Mulheres que reivindicam seus corpos: autonomia e corporeidade na hora do parto.

July 14, 2017 | Autor: Elaine Müller | Categoria: Gender, Mulher, Gênero, Humanizaçao do Parto e nascimento, Parto, Direitos Sexuais E Reprodutivos
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Mulheres que reivindicam seus corpos: autonomia e corporeidade na hora do parto. Elaine Mülller* Marília Nepomuceno** RESUMO Este artigo objetiva confrontar as reivindicações de mulheres pelos seus corpos, durante o processo do gestar e parir, e algumas das perspectivas feministas que, aparentemente, se opõem a tais reivindicações. Numa pesquisa sobre ciberativismo feminino e maternidade, no âmbito do projeto “Narrativas do nascer: abordagem discursiva e banco de dados sobre parto e nascimento”, com fomento do CNPq, pudemos observar uma reivindicação ressoante da fisiologia do corpo da mulher enquanto ferramenta libertadora, em especial no exercício da maternidade. Partos fisiológicos, sem intervenções farmacológicas ou obstétricas, passam, assim, a serem vistos como experiências “empoderadoras” nas trajetórias de vida das mulheres. O movimento de mulheres pela humanização do parto e nascimento dialoga estruturalmente com a reivindicação da fisiologia como ferramenta libertadora. E assim desafia a visão clássica: onde a natureza aparece como elemento a ser dominado. Este fenômeno aponta para duas questões importantes a serem enfrentadas pela teoria feminista. Primeiramente, um redimensionamento da relação entre natureza e cultura, já que estas mulheres exigem um uso do corpo de uma forma supostamente mais “natural”, autônoma, livre da medicalização exacerbada, considerada exagerada e invasiva pelas mulheres (como formas de colonização do corpo da mulher e violência obstétrica praticada com o uso abusivo da tecnologia no atendimento ao parto, como uma das principais questões) Em segundo lugar, aponta-se para a possibilidade de um exercício de uma maternidade “politizada”, questionando a tecnocracia e androcentrismo da ciência obstétrica e ginecológica praticada hegemonicamente. Palavras chave: Gênero. Saúde. Corpo. Parto. Direitos Reprodutivos.

*

Doutora, Professora do Departamento de Antropologia e Museologia da UFPE, coordenadora do projeto “Narrativas do nascer: abordagem discursiva e banco de dados sobre parto e nascimento”, com fomento do CNPq. E-mail: [email protected]. ** Graduanda de Ciências Sociais na UFPE, bolsista de extensão/CNPq. E-mail: [email protected]. 833

INTRODUÇÃO Este breve artigo é reflexão resultante de um projeto ainda em andamento que tem como propósito constituir um banco de dados com narrativas acerca dos temas sobre o parir e o nascer. Os objetivos deste projeto são, assim, bastante amplos, e vários temas tem aparecido como relevantes para se pensar gêneros, mulheres, corpos e maternidades na contemporaneidade (ciberativismo feminino, publicação de vídeos e de relatos de parto na internet, movimento de humanização do parto e do nascimento, as relações entre corpo e religiosidades, políticas públicas, confrontos de saberes, biopoder e bioética, etc). Ao lidar com diferentes narrativas sobre parto e nascimento, percebemos a proliferação de discursos de mulheres que reivindicam os seus corpos durante o processo do gestar e parir, valorizando os processos fisiológicos do corpo da mulher e rejeitando

a

intervenção

excessiva

do

atendimento

médico

hegemônico

da

contemporaneidade. Esta valorização do que se convencionou chamar em nossa cultura ocidental de “natureza” pode ser feita através do discurso científico da medicina baseada em evidências (MBE), através da valorização dos saberes repassados por gerações de parteiras pela oralidade, ou ainda pela relação com formas diversas de religiosidades. O corpo da mulher visto como uma ferramenta libertadora e empoderadora, em especial no exercício da maternidade, nos parece ser uma perspectiva um tanto distinta de muitas proposições formuladas pelos feminismos. Elaine Tuttle Hansen (apud Jeremiah, s.d.) diz que o feminismo pensando a maternidade é um drama em três atos. O primeiro seria o de Repúdio da maternidade e maternagem, com autoras como Beauvoir, Firestone, Millet, Friedan. A maternidade localizada no corpo da mulher seria a origem da dominação das mulheres pelos homens. Para Lucila Scavone (2001), neste primeiro momento a maternidade foi reconhecida como um handicap (defeito natural) que confinaria as mulheres em uma bio-classe. 834

O segundo ato, Recuperação, traria tentativas de revisão da maternidade (com Rich, Chodorow, Dinnerstein, Ruddick, O`Brien, Mitchell, Irigaray, Cixous, Kristeva). Scavone (2001) também aponta como o feminismo da segunda onda problematiza a recusa inicial à maternidade: “Passado o impacto da recusa da maternidade vieram perguntas dentro do movimento feminista: ‘nós (as mulheres) queríamos ser definidas sem a maternidade? Aceitávamos ser mutiladas de uma parte de nossa história, de nossa identidade?’ Chega-se, então, a um segundo momento, que Ferrand e Langevin denominam ‘negação do handicap’. A maternidade passa a ser considerada como um poder insubstituível, o qual só as mulheres possuem e os homens invejam” (Scavone, 2001, p. 140).

O terceiro ato, Em andamento, consistiria em tentativas de ampliar e desafiar os pensamentos anteriores. Scavone (2001) aponta para um momento de desconstrução do handicap natural, através da constatação de que a posição social das mulheres não é determinada pelo fato biológico da reprodução, mas pelas relações de dominação que atribuem

significado

social

à

maternidade.

Para

Hansen,

este

momento

é

crescentemente caracterizado por um impasse: o feminismo ainda não teria chegado a um consenso sobre como redefinir o conceito ou ajustar o sistema. As mulheres querem recusar a maternidade como definida nos velhos termos, mas sem perder de vista tanto as pesadas responsabilidades quanto os intensos prazeres de gestar e educar filhos. Jeremiah (s.d.) propõe uma outra narrativa, que reconta a mudança das explicações sobre a maternagem para uma consciência pós-estruturalista mais libertadora das subjetividades maternais como diversas, multifacetadas e mutáveis. Esta perspectiva nos parece ser bastante interessante para refletir sobre os aspectos da maternidade, em especial sobre a vivência do parto, que trazemos aqui. Antes de trazer alguns exemplos desta reivindicação das mulheres sobre os seus corpos no momento do parto e no exercício da maternidade, acreditamos que seja importante esclarecer de quais mulheres estamos falando aqui, já que falar sobre estes temas e suas relações com o feminismo, parece constantemente suscitar uma incômoda mulher universal, a mulher-mãe (ou até a mulher-cis). Sabemos que a maternidade e suas questões não dizem respeito, diretamente, a todas as mulheres, 835

embora indiretamente as mulheres que optam ou não podem ter filhos são constantemente

questionadas

sobre

suas

escolhas

ou

“problemas”.

Consequentemente, a maternidade não pode ser definidora do que vem a ser mulher; tampouco as reivindicações às quais nos referimos aqui contemplam todas as mulheres. Falamos aqui de mulheres dotadas de um aparato biológico que as permite engravidar, gestar e parir, pelo menos durante um período de seu curso de vida, e que optam por fazê-lo. Algumas dessas mulheres, em geral a partir de suas próprias vivências, tem enfatizado o potencial dessa experiência como “empoderadora” em suas vidas.

1.

A reivindicação do próprio corpo: o problema do parto que não pertence à mulher Afinal de contas, de quais reivindicações falamos aqui? Já há algumas décadas

que o uso excessivo da tecnologia e a padronização dos atendimentos obstétricos, que tornam o nascer no Brasil uma espécie de produção em escala, vem sendo denunciados. A partir da perspectiva do movimento de humanização do parto e do nascimento que surge no campo da saúde, as intervenções desnecessárias são denunciadas como sendo danosas para mãe e bebê, expondo-os a maiores riscos, desconforto e dificuldade do estabelecimento do vínculo. Embora exista um movimento social neste sentido desde os anos 60 ou 70, somente muito recentemente é que algumas dessas bandeiras são incorporadas por políticas públicas em saúde, e seguem sendo reiteradamente não praticadas na grande maioria dos atendimentos feitos em hospitais públicos e privados do Brasil. Como forma de resistência e articulação, as mulheres têm feito uso da internet como uma poderosa ferramenta de compartilhamento de informações. Sites, blogs e grupos em redes sociais disseminam informações sobre as verdadeiras indicações da cesárea, formas de identificar se um obstetra é cesarista ou não, mitos relacionados ao parto normal, profissionais indicados para o atendimento de parto normal, práticas 836

benéficas para a preparação para o parto, cuidados com o recém-nascido, etc. Estes espaços virtuais são alimentados tanto por profissionais do campo (obstetras, obstetrizes, enfermeiras, parteiras, doulas, terapeutas diversos que acompanham gestação, parto e aleitamento) quanto por mulheres que se aproximam de grupos de apoio ao parto normal, sejam eles presenciais ou virtuais, compartilham suas próprias vivências e tornam-se, juntamente com estes profissionais, ativistas. Blogs como o “Cientista que Virou Mãe” de autoria da Ligia Moreiras Sena, doutoranda em Saúde Coletiva, que problematizam e trazem à luz reflexões, informações e relatos a respeito da temática do parir e nascer no Brasil, assim como questões relacionadas a maternagem e criação de filhos, e outras demandas da vida em sociedade, trazem contribuições robustas dentro deste cenário que estamos procurar

mapear.

1

“Ser mãe é algo que se aprende enquanto somos”. Quando uma mulher descobre que está grávida, ela pode passar os nove meses da gestação e grande parte de sua experiência como mãe apenas reproduzindo o que ouviu do senso comum – mãe, avó, vizinha, amiga, sogra, jornais, televisão, novela, ou qualquer outra fonte de informação –, ou pode ir ativamente à busca de conhecimentos sobre como viver sua gravidez, como trazer seu filho ao mundo, como cuidar de uma nova vida, como ser mãe, como 2 ser uma mulher-mãe “

Nessa perspectiva de realocação da figura da mulher que opta por ser mãe, mas não necessariamente irá reproduzir as subordinações delegadas tradicionalmente pela sociedade para as “mulheres-mães”, é que mulheres estão indo em busca de informações e trocas de experiências em grupos de apoio e blogs, afim de reorganizar as ideias sobre como mudar suas atuações nos espaços privados e públicos, sob o mote de não mais viverem submetidas a um discurso patriarcal de subordinação das mulheres cuidadoras. Inclusive, um dos temas bastante procurados nesse nicho de ciberativismo feminino é o da maternagem e paternagem ativas, nas quais as reflexões

1

Endereço do Blog: www.cientistaqueviroumae.com.br Trecho do texto do Blog Cientista que Virou Mãe: “Maternidade ativa: mães para um mundo melhor” http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2012/01/maternidade-ativa-maes-para-um-mundo.html 2

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acerca dos cuidados, divisões de tarefas em relação as crianças vem sendo redescutidos. Dentro deste universo, Ligia Moreiras Sena traz com regularidade questões de reflexão acerca da Maternagem/Paternagem Ativa e Consciente, Autonomia e Medicalização do Corpo Feminino3; assim como elabora recorrentemente sobre Maternidade e Violência Contra a Mulher4. Outro Blog que também é muito acessado no mundo do ciberativismo feminino e materno, e que também problematiza autonomia, direito ao corpo, medicalização e evidências científicas é o “Estuda, Melania, Estuda”5, blog da PhD em Obstetrícia Melania Amorim6, e que traz uma perspectiva mais técnica, numa linguagem mais próxima ao universo dos profissionais de saúde, mas que costuma também ser acessado por mulheres em busca de informação e que não necessariamente são profissionais da saúde. Com enfoque semelhante, onde há a preocupação com o corpo da mulher que escolhe gestar e parir, existem mais uma gama de páginas com números muito significantes de acesso, como a página do facebook e o tumblr “Divas Parideiras”, e o blog e página do facebook “Mulheres Empoderadas”.7 Nesse sentido, é possível pensar a busca de mulheres por um parto sem intervenções excessivas, e uma maternagem reivindicadora e valorizadora da experiência fisiológica dos corpos, como uma confrontação ao handicap e a maternidade encarada sobre os velhos termos a respeito do espaço e papel social deixado para a mulher-mãe ocupar. Pois a perspectiva contemporânea, a qual estamos 3

“Medicalização da infância e do corpo feminino - o que você pensa sobre isso?” http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2013/07/medicalizacao-da-infancia-e-do-corpo.html 4 “Maternidade e violência obstétrica: pautas feministas” http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2013/12/maternidade-e-violencia-obstetrica.html 5

“Feminismo, direitos reprodutivos e evidências: reflexões sobre o caso da cesariana forçada de Adelir, em Torres RS. CESARIANA CONTRA A VONTADE DA MULHER - O CRIME DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA” -

http://estudamelania.blogspot.com.br/2014/04/feminismo-direitos-reprodutivos-e.html 6 Melania Amorim possui graduação em Medicina pela Universidade Federal da Paraíba (1989), residência médica em Ginecologia e Obstetrícia pelo IMIP (1992), mestrado em Saúde Materno Infantil pelo Instituto Materno Infantil de Pernambuco (1995) e doutorado em Tocoginecologia pela Universidade Estadual de Campinas (1998). Pósdoutorado concluído em 2009, também pela Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorado na Organização Mundial de Saúde (OMS) em Genebra (2010). Tem Título de Especialista em Ginecologia e Obstetrícia (TEGO) por concurso (1992). 7

Tumblr: http://divasparideiras.tumblr.com ; Blog: www.http://mulheresempoderadas.com.br/ 838

investigando, reivindicada em planos e relatos de parto, assim como na experiência comentada dentro da esfera do ciberativismo feminino e materno das redes sociais virtuais, traz questionamentos acerca da constituição da identidade da mulher-mãe, no sentido de poderem experienciar seus corpos “in loco”, nos processos fisiológicos, sem que isso seja ferramenta para a subjugação dos corpos e das experiências de mulheres. As novas e cada vez mais crescentes narrativas de mulheres sobre suas experiências, vem inclusive sendo pautadas em artigos acadêmicos e registros fílmicos, e por um lado causam certo estranhamento, pois evidenciam um contexto de assistência médica e obstétrica padronizada e praticada rotineiramente com violência física e moral segundo os relatos das próprias mulheres, no Brasil. Como mostra o filme “Violência obstétrica – a voz das brasileiras” (melhor documentário no Seminário Internacional Fazendo Gênero, 2013), que denuncia em detalhes esta realidade, e que foi feito coletivamente, a partir de uma pesquisa baseada na Internet, com as narrativas das mulheres feitas e gravadas por elas mesmas, em suas casas (DINIZ, 2014). Estas narrativas em primeira pessoa (os planos, relatos e vídeos de parto), publicadas pelas mulheres que narram suas experiências, além de elaborarem e difundirem conhecimentos e informações gestados coletivamente pelas redes sociais, também promovem novas estéticas do nascimento (Müller e Pimentel, 2013). Pensamos em novas estéticas, aqui, num sentido bem amplo: no cenário onde as mulheres parem, com a realocação dos atores do processo e as mulheres passando a ser o centro do cenário, e não mais uma coadjuvante em meio aos profissionais e máquinas. Nova estética no sentido do que a mulher pensa e sente em relação a experiência de seus corpos. Assim como novas estéticas de discurso sobre o tema do parto e sobre o corpo da mulher mãe. Na conexão através das redes sociais as mulheres usuárias dos serviços de assistência à saúde têm mais facilidade ao acesso das recomendações atuais sobre assistência ao parto. O mundo virtual permite

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“acesso as evidências científicas sobre segurança e efetividade das práticas de saúde que os profissionais. Com o advento da Internet, as usuárias e suas famílias conhecem a realidade de outros países, onde políticas públicas promovem o parto espontâneo e centrado na mulher. Entram em contato com a literatura científica e de direitos sobre o parto (em linguagem “livre de jargão”, dirigida a usuárias), o que leva a um choque cultural frente às crenças dos profissionais de saúde. Ao se apropriarem da informação antes monopolizada pelo médico, as usuárias relativizam a autoridade do profissional, afirmam sua insatisfação com o que é oferecido, reinterpretam sua experiência, denunciam a violência a que se sentem submetidas, e reivindicam seu direito de escolha e recusa informada”. (DINIZ, 2014, pag. 217)

Partos fisiológicos, sem intervenções farmacológicas ou obstétricas, passam, assim, a serem vistos pelas próprias mulheres como experiências “empoderadoras” em suas trajetórias de vida. Além disso, parir naturalmente, com o mínimo de emprego de tecnologia possível, seria uma forma de questionar o uso exacerbado destas técnicas masculinas, androcêntricas, pautadas num modelo de biomedicina que vê o corpo da mulher como defectível e imperfeito - o que Robbie Davis-Floyd (1984), chama de modelo tecnocrático de atendimento. Nesse sentido, diante da perspectiva de valorização do parto fisiológico, o corpo feminino, antes necessariamente carente de resgate, passa a ser redescrito como apto e capaz de incorrer dentro do processo do parto sem que haja a necessidade da prática tecnocrátrica de assistência (DINIZ, 2005). O movimento de mulheres pela humanização do parto e nascimento dialoga estruturalmente com a reivindicação da fisiologia como ferramenta libertadora. E assim desafia a visão clássica: onde a natureza aparece como elemento a ser dominado pela técnica. E diante da interpretação do ativismo por um parto que respeite as escolhas das mulheres e não provoque violência, “a humanização da assistência pressupõe que a técnica é política, e que inscritos nos procedimentos de rotina - na imobilização, na indução das dores do parto, e cortes desnecessários, na solidão, no desamparo - estão “encarnadas” as relações sociais de desigualdade: de gênero, de classe, de raça, entre outras. Assim, a mudança técnica (proposta pelo movimento de humanização do parto e nascimento) busca inverter a lógica que avalia o parto vaginal como primitivo e arcaico. Propõe que o objetivo de facilitação da fisiologia e da satisfação com a experiência é o “moderno”, enquanto a intervenção tecnológica acrítica, iatrogênica e sem base na evidência é o que se busca superar.” (DINIZ, 2005, pag. 633)

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O movimento de mulheres e profissionais pela humanização do parto direciona atenção para o fato de que as mulheres precisam e estão em busca de serem restituídas do direito a seus corpos, exercício da sua corporeidade e autonomia. Tanto a questão do parto típico do modelo tecnocrático, um parto vaginal repleto de intervenções em sua maioria não consentidas - como a episiotomia de rotina - quanto o enorme número de cesáreas agendadas sem reais indicações clínicas possuem em comum o fato de serem “partos” que não pertencem às mulheres. A intersecção que une os dois tipos de experiências de “parto”8 mais comuns no Brasil é o fato estrutural da mulher não ser sujeito ativo e protagonista do evento. É neste meio que, ao lado de “empoderamento”, a ideia de “protagonismo feminino” é dos termos mais propagados pelo movimento. A reivindicação por um parto vaginal sem violência ou intervenções desnecessárias, e por uma cesariana com real indicação clínica parece dizer respeito ao empoderamento9 feminino em lutar pessoal e coletivamente contra um sistema patriarcal e machista, e ao direito ao corpo e autonomia dentro do processo de assistência e atenção ao parto e nascimento. 2.

Inconclusões: Maternando novos feminismos? Quando voltamos o olhar para lugares mais abrangentes que os relacionados ao

parto, descobrimos que muitas mulheres se posicionam com relação ao direito de autonomia sobre os seus corpos. O campo das artes visuais é um exemplo, com artistas como Evelyn Negahamburguer, uma jovem que ganha visibilidade no cenário contemporâneo com suas obras que denunciam as rígidas exigências estéticas às quais as mulheres são submetidas, como a lipofobia ou gordofobia, a transfobia, assim como as exigências estéticas referentes ao preconceito racial ou de cor. Nessa 8

Utilizamos o termo “parto” entre aspas, dialogando com o termo eufemístico, que consideramos problemático, “parto cesáreo”. 9 Sobre o uso do termo mulheres “empoderadas” em relação a experiência do parto, sugerimos a leitura do texto de Ligia Moreiras Sena sobre “Maternidade e violência obstétrica: pautas feministas” http://www.cientistaqueviroumae.com.br/2013/12/maternidade-e-violencia-obstetrica.html 841

perspectiva mais abrangente é possível ver, inclusive, mulheres reivindicando uma estética de corpos “livres”, com a não-proibição da expressão de seus corpos (seja de seus pelos, quando decidem por não se depilar, ou de seus peitos, na hora em que resolvem amamentar em público). Há diante dessas questões que abarcam a livre expressão de seus corpos, ou seja, a expressão dos corpos do jeito que as mulheres desejem-no experienciar, uma objetiva nuance de conflito em relação a despudorização do próprio corpo feminino, território marcado por invizibilizações e impedimentos. É possível e necessário, aqui, contextualizar os termos do título de nosso trabalho: mulheres - reivindicam seus corpos - autonomia - parto. Falamos de mulheres que se opõem tanto a padrões de normatização do corpo feminino, quanto a tabus 10 que o cercam e a tocofobia11, relacionando-os com outras formas de subjugação das mulheres e seus corpos. Para além da experiência pontual do parto, mas se relacionando com ela, a maternidade, ou a maternagem, pode ser pensada de modos alternativos, ou ampliadores de horizontes e sujeitos. Num texto extraído do blog Blogueiras Feministas, Carolina Pombo diz: “Aprendi, especialmente com Edgar Morin, Francisco Varela, e outros pensadores corajosos, que o sujeito e o mundo são construções simultâneas, sempre abertas ao movimento – e não um movimento aleatório, mas com sentido, relacionado ao passado, ao presente e ao futuro. Definir então quem é o sujeito a quem me refiro, enquanto escrevo e me relaciono com o mundo, é sempre uma tarefa ingrata – uma tarefa inacabada. Aquela que agora é definida como “mulher”, em outra ocasião, é a “engenheira”, a “mãe”, a “filha”… Depois então de entender a crítica das feministas mais contemporâneas, as pós-estruturalistas como Judith Butler, que propõe o gênero como performance, e portanto, o descolam completamente de uma ideia naturalizada/estática, o sujeito do meu feminismo se tornou ainda mais aberto e em permanente construção. Mas, toda vez que eu vejo uma crítica à naturalização desse sujeito, lembro-me da ideia (subversiva) de que a própria natureza não é estática. A perspectiva da complexidade subverte a ideia clássica de que a natureza é pré-existente à cultura. A própria vida possui seu “código” paradoxal: tudo muda, o tempo todo, no mundo… (não adianta fugir, nem mentir, pra si mesmo agora, há tanta vida lá fora!). As mudanças não são aleatórias nem pré-programadas, elas se dão 10

Estamos trabalhando melhor a questão do tabu do parto em outro trabalho discutindo sobre as resistências à absorção desta temática na academia, a despeito de outros temas relevantes para as discussões feministas das ciências sociais (o aborto seria um bom exemplo). 11 Tocofobia é a fobia a parto. Termo que se refere a medo, aversão, nojo do parto 842

nas interações, nos sistemas formados pelas pessoas, a tecnologia, pelos animais, as plantas, os mares, por aquilo que decidimos chamar de natureza e o que resolvemos abstrair dela. Finalmente, vejo o quanto é limitador dividir as coisas nessas duas categorias (natural x cultural), e, ao mesmo tempo, entendo o quanto é difícil abrir mão delas. A maternidade é especialmente interessante para nos fazer pensar nesse paradoxo, sem medo e sem piedade. Ela aponta para uma “origem comum”, para um evento que, aparentemente, não muda nunca – o nascimento. E, também, exige uma perpetuação de práticas para se manter: não há maternidade sem alguém para exerce-la. Ela é sempre aberta, inacabada. Ser mãe é algo que nos conecta novamente à natureza (já que resolvemos nos separar dela, ao nos assumirmos “os únicos animais racionais”), porque nos faz reconhecer a semelhança com os demais seres vivos desse planeta. Mas, também nos distingue radicalmente deles, porque é diversa e contraditória, cheia de sentidos. Aquela que pari pode não desejar maternar e não fazê-lo. Aquela que não dá à luz, pode ser uma excelente mãe. Não podemos ignorar nem uma nem outra. A maternidade tem um sujeito aberto por definição, sem descolá-lo da natureza. E aí que eu vejo a enorme riqueza que esse conceito traz para o feminismo. Se entendermos a natureza como a universalidade do paradoxo, por que então construir um sujeito para o feminismo em oposição ao que é natural? Quer dizer, se considerarmos que a mudança e a diferença fazem parte daquilo que consideramos natural, então, falar de gênero, transgênero, e outras “performances” não precisa ser feito em oposição à própria natureza. Então, não é necessário contrapor corpo e subjetividade, biologia e cultura. Então, falar de mãe como sujeito do feminismo implica em compreender que este é um sujeito sempre em aberto, entre regularidades e diferenças, heranças históricas e agenciamentos individuais.” (POMBO, 2013).

É neste sentido que falamos da importância do redimensionamento da relação entre natureza e cultura pela teoria feminista - uma discussão que sempre fez parte das reflexões de feministas. Estas mulheres ativistas exigem um uso do corpo de uma forma supostamente mais “natural”, que aqui seria sinônimo de uma forma mais autônoma, livre da medicalização exacerbada, considerada exagerada e invasiva pelas mulheres (como formas de colonização do corpo da mulher e violência obstétrica praticada no atendimento ao parto). É também neste sentido que falamos de um reposicionamento do sujeito mulhermãe, que passa de um lugar de passividade para uma positivação da maternagem, relacionando-a com sua subjetivação e seus cuidados de si, e politizando as experiências de maternagem. Emily Jeremiah (s.d.) fala de uma mudança no uso dos termos, de “motherhood” (maternidade), cada vez menos utilizado, para o em voga 843

“mothering” (maternagem). A ideia de maternidade (motherhood) seria um estado fixo, estático - talvez justamente no sentido que acreditamos despertar a mulher universal. Já a maternagem, ou o cuidado maternal (mothering) seria um conjunto de ideias e comportamentos mutáveis, contextuais, e, na perspectiva da autora, performáticos, que representariam uma prática ativa progressista, e, de certo modo, potencialmente subversiva. Jeremiah (s.d.) utiliza a ideia de performatividade de J. Butler (enquanto “prática reiterativa e citacional12 pela qual o discurso produz os efeitos que nomeia”), que evita a fixação artificial, e permite a possibilidade de interromper e perturbar essa produção discursiva para transformá-la efetivamente. Ser mãe, nesta perspectiva, torna-se um verbo (o maternar), com o potencial de romper com o discurso dominante sobre a maternidade. Ao relacionar a maternagem com a ideia de performatividade, pensando em termos de performances maternais, talvez esta autora nos dê pistas para uma leitura não apenas para o ciberativismo feminino que abordamos aqui, mas para diversas formas de exercício deste maternar. Lidar com esta diversidade é mais do que um desafio teórico, é um desafio para as relações de gênero (entre mulheres, com homens, com todas as formas de ser pessoa), o que aponta, a nosso ver, para a necessária superação do essencialismo no qual muitos discursos sobre o ser mãe se edificam. Ou então, nas palavras de Katrina Chambellis de Moura, feminista, anarquista, mãe aos dezessete e militante do Coletivo Maria vem com a gente: Privilégio é mantido pelo sistema opressor. Sem o sistema, sem privilégio. Não tem nenhum sistema opressor garantido o “direito de parir” e o “direito de não querer parir”. E o feminismo deve dialogar com essas particularidades da maternidade. Assim como deve falar sobre as particularidades das opressões das mulheres trans. Nenhuma mulher deve se sentir culpada por falar do seu corpo e da sua vivência. Nossas experiências se complementam e não devem ser motivos para rompimentos, medo, coerção e silenciamento nos meios de ativismo. Interseccionalidade é sobre dialogar com todas as vertentes de opressão, e não

12

Citacionalidade é “a propriedade do signo de ser retirado do seu contexto “original” e deslocado para outro, produzindo, por isso mesmo, significado” http://revistacult.uol.com.br/home/2013/11/o-percurso-daperformatividade/ 844

provocar silenciamento de mulheres que tem diferentes experiências das nossas.

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