MURAKAMI À BEIRA-MAR: O DIÁLOGO COM O OCIDENTE NA CONSTRUÇÃO DO ROMANCE

July 4, 2017 | Autor: Michele Sá | Categoria: Japanese Literature, Haruki Murakami
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EJHIB 2015 - 9 a 13 de agosto de 2015 Simpósio Internacional de Língua Japonesa como Língua Global (CD)

MURAKAMI À BEIRA-MAR: O DIÁLOGO COM O OCIDENTE NA CONSTRUÇÃO DO ROMANCE Michele Eduarda Brasil de SÁ1

RESUMO Esta comunicação apresenta o projeto de pesquisa homônimo cujo objetivo é estudar o romance “Kafka à beira-mar”, de Haruki Murakami, a partir de elementos da literatura e da filosofia ocidental presentes na obra. São analisadas inicialmente as inferências com a obra de Franz Kafka, com a tragédia grega e com a poesia romântica de Edgar Allan Poe. Sob a perspectiva da Literatura Comparada, serão utilizados inicialmente os conceitos de fantástico, o de interculturalidade, o de limiar, o de identidade e o de imagem/imaginário.

Palavras-chave: Literatura Comparada, Haruki Murakami, interculturalidade, identidade, imaginário.

1 INTRODUÇÃO

Esta comunicação de pesquisa apresenta o incipiente projeto de pesquisa de mesmo nome que tem o objetivo de estudar o romance “Kafka à beira-mar” (Umibe no Kafuka) a partir de elementos da literatura e da filosofia ocidental utilizados por Murakami na construção de seu romance. Além da referência ao escritor tcheco Franz Kafka, de quem Murakami toma o nome para o seu protagonista, há elementos da tragédia grega (mais especificamente o mito de Édipo, no filho que vive sob o peso constante da profecia segundo a qual ele matará seu próprio pai), da poesia romântica de Edgar Allan Poe (no personagem Corvo), entre outros. O escritor japonês Haruki Murakami tem sido mencionado frequentemente como um dos grandes nomes da literatura, gozando de prestígio em vários países do mundo. Já teve seus livros traduzidos para 34 línguas e foi alardeado como favorito ao Prêmio Nobel de 1

Professor Adjunto do Departamento de Línguas Estrangeiras e Tradução da Universidade de Brasília. Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Uberlândia (Bolsista CAPES-PNPD). E-mail: [email protected]

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Literatura em 2012, 2013 e 2014. Por ser um escritor contemporâneo, ainda há no Brasil poucas pesquisas sobre sua obra, mesmo tendo ele alcançado crescente visibilidade desde sua estreia em 1979. A pesquisa se justifica não apenas pela atualidade da obra de Marukami, mas também por ser ele um autor propício para os estudos na área de Literatura e Cultura. Além disso, Haruki Murakami não pode ser lido apenas sob o rótulo de literatura japonesa, mas deve ser explorado com o instrumental da Literatura Comparada justamente por demonstrar tantos pontos de contato (para evitar a palavra “influências”) em relação à cultura ocidental.

2 CONCEITOS E ABORDAGEM TEÓRICA

A pesquisa, de natureza bibliográfica, será conduzida sob a compreensão de alguns conceitos básicos, que poderão ser suprimidos em detrimento de outros no decorrer dos estudos, conforme novas leituras – e com elas novas ideias - forem surgindo. Alguns destes conceitos são o de fantástico, o de interculturalidade, o de limiar, o de identidade, e o de imagem/imaginário. Embora o fantástico esteja presente na obra “Kafka à beira-mar”, não é sobre esta característica que pretendemos conduzir a pesquisa. No entanto, não se pode excluir este conceito, entendido como a hesitação entre uma explicação natural e uma sobrenatural dos fatos narrados, podendo ser experimentada não só pelo leitor, mas também por um dos personagens, e a recusa da interpretação alegórica, (TODOROV, 2010, p. 39) e será colocado em posição secundária. Por exemplo: o personagem Satoru conversa com gatos. Não se pretende focar na conversa com gatos, mas no que isto representa culturalmente para a obra, já que os gatos são muito presentes na cultura japonesa, desde o maneki-neko até a Hello Kitty, passando pelo livro “Eu sou um gato” - um clássico da literatura japonesa, também muito conhecido e traduzido, escrito por Natsume Sôseki, escritor que também dialoga com o Ocidente, tendo inclusive morado fora do Japão – não excluindo, por exemplo, o diálogo com “personagens gatos falantes” na literatura ocidental. Pretende-se explorar na obra a sua interculturalidade, ou seja, os elementos culturais em contato, justapostos ou opostos a fim de contribuir para a construção do romance. Antes de pensarmos a obra “Kafka à beira-mar” como um testemunho do diálogo entre Ocidente e Oriente, muitas questões precisam ser levantadas. Ora, em que proporção os elementos elencados representam o Ocidente, e em que proporção Murakami representa o Oriente – levando-se ainda em conta que o Japão é apenas uma pequena parte dele? Donald 2

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Keene (1988, p. 6), um dos maiores estudiosos da cultura e da literatura japonesa, elencou quatro características que lhe pareciam integrar o senso estético japonês: a sugestão, a irregularidade, a simplicidade e a perecibilidade. Quais delas podem ser percebidas na obra de Murakami? Ou talvez a obra em estudo seja meramente um produto da chamada mundialização (uma vez que o termo “globalização”, para alguns estudiosos, deve ser usado apenas para se referir ao intercâmbio econômico e tecnológico, e “mundialização”, ao intercâmbio cultural). Segundo Ortiz (1994, p. 30), “o processo de mundialização é um fenômeno social total que permeia o conjunto das manifestações culturais.” A obra de arte, como manifestação cultural, não pode estar isenta deste fenômeno. O encaminhamento levado pela noção de interculturalidade nos conduzirá à noção de limiar, entendido como “o ponto de interseção entre o indiferenciado e o diferenciado, conectando o dentro e o fora, o interior e o exterior, a separação e a junção de territorialidades linguísticas ou de espaços do saber” (HOISEL, 1999, p. 42). Sendo o ponto de contato entre o mesmo e o outro, o limiar nos permite verificar, ainda que superficialmente, o que é comum a ambos, dentro de sua interseção. Como fronteira, o limiar pode ser modificado e configura-se num ambiente de possível tensão, em que o mesmo e o outro se (re)definem constantemente. Pretende-se buscar a interculturalidade a partir dos personagens. Os principais são Kafka Tamura, Satoru Nakata e o menino Corvo:

a)

Kafka Tamura – Personagem principal. Adolescente de quinze anos que

não se relaciona bem com o pai, com quem mora, mas quase nunca se encontra. Deseja reencontrar a mãe e a irmã, que saíram de casa quando ele ainda era pequeno. Há algo especial no seu relacionamento com a irmã, embora ele não se lembre muito bem dela. b)

Satoru Nakata – Personagem que interage com Kafka. É um homem já

com cerca de sessenta anos, mas que fala com gatos. É tratado como um pária por causa de uma doença que teve na infância. O nome Satoru remete à palavra satori, uma “iluminação”, um momento de “expansão da consciência”, em que se descobre algo relevante para a vida. c)

O menino Corvo – Representação das sombras, ele aparece desde o

prólogo, desafiando Kafka Tamura. Remetendo ao Corvo de Poe, ele lança um toque de mistério toda vez que aparece. O que há de Franz Kafka em Kafka Tamura? Em “A metamorfose”, o protagonista (Gregor Samsa) tem problemas familiares semelhantes aos do personagem principal de 3

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“Kafka à beira-mar”: ele não sente o amor fundamental – amor da família – embora a sua irmã atue como uma espécie de protetora (e mesmo ela acaba por abandoná-lo à sua monstruosidade). Gregor Samsa se transforma num inseto, uma criatura asquerosa. O pai lhe atira uma maçã nas costas e ela fica presa ali, apodrecendo. Esta maçã é a causa da sua morte. Costuma-se relacionar esta maçã podre ao ódio que Samsa tem do pai; também Kafka Tamura tem de seu pai um rancor que lhe dá melancolia. Tamura também parece ter nojo de si, como se fosse um grande inseto – mesmo não sabendo como ou por que chegou àquele estado, mesmo que, no caso de Tamura, seja apenas um abismo psíquico. Como escreve Leandro Konder (1974, p. 209), em Kafka a solidão “é retratada como uma condição profundamente trágica”; também o protagonista de “Kafka à beira-mar” é envolvido na nuvem de uma profecia, segundo a qual ele estaria fadado a matar o próprio pai, um contraponto com a tragédia grega. Para refletir sobre até que ponto pode ser considerada trágica a situação do protagonista de “Kafka à beira-mar”, deve-se recorrer aos requisitos para o efeito trágico. Albin Lesky (2006, p. 32-34) menciona como primeiro requisito a dignidade da queda (ou a considerável altura da queda), ou seja, “a queda de um mundo ilusório de segurança e felicidade para o abismo da desgraça ineludível” (loc. cit.). Em seguida, Lesky menciona a possibilidade de relação com o nosso próprio mundo (não importando em que tempo ou espaço a obra foi originalmente escrita); como terceiro requisito, menciona a consciência (do personagem) de que o conflito é insolúvel. Em que medidas estes três requisitos, elaborados a partir da tragédia grega clássica, podem estar presentes em “Kafka à beira-mar”? Também esta pergunta pode conduzir a novas possibilidades de compreensão sobre o estar-no-mundo de Kafka Tamura – seja para aproximá-lo ou para afastá-lo do que seria uma figura trágica. Também em outra obra de Kafka, “O processo”, o personagem principal, Josef K., vê-se acusado de algo que ele nem ao menos sabe o que é. Tamura também não compreende o que o aflige, e acha vazia a sua existência. Mas sem dúvida as reminiscências da relação conflituosa entre pai e filho mais atinentes à obra de Kafka estão em sua “Carta ao pai”, sobre a qual este projeto se detém de maneira mais profunda. A questão da identidade também deve ser contemplada, quando se pretende observar a construção de um romance a partir de seus elementos interculturais. Para explorar esta questão, será utilizada a noção de identidade demonstrada no livro “A identidade cultural na pós-modernidade”, de Stuart Hall. Nele, Hall (2006, p. 48) advoga que “as identidades nacionais não são coisas com as quais nós nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação (grifo do autor)”. As perguntas que surgem então são as seguintes: 4

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em que termos os elementos de interculturalidade buscados no romance podem ser assim considerados? O que há do “eu” e o que há do “outro” na obra de Murakami? Até onde esta linha pode ser traçada? Daí é preciso rever também o conceito de representação e, em consequência, de imagem, entendida como a constituinte do que se chama imaginário, o universo simbólico “inseparável de toda a organização social e cultural, uma vez que é através dele que uma sociedade se vê a si mesma, se escreve, se pensa e se sonha” (PAGEAUX, 2004, p. 139).

3 CONCLUSÃO Para concluir, ressalte-se que se trata de uma pesquisa ainda em estágio inicial. Deve-se buscar também bibliografia teórica específica sobre o autor, a fim de estudar a crítica que já existe a respeito de seu estilo e produção. Embora outros romances de Murakami não façam parte do foco principal da pesquisa, não se exclui a possibilidade de uma perspectiva comparada também com outras obras do autor. Caso os conceitos selecionados para conduzir a pesquisa (o de fantástico, o de interculturalidade, o de limiar, o de identidade e o de imagem/imaginário) mostrem-se insuficientes para dar conta de determinados aspectos a serem trabalhados, novos conceitos e novas abordagens teóricas deverão ser buscados a fim de alcançar o objetivo principal, que é o de estudar o romance “Kafka à beira-mar” (Umibe no Kafuka) a partir de elementos da literatura e da filosofia ocidental utilizados por Murakami na construção de seu romance.

REFERÊNCIAS: HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. HOISEL, E. A disseminação dos limiares nos discursos da contemporaneidade. In: CARVALHAL, T. (Org.) Culturas, contextos e discursos: limiares críticos do comparatismo. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 1999. KAFKA, F. Carta ao pai. Porto Alegre: L&PM, 2004. . Metamorfose, Na colônia penal e O artista da fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. KEENE, D. The pleasures of Japanese literature. New York: Columbia University Press, 1988. 5

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KONDER, L. Kafka: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. LESKY, A. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 2006. MURAKAMI, H. Kafka à beira-mar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008. ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2003. PAGEAUX, D. Da imagética cultural ao imaginário. In: BRUNEL, P.; CHEVREL, Y. (org.) Compêndio de literatura comparada. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. 4. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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