MÚLTIPLOS OLHARES: Notas sobre uso e conceito do termo cultura na Antropologia

June 2, 2017 | Autor: Thais Ziliotto | Categoria: Cultural Studies, Antropologia
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MÚLTIPLOS OLHARES: Notas sobre uso e conceito do termo cultura na Antropologia Thais Letícia Borazo Ziliotto* ''eu é um outro.'' Rimbaud

Seria pretensioso e ingênuo presumir que em um texto simples se pudesse conter todas as variáveis conceituais do termo cultura. Cabe, por ora, destacar as correntes que mais se difundiram no campo da Antropologia, e que ajudaram a delinear a compreensão comum de cultura que temos hoje. A pertinência do tema não se esgota no simples interesse em delimitar o que herdamos do natural e o que apreendemos socialmente, mas ainda de trabalhar um relativismo cultural que nos permita compreender as formas e hábitos de outros povos pra além da recusa ao estranho, nos percebendo também como reprodutores de práticas puramente sociais – tão ou mais inusitadas quanto a que nos espanta. Os autores que se debruçaram sobre o tema divergem muito quanto a sua definição fática, e isso se explica pela inserção ideológica e social – e mesmo temporal – a que cada um estava submetido. Edward Tylor nos apresenta uma perspectiva evolucionista da cultura, definindo-a como “um todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade.”1. Nessa concepção, a cultura de um povo seguiria por etapas ou estágios, sendo possível até mesmo estabelecer uma ''escala evolutiva’' da cultura. Não é de difícil constatação o fato de que essa definição bebe da influência darwinista do século XIX, evidenciando o etnocentrismo europeu e a crença em um suposto desenvolvimento linear também na esfera cultural. A reação a essa perspectiva se deu, em especial, pelos estudos de Franz Boas principal teórico do particularismo histórico 2 - que baseou seus estudos no interesse pela diferença, buscando entender as culturas, e não a Cultura. Para ele era inútil tentar uniformizar o desenvolvimento de um povo de forma determinista, já que cada grupo traz suas particularidades construídas de forma específica, segundo suas próprias experiências. Nem mesmo o aspecto geográfico seria determinante, uma vez que em cenário muito semelhante em termos físicos podem se desenvolver hábitos completamente diversos, derivados

das

experiências sociais de cada povo. Em suas palavras * Graduanda em Direito pela UFPR. email: 1

[email protected]

LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Zahar. Rio de Janeiro, 1986, pg.25

Ou Culturalismo. Corrente da antropologia estadunidense defendida por Boas que preconizava a particularidade histórica de cada civilização, e rejeitava qualquer forma de universalização de padrões culturais evolucionistas. 2

as ideias não existem de forma idêntica por toda parte: elas variam. Tem-se acumulado material suficiente para mostrar que as causas dessas variações são tanto externas, isto é, baseadas no ambiente (…), quanto internas, isto é, fundadas sobre condições psicológicas. A influência dos fatores externos e internos corporifica um grupo de leis que governa o desenvolvimento da cultura.3

A teorização de Boas se firma na multiplicidade de tendências que uma cultura pode seguir em resposta às suas próprias formas de organização, sendo inviável estabelecer padrões gerais sem levar em consideração a particularidade de cada caso. Assim, contrapôs o método comparativo, antes utilizado, ao método empírico e particularista, uma vez que não seria possível comparar de forma simplista culturas tão diversamente influenciadas. Leslie White, antropólogo estadunidense neoevolucionista, propôs que cultura poderia ser definida como o conjunto de nossos símbolos, incluindo a linguagem, o que explicaria porque, em diferentes culturas, o mesmo signo tem significados completamente distintos: Toda cultura depende de símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que cria a cultura e o uso de símbolos que torna possível a sua perpetuação. Sem o símbolo não haveria cultura, e o homem seria apenas animal, não um ser humano.... O comportamento humano é o comportamento simbólico.4

Seria, portanto, um sistema adaptativo e cumulativo muito parecido com o conceito darwinista de seleção natural. As mudanças culturais nada mais seriam que adequações necessárias no plano social para a melhor adaptação do humano. Na esteira da desconstrução do neoevolucionismo está Clifford Geertz. Partindo da percepção de cultura como sistema simbólico 5, o antropólogo rebate a premissa de que o processo cultural está internalizado nos atores. Para ele, os submersos em uma cultura são atores de sua construção. Cultura seria ''não um complexo de comportamentos concretos mas um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas, regras, instruções ( que os técnicos de computadores chamam programa) para governar o comportamento’'6. Haveria, portanto, uma ''estrutura cultural guiadora de ação 7 '' um conjunto programado e programável de expectativas de ação que orientariam o partícipe da cultura na convivência em sociedade. Todos nascem com a possibilidade de se adaptar a qualquer desses '‘programas’', e isso explicaria a variedade de culturas frente à unidade da

BOAS, Franz. As limitações do método comparativo da antropologia. Antropologia Cultural. Trad Celso Castro. - 5 Ed. - Rio de Janeriro: Jorge Zahar. Ed. 2009 p. 27 4 LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit. p. 55 5 LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit. p. 61 6 LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit. p 62 7 GEERTZ, Clifford. A Interpretação das Culturas. pág. 39 3

espécie humana. Por outra via, Claude Lévi-Strauss entendia a cultura de forma estruturalista, no sentido de que haveria uma unidade psíquica da humanidade - uma Cultura que serviu como base para todas as outras se desenvolverem - e estas se diferenciariam por conta dos diferentes resultados empíricos na vivência de cada grupo. Ao contrário do particularismo de Boas, Levi-Strauss buscou ''descobrir na estruturação dos domínios culturais – mito, arte, parentesco e linguagem – os princípios da mente que geram essas elaborações culturais. ''8. Ou seja, os aspectos culturais dos povos derivariam de uma mesma Cultura, inerente ao humano, mas se rearranjariam de acordo com sua experiência fática no decorrer da História. Distinguiríamos-nos, portanto, segundo nossa proximidade ou distanciamento da Natureza, uma animalidade herdada dos nossos ancestrais biológica e psicologicamente e uma apreensão artificial da sociedade em que vivemos9. Na América Latina também se desenvolveram algumas teses referentes ao termo cultura, em especial pela necessidade de se desvincular da produção acadêmica estadunidense e europeia. Dentre as mais famosas definições está a de Enrique Dussel filósofo argentino, que definia a cultura como o conjunto orgânico de comportamentos predeterminados por atitudes ante os instrumentos de civilização, cujo conteúdo teleológico é constituído por valores e símbolos do grupo, isto é, estilos de vida que se manifestam em obras de cultura e que transformam o âmbito físico-animal em um mundo, um mundo cultural.

Ele apresenta a civilização como conjunto de instrumentos a serem utilizados, acumulados durante as gerações, e a cultura como um conjunto de valorações transmitido de forma diferente da instrumental, por meio da comunicação e não da simples técnica, dando origem a um sistema de atitudes10. A principal crítica de Dussel é de que ainda não temos uma autoconsciência como latino-americanos - nem mesmo no sentido cultural - mas que, naturalmente, há uma cultura latina, nosso próprio sistema de atitudes, ainda que subsumido pela força da alta cultura europeia.

À GUISA DE CONCLUSÃO A partir disso, cabe a nós do sul do mundo nos perguntar: em que medida pesa a endoculturação forçada a que fomos submetidos desde a invasão europeia na nossa própria construção cultural? LARAIA, Roque de Barros. Op. Cit. p. 61 LÉVI-STRAUSS, C. & CHARBONNIER, G. Arte, Linguagem, Etnologia: entrevistas com Claude LéviStrauss. Campinas, Papirus, 1989.

8 9

DUSSEL, Enrique Domingo. “Para uma filosofia da cultura, civilização, núcleo de valores, ethos e estilo de vida”. Em: . ensaios sobre cultura latino-americana e libertação. Tradução de Sandra Trabucco Valenzuela. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 71. 10

Oito

Seja ela o conjunto de valores, de crenças, de expectativas de ação, formas de significação, ordenação social, etc. Certo é que esse processo foi inevitável, visto que a troca cultural não pode ser contida quando são colocados em contato intenso e diário povos distintos, por mais que o sejam. Todavia, há que se analisar o profundo impacto ocasionado pela imposição cultural europeia nestas terras. A título de exemplo, podemos destacar não só a dizimação dos povos indígenas por questões biológicas, mas também sua desestruturação pela via da crescente problemática do uso abusivo de álcool pelos índios brasileiros, costume antes não adotado por esses povos, mas introduzido pela colonização do homem branco. Outro exemplo, também relacionado aos povos indígenas brasileiros, é a proibição que se seguiu até o ano de 1986 11 com relação ao uso de psicotrópicos naturais em cerimônias religiosas. O debate e regulamentação para uso religioso se deu principalmente em função da Ayahuasca (coincidentemente utilizada em larga escala por uma vertente católica, o Santo Daime, que utiliza o chá indígena como meio de acesso e adoração a Nossa Senhora da Conceição, Jesus e São José). Interessante notar que outras substâncias também usadas ritualisticamente continuam criminalizadas12. Ora, se há uma característica mais ou menos compartilhada por todas as definições acerca de cultura, essa é a de que ela, assim como a natureza, ''não dá saltos''. A troca natural entre culturas a que estivemos submetidos desde que se formaram os primeiros clãs há milhares de anos não se compara à força homogeneizante da cultura europeia na supressão das culturas periféricas. Da moda à religião, a troca foi substituída pela imposição. Longe

de

pretender

desvelar

nossos

fantasmas,

presumo

que

não

nos

reconheceremos em nós mesmos com o olhar voltado para um centro distante e imperioso. Se me cabe a oportunidade de conceituar cultura, de forma descerimoniosa diria serem os padrões, ainda que individuais, que não se diluem no conceito de humano. Cada mulher e cada homem que se expressa é um universo cultural. E se é a diferença que nos permite a pluralidade, a liberdade de ser, contra a homogeneização hierarquizada e opressora resta a resistência, resta a insurgência.

Em 1986 foi garantido o direito de uso religioso e constatado que a ayahuasca não implicava em prejuízos sociais (Resolução Nº 6, CONFEN, 1986) 11

12

Exemplo disso é a Cannabis, utlizada com fins recreativos e religiosos e ainda criminalizados no país.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA BOAS, Franz. As limitações do método comparativo da antropologia. In: Antropologia cultural. Trad. Celso Castro – 5. Ed. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2009. DUSSEL, Enrique Domingo. “Para uma filosofia da cultura, civilização, núcleo de valores, ethos e estilo de vida”. Em:

. Oito ensaios sobre cultura latino-

americana e libertação. Tradução de Sandra Trabucco Valenzuela. São Paulo: Paulinas, 1997, p. 65-94. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1989. LARAIA, Roque. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986. LÉVI-STRAUSS, C. & CHARBONNIER, G. Arte, Linguagem, Etnologia: entrevistas com Claude Lévi-Strauss. Campinas, Papirus, 1989.

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