MUNDO AQUECIDO – Resenha do livro Seis Graus de Mark Lynas (2009) (Folha de São Paulo)

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* Uma versão reduzida deste texto foi publicada em 15/3/2009 no Caderno Mais da Folha de São Paulo com o titulo “Mundo Aquecido”

MUNDO AQUECIDO – Resenha do livro Seis Graus de Mark Lynas José Augusto Pádua (Professor de História Ambiental na Universidade Federal do Rio de Janeiro) ATMOSFERA COMO CAMPO DE CULTURA “Se compulsassem os documentos que existem sobre o estado físico do Brasil no tempo de sua descoberta...e nas diversas épocas da sua historia...poder-se-ia provar a influencia que exerce a ação do homem sobre o clima das terras que habita, e demonstrar a verdade deste principio enunciado a quarenta anos por Fourier, que a atmosfera é um campo suscetível de cultura”. Essas palavras foram escritas em 1860 por uma voz quase esquecida na história da inteligência brasileira, o jurista e geógrafo cearense Tomás Pompeu de Sousa Brasil. Elas vêm à mente quando do lançamento da edição brasileira de Seis Graus de Mark Lynas, uma das melhores e mais atualizadas analises do tema que está se tornando a mais perfeita tradução do imaginário e dos dilemas político-institucionais da globalização: o aquecimento global. A preocupação de Pompeu, por certo, era bem mais localizada, centrando-se no fenômeno regional das secas nordestinas. Mas a citação revela que a idéia da atmosfera como campo aberto ao impacto da ação humana não se restringe ao debate das últimas

décadas, fazendo parte, pelo menos desde o final do século XVII, do próprio processo de formação da consciência moderna. Para entender o atual debate climático em uma perspectiva histórica mais ampla, no entanto, é preciso observar algumas conseqüências marcantes do processo de expansão global do experimento moderno. Uma delas foi a construção de uma poderosa maquina institucional de produção de conhecimentos. Um volume de informações que em grande parte fica restrito aos periódicos altamente especializados. O método de elaboração de Seis Graus, neste particular, é ilustrativo. O autor assumiu a difícil tarefa de processar de maneira organizada, em benefício do debate público, os dados contidos em numerosos artigos técnicos publicados nos últimos anos em periódicos como “Journal of Geophysical Research” ou “Geophysical Research Letters”. Quem acha que o aquecimento global não é “ciência dura”, mas sim especulação ideológica, ignora propositadamente as fontes que o fundamentam. O alcance da revolução produzida no conhecimento humano a partir do século XIX, por outro lado, tem como eixo conceitual uma enorme expansão das escalas cronológicas de entendimento do mundo. Um naturalista tão renomado como Buffon, no final do século XVIII, especulava com ousadia que a idade de Terra podia ser maior que 70.000 anos. Hoje trabalhamos com a imagem de um planeta de 4,5 bilhões de anos, dotado de uma história imensamente antiga e em permanente transformação. A visão de uma natureza estável e acabada, que a ação humana ameaça, não corresponde em nada à sofisticação das análises ecológicas que hoje se expressam em diferentes ramos da ciência. O que existem são interações complexas, envolvendo inúmeras variáveis, que constroem estados de equilíbrio instável produzidos por uma complicada dança entre ordem e caos, agregação e desagregação. É nesse quadro que o impacto da ação humana, no período recente em que ela passa a existir, pode ser examinado criticamente. O paleontólogo Stephen Jay Gold

lembrava que a explosão de todas as nossas armas nucleares corresponderia a um décimo de milésimo do impacto provocado pelo asteróide que se chocou com a Terra a 65 milhões de anos, provocando a extinção de quase todos os seres vivos, notadamente dos dinossauros. E cerca de 10 milhões de anos depois o planeta continha mais biodiversidade do que antes, demonstrando uma resiliência maior do que podemos sonhar. O exemplo é importante para o debate atual, pois o que aquele choque cósmico produziu foi uma mudança climática brusca, desorganizando as cadeias alimentares que sustentavam o conjunto de seres vivos que então existia. O aspecto mais grave do aquecimento global não é a nossa capacidade para suportar mais calor e sim os seus efeitos sistêmicos sobre as delicadas redes que reconstroem continuamente a natureza planetária. DESAFIOS POLÍTICOS INÉDITOS Poucos observam que o que chamamos de “civilização” surgiu, nos últimos dez mil anos, no contexto de uma configuração da natureza planetária excepcionalmente propícia ao desenvolvimento da vida humana. Nós não temos hoje a capacidade para destruir a vida na Terra, mas sim para afetar alguns aspectos importantes dessa configuração. O elemento mais ameaçado, de fato, é a própria civilização humana. A atmosfera, essa camada de ar que se estende 7.000 metros acima das nossas cabeças, é um meio especialmente vulnerável, pois pequenas variações podem significar uma diferença brutal para a vida humana, mais do que para o planeta. Basta lembrar que na última grande glaciação, entre 80 e 12 mil anos atrás, a temperatura média era apenas 6 graus menor do que hoje. A vida humana existia, mas apenas através de estruturas materiais simples de caça e coleta, por mais que as comunidades humanas sempre sejam culturalmente complexas. As estruturas tecnológicas mais pesadas que surgiram nos

últimos 6.000 anos, alcançando uma escala desmedida com a difusão contemporânea dos combustíveis fósseis, poderiam existir no contexto de menos seis graus? Ou então, na atual inversão da pergunta, de um aquecimento que pode chegar a mais 6 graus em 2100? Segundo os dados obtidos por Lynas, o aumento no teor de gases-estufa (como o gás carbônico e o metano) elevou a temperatura média em 0,8 graus nos últimos 150 anos, uma mudança que já se manifesta em fenômenos como o aparecimento inédito de furacões no Atlântico Sul. Um aumento de mais dois ou três graus seria quase inevitável, inclusive pela pouca capacidade revelada até agora para enfrentar efetivamente o problema. Em algum lugar acima dos dois graus, segundo várias projeções, encontra-se o ponto de equilíbrio cuja ultrapassagem começaria a acionar “gatilhos” ecológicos planetários que poderiam conduzir a um aumento de até seis graus. É o caso da liberação para a atmosfera dos gigantescos estoques de metano existentes no fundo dos oceanos. A meta política para evitar os riscos mais devastadores, portanto, seria estabilizar em mais dois graus. Para tanto seria necessário estabilizar o teor de carbono em 400 ppm (partes por milhão). Hoje o número está em 382 ppm, sendo que vozes fundamentais, como economista Nicholas Stern, consideram irrealista pensar em algo menor do que 550 ppm. O dilema do aquecimento global apresenta uma imbricação fascinante entre ciência e política nos quadros da chamada “modernidade reflexiva”. O debate político global, cada vez mais complicado e socialmente inclusivo, precisa conviver com a combinação difícil entre a relevância crucial e uma certa incerteza estrutural que as previsões científicas apresentam sobre o tema do aquecimento. O clima da Terra é algo muito complexo, sobre o qual não é possível fazer afirmações absolutamente precisas. É preciso conviver com um grau importante de incerteza. Mas a negação conservadora perde cada vez mais terreno diante da gravidade ética do

assunto. Outro aspecto inédito diz respeito à dimensão temporal do debate. É preciso discutir o enfrentamento de uma crise que encontrará seu epicentro em 2100, apesar de suas manifestações começarem agora e poderem intensificar-se em qualquer momento no futuro. A economia de mercado, por definição é uma alocadora de recursos no presente. Não está preparada para responder aos anseios das gerações futuras. A política, que em sua essência teórica deveria considerar o futuro da comunidade como um todo, também sofre de lacunas institucionais para ir além do futuro próximo ou dos interesses dos atuais eleitores. Estamos diante de uma inovação radical. O debate internacional sobre as armas nucleares, por exemplo, não afetava o conjunto da humanidade de forma tão inclusiva. Mesmo assim decisões políticas têm sido relevantes para evitar uma guerra nuclear no longo prazo. Com o aquecimento global, porém, pela primeira vez a longa duração se torna uma questão política central. A estabilização em 400 ou 550 ppm está se tornando o problema mais crucial da humanidade, com todos os sacrifícios sócio-econômicos e complicadas negociações que cada cenário envolve. E toda essa negociação deverá ser feita por políticos e atores sociais que provavelmente não estarão vivos para conhecer as conseqüências plenas de suas decisões! Um desafio que poderá representar um verdadeiro salto de qualidade político para a consciência auto-reflexiva da espécie humana em um contexto histórico de globalização. O que os historiadores do futuro, caso eles existam, terão a dizer sobre os resultados desse dilema?

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