De fato, se o modelo de força e virilidade do Deus fosse seguido pelos praticantes, não seria possível pensarmos em Altos Sacerdotes homossexuais, mas eles existem. Isto porque não estão alinhados com o papel do masculino, e sim com o feminino. Ao mesmo tempo, devemos entender que, neste ponto, a wicca entra no choque que consideramos o mais agudo com a sociedade mais ampla. Homens cujo ideal de masculinidade não aceita o ideal feminino expresso na identidade de bruxa não conseguem praticar wicca. Por isso a quantidade de homens é limitada, e se reduz

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aos homossexuais e aos homens jovens, em média com menos de 30 anos. Os mais jovens estão já inseridos em um contexto onde o ideal de masculinidade consegue conviver com a idéia que a bruxa traz de ser uma mulher independente, forte, sexualmente livre e mais valorizada do que ele. Essa identidade feminina da bruxa também sofre de uma lógica ou código duplo. Como feminino e masculino são complementares, se ele apresenta dois códigos, ela também. Em um sentido, quando formula a crítica à modernidade, o feminino é visto como passividade, intuição, magia, natureza, beleza, arte, emoção entre outros. Quando construída a identidade da bruxa, no entanto, ela não é mais uma mulher passiva. Ela é ativa e forte, ela é independente e livre. O recurso ao tradicional, nesse sentido, é a um feminino marginal, um feminino que quebra a ordem estabelecida. Pois o tradicional a que as bruxas recorrem não é apenas o que gerou as concepções modernas, é o tradicional quase mítico do matriarcado, da pré-história que deixou poucos vestígios, de um tempo em que o feminino era dominante, mas com os mesmos atributos que o feminino tem hoje. A identidade da bruxa wiccana está mais próxima da identidade da mulher moderna do que da mulher do mundo tradicional ocidental, à exceção, efetivamente, da bruxa no seu sentido folclórico de mulher sozinha, alcoviteira, diabólica. E mesmo assim, a bruxa moderna não aceita a acusação de malefício, nem é ela uma mulher sem laços sociais, escondida nos limites entre a cidade e a natureza. A bruxa moderna é mulher urbana, profissional que trabalha fora de casa, mãe, esposa, amante. O que temos, então, é uma identidade que recorre àquilo que foi considerado marginal para o feminino tradicional, mas que parece estar se tornando um novo modelo para a mulher contemporânea. No meio do caminho entre as concepções tradicionais de masculino e feminino, a bruxa é independente, livre e ativa, mas o feminino ainda é considerado como passividade. No âmbito da magia, ela é o meio do caminho entre a passividade completa do xamã e a dominação absoluta do mago. O que as bruxas entrevistadas formulam para a posição mágica da bruxa num quadro mais amplo dos operadores de magia serve também para compreendermos a posição da bruxa na estrutura complementar de masculino e feminino, complementaridade que em si remonta também a concepções pré-modernas. O feminino passivo é contraposto ao masculino ativo. A mulher forte é acompanhada de homens fracos, cuja noção de virilidade não agride a complementaridade da relação: homens jovens e homossexuais. Desta forma, o masculino que lida com esse novo padrão de feminino vai se tornando também complementar.

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Para além da identidade feminina A identidade de bruxa, se direcionada pela centralidade do feminino na própria wicca, não se restringe a uma identidade feminina nem à categoria da operadora de magia. Ser bruxa não é apenas ser uma mulher livre das amarras da dominação masculina, não é apenas ser uma sacerdotisa, ser uma operadora de magia. Ser bruxa é uma profissão tanto quanto o ápice de um perfil definido também em termos de classe e status social. Os perfis apresentados para as bruxas mostram um direcionamento a formas religiosas de Nova Era, um movimento no qual há um afastamento da cultura popular em direção a formas importadas de religiosidade. No caso das bruxas estudadas, a Europa é a principal fonte, embora outras culturas possam ser também acessadas. Como profissão, a bruxaria está inserida no mercado esotérico, dentro do âmbito da Nova Era. Faz parte da profissão da bruxa prestar consulta com qualquer oráculo ou método advinhatório de sua preferência (baralho cigano, tarot, runas, astrologia, entre outros). Além disso, ela pode se dedicar a outros tipos de serviço, como a mudança das energias de uma casa, através da radiestesia, a consulta do mapa astral e outros serviços astrológicos, ou terapias como Florais de Bach e psicoterapia junguiana. Pode, ainda, dar aulas e cursos: curso de oráculos, astrologia, numerologia, dança do ventre, mitologia, bruxaria wicca, entre outros. Como profissional desse mercado, a bruxa também organiza feiras e eventos ou atua como proprietária de espaços destinados à venda de produtos esotéricos. O recurso à bruxaria como profissão demonstra duas questões: 1) o mercado esotérico é um mercado que movimenta quantias consideráveis de dinheiro, pois tem servido de fonte de renda única ou principal para seis dos oito entrevistados; 2) com curso superior completo ou não, não era inevitável o ingresso dessas pessoas neste mercado, portanto, este ingresso é fruto de uma escolha pessoal que alinha um determinado conhecimento especializado, a necessidade de fazer parte do mercado de trabalho, e a opção religiosa da wicca, já aqui vista como identidade de bruxa. Não nos atemos, durante a pesquisa, ao mercado da bruxaria, à bruxaria como profissão ou ao mercado esotérico. Foi com surpresa que percebemos que a identidade de bruxa podia englobar uma profissão. Há, sem dúvida, muitos indivíduos atuando neste mercado que não são wiccanos. É possível, inclusive, que a bruxaria vista como profissão passe a ser um chamariz a novos adeptos, pois há retorno financeiro para quem investe nesta área. Atualmente, o que

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pudemos averiguar é que a profissão de bruxa não é de todo bem vista por todas elas. Mesmo aquelas que fazem parte do mercado esotérico fazem questão de afirmar que não cobram para ensinarem a religião a alguém interessado. Esta é a linha divisória para o ethos formulado entre as bruxas. Como religião, a wicca não pode ser fonte de renda, malgrado haja inúmeras bruxas ministrando cursos de bruxaria. Nenhuma, porém, afirma fazer feitiços para terceiros em termos de consulta, especialmente em troca de dinheiro. O que não tange a religião, como a leitura de oráculos, os diversos serviços prestados e o comércio não são mal visto, pelo contrário, às vezes são até almejados como fonte de renda para quem está fora do mercado. Para entendermos como as bruxas se tornam bruxas, não do ponto de vista subjetivo mas do percurso e aprendizado, tentamos proceder à elaboração de perfis religiosos que nos permitissem vislumbrar o caminho da busca que as entrevistadas afirmavam ter concluído. Os perfis que analisamos demonstraram que a wicca é alcançada após um caminho que começa com o afastamento da religião familiar e o ingresso em diversas religiosidades até que se alcance o âmbito de influência da Nova Era. Nesta busca, o espiritismo e a umbanda são freqüentemente pontos de passagem até se chegar à Nova Era. O candomblé e as religiões pentecostais são raramente citados. Os pentecostais, sob a forma das categorias evangélico ou crente, foram transformados em inimigos. A idéia de que os evangélicos são inimigos expressa, na verdade, a ruptura que a bruxa wiccana procura estabelecer com o cristianismo. A wicca é uma religião pagã e há uma preocupação constante das bruxas em manter clara a linha divisória entre paganismo e cristianismo. O paganismo é visto como uma religiosidade anterior ao cristianismo, que teria retirado daquele muito de suas crenças atuais. Nesse sentido, o catolicismo é visto como bem próximo ao paganismo europeu e do Oriente próximo, pois teria engendrado um processo de estabelecimento e institucionalização que absorveu práticas e crenças pagãs. Outras formas de cristianismo, como o pentecostalismo, não são vistas de maneira tão benevolente. Uma indicação do porquê disto nos encaminha para os perfis das bruxas: apenas uma bruxa entrevistada e duas bruxas internautas afirmavam ter alguma passagem pelo pentecostalismo, seja individualmente ou no âmbito familiar, para um total respectivamente de 8 entrevistas e 77 questionários. No campo, embora tenhamos tido contato com inúmeras bruxas, o número se mantém: até onde foi possível averiguar, apenas duas demonstraram ter evangélicos na família. Não participando desta

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religiosidade nem mantendo contato com ela, se torna mais acessível às bruxas uma crítica aos evangélicos, suas crenças e atitudes, do que a católicos. Boa parte das bruxas provém de famílias católicas. O rompimento, portanto, é mais fácil com o cristianismo como se apresenta no pentecostalismo. Quanto ao candomblé, alguns indícios nos faziam questionar o porquê desse afastamento. Em princípio, a estrutura organizacional de gênero no candomblé parecia muito próxima à wicca. Após a análise do material de campo, chegamos à conclusão de que esse afastamento é causado mais por uma definição da própria busca do que por uma recusa expressa, como é o caso do cristianismo. O panteão africano do candomblé poderia ser utilizado na wicca, mas dificilmente isto ocorre. É mais comum observar-se os wiccanos adotando panteões africanos através de tradições afro-americanas ou afro-caribenhas, como o vodu ou a santería. Isto nos indica uma determinada estratégia de afastamento daquilo que é eminentemente brasileiro em direção ao que vem de fora do país, seja de que lugar do globo for. Observamos, então, que de várias formas diferentes as bruxas wiccanas traçam estratégias de afastamento da cultura popular e folclórica brasileira, daquilo que é nativo, que é mais brasileiro, em direção a formas estrangeiras. No caso da cultura africana, o candomblé é trocado pelo vodu. No caso da cultura indígena, a tradição das populações brasileiras perde espaço para o xamanismo sob a forma nativa norte-americana. No caso do folclore nacional, a bruxa do malefício ou a benzedeira que cura esse malefício aparecem sob a forma da bruxa européia, a curandeira, a bruxa perseguida pela Inquisição. Qualquer que seja o referencial, ele é sempre estrangeiro. Compreendemos que o consumo de cultura estrangeira, venha ela de onde vier, está inserida tanto numa dinâmica de globalização do planeta quanto na própria dinâmica da Nova Era. Não nos ativemos a este ponto pois não havia tempo nem espaço, e nem era esse nosso interesse principal. Poderíamos ter nos perguntado a lógica de consumo de cada elemento em questão, por que uns são mais procurados do que outros, mas deixamos isso para futuros pesquisadores. Há, apesar de tudo, um claro direcionamento às formas tradicionais pagãs européias, sobretudo ao folclore inglês de origem celta. Acreditamos que haja uma dinâmica própria que possibilita esse interesse, mas não nos detivemos sobre esse ponto. O que nos chamou mais a atenção em todo esse movimento foi o progressivo afastamento das formas mágicas nacionais em detrimento de formas estrangeiras. Por um lado, pensamos que

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essa é uma forma de atualização da crença na magia para sujeitos de classe média com alto grau de escolarização e habitantes de grandes centros urbanos com amplo acesso à informação. Este perfil é o mesmo para bruxas wiccanas e new agers, e neste sentido seu movimento também se alinha. Por outro lado, este fenômeno parece indicar um determinado caminho de afastamento da cultura popular e absorção de uma cultura mais global, ou globalizada, difundida igualmente por todo o mundo moderno, e que transforma seu sujeito não em cidadão local mas em cidadão do mundo. Está claro que, apesar deste esforço, a bruxa brasileira é um sujeito de uma determinada conjuntura histórica e social. Neste âmbito, a ruptura com as formas mágicas nacionais não pode ser completa. A crença na magia que atua na sociedade brasileira é, em primeiro lugar, aquilo que possibilita a sua atualização pela Nova Era para a classe média urbana. Em segundo lugar, essa crença forjada com base no espiritismo e nas religiões afro-brasileiras não consegue passar desapercebida no discurso das bruxas estudadas. A influência de concepções mágicas como a mediunidade, o dom, o psiquismo e a paranormalidade entre as bruxas provém dessa influência na sociedade brasileira. Aqui, é mais bruxa a pessoa que vê e comanda espíritos do que aquela que cura com rezas e ervas, pois a mediunidade e a possessão, amparadas em tradições africanas, têm dado o sentido da crença nacional na magia. Para as bruxas brasileiras que praticam a wicca, o mesmo tem se dado. O dom e a mediunidade têm sido usados como recursos legitimadores da condição de bruxa, enquanto dons como a cura com reza e ervas nunca são acessados como legitimadores. Uma bruxa é definida ainda mais em termos de dom no país do que em termos de conhecimento. Não é qualquer dom: é o dom de fazer feitiços, de mudar a realidade, de algum nível de paranormalidade e mediunidade. Deste modo, a figura já folclórica da benzedeira perde o contexto de bruxaria e se torna uma crendice popular, uma crendice de católicos das classes mais baixas, e normalmente da zona rural. Esta bruxa rural, que se parece mais com a bruxa européia a quem os wiccanos se remetem do que eles próprios, toma outra forma sob os olhos das bruxas modernas. A benzedeira é cristã, e como cristã não pode ser bruxa. Se detalhes como esse agora fazem a diferença, alguns traços tradicionais se mantêm. A bruxa é agora definida no paganismo e na mediunidade e poderes correlatos. Mas continua sendo, prioritariamente mulher. O dom passa a ser também definido em termos do corpo da mulher: reside no útero. Desta forma, é impossível que lhe seja alienado. É um dom feminino, um poder que não lhe pode ser tirado, ao contrário dos direitos e deveres que a ordem social dita.

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Fazendo parte de uma cultura feminina, como algumas bruxas querem fazer crer, esse dom se mescla à idéia de ancestralidade. Não é um dom passado dentro da família, mas um conhecimento passado dentro da família, e é nesse sentido que a existência de outras bruxas entre os parentes serve como legitimação da nova identidade. Ser bruxa significa estar dentro de uma tradição de dom e conhecimento, uma cultura que é passada. Embora apenas uma bruxa, a escritora Márcia Frazão, afirme com todas as letras que aprendeu bruxaria em família, a descrição que fornece para a bruxa permite que muitas vejam em suas famílias mulheres bruxas, apesar de cristãs, apesar de benzedeiras, ou nenhuma dessas coisas. A bruxa da família tem uma definição mais fluida do que a bruxa moderna inserida no padrão da wicca. Pode ser um parente médium, um ancestral cigano, uma curandeira, parteira, rezadeira, uma mulher cujas “simpatias” surtiam efeito. Mais do que a própria definição mágica do dom da bruxa, o recurso à família demonstra que ela não é o ser sem laços de solidariedade que se convencionou descreve-la. Se a bruxaria é um conhecimento que pode ser aprendido em família, se algumas bruxas usam isto como forma de legitimação de sua identidade, então sua situação de marginalidade não advém daí. E a família é uma experiência tão forte para as bruxas wiccanas, que possuem duas: a primeira, a família extensa; a segunda, o coven. Formam, deste modo, dois laços que perpassam a sociedade: um em termos de grupo social familiar, e outro em termos de grupo social religioso. No grupo religioso, a Alta Sacerdotisa é vista como uma mãe, as divindades são pai e mãe, o coven é uma família que se relaciona em amor e confiança. A esfera da família é uma esfera feminina, do trato doméstico, dos filhos, do cônjuge, do parentesco, do cuidado com o outro. Posto desta forma, o coven passa a ser uma outra unidade doméstica, onde a mulher também domina, pois quem lidera o coven costuma ser a Alta Sacerdotisa. Mantém-se desta forma, e não apenas pela liderança feminina, o âmbito doméstico da bruxaria, universo feminino onde ela se desenvolve, esfera privada. Entre o tradicional e o moderno Retomando a discussão anterior, o que observamos foi uma reapropriação de modelos tradicionais para um contexto contemporâneo, onde esses modelos sofrem uma mudança. No caso das concepções de gênero, a mudança é valorativa. As atribuições permanecem as mesmas,

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o sentido hierárquico e de complementaridade também, mas a valoração positiva recai sobre o feminino enquanto a negativa recai sobre o masculino. Para os modelos reais de identidade feminina e masculina, temos um processo semelhante. Seguindo o padrão da sociedade mais ampla, a wicca não conseguiu formular um padrão definitivo de masculino que rompa com o tradicional, embora tenha acessado um determinado feminino marginal como modelo para o feminino atual. Esse modelo masculino parece estar ainda em construção, ou ainda em aberto, enquanto o modelo feminino indica um perfil mais próximo ao da mulher contemporânea do que ao feminino dominante no período pré-moderno. A categoria bruxa é também uma reapropriação de uma identidade tradicional, agora envolvida com um sentido atualizado. A bruxa não é um agente do malefício. Ela agora foi atualizada como uma mulher sábia, com conhecimentos ocultos – que no contexto da Nova Era são bastante valorizados -, capaz de dirigir sua própria vida e até mesmo a dos outros. Ela é sujeito da sua própria existência de uma forma que apenas contemporaneamente a mulher tem conseguido ser: não apenas em termos de direitos e oportunidades, mas num sentido mais amplo da escolha pessoal. A prática da magia, o feitiço, pode nesse sentido ser vista como um emblema dessa posição adquirida: no feitiço a bruxa molda a situação segundo o seu desejo, ela modifica o destino. A mulher tem modificado seu destino traçado no jugo da dominação masculina, e nessa mudança ela vem ganhando espaço e uma subjetividade que até então não lhe estava disponível. A bruxa aparece, assim, atualizada: é a mulher que faz feitiços, que molda o destino, agora não contra forças naturais em ritos de fertilidade mas contra forças sociais e em seu benefício. A condição marginal da bruxa é, na verdade, temporária: o que ela expressa é a lenta transformação de uma ordem que excluía a mulher como sujeito. Se a bruxaria não parece ainda direcionada para uma sociedade igualitária, segundo os moldes modernos, é porque ela faz recurso ao tradicional como uma forma de crítica a este igualitarismo que apenas recentemente tem se proposto a incluir a mulher como sujeito. No tradicional, a inversão da valoração é uma crítica e uma solução ao igualitarismo que só se propôs a incluir a parcela masculina da população, e mesmo assim não de uma só vez, excluindo a mulher pelo único argumento de que era mulher. Se na ordem igualitária ela não era uma igual, formulou uma ordem própria onde mais que igual ela ocupa papel central e até mesmo superior. A magia surge, assim, das páginas da tradição como uma forma de crítica ao mundo que foi constituído sem a inclusão do que a wicca considera feminino e sagrado. O feitiço, argumento

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de quem não tem força nem voz, se transforma num meio delicado e sutil de trazer a mudança. Sutil porque age em silêncio e delicado porque não visa o mal. É assim que a bruxa tem se proposto a mudar o mundo: começando por si mesma. Ao invés das grandes lutas políticas, a mudança interior, no trato com as pessoas do dia-a-dia e consigo mesma. Não apenas a luta político-econômica, da qual algumas bruxas fizeram e fazem parte, mas a luta pelo cotidiano essencial do ser humano: a relação entre gênero e a relação com a natureza emergem como formas capazes de mudar a sociedade atual. Na verdade, observamos essa transformação a que as bruxas se remetem como um movimento duplo: seu ponto de vista não seria possível se a sociedade contemporânea não abrisse espaço a isto; este espaço é aproveitado como local de crítica dessa mesma sociedade, reformulada através daquilo que ela nunca considerou central. As bruxas wiccanas conseguiram forjar um ponto de vista que é único, embora se assemelhe em muitos pontos ao pensamento mais vastamente composto na Nova Era. Esta forma de religiosidade, neste sentido, foi por nós acessada porque explica a conjuntura que vem possibilitando a expansão da wicca e a conversão à bruxaria de determinados sujeitos. A Nova Era trouxe a abertura necessária para a expansão – e criação, poderíamos dizer - da wicca. Ela define uma conjuntura dada em que o pensamento das bruxas, conforme foi exposto no presente trabalho, pode se desenvolver. Este pensamento não é um retorno a formas tradicionais, mas uma busca, nestas formas, de um mecanismo de reencaixe, ao mesmo tempo em que formula uma crítica ao mundo moderno com aquilo que foi por ele alienado. Se a natureza e a mulher foram dominadas, alijadas da civilização, associadas ao perigo, então são elas retomadas como o locus privilegiado de onde parte a crítica. Se a modernidade erigiu o trabalho e a esfera econômica como centrais, não é deste âmbito que surge a crítica, mas daquilo que ficou de fora, daquilo que se tornou marginal. Últimas considerações Apesar deste trabalho ter-se proposto, em princípio, a tratar de uma determinada identidade feminina, identidade aparentemente tradicional, ele foi se ramificando de tal forma que nos vimos em meio às questões mais importantes de nosso tempo: a emergência do sujeito moderno, a preponderância do pensamento racional científico, o status social da mulher, as trocas culturais na sociedade brasileira. Embora fossem temas de relevância, diretamente relacionados

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com esta pesquisa, não era possível esgotá-los. Tentamos, na medida do possível, nos atermos à descrição do grupo praticante da wicca, de modo a servir de pano de fundo e contextualização para nossa primeira questão, que concernia à identidade da bruxa, da mulher que pratica a bruxaria moderna hoje no Brasil como religião. A wicca é uma religiosidade nova no país, e não havia bibliografia que dela tratasse de forma acadêmica. Tivemos que desbravar o campo, formulando um retrato que serve, igualmente, a todo pesquisador da Nova Era e àqueles debruçados sobre a religiosidade e a magia no país. Ficaram, é certo, pontos interessantes pelo caminho, sobre os quais os pesquisadores futuros poderão se debruçar. O Brasil é um país rico em formas religiosas, e o advento da Nova Era só tem acrescentado mais um grupo para o estudo antropológico da realidade nacional. Acreditamos que, além de montar o panorama da realidade de um determinado grupo, contribuímos para o mapeamento das correntes formadoras da Nova Era e do perfil de seus consumidores. O presente estudo pode auxiliar a compreensão da forma como a crença na magia tem se propagado pela sociedade brasileira a partir da Nova Era. A atualização da categoria bruxa e a ligação composta entre feminino, magia e natureza podem ter um desenrolar futuro imprevisível. Não há como saber de que modo o embate entre tradicional e moderno, presente na Nova Era, acabará. Resta saber se as bruxas conseguirão promover a mudança que propõem. Para a cultura religiosa nacional de cunho popular, em parte desvalorizada pelo new ager, resta saber de que forma sobreviverá ao acirramento da modernidade.

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APÊNDICE 1 RESENHA DA OBRA DE MÁRCIA FRAZÃO Realizaremos, a seguir, descrições sucintas das obras de Frazão. A idéia é expor de forma mais clara o cerne do pensamento da autora e o conteúdo de seus livros. A discrepância quanto ao tamanho dedicado a cada obra segue a própria dimensão das obras publicadas: aquelas com conteúdo mais vasto requereram um espaço maior de apresentação. A Cozinha da Bruxa, ed. Bertrand Brasil, 1996 (9a. edição) A princípio, este seria um livro de receitas culinárias. Nas mãos de uma bruxa, no entanto, as receitas se transformaram em feitiços, e sua preparação em um ritual. A autora esclarece que cozinhar magicamente é um ritual que leva aos deuses. Os deuses, inclusive, dão nome a muitos dos pratos, como o pão de nozes de Diana, a sopa de Pã ou o arroz de Afrodite. Para Frazão, cozinhar ritualisticamente é o feitiço mais eficaz. Para ela, a cozinha é o espaço da transmutação da matéria, espaço onde habitam todas as forças da natureza, por isso espaço ideal à confecção de feitiços. A cozinha da bruxa deve ter utensílios próprios à preparação de feitiços. Não é possível usar panelas ou talheres de alumínio em sua preparação. É necessário usar-se panelas de ferro ou cerâmica, colheres de pau e recipientes de cerâmica ou de madeira. As ervas usadas para magia devem ser separadas daquelas usadas como tempero no dia-a-dia, mesmo que sejam as mesmas ervas, seguindo o princípio que torna o sagrado contagioso e, portanto, determinando que deve ser separado do que é de uso profano (DOUGLAS, 1976; DURKHEIM, 1968). Uma vez separadas em seu potes próprios, os rótulos devem ser trocados para impedir que qualquer pessoa faça uso das ervas da bruxa, resguardando assim seus “segredos”. Sugestivamente, a contracapa do livro traz a foto da cozinha da autora. Nela vemos dez molhos de ervas secas penduradas próximo às janelas, uma infinidade de potes com temperos e ervas, outra infinidade de utensílios de cerâmica e muitas colheres de pau. Para Frazão, a cozinha deve deixar de ser um lugar “humilhante” para se transformar num laboratório. A cozinha, para ela, “é a primeira porta da bruxaria”. A mulher que quer se tornar

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bruxa deve então deixar de ver a cozinha como o espaço de opressão do sexo feminino para vê-la, a partir de então, como o espaço de possibilidades mágicas. A cozinha perde, portanto, o ranço sexista, e se transforma em aliada da mulher. É, inclusive, um espaço que a mulher pode organizar segundo as suas necessidades de bruxa, espaço que ela torna inviolável pelo simples ato de trocar os rótulos dos potes de ervas. Ao mesmo tempo, a cozinha liga a bruxa à mulher diretamente, como duas categorias correlatas, uma vez que a autora escreve para mulheres, e uma vez que a cozinha ainda é um espaço feminino por excelência. As receitas são descritas no livro como feitiços. Ao nome do prato segue-se uma lista de ingredientes e o “modo de fazer o feitiço”. Antes de começar a cozinhar, deve-se tomar certos procedimentos. Toda preparação de receita é precedida pela preparação da cozinheira e da cozinha. Segundo a intenção do feitiço, essas preparações vão se alterando. De um modo geral, existem cores de roupa e perfumes específicos (óleo/essência) a serem usados pela cozinheira. Esta deve, também, tomar banhos de determinadas ervas, segundo o feitiço a ser feito, antes ou depois da preparação do prato. A cozinha deve ser ornamentada com flores, conchas, sementes, sal, velas, incenso, perfumes ou o que for requerido. Ervas são penduradas atrás das portas de entrada da casa. Antes da feitura do feitiço, a cozinheira deve fazer uma meditação e uma visualização, que consiste em imaginar cenas que a autora descreve. Estas cenas são, de um modo geral, carregadas de simbolismo, muitas vezes com a presença dos deuses requeridos ao feitiço. A visualização já faz parte do procedimento mágico. Após tê-la feito, a cozinheira já pode preparar o prato, segundo as instruções da autora. Existem receitas de risotos, biscoitos, doces, legumes, bolos, tortas, saladas, sopas, pães, massas e frutas. O servir a comida à mesa também faz parte do feitiço. São requeridas toalhas de determinadas cores, segundo a intenção do feitiço, enfeitadas com flores, pedras, corais, conchas, sal, pérolas, velas coloridas, incenso e perfumes. Os feitiços se destinam aos mais diversos objetivos, mas pudemos agrupá-los em quatro categorias pois, em alguns casos, existe mais de um feitiço para resolver o mesmo problema. No caso de feitiços de amor, existem receitas para casamento, sedução, desrepressão sexual, fertilidade e amor. Há também feitiços para o bem estar emocional, como as receitas para ter esperança, alegria, afastar o tédio, obter tranqüilidade, coragem, afastar o desânimo, contra depressão, tristeza, melancolia, pesadelos em crianças, sofrimentos, angústia, para obter maior criatividade, para conciliação. Receitas para bem estar emocional são as de maior número. Há ainda receitas para ganhos materiais, como as para se obter êxito, riqueza, sorte, realizar desejos,

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realizar projetos e contra problemas. Há uma quarta categoria de feitiços, aqueles que lidam com a parte espiritual, mais intrinsecamente ligados à bruxaria, como os para iniciação, limpeza astral, celebração da vida, despertar a sensibilidade, energizar. Cada ingrediente da receita está relacionado a um astro (sol, lua ou planeta). A combinação dos ingredientes é, na verdade, a combinação do poder de influência destes astros na vida do ser humano. Conforme o astro que prepondere na receita, é o seu âmbito de influência que estará sendo exercido naquele a quem o feitiço se destina (a própria cozinheira ou outra pessoa qualquer). Esta lógica segue os princípios da astrologia. A hora e o dia para se executar o feitiço também seguem a mesma lógica. Cada dia da semana está ligado à influência de um astro: segunda-feira é o dia da lua, terça-feira de Marte, quarta-feira de Mercúrio, quinta-feira de Júpiter, sexta-feira de Vênus, sábado de Saturno e domingo é o dia do sol. As horas de cada um desses dias são também relacionadas à influência de um desses astros, e constam em uma tabela. As plantas, bem como todos os ingredientes das receitas, seja produto animal, mineral ou vegetal, estão relacionadas a estes astros e são, portanto, portadores de seu escopo de influência. Há também, no livro, uma tabela para essas correlações. É interessante notar que a influência não vem propriamente dos astros. Os astros são vistos pela autora como deuses. Seus nomes ligados à mitologia romana são levados ao pé-daletra, e a influência passa não a ser exercida por um astro, mas por um deus. Compreendemos então que a autora está tratando de plantas ligadas a deuses, e descrevendo receitas para dias e horários relacionados a deuses. A influência de cada deus é a mesma do astro, se ainda pensarmos nos planetas. O feitiço passa a ser, portanto, uma maneira de se dirigir à divindade, requerendo o que se deseja: amor, sorte, riqueza, esperança. A visualização passa a fazer parte do feitiço, pois funciona quase como uma oração, em que aquele que visualiza imagina o contato com a divindade num universo simbólico que se relaciona igualmente ao objetivo do feitiço. Revelações de uma Bruxa, ed. Bertrand Brasil, 1994 (5a. edição) O livro trata da bruxaria wicca, revelando alguns de seus “segredos” e um pouco da história da própria autora. O livro se propõe a ser parte do caminho de iniciação de uma nova bruxa. Para isto, ele responde a questões sobre magia e esclarece o leitor quanto ao teor e história da bruxaria. Vários rituais nos são apresentados como importantes nesta busca pelo transformar-

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se em bruxa. Há uma descrição da Roda do Ano na wicca, bem como de cada sabá, dos instrumentos mágicos usados pelas bruxas e de suas divindades. Ao final, um guia de ervas e seus usos mágicos e medicinais e uma coleção de feitiços garantem algum repertório à bruxa iniciante. Em seu segundo livro sobre bruxaria, a autora se apresenta como uma bruxa vinda de uma família de bruxas. Ao longo do livro, ela vai nos apresentando estórias de sua vida e de sua família, principalmente sobre as bruxas de sua família. Conta-nos, logo de início, que após escrever seu primeiro livro percebeu que havia outras bruxas no país, e sentiu então que “não estava mais sozinha”. Decidiu sentar-se em sua cozinha e mais uma vez escrever sobre o “vivenciar feiticeiro”. A autora entende que a bruxaria é um verdadeiro modo de vida e a cozinha parece central neste modo de vida, como metáfora da transformação. Nesta obra, a cozinha se apresenta como área de repensar a vida, de escrever o livro, de fazer os trabalhos domésticos, de cozinhar, de perceber sua própria identidade e de entrar em contato com a natureza e a divindade. Como num livro de auto-ajuda, ela nos diz que devemos mudar nossa relação com a natureza, com o cotidiano, com os familiares e com nós mesmas, mas não diz como. O como é o caminho da bruxaria, a ser descoberto por cada um. O que dá são pistas de como encontrar este caminho, que se revelam em rituais, em feitiços, em um modo de vida mais saudável, em uma lista de alimentos a serem evitados, no conselho de seguir a homeopatia e a medicina natural, enfim, uma mudança de estilo de vida. Segundo conta, desde criança se surpreende com sua capacidade de realizar seus desejos. A força para realizá-los, nos diz, vem de seu centro. Este centro relaciona-se com o umbigo. Para alcançá-lo, ela fornece uma lista de rituais a serem feitos pela candidata a bruxa no intuito de “encontrar seu centro”. Este centro é o poder principal da bruxa, e parece residir no ventre/ umbigo, lugar de criação do corpo feminino. A divindade a que a autora sempre se reporta é a Grande Mãe e seu consorte, o Cornífero. A Grande Mãe se traduz na natureza, na terra e na lua. A lua simboliza tanto a mulher quanto a Deusa. Para Frazão, é possível medir a postura de uma sociedade frente à mulher pela sua postura frente à lua. A lua é o reino da intuição, da emoção, do psíquico, do inconsciente, ou seja, do feminino. Opõe-se ao sol, reino da razão masculina. Para a autora, a bruxa deve estar em equilíbrio com a Grande Mãe, ou seja, com a natureza. Ela introduz um conceito ecológico e uma postura ecológica frente ao mundo, de não aceitar ataques à natureza de nenhuma espécie e nem tampouco ao ser humano. Essa visão

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ecológica típica dos nossos tempos é transferida pela autora para qualquer tempo, seja para as bruxas da Inquisição, a quem o livro é dedicado, que teriam vivido em comunidade e perfeita harmonia com o masculino e com a natureza, seja para a população neolítica, de onde afirma provir a bruxaria, seja para “os ditos primitivos”, isto é, as sociedades tribais que vivem em contato direto com a natureza. Para ela, as bruxas podem ser vistas como “primitivas”. Os “primitivos”, como ela coloca - com as aspas -, possuem a “sabedoria da natureza” que é tão importante para as bruxas, e por isso são povos felizes. É, portanto, necessário entrar em equilíbrio com a natureza, tratando os seres animais, vegetais e minerais da mesma forma que os humanos, e estabelecendo com eles um elo. Para ela, é a partir daí que os medos e angústias causados pela nossa ordem social podem desaparecer. A autora elabora ainda uma explicação para a caça às bruxas. Foi a inversão de valores causada pelo patriarcado que transformou o feminino e seus atributos em algo inferior e ligado ao mal, gerando a crença de que as bruxas eram más. Notamos que a autora torna certos atributos inerentes à mulher e outros inerentes ao homem, propondo uma inversão de valores, onde o masculino hoje predominante deve ceder lugar ao feminino, promessa de uma ordem social mais harmoniosa e justa. É emblemático quando afirma que “a bruxa deve ter a voz doce”. A bruxaria não se confronta com qualquer outra religião, diz Frazão, mas é apresentada por ela como um sistema de crenças. Para a autora, a bruxaria é a Antiga Religião, isto é, a religião sobrevivente da sociedade matriarcal existida em tempos pré-históricos. A dificuldade do homem moderno em aceitar a figura de uma divindade feminina, segundo ela, provém do fato de terem sido impelidas ao masculino por esta sociedade, onde o “poder feminino” ficou de lado. Nesta sociedade – patriarcal -, a história da mulher foi esmagada. A bruxaria se propõe justamente a reconstruir esta história. Ao descrever o caminho da bruxaria, a autora não disfarça os inconvenientes que este caminho pode trazer. Tem consciência de que bruxa ainda é uma categoria de acusação que traz o estigma da marginalidade, que afasta as pessoas do praticante de bruxaria, agora visto como desequilibrado, excêntrico ou louco. Formam-se novas categorias de acusação e novas formas de se lidar com a bruxa. Apesar disso, a autora afirma que, para aqueles interessados em ocultismo, a bruxaria é moda, é a vanguarda. Formam-se, a partir daí, duas categorias distintas: por um lado o praticante de bruxaria é visto como um excêntrico marginalizado, mas dentro do mundo do ocultismo ele é alçado a um patamar alto, sendo visto como vanguarda, lançando moda.

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Completam o livro uma série de rituais onde as divindades femininas são evocadas. Trabalham-se os elementos fogo, água, terra e ar nos pontos cardeais que lhes correspondem. A lua também é trabalhada nestes rituais. Ervas, incensos e óleos de ervas são materiais requeridos para todos eles. A maioria constitui um exercício de visualização, onde o praticante deve imaginar a cena descrita pela autora. Os sabás, seus significados e datas são apresentados também, mas não a maneira como devem ser festejados. Segue-se um receituário de ervas e feitiços e a lista dos objetos mágicos necessários a uma bruxa, como são e onde obtê-los. Esses objetos são a vassoura, a varinha, o incensário, o caldeirão, o athame, a bola de cristal, a taça, o pentáculo e o sino. Manual Mágico do Amor, ed. Francisco Alves, 1995 (1a. edição) A autora vê no tema amoroso uma das grandes áreas de atuação das bruxas. Com seus filtros amorosos e poções encantadas, elas seduzem tanto quanto fazem seduzir, ajudando os apaixonados a obterem sucesso em suas conquistas amorosas. O amor se torna a porta de entrada no mundo mágico. A demanda por feitiços amorosos é superior a qualquer outra. Mas, se por um lado, há um utilitarismo nessa busca pela magia, por outro o amor pode ser o início de um processo de transformação interior. A partir das cartas recebidas em que leitores apaixonados falavam de seus sofrimentos, sentimentos de desvalor e culpa, Frazão resolveu escrever este livro, como uma forma de ajudar os enamorados. O amor do qual fala é um sentimento sem lógica, caótico, sem regras e que requer uma entrega profunda. Não é um sentimento que possa ser contido sob regras sociais ou pressões particulares, mas que deve ser vivido sem cobranças sociais, de compromissos e formas estáveis de relacionamento. Para ela, o amor prescinde de compromissos, e pode durar um único dia. O que faz sofrer é essa maneira, a seu ver errada, de tratar o amor, quando não há entrega, quando há cobranças que são sociais e não inerentes a esse sentimento. Algumas cartas exprimiam dúvidas sobre vivenciar ou não um caso amoroso, e falavam da pressão social sofrida e a pressão dos amigos, outras relatavam amores não correspondidos, subitamente interrompidos ou amores já comprometidos. Para ela, a posição destas pessoas está errada, pois faz com que o amor traga sofrimento quando este é um sentimento que não faz sofrer.

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O amor é a porção mágica do ser humano: ele consegue romper com a razão, levando-nos a cometer tolices. O amor leva ao sonho, faz com que esqueçamos todo o resto e só nos interessemos pelo ser amado. Ao mesmo tempo, o amor abre uma gama de possibilidades, e nos leva ao inesperado e ao incerto. O amor é, para a autora, um estado de simplicidade, um estado mágico. Ele só se torna confuso quando não o vivenciamos como deve ser. Neste caso, a magia vira pesadelo. Para viver o amor, diz, devemos abandonar práticas que não condizem com ele, ou seja, devemos viver o simples, dando maior valor ao mundo. A autora conta que quando começou a praticar a bruxaria ficou interessada “pela estranha forma que as bruxas têm de amar”. Para ela, as bruxas compreendem o amor melhor do que ninguém. São pessoas que não se culpam por amar, não se envergonham de seu prazer e não sufocam seus desejos. As bruxas desejam com intensidade e nunca sofrem por amor. O que faz com que a autora chegue a esta afirmação, à primeira vista repleta de romantismo nessa construção da figura da bruxa, é a sua insistência em que as bruxas são pessoas que vivem no mundo de maneira diferente do usual, com uma rede de interesses e valores distintos. Para ela, uma bruxa não sofre por amor porque sabe que o amor é um sentimento que não tem necessariamente que durar anos nem vir a dar em casamento. O amor se torna algo mais livre e fluido. Para ela, as bruxas não temem a falta de limites do amor e do prazer. Para as bruxas, “o amor tem sempre de ser absoluto”. Essa maneira distinta de encarar o amor, diz Frazão, foi determinante na perseguição às bruxas. Não só a maneira de viver o amor, mas a maneira das bruxas de estar no mundo. Segundo ela, o amor se tornou um “tumor da humanidade”, e as bruxas se tornaram alvo da ira dos que estavam contra o amor, isto é, contra o amor como ele é descrito por Frazão, como um sentimento caótico e sem regras. Os que estão “contra o amor” são aqueles que impõem regras de conduta a esse sentimento e confinam-no em instituições sociais. Para a autora, o amor deve ser livre. Sua função é causar a desordem. As bruxas se transformam então em ajudantes de Eros, pois unem os apaixonados com seus feitiços. O amor se torna a possibilidade do homem tornar-se divino. Os amantes são seres oníricos do mesmo modo que os feitiços são oníricos. Estão ambos atuando no lado onírico do indivíduo. Esses que não entendem o amor nem se permitem serem levados por ele são acusados pela autora de serem os repressores do prazer feminino. Foram os mesmos que, segundo ela, colocaram regras sociais no amor, trazendo com isso culpa e desespero. Todo pensamento que

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gere esse tipo de repressão está sendo atacado pela autora. Ela categoriza-os como “pensamento castrador de prazeres”, ou seja, um tipo de pensamento que transforma o prazer em mal e obscenidade. A autora conta que a bruxaria seduziu-a por não pensar desta maneira. Na bruxaria, diz, não há pensamento maniqueísta. A bruxaria é desprovida de regras que impeçam o prazer. Nela, luz e trevas não são opostos nem significam bem e mal, mas se complementam. O único dogma da bruxaria é: “Faça tudo que quiser, desde que não moleste ninguém”. Por essa maneira diferente de estar no mundo, a autora pensa que a bruxa constitui um tipo que incomoda aos “certinhos”. Segundo Frazão, a bruxa leva um caminho à margem, convivendo com o que se classificou como maldito: ela venera deuses que o patriarcado transformou em demônios, trata a nudez sem culpa ou vergonha, é uma mulher liberta e feliz. Para se reconhecer como bruxa, então, é preciso perder preconceitos, principalmente no amor. Interessante notar como a autora fala diretamente a uma leitora mulher. O tabu da nudez em nossa sociedade recai muito mais sobre a mulher do que sobre o homem. Da mesma forma, a autora toca no ponto da repressão ao prazer feminino. Não é todo prazer que é reprimido em nossa sociedade, mas o prazer da mulher. A liberdade sexual feminina é ainda tolhida, enquanto a do homem é fomentada. Do mesmo modo, é a mulher, mais que o homem, que sonha com o casamento, a formação de família e filhos. É sobre ela que recai uma maior cobrança social nesse sentido, ao mesmo tempo em que ela se cobra mais. O grande amor que acaba no altar, com vestido branco, véu e grinalda, tem sido ainda um sonho feminino e uma cobrança sobre a mulher. A autora tenta, então, incentivar as mulheres a romper com esse padrão de dominação masculina, incentivando-as a serem sexualmente livres, a não mais permitirem o julgamento depreciativo de sua nudez e de seu prazer, a não permitirem mais a pressão social sobre seus relacionamentos amorosos, a cobrança de um compromisso. É neste ponto que a autora insiste quando repete por todo o livro que o amor deve ser livre e que só traz sofrimento o amor que é vivido em função dessas pressões, ao invés de ser vivido em função do prazer. A autora, ao dialogar explicitamente com o público feminino, constrói também a figura da bruxa como feminina. Os atributos que julga inerentes à mulher são os atributos da bruxa. Ela incentiva as mulheres a trazerem de novo Afrodite, deusa grega do amor e da beleza, ao mundo para torná-lo mais gentil. Quando essa volta se der, diz, os homens não temerão mais as mulheres, pois terão em si a delicadeza desta deusa. Os homens respeitarão as mulheres e juntos eles construirão um mundo melhor.

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Com a explicitação de um projeto para um novo mundo onde o feminino ganha preponderância fica a indagação do lugar ocupado pelo masculino. Não é por acaso que a autora vê nas mulheres o agente do reingresso de Afrodite no mundo. Sua volta marca o retorno da gentileza e da delicadeza, atributos, a seu ver, inerentemente femininos. Se o mundo patriarcal retirou Afrodite de seu convívio, serão as mulheres, os agentes da queda desse mundo patriarcal, que devem trazê-la de volta. O papel do homem na bruxaria não fica claro, mas neste novo projeto de mundo os homens são agentes passivos da mudança, e só entram em cena na construção de uma nova ordem, mas já, então, estarão eles modificados, não serão os mesmos homens, pois saberão respeitar as mulheres e não terão mais o medo do feminino. Segundo Frazão, a bruxaria e o amor têm a mesma raiz lúdica, que é o que faz com que as poções de amor funcionem. Os feitiços são “a manifestação absoluta do sonho”, não privam ninguém de liberdade nem se confundem com a magia negra. Só funcionam realmente para quem está apaixonado, e não para aqueles preocupados com regras sociais. Na bruxaria nada é obrigação, e não existem regras de certo ou errado. Tudo é uma grande brincadeira, no sentido de que é um exercício de prazer e descobertas. O único compromisso da bruxa é com o “estado de prazer”. Para ilustrar tal afirmação, ela conta que seus feitiços funcionam melhor quando feitos “num clima de brincadeira” do que quando está muito séria. A arte é posta no mesmo patamar de ludicidade, o que leva a autora a considerar toda arte como um ato mágico, pois a arte encanta, enfeitiça, retira-nos de nosso estado “normal” levando-nos a vivenciar outros estados emocionais. Por todo o livro, a autora dá inúmeras receitas mágicas vinculadas ao tema do amor e algumas outras para proteção, riqueza e sorte. Há uma lista de divindades, seus significados e áreas de atuação, bem como rituais que devem ser feitos pela candidata a bruxa ou por aqueles que sentem alguma dificuldade em questões amorosas. Nestes rituais os elementos fogo, ar, terra e água são os focos principais. Ela ensina que o fogo é um elemento simbólico da sexualidade, de coragem, de iniciativa. O ar simboliza o equilíbrio, o movimento e a percepção. A terra simboliza a força, a persistência e o crescimento. A comum associação da mulher com a terra, segundo a autora, é fruto do pensamento patriarcal, que vê na terra a falta de impulso gerador, isto é, um elemento que deve ser fertilizado, cujo impulso gerador não é intrínseco mas vem de fora. Para ela, “a terra é o corpo da Grande Mãe”, a divindade adorada pelas bruxas. Pã também é uma divindade ligada à terra, e segundo a autora, foi um modelo importante do Deus Cornífero, a

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divindade das bruxas, durante a Idade Média, até ser transformado em diabo cristão. Como elemento simbólico desse par divino, a terra está imbuída da noção de fertilidade e prazer, e por isso não deve ser vista em posição de passividade. Para quebrar definitivamente com esta idéia, a autora relembra os cortejos de Pã, onde mulheres nuas e apaixonadas gritavam os nomes de seus amantes. Essa referência ao cortejo de Pã traz a idéia de mulheres livres, que se relacionam com seus corpos nus sem culpa e sem vergonha. Ao gritarem os nomes de seus amantes, elas indicam que são mulheres que desejam e conhecem a paixão e o amor. Ao mesmo tempo, há que se lembrar que Pã era um deus associado à sexualidade, ao silvestre e aos animais selvagens, àquilo que está fora do controle do homem. Poderíamos mesmo dizer que ele está associado à natureza em oposição à cultura - o animal domesticado, o sexo contido no casamento. Logo, as mulheres de seu cortejo são sujeitos que vivenciam o amor sob uma ótica livre de pressões sociais. Embora a terra seja associada à mulher, é o elemento água que a autora vincula mais fortemente ao feminino. Para Frazão, essa ligação é tão forte que o temor à água exprime também o temor à mulher e à mãe. Esse medo seria típico do patriarcado. As mulheres, segundo ela, são governadas pela lua e pelo coração. Sua ligação com o elemento água ocorre através de seus fluidos corporais e de sua intuição. Da mesma forma que interfere nas marés, a lua interfere na menstruação e no humor femininos, na intuição e na emoção, tornando as mulheres mais perceptivas às “questões do coração”. A mulher se torna, sob sua ótica, naturalmente vinculada à lua por questões biológicas inerentes aos processos do seu corpo. A intuição se torna também inerente ao feminino, visto que foi colocada junto à água e à lua. Também por esta mesma ligação a mulher se torna mais íntima dos processos emocionais, vinculada mais à emoção do que à razão, e isto é novamente inerente à sua condição de mulher. Em nenhum momento a autora cogita que este ponto de vista não seja de natureza biológica, mas social. O âmbito de influência do social é ignorado e todas essas virtudes femininas se tornam biológicas. O que Frazão faz é uma inversão valorativa dos atributos femininos: se no patriarcado eles inferiorizam a mulher, na bruxaria eles a tornam superior. A raiz da disputa, no entanto, é a mesma: as categorias em questão não sofrem discussão e permanecem as mesmas. É a valoração dessas categorias que muda. Há também neste livro a indicação de três diferentes oráculos: o significado dos arcanos maiores do tarot, a leitura nas manchas de café e a interpretação de sonhos. Os sonhos são um veículo de interpretação do futuro e do passado muito citado pela autora. Ela relata várias

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experiências oníricas ao longo do livro, afirmando que é seu oráculo predileto, pois trata-se do mais simples e mais claro de todos. Segundo ela, as bruxas têm o poder de se projetarem nos sonhos dos outros. Há ainda um guia de ervas com mais alguns feitiços para o repertório da bruxa iniciante. A última parte do livro é dedicada a uma espécie de horóscopo dos índios norteamericanos chamada de “A Roda da Cura”. Nele, os signos que conhecemos são trocados por animais típicos da fauna norte-americana, mas seus significados se assemelham aos dos signos do nosso horóscopo. A autora incluiu no livro uma figura explicativa em que “A Roda da Cura” está superposta à roda do horóscopo. Para a autora, os povos “primitivos”, como os nativos norte-americanos, estão em oposição total, quanto ao seu modo de vida, aos povos “civilizados”. Embora não goste das categorias primitivo e civilizado a autora se limita apenas a questioná-las, sem propor categorias novas. Seguiremos, portanto, utilizando tais categorias. A sabedoria dos índios é sempre exaltada, bem como sua relação pacífica com a natureza, relação de contato íntimo e respeito. Essa relação indica, nesses povos, uma maior sensibilidade, em detrimento da razão que é típica dos “civilizados”. Esses perderam o contato com a natureza, perderam a sensibilidade e passaram a agir apenas com base na razão. Deste modo promoveram um mundo auto-destrutivo e caótico. Há também uma diferente visão do tempo. O “primitivo” enxerga o tempo, e o mundo como um todo, de forma circular. É assim que monta suas tendas, que organiza a aldeia, pois é assim que a natureza funciona: circularmente. “A Roda da Cura” é um exemplo desse pensamento que a autora chama de curvilíneo. O homem “civilizado”, por outro lado, é movido pela intenção de progresso, de chegar a algum lugar através da razão. Seu movimento é retilíneo. Márcia Frazão diz que assumiu publicamente sua condição de bruxa por ver que “a realidade mágica” estava distorcida nos livros, estava longe da “presença do mágico”. Quando é inserida no que chama de “conversas esotéricas”, ela reage negativamente. Para ela, a bruxaria não possui vínculos com o esoterismo. A bruxaria está ligada à arte e à natureza. O esotérico exclui o homem comum, aquele que não tem os segredos da seita, ordem ou grupo. A bruxaria, ao contrário, não tem conhecimentos ocultos ou teorias complicadas. Para Frazão, ela está no mundo. As bruxas não usam seus conhecimentos para propagar qualquer forma de poder. O meio esotérico, para ela, está desprovido do sentimento de amor e confinado na rede de consumo. São

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várias as “modas” do gênero: duendes, fadas, Chama Violeta, anjos. Os rituais esotéricos também são atacados pela autora, que os define como “burocráticos” e mecânicos. Quando é procurada por pessoas interessadas em tornarem-se bruxas, diz a elas que não pode transformá-las. Segundo Frazão, a escola da magia é o amor. Essa resposta é decepcionante para muitos que querem fazer um curso de bruxaria. O sentido da bruxaria é o simples e isso decepciona a quem quer pompa. Para estes, o simples não é digno de crença. Ela reafirma que se tornou bruxa publicamente por ver que “o caminho da Grande Mãe estava esquecido por uma grande massa esotérica”. Seu interesse não é criar mais um grupo de ocultismo. Não quer criar mais um modismo. Ela dá os feitiços nos quais realmente acredita. Afirma-se enquanto “campesina” e pagã, pois acha que o contato com a natureza é imprescindível. Segundo ela, devemos crescer e retornar ao “caminho da simplicidade” e das “palavras amorosas”. Por sua relação com o simples e o belo, a bruxaria mantém também uma ligação com o camponês, o índio e os artistas. Embora proveniente de uma família de bruxas, a autora conta que lutou contra essa idéia, até render-se de vez à bruxaria. Quando resolveu abraçar a bruxaria em sua vida, tinha ainda algumas emoções que impediam seu pleno desenvolvimento. Embora a história da família ajudasse a lidar com a magia, fora “contaminada pelos germes da cultura”, era reprimida. Foi através de rituais e do convívio com a natureza que conseguiu superar isto. Ficou mais leve e mais aberta a si e aos outros. Deixou de “ser complicada” e “corroída por dúvidas e incertezas”. Sentiu-se mais feliz e poderosa. Esta passagem mostra mais uma vez a escala valorativa da autora: a sociedade moderna ou “civilizada”, como ela coloca, é relacionada ao “ser complicada”, ao estado subjetivo de angústia e incerteza. A bruxaria, no pólo oposto, fez com que ela rompesse com esses estados subjetivos rompendo com a própria “civilização”, uma vez que a bruxaria despreza a razão instrumental fundadora da sociedade moderna, valorizando o contato com a natureza, a ludicidade, o encantamento do mundo, ou a “simplicidade”, nas palavras da autora. Sua avó era bruxa e lhe ensinava algumas coisas da bruxaria. Com ela aprendeu feitiços para a paixão, para aliviar as expectativas e para unir os casais. Quando a avó fazia feitiços de amor sempre lhe contava os resultados. Quando observava a avó recitar um encantamento, ficava espantada. Ela, às vezes, nem mesmo precisava realizar o feitiço, bastando pronunciar o que queria. A avó e a bisavó Luiza sabiam que era bruxa.

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Quando dá entrevistas, conta, sempre é questionada sobre feitiços de amor. Ensinou alguns e as luas nas quais deveriam ser realizados. Tem notícias de bons resultados. Quando isto não ocorre, e poucas pessoas se queixam de que o feitiço não deu certo, isso não significa, segundo ela, a ineficácia do feitiço, mas a “falta de intimidade com a lua”, que consente ou não na realização do feitiço. Sem essa identificação com a lua, os ingredientes de nada servem. Para que um feitiço dê certo é necessário conhecer a lua. Cada fase da lua tem uma série de deusas correlatas, que devem ser conhecidas para que a bruxa seja “inundada por seu poder”. Quando recebe cartas de pessoas dizendo que um determinado feitiço não funcionou, constata que ele foi realizado “de maneira fútil”, com uma preocupação apenas pelo resultado, sem que se dê conta do “instante mágico’. A bruxaria é uma “religião xamânica orientada para a natureza”. Sem integração com a natureza os feitiços não dão certo. Compreendemos que, para que um feitiço funcione, deve haver uma forte ligação com a lua, uma integração com a natureza, um clima de brincadeira, e - caso seja um feitiço de amor - um amor verdadeiro. A realização de feitiços, no entanto, não faz a bruxa. O feitiço só funciona quando a vida está em equilíbrio e integridade. Um feitiço não pode ser pensado utilitariamente. Esta posição é oposta à posição da bruxa, que não é imediatista como o homem moderno, pois vive de acordo com os ciclos da natureza. Os feitiços levam algum tempo para funcionarem, e sua eficácia varia de pessoa para pessoa. Para alcançar este equilíbrio, a autora entra em contato com a natureza. Quando não está bem, vai até a sua horta e senta-se lá, pois as plantas de sua horta lhe dão força. O significado da bruxaria parece residir mais na relação que se estabelece com a natureza do que o conhecimento de feitiços. Segundo Frazão, a bruxaria procura preservar a integridade da natureza e do homem. Os hábitos de consumo que destroem o planeta devem ser revistos e questionados. O Gozo das Feiticeiras, ed. Bertrand Brasil, 1996 (1a. edição) Seguindo a linha de raciocínio de seu livro anterior (Manual Mágico do Amor), a autora expressa sua idéia de que o amor é uma das melhores formas de transformação interior, de conseguirmos o equilíbrio de nossas vidas e de nos religarmos com a natureza. A autora ensina alguns rituais e receitas de feitiços, com uma ênfase nos de amor, receitas de talismãs, uso mágico de ervas. Há, ainda, um calendário com a entrada da lua nos signos, mês a mês, de 1996 a

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2000. Uma lista de instrumentos mágicos, segundo a autora, oriundos da magia grega e consagrados a determinados deuses, completa o arsenal da bruxa nesta obra. Os deuses evocados neste livro são Afrodite, Eros e Dioniso, deuses ligados ao amor. Para ela, Dioniso é o “supremo deus das feiticeiras”, uma das representações do Deus Cornífero. As bruxas são comparadas às Bacantes, mulheres que seguiam o cortejo do deus em estado de frenesi e que desenvolviam sua sexualidade livremente, sem as amarras da sociedade patriarcal grega. Por isto, eram vistas como perigosas. A avó entra novamente em sua obra como personagem de peso, pois foi ela quem primeiro lhe falou do Deus Cornífero, que a autora se apressa em assegurar que não é o diabo cristão, embora tenha sido transformado/confundido com este. A autora afirma que é questionada, algumas vezes de forma agressiva, sobre a devoção das bruxas ao Deus Cornífero, ainda confundido com Satã. Algumas pessoas, ao cruzarem com ela na rua, fazem o sinal da cruz e se afastam. Outras fazem perguntas que a autora considera disparatadas, como por exemplo se o deus faz troca de almas e se recompensa materialmente seus fiéis. Para Frazão, o deus é anterior ao cristianismo e não pode ser associado a nenhum de seus elementos, como o diabo. Algumas pessoas a abordam perguntando qual a melhor maneira de entrar em contato com os deuses. Para a autora, ler sobre eles apenas não é o suficiente. Deve-se sentí-los. A autora também relata que é questionada sobre o envolvimento das bruxas com a lua, o porque de certas luas para certos feitiços. Essa curiosidade é típica do homem moderno, pois ele vê a lua como um satélite, sem poder. Agora que o homem moderno percebe que seu mundo não é bom ele volta a procurar a lua. Aos que começam a caminhar pela terra da bruxaria, a autora aconselha a não se decepcionarem se acharem que fazer magia parecer um tanto tolo. Para ela, a bruxaria tem um caráter lúdico que deve ser mantido e respeitado. Ela, por exemplo, recebeu suas primeiras lições sobre ervas mágicas ao tomar banho de mangueira no jardim de sua avó. Seus primeiros encantamentos eram versos que a avó inventava. E foi nessa atmosfera de descompromisso e prazer que a avó ensinou-a a “trazer a lua” para dentro de si. Para a autora, a bruxaria é, como todas as religiões antigas, uma religião de caráter orgiástico e que não divide o mundo entre Bem e Mal. Essa dicotomia está dentro da divindade. Para ela, a bruxaria é uma religião que dignifica o homem e a mulher, colocando-os lado a lado sem diferenças, sem constituírem pólos de oposição mas de complementariedade. Ela é uma

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religião voltada para a natureza, cujas divindades apresentam-se com atributos específicos. O contato com a natureza se dá de diversas formas: em passeios ao ar livre, no contato direto com as plantas através de uma horta, ou na observação da natureza. Devido a essa proximidade com a natureza, algumas das preocupações da bruxaria são jamais ferir a terra, explorar o semelhante ou permitir a fome. Por este seu caráter solidário, a autora afirma que a bruxaria foi vista como um forte empecilho ao crescimento das riquezas mal distribuídas. A autora apresenta, na verdade, uma religião revolucionária que não só foi impecilho à desigualdade econômica como à desigualdade entre os gêneros. A autora mantem este caráter revolucionário ao exortar seus leitores a manterem este tipo de comportamento e pensamento. A autora apresenta alguns instrumentos mágicos neste livro. São eles: o jarro de Dioniso, a cornucópia, o arco e flecha de Apolo e Ártemis, lança de Palas Athena, rede de Hefesto, zona (o cinturão de Afrodite), flauta de Athena e de Pã, cavalo branco, tirso de Baco. Como podemos verificar pelo nome de alguns deles, cada um é dedicado a uma divindade e tem seu uso limitado ao escopo de atuação dessa divindade. A música, segundo ela, também pode ser um eficiente instrumento mágico No convívio com outras bruxas também hippies, percebeu o poder mágico da música. Cantar traz a proteção dos deuses, e cada deus tem a sua canção. A música é um instrumento mágico a ser usado em feitiços e rituais. No entanto, os instrumentos de poder mais poderosos são aqueles que pertenceram a entes queridos. Dioniso é, para ela, um deus marginal, pois prefere a companhia dos mortais ao Olimpo. Como Dioniso, as bruxas também recebem o estigma da marginalidade, pois vivem num mundo à parte da ideologia dominante. Hécate, a divindade feminina principal das feiticeiras, segundo Frazão, também preferia a companhia dos mortais ao Olimpo. Para ela, o Olimpo que conhecemos está impregnado pelo pensamento patriarcal, não é o Olimpo original, em que algumas de suas facetas desagradavam o patriarcado. Como podemos perceber, a autora constrói uma identidade da bruxa, escolhendo os seus deuses principais e remontando a idéia de Olimpo para torná-lo um lugar menos machista e arraigado ao pensamento grego, e mais próximo à liberdade de gêneros que ela afirma ser fundamental na bruxaria. Há, portanto, uma reconstrução ou releitura de um mito de modo a encaixá-lo nas necessidades presentes da bruxaria, sendo o principal a revisão dos papéis de gênero.

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Dioniso, para a autora, é uma divindade ligada à sexualidade. Como vimos anteriormente, seu culto envolvia ritos de fertilidade, de sexualidade explícita, representados pela figura das Bacantes. A autora afirma que a candidata a bruxa, para entrar em contato com Dioniso, deve perder seus preconceitos sobre sexualidade e prazer, e deve tentar ver o mundo com outros olhos, se comprometendo com o planeta. É necessário, ainda, “tirar a máscara”, isto é, apresentar-se perante a divindade de forma sincera, mostrando exatamente quem é. A melhor maneira de contactar Dioniso é colocando determinadas ervas no altar, alguns óleos de ervas e estar despida. É preciso entender que a sexualidade gera energia sexual, que é uma fonte de magia. O sentido da transformação é bem explícito: a mulher deve tomar posse de sua sexualidade, perdendo as possíveis repressões que tenha, desfazendo-se de preconceitos quanto à sua sexualidade, para desta forma vivenciar o prazer sexual de uma nova maneira e o prazer em geral. Deste modo, a transformação necessária à mudança em sua sexualidade será também uma mudança em sua maneira de ver o mundo e relacionar-se com ele. Essa mudança na sexualidade indica uma preocupação de cunho feminista da autora, sempre falando diretamente a um público feminino, envolvida em questões da vida da mulher. Dioniso, enquanto deus da sexualidade, leva, segundo a autora, a duas outras divindades que lhe são correlacionadas por seus atributos: Afrodite, deusa da beleza e do amor, e Eros, também deus do amor. Esses três deuses se encontram justamente no amor e no prazer. O âmbito de atuação de Dioniso é o do que está fora de controle: o delírio, o êxtase, o sexo. O encontro com a divindade é, portanto, um encontro sem possibilidade de fuga, visto que ele é retratado como além da razão, fora de controle, caótico, irracional. Afrodite é considerada pela autora também uma divindade das mulheres. Para que nos conectemos a Afrodite, diz, devemos nos livrar dos preconceitos da “cultura retilínea”. As bruxas, segundo ela, foram perseguidas pela cultura patriarcal porque exaltam Afrodite e seus encantos. Esta deusa não é inimiga dos homens, como a muitos pareceu. Ela é a doçura, graça e beleza do Eterno Feminino. Mas beleza, alerta a autora, não tem fórmula. A mulher não deve se transformar num objeto de beleza. Ela não deve procurar satisfazer padrões masculinos mas sim satisfazer a si mesma. Eros, o deus do amor, o Cupido, nos transporta, por sua vez, também à dimensão do amor, um lugar onde a lógica cotidiana não faz sentido, onde nos tornamos seres mágicos e cheios de poder, segundo a autora. Pensa que Eros escolheu as bruxas para “mimá-lo”, para colocá-lo no

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colo de outras mulheres. Eros, segundo ela, é também um deus das mulheres, visto que, enquanto criança, gosta da companhia maternal das mulheres, que são quem o abriga e acolhe. A autora vincula claramente o papel de mãe à natureza feminina, naturalizando esse papel e naturalizando também a proximidade das mulheres com o amor. Esse tipo de proximidade pode gerar a compreensão de que as mulheres são mais passionais do que os homens, mais sensíveis, menos racionais. Somos inclinados a pensar que esta é de fato a opinião da autora, conforme pode ser visto ao longo de suas obras. No entanto, a valoração se apresenta invertida: para ela, estes atributos estão no topo da escala valorativa, e é com orgulho que ela os apresenta como parte da “essência feminina”. Parece haver, inclusive, na intenção de naturalização e inerência, uma maneira de fazer com que os atributos classificados como femininos não possam ser, de modo algum, retirados das mulheres. São esses atributos, portanto, que garantem sua supremacia mágica em detrimento dos homens, hoje com a supremacia racional, que para a autora só trouxe desgraça e destruição. Frazão diz que desde que assumiu publicamente sua condição de bruxa, tem sido requisitada a formar novas bruxas, o que ela recusa terminantemente. Acha muito estranha a idéia de dar aulas de bruxaria porque julga que este é um conhecimento mais ligado à sensibilidade do que à razão. É, portanto, um ensinamento mais sutil. Não poderia ensinar bruxaria do modo linear, do modo como aprendemos, do modo como a nossa sociedade ensina, essa sociedade de pensamento retilíneo. Neste modo linear, o conhecimento é apresentado à pessoa, e muitas vezes é um conhecimento sem utilidade prática. Algumas pessoas a procuram querendo uma iniciação na bruxaria. Quando percebe que a pessoa “tem o dom”, diz, indica que estude a história de sua própria família, procurando possíveis bruxas entre as antepassadas. Para Frazão, o estudo das origens é necessário para o retorno ao caminho da bruxaria. O conhecimento mágico, diz, pode estar num parente próximo. Ela relata o caso de seus leitores adolescentes que lhe escrevem para falar sobre o reencontro que tiveram com seus avós, aprendendo com eles. A autora conta que há ainda uma outra categoria de pessoas que a procuram: aquelas que se dizem bruxas e que, em sua maioria, são esotéricos que leram romances como As Brumas de Avalon e que confundem ficção e realidade. No caso descrito acima, a autora faz uso da mesma categoria tão usada para desmerecer a bruxaria e negar a magia, e a usa neste mesmo sentido

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contra os esotéricos: a categoria de loucura. A autora faz questão, mais uma vez, de tirar a bruxaria do rótulo de produto esotérico. Os esotéricos são constantemente atacados pela autora, tanto por sua maneira de transmitir conhecimento: através de cursos, aulas, ordens secretas, com estrutura hierárquica rígida; quanto pelo seu distanciamento da história e da natureza. Para ela, os gurus esotéricos estão em busca de dinheiro e os pagantes em busca de alívio imediato para seus problemas, tanto materiais quanto existenciais. Os esotéricos, diz, são distintos das bruxas. A autora acha que o esoterismo e a bruxaria são incompatíveis. Os esotéricos na bruxaria são, para ela, meros curiosos. Em seus sonhos, percebeu que apenas deve mostrar o caminho das estórias, do sonho e do desejo. Cada qual segue o que lhe aprouver. Algumas vezes, conta, lhe questionam sobre o verdadeiro sentido da bruxaria. Ser bruxa, diz, é mais do que fazer rituais. A bruxaria não se encontra em livros, ela é o transformar-se, mudar a visão de mundo e a maneira de sentir. Ela demonstra, no entanto, que nem todos compreendem a bruxaria dessa forma. Para ela, isso se deve ao fato de estar a bruxaria “na moda”. Ela relata um episódio em que foi dar uma palestra num evento místico, e se deparou com pessoas estranhas, cheias de pose, caras e bocas, todas com roupas pretas, quase fantasiados. O interessante é que Frazão, quando aparecia em público alguns anos atrás, costumava adotar postura análoga, usando roupas que fazem uma caricatura da bruxa. Tivemos a oportunidade de vê-la três vezes com esse tipo de roupa: chapéu de veludo desabado escuro, saia preta longa e rodada, meia-calça listrada de branco e preto e um broche de morcego, pé de sapo pendurado no brinco. Outras duas vezes ela vestia trajes simples, sem essa indumentária toda. Neste lugar, diz, foi abordada por uma mulher que se propunha resolver todos os seus problemas mediante algum pagamento, e se dizia bruxa. Frazão não gostou da atitude dos freqüentadores do local e resolveu romper através do figurino, como uma forma de protesto e diferenciação: colocou seu vestido mais florido para dar a palestra e absteve-se de usar seu pentagrama. Disse aos ouvintes que o evento era um engodo pois não retratava a verdadeira bruxaria, e falou da avós bruxas em sua palestra. A autora se pergunta se, por intermédio de seus livros, não contribuiu também para o aparecimento das falsas bruxas, essas só interessadas em pose e dinheiro. Na contramão dessa tendência, a autora afirma que recebe telefones quase diários de mulheres se descobrindo bruxas, assustadas com o poder que têm. O medo é tamanho que pensam mesmo em abandonar o que começaram, mas a autora assegura que este é um

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caminho que não conseguem largar porque é sem volta. Essas mulheres, diz, ficam dividas entre o “mundo normal” e o mágico. O Feitiço da Lua: memórias de uma bruxa malcomportada, ed. Bertrand Brasil, 1997 (1a. edição) O livro se propõe a ser um relato das memórias da autora, os personagens de sua família que maior influência exerceram sobre ela e as amizades de adolescência. O período abordado na maior parte da narrativa é o ano de 1964. Frazão tinha treze anos de idade: mostra-se como uma adolescente dividida entre a infância e o mundo adulto. O recorte de tempo não é aleatório: é neste período que ela resolve iniciar seu caminho na bruxaria praticada em família. Para tanto, conta com a ajuda das bruxas de seu clã, como gosta de dizer. As mentoras, por assim dizer, desse caminho de iniciação são as avós e algumas tias. A mãe, embora também fosse bruxa, não exerce muita influência sobre a menina. Era uma jovem senhora nos seus trinta anos, mais interessada, segundo Frazão, em cosméticos, moda e artistas do que em feitiçaria. Parece mesmo haver um certo rancor na descrição dessa mãe tão ligada à beleza, enquanto a autora se autodescreve como uma menina feia e sem atrativos - e que tem plena consciência disso. A futilidade da mãe contrasta com o tom de pessoa marginal que a autora emprega para se descrever. As avós de Frazão são personagens recorrentes em seus livros. Foram elas, de certa forma, que socializaram-na no mundo das práticas mágicas. Desde criança, conta, convive com mulheres que acreditam serem bruxas e que ela acredita serem bruxas, embora muitas vezes ela própria e o restante da família oscile entre taxá-las de bruxas e de loucas. É possível perceber, no entanto, que as práticas mágicas - ou as loucuras - não são as mesmas. Cada bruxa da família tem um dom diferente: há uma tia que transforma tudo em risos e comédia, há a bisavó que governa os sonhos, há a avó que faz feitiços de panos, há uma outra avó que é rezadeira. Além dessas mulheres, circulam outras personagens que também se tornaram significativas na construção de Márcia, a bruxa: algumas amizades de adolescência, meninas que a autora chama de bruxas mas que não se vêem como tal, ou meninas que não acreditam que ela seja bruxa; há os vizinhos do edifício onde morava, na rua Paissandu, no Flamengo, inclusive uma vizinha bruxa que todos juravam ser louca; há também as empregadas da casa: dona Marina, a que conversa com mortos, Conceição - que depois de ter ouvido suas histórias sobre ser uma bruxa, passa a fazer o sinal-dacruz toda vez que a vê - e Vera, a filha-de-santo.

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Apesar de ser um livro de memórias, ele guarda ensinamentos mágicos. As peripécias da autora no que chama de sua iniciação e os ensinamentos das avós são o lugar do aprendizado mágico. Embora este livro não traga receitas de feitiços ou rituais, estes estão sutilmente colocados na obra, de modo que o leitor atento pode deles fazer uso. O livro é, ainda, uma espécie de manual mágico da lua. O ano é dividido em treze luas, onde cada mês/lua é um período de descobertas e trabalho mágico de situações específicas, como cura ou amor. Ao final de cada capítulo/mês, um calendário registra os dias e suas divindades específicas. Há divindades de todas as partes do globo. O subtítulo Memórias de uma Bruxa Malcomportada é um alusão ao livro de Simone de Beauvoir, Memórias de uma Moça Bem-Comportada. Beauvoir foi, segundo Frazão, uma de suas heroínas de adolescência. Lia seus livros e comungava de suas idéias sobre o papel da mulher na sociedade. Há de se compreender, a partir daí, o que sugerimos ser uma preocupação um tanto precoce da autora (aos treze anos) com o feminino e os papéis da mulher na sociedade. A autora diz que sonhava em escrever este livro mas acabava sempre por adiar seus planos. Enquanto esperava por um bom momento para escrevê-lo, Frazão conta que manteve sua rotina. Acordava às cinco da manhã, como sempre faz, e passava o dia fazendo trabalhos domésticos. Frazão diz que é uma dona-de-casa e que gosta muito disso. Neste período, sonhou com a avó lhe dizendo para seguir seu caminho de bruxa sozinha, pois era capaz disso e não precisava mais do apoio de suas ancestrais - apoio que tivera até então. Teve mais um sonho com suas antepassadas. Nele, elas levavam-na até a lua, que se transformava então na Deusa Tríplice, e que lhe disse que ela já conhecia Seu corpo e Seu rosto. Quando acordou, sentiu-se verdadeiramente iniciada, mas estava ainda com medo de escrever sobre a lua. Lembrou-se, então, do que suas ancestrais lhe ensinaram: existe um momento na bruxaria em que a bruxa se torna sacerdotisa e filha da lua, isto é, ela torna-se lua ela mesma. Seu poder duplica. Estabelecese então um compromisso que não pode ser rompido, sob risco de perda do poder mágico. Deu-se conta de que entrava nesse compromisso, e que por isso não precisava mais da ajuda afetuosa de suas antepassadas. Sentiu-se pronta a iniciar seus descendentes. Era hora de escrever sobre a lua. O livro trata, na visão da autora, de sua relação com a lua, ou da própria lua. Visto que o caminho de iniciação na bruxaria é o caminho de iniciação na religião da Deusa , que é também a lua, este livro pode ser também compreendido como um livro sobre a lua. Desde o título do livro

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até os dos capítulos, a autora nos dá a indicação de que a lua é tema central da obra. Na leitura do livro, contudo, as memórias da autora superam qualquer intenção de descrever uma lua mística, mesmo se tratando de memórias sobre a sua iniciação no caminho da lua. O próprio caminho se torna o principal, e os personagens que acompanham esse caminho são peças fundamentais na compreensão dele. O recurso da autora aos seus sonhos para esclarecer uma determinada situação é muito freqüente. Ela afirma que acredita na dimensão do sonho, mas sente que algumas pessoas apenas fingem que acreditam em suas histórias. Isso, diz, se deve ao fato de que estas pessoas não conseguem deixar para trás o que aprenderam para encarar uma outra realidade. Parece que o sonho é visto, portanto, como uma realidade diferente da realidade vivenciada no estado desperto. Mas enquanto realidade, ela fala de algo real, e não ilusório, e que pode ser levado em consideração, levado a sério. O sonho deixa de ser visto como um desvario, e passa a ser visto como um momento de comunicar-se com os deuses, com os mortos ou com os vivos, mas uma comunicação que se faz em outro plano, ou outra dimensão, nem por isso menos verdadeira que a dimensão da mente desperta. A primeira lua descrita é a dos antepassados. A lua de janeiro é o momento de conversar com os mortos. Vitalina, mãe de seu pai, foi a primeira pessoa que Frazão procurou para anunciar que criara a “lua dos antepassados”. Aceitando de bom grado a invenção, a avó questionou sobre quais seriam as luas seguintes. Frazão não havia pensado nelas. Decidiram então, ela e a avó, a não mais usarem o calendário e sim as suas próprias denominações. Elas passaram a chamar os meses de luas, e cada mês receberia a denominação de uma lua. A contagem do tempo, no entanto, não foi alterada, a não ser para dezembro, que conta com duas luas. A lua dos antepassados seria o mês em que todos os mortos seriam lembrados. Para tanto, criaram verdadeiros rituais em homenagem aos falecidos. Nesta lua, realizava-se também o feitiço dos panos - a lavagem da roupa que todo janeiro sua avó Virgínia, mãe de sua mãe. Seguindo o espírito de janeiro, fevereiro guardou mais um contato com os mortos para a autora. Frazão perdeu a amiga Nuri, de dezoito anos, que morreu dormindo. A autora conta que encarou esta morte precoce como uma iniciação nos ritos da morte. Foi uma situação que lhe revelou que o conhecimento não vem só dos livros, mas das recordações. Vemos novamente as lembranças com um lugar de destaque.

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Após as experiências vivenciadas nesses dois meses, passou a discutir com os meninos o porque das mulheres não serem mais fracas e inferiores aos homens. Começou a compartilhar brincadeiras que antes eram só deles. Constatou que, como feiticeira, não podia se ausentar do mundo dos homens. Percebeu que os conhecimentos mágicos deviam ser mesclados com a razão. Assídua consumidora de livros, apesar de seus treze anos, Frazão lia também obras de filosofia. Descobriu espantada que na filosofia também habitavam os deuses. Percebeu que o conhecimento havia sido vedado às mulheres porque através dele elas reconheceriam os encantamentos e os fariam todos. Desse modo, completa, forjou-se a idéia de que as mulheres sábias são feias e solteironas, e que ser bonita e fútil é o melhor que uma garota pode alcançar. Dedicou o mês inteiro à filosofia, como uma resposta a esses estereótipos. Seriam belas e cultas, e não se calariam perante os homens. Colocariam a história em seu cotidiano, realizariam os encantamentos dos filósofos, todos os dias honrariam as mulheres que não tiveram acesso ao conhecimento, levariam o que aprendessem a outras mulheres e não mais permitiriam que o papel da mulher fosse roubado. Declarariam-se feiticeiras sem se envergonhar. A autora recorda que na década de 1960, várias bruxas modernas iniciaram a mesma “caminhada” que ela. A idéia de caminho e caminhada é muito comum no contexto de Nova Era e também nos livros de Frazão. Na Nova Era, contudo, o caminho pode tomar uma forma literal, como o caminho de Santiago. A autora tenta desfazer essa possível confusão logo de início. Para ela, um lugar específico, como o caminho de Santiago, não é o meio ideal para devolver às bruxas o seu papel no mundo. A magia das bruxas estava intacta sendo transmitida através das gerações. O que devia ser conquistado era aquilo que fora perdido, não o poder, mas o conhecimento intelectual do mundo. “O conhecimento”, diz ela, “é o ato de se envolver com o mundo”, ao invés de observá-lo friamente. Esse conhecimento mágico só vem através de um caminho solitário, pois o aprendizado é individual. A lua de abril mostrou-lhe que era necessário estar atenta às vozes do mundo e nelas reconhecer os sinais que o tempo envia às bruxas. Procurava sinais ocultos. Desde então, nunca foi surpreendida por nada, tomou consciência do mundo, reconhecendo suas dores e sorrisos. Nesta lua, aprendeu o real significado de ser feiticeira. Procurar sinais ocultos e ser feiticeira são coisas que não se confundem, na concepção da autora, com a cartomancia e a previsão do futuro. A avó, diz, desprezava as videntes profissionais, as cartomantes. Irritava-se quando eram chamadas de bruxas. Frazão concorda com

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a avó. Pensa que elas alienam a mulher de seu poder e da natureza. Segundo diz, elas são um joguete nas mãos do poder masculino. Para a autora, recitar mantras e acender incenso não faz a bruxa. É necessário interferir para transformar o mundo. Notamos aqui uma clara alusão à ação militante, à saída da espiritualidade voltada apenas para o interior e a externalização dessa espiritualidade numa ação concreta no mundo, que o transforme e melhore. Nas luas anteriores, teve seu “dom de rasgar o tempo” fortalecido. Ao olhar para as pessoas podia ver momentos de seu passado e futuro, bem como seus maiores desejos. Nessa lua, resolveu passar algum tempo na casa de sua avó Vitalina, pois se sentia mais protegida lá. Neste momento, procurava a avó como uma igual, e não mais como uma aprendiz. Sentia-se iniciada. A avó, por sua vez, passou a tratá-la como a uma igual. O trabalho do mês seria estudar sua história familiar. Durante este período, sua bisavó acabou passando algum tempo em sua casa, no que ela via ser uma ótima oportunidade para desencavar algumas histórias de família. Ela chamava-se Luísa, e tinha o hábito de conversar com os mortos. Luísa possuía o dom “sempre exposto nas bruxas” de carregar seu cotidiano nas costas: tornava o ambiente a réplica de sua casa. Para Frazão, este dom torna fácil o reconhecimento de uma bruxa. Luísa lhe aconselhava a guardar bem suas lembranças, costurando-as como a uma colcha. Para a autora, este é outro dom das feiticeiras: elas trançam lembranças e tecem histórias. Todos têm este dom, diz, mas só as bruxas sabem aproveitá-lo bem. Com Luísa aprendeu a contar histórias, e sentiu que ia transformando-se, ia pegando o jeito de seus mortos. O resultado disto foi a mudança de alguns de seus hábitos: até hoje não consegue mais usar gola. A bruxaria, como vimos, é uma religião que celebra os mistérios do feminino. Para Vitalina, o umbigo era o local sagrado desses mistérios, o local do princípio feminino, onde nascem as intuições e se revelam as paixões. As mulheres possuem a capacidade mágica de sempre estarem entre a realidade e a fantasia. Só as mulheres rompem a lógica da ordem, desorganizando e promovendo caóticas transformações. A lua dos labirintos, mês de julho, seria a época de trançar-se com outras pessoas, de perder-se nos corredores que se lhe apresentassem. Frazão afirma que no outro amplia-se o poder da bruxa, mas a magia só pode ser exercida na austeridade. Foi aí que entendeu porque as avós tinham tantas amizades: faz parte de ser bruxa.

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Uma das novas amizades que fez naquela época foi Thirla. Via as duas, lado a lado, como duas feiticeiras em contraposição ao que chama de “meninas de cor-de-rosa”, as meninas bemcomportadas e doces, as boazinhas. É recorrente neste livro a oposição que a autora forma entre ela (as bruxas) e as meninas de cor-de-rosa. Essas meninas são descritas com sarcasmo, insinuando-se que eram bonitas mas burras, submissas à ordem masculina, perfeitamente encaixadas no papel feminino daquela época. Frazão, ao contrário, gosta de definir-se e às bruxas como mulheres um tanto marginais nessa ordem dominante, outsiders, “gente torta”, “que destoa do bloco”. As bruxas são muitas vezes retratas - de maneira sutil - como mulheres independentes, fortes e incompreendidas. Por isso a avó Vitalina era vista como excêntrica e egoísta. Seria, na verdade, uma mulher independente e de hábitos pouco comuns, visto que era uma bruxa. Na lua de julho, percebeu a marginalidade do feminino, a exclusão das decisões masculinas. Fora convidada para sua primeira festa noturna, e lá percebeu os comportamentos opostos de meninos e meninas. Notou que quase todas as garotas usavam rosa, que para ela tornou-se um simulacro da feminilidade, até que viu entrar uma garota de jeans e camiseta, sustentando um “olhar de Ártemis”. Reconheceu nela o brilho das feiticeiras. Sua dança era mais livre que a coreografia das meninas de rosa. Aquele tempo, recorda a autora, era propício ao desabrochar das mulheres e de seu poder, chance que suas antepassadas não tiveram. Entendeu, então, o seu papel em seu clã: deveria completar a obra inacabada de suas ancestrais. Hoje é a última mulher de seu clã, que antes tinha tantas mulheres. Portanto, é sua última feiticeira. No mês de agosto, descobriu que a mãe de sua amiga Glorinha estava grávida. Ouviu comentários maldosos e preconceituosos contra ela porque já beirava os cinqüenta anos de idade. Deu-se conta, então, de que havia um tabu do sexo em nossa sociedade. Associou o tabu do sexo ao tabu da menstruação: toda mulher tem, mas deve escondê-la. As feiticeiras, ao contrário das outras mulheres, não escondem seu sexo. Nesta mesma lua, recebeu a notícia de que sua tia solteirona, então com trinta e poucos anos, se casaria. Em nossa sociedade, o medo da velhice persegue as mulheres, diz ela. A sociedade exige beleza eterna. Quando a velhice chega, estabelece-se uma morte simbólica da mulher, afirma. As mulheres têm, então, duas (falta de) opções: ou morrem simbolicamente enquanto mulheres ou tentam permanecer sempre jovens. Para a autora, só as feiticeiras não se viram para nenhuma das

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duas opções. Ao contrário, elas se tornam mais bonitas com a maturidade. Uma mulher é sempre mulher, não importa a idade que tenha. Setembro é a lua do atrito dos corpos e do coito dos deuses. Nesta lua, a avó resolveu que já era tempo de iniciá-la nos segredos da deusa do amor e da beleza. Falou-lhe de tempos antigos e lhe contou histórias de mulheres sexualmente livres. Aprendeu alguns tratamentos de beleza. Passou a se sentir mais sedutora e feminina. Interessou-se pelas histórias de amor das mulheres de seu clã. Sentiu sua sexualidade livre, fora das amarras das funções sexuais. A avó lhe disse, então, que deveria sempre recolher seu sangue menstrual sobre um pires branco e deixá-lo secar sob o luar para depois ser guardado num frasco sob forma de pó. Frazão afirma que faz isto até hoje. O pó serve para reativar suas forças, curar doenças femininas, manter os seios rígidos livrála de sortilégios, e pode também ser usado em feitiços. Nesta lua, viu que seu poder residia na menstruação, um “remédio sagrado das mulheres, elixir da beleza eterna e cura das doenças”. Aprendeu a “domar” seu fluxo sangüíneo, dirigindo-o para a lua adequada aos planos momentâneos: cheia para completude, crescente para novos projetos. Para Frazão, não são os homens que iniciam as mulheres no sexo, mas as mulheres que iniciam os homens. Para ela, o significado ancestral de virgem ainda é levado pelas mulheres: livre e dona de seu corpo, tão livre que chega a ser disponível. Para ela, a mulher vive um eterno mudar de pele. A lua ensinou-lhe o caminho da sensualidade das mulheres e sua perversão, a submissão à moral sexual dos homens -bons costumes, expiação e culpa - para a manutenção do Estado, a ciência, a economia. Outubro é a lua de Perséfone. Nesta lua compreendeu que ela, Frazão, junto a outras tantas bruxas, inundariam o cotidiano de cura. A cura, para ela é um estado de gravidez permanente. A idéia da gravidez evoca tanto o processo de criatividade e transformação quanto a idéia de esperança e futuro. Em novembro, passou a ter as mais distintas visões, tanto boas quanto más. Com a ajuda da bisavó Luísa, compreendeu que sua lógica circular era a mesma dos sonhos, e era isso que fazia com que rasgasse o véu do presente e visse além das pessoas: seus planos, sonhos, passado e futuro. Na dimensão dos sonhos, diz, podemos mudar nossa realidade e a dos outros. Luísa aprendera sobre os sonhos com sua irmã Maximiana. Ela ensinou a Luísa como virar um pássaro noturno e encontrar o que quisesse assim. Frazão afirma que este é o verdadeiro

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vôo noturno das bruxas. Luísa chamava-o de rastrear sonhos. Para aprender isto, Luísa fez com que andasse pela casa com vendas nos olhos. Depois aprendeu a abrir “o olho incluso das feiticeiras”, rasgar a realidade. Em seguida, durante uma semana andou pelas ruas de olhos fechados, reconhecendo os contornos do que passasse por ela. Dezembro é o mês de contar bênçãos. Foi neste mês que Vitalina levou-a para colher lágrimas-de-nossa-senhora na Floresta da Tijuca. Nessa aventura, a menina vislumbrou a “Senhora dos Rios”, e colheu suas contas para fazer um colar a ser usado na noite do Ano Novo. Esta é a última lua do calendário, o que Frazão chama de “mais um dia”. A festa daquele trinta e um de dezembro foi realizada em sua casa, com todos os membros da família e alguns outros convidados. Suas tias e avós reunidas para a festa haviam levado uma receita diferente ou um presente a ser distribuído, cada um com uma propriedade mágica. Naquela noite, diz Frazão, não foi mais tratada como uma aprendiz de bruxa, mas como uma feiticeira do clã. Perto da meia-noite, desceram todos até a praia, levando consigo os presentes a serem dados à Yemanjá, dispostos numa bacia de ágate branco. Frazão conta que levava flores brancas e um espelho de prata. A bacia, diz, era parte do espólio da família não se sabia desde quando. Mais tarde compreendeu que representava o útero da Grande Mãe. Naquela época, recorda, as religiões afro-brasileiras eram vistas como de classe social inferior. Sua família, porém, não desprezava de todo estas crenças. O Oráculo dos Astros, ed. Bertrand Brasil, 1998 (1a. edição) O livro se propõe a apresentar um oráculo desenvolvido pela autora, semelhante a um antigo oráculo usado por bruxas medievais. Ele se baseia no conhecimento astrológico para predizer o futuro. Na verdade, trata-se de um instrumento que se destina tanto a consultas de auto-ajuda quanto a consultas oraculares para o futuro. Acompanha o livro um tabuleiro de papel, que a autora chama de mandala, onde o oráculo deve ser disposto. Esta mandala é uma roda onde estão dispostas as doze casas do zodíaco. Cada casa possui atributos específicos, segundo o conhecimento astrológico. O jogo consiste em fazer uma pergunta e lançar as peças do oráculo sobre a mandala. Estas peças representam os planetas e três luas diferentes. Cada planeta recebe atributos segundo

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a astrologia, e cada lua (nova, minguante e cheia) recebe atributos específicos segundo a crença da wicca. Somando-se treze peças, a autora afirma que tem-se, então, o “número mágico das bruxas, o número do antigo calendário lunar”(1998: 18). As peças referentes aos planetas e luas, no entanto, não estão incluídas no livro. A preocupação da autora para não inserir as pedras ao “pacote” era fazer com que a mandala fosse simplesmente um molde, e as peças procuradas pelo consulente. “É um presente de hippie”, diz ela, “por isso é artesanal” (1998 :173). A autora explica quais são os atributos de cada casa, de cada planeta e lua e de cada signo. Esse conhecimento é necessário ao uso do oráculo. Quando uma determinada peça cai sobre determinada casa, uma resposta vinculada a essa combinação é dada pelo jogo. Todas as combinações possíveis recebem a interpretação da autora que, não obstante, sugere um estudo mais profundo da astrologia para um melhor aproveitamento das possibilidades de seu oráculo. A Panela de Afrodite, ed. Bertrand Brasil, 2000 (3a. edição) Mesmo antes de seu lançamento formal pela autora, o livro já estava na sua terceira edição. A apresentação do livro foi escrita por Ronaldo Periassu, companheiro de Frazão. Na folha de rosto, a dedicação às “filhas de Afrodite”, mulheres e cozinheiras, o que não nega a predileção da autora pelo público feminino, especialmente aquele ligado aos afazeres domésticos. Recheado de poesia, o livro é um convite ao prazer sensual da mesa. Flores, frutas e ervas sagradas à deusa Afrodite têm seus mistérios revelados em pequenas sugestões para feitiços de amor. Como em seus livros anteriores, a autora chama atenção para uma lista detalhada de instrumentos necessários às receitas e feitiços: porcelanas e cristais, toalhas e guardanapos, talheres de prata e madeira, A Panelas de barro. Afinal, as receitas são feitiços, se incluem no mundo do sagrado, e não podem ser preparados e servidos em recipientes quaisquer. O barro e a madeira chamam a força da terra. A prata liga-se à lua. Porcelanas e cristais são o toque que tira o comensal da refeição cotidiana, e leva-o a ingressar numa ocasião especial, a ocasião de um ritual e um feitiço. Cinco tipos de receitas são apresentadas, todas elas provenientes da culinária grega: as “receitas para conquistar um amor”, “receitas para reconquistar um amor”, “receitas para renovar a paixão”, “receitas para a fidelidade no amor” e “receitas para esquecer um amor”. A autora consegue, nesta obra, retomar o fio de seus dois principais temas: o amor e a culinária. Na

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bruxaria, o amor se torna arma fundamental de auto-transformação e palco de inúmeros feitiços. A culinária, por sua vez, é o espaço dos feitiços, sejam eles de que natureza forem. A comida é o próprio feitiço, preparada na cozinha, o local privilegiado para a prática da bruxaria.

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