\"Musescore\": estudo de caso de um software livre e sua interface colaborativa web para notação partitural

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11.4

Capítulo 11. GT ANÁLISE MUSICAL E COMPOSIÇÃO ASSISTIDA POR COMPUTADOR

"Musescore": estudo de caso de um software livre e sua interface colaborativa web para notação partitural Guilherme Rafael Soares 40

Resumo: O artigo busca apresentar a partir do estudo de caso do software livre Musescore uma perspectiva para o uso de interfaces de notação partitural em estruturas colaborativas em rede, bem como problematizar suas tecnologias de código aberto e licenças livres. Analisa o contexto das licenças livres tanto na seara das tecnologias da arte quanto na cadeia produtiva de bens culturais. Demonstra aspectos computacionais e algorítmicos relevantes para o ensino da música em ambiente acadêmico no contexto do ensino da Composição Assistida por Computador (CAC). E finalmente problematiza a relevância e limitações impostas por uma interface que a princípio tende a limitar-se a processos de escrita em pentagrama, a partir de leituras críticas sobre notação, composição e representação da escrita musical. Palavras-chave:software livre

O Caso Musescore

Figura 85 – Exemplo de interface gráfica na internet de uma partitura feita no Musescore.

Este trabalho problematiza alguns aspectos técnicos e conceituais da utilização de uma metodologia colaborativa com base no uso de uma ferramenta de código aberto próxima da filosofia dos softwares livres, situando estes contextos e detalhando alguns aspectos técnicos do problema específico da partituração, onde podemos apontar novas direções para uma continuidade. O objetivo central do artigo não é postular o caso Musescore como situação ideal e unívoca para a compartilhamento de partituras em web browser 41 , mas utilizálo como parâmetro para análise de um paradigma tecnicamente maduro para o uso atual das redes sociais na internet como base para estudo e registro digital de partituras, problematizando a continuidade do seu contexto como plataforma para 40

41

Mestrando em Artes, Cultura e linguagens pela UFJF. Pesquisa e documenta a construção de instrumentos e controladores para performances artísticas produzidos com técnicas artesanais de software e hardware livres. Atualmente compila técnicas, repertório poético e audiovisual para uma didática da composição algorítmica.; Entenda-se doravante o termo “web browser” como o termo técnico para “navegador” de sítios HTML (ex: Firefox, Chrome, IE, Safari, etc.)

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compartilhamento de obras musicais para pentagrama considerando seu papel dentro da ecologia dos chamados “softwares livres”. O software Musescore iniciou em 2002 como uma reinvenção do sequenciador opensource MusE, criado pelo desenvolvedor alemão Werner Schweer. Em 2008, Thomas Bonte e Nicolas Froment iniciaram um esforço para tornar o software multiplataforma e a partir de 2011 passa a ter uma versão online interativa e capaz de executar as partituras no próprio web browser. Em 2014 é lançada a versão 2.0 e a versão para dispositivos móveis. É preciso antes de tudo pensar algumas das já argumentadas vantagens do uso de um software distribuído com uma licença GPL42 , o que pode em certa medida classificálo como um “software livre” e o que também garante a disponibilidade do seu código fonte como “código aberto”. 43 Consideremos aqui sobretudo as implicações políticas e econômicas da utilização de uma metodologia de trabalho que pode ser incluída na cadeia de produção dos softwares livres. Um dos imediatos contra-argumentos e barreiras para adoção de softwares livres é uma suposta distância no seu ciclo de desenvolvimento de um ritmo mais competitivo e orientado a demandas imediatas de mercado, muitas vezes supridas pelos softwares proprietários usados e padronizados em linhas de produção de grande escala. São casos onde os softwares são meras ferramentas para alcançar uma meta repetitiva, quantitativa e atrelada a alguma normatização dos meios de produção, como por exemplo dos estúdios de gravação ou das editoras de partituras voltadas para nichos específicos de consumo musical. Para entender melhor a diferença de expectativa no uso deste tipo de software é necessária uma reflexão anterior sobre seu contexto colaborativo. Consideremos aqui sobretudo o escopo da colaboração mediado pela Internet.

Colaboração em rede com softwares livres A colaboração em rede mediada pela Internet está condicionada e sujeita a tecnologias que vingam neste ambiente e em práticas que conseguem sobreviver tempo suficiente para amadurecer como ergonomias massificadas. Sedimentados no inconsciente coletivo do gestual de navegação: uma rotina de trabalho quase automatizado por sua cultura de uso. Por dentro destes suportes mais assimilados que perduram por quase uma década pensemos alguns gestuais derivados dos primeiros blogs e fotologs da virada do milênio. Destaca-se hoje a publicação de texto e imagens em layouts padronizados em pilhas de postagens por ordem cronológica ou ordem semântica dentro de ambientes de trocas de atualização destas postagens que buscam relacionar estes colaboradores 42

C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014. 43 É preciso diferenciar as duas correntes – Software Livre e Open Source. Software Livre, é a corrente inicial e mais utópica, que aposta numa economia de abundância, exigindo que o software não seja cobrado por suas cópias, e que mantenha-se o código aberto gerando um ciclo de interdependência e coletividade no compartilhamento de conhecimento. O termo Open Source é uma ramificação da ideologia por um viés mais pragmático. As licenças Open Source estimulam o uso de código aberto, porém podem permitir lucro sobre cópia ou mesmo que o código seja fechado em algum produto derivado. Estas licenças apostam na dinâmica do aproveitamento de código aberto em seus e estágios mais incubados e experimentais, mas ainda mantém um elo com o ciclo competitivo de oferta e demanda da indústria do software proprietário. C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014.

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naquilo que chamam “rede social” como redes de blogs como Wordpress, Blogspot ou o Facebook. Algoritmos de indexação das postagens cada vez mais adaptados ao histórico de navegação ou etiquetamento44 voluntário de contextos pelos leitores ou produtores de conteúdo. Há também o modelo mais dinâmico e próximo da possibilidade de customização: a edição de páginas direto em código online e de moderação coletiva nas formas similares ao modelo wiki, consagrado pela Wikipedia. E no esforço que irá puxar novos desenhos de interação encontramos uma espécie de produtor de conteúdo que está totalmente inserido no jargão das tecnologias de linguagem de programação para navegadores, colocados sempre nesta fronteira das novas tendências. O design de interação para web sites nos últimos anos facilitou a posição de produtor de conteúdo para qualquer pessoa que não tenha a menor consciência ou interesse em saber nem mesmo onde seus dados estão fisicamente - sem a qualquer ideia da diferença entre o navegador de endereços http45 que acessa conteúdo em um servidor remoto e o gerenciador de arquivos do sistema operacional da sua própria máquina. As vantagens de ocultar estes detalhes e priorizar ações específicas do nicho deste usuário convergem obviamente para esta possibilidade imediata de interação contextual com qualquer pessoa produzindo com as mesmas ferramentas e com um mínimo de inserção no universo digital. Mas por outro lado esta ilusão de entendimento imediato do ambiente de trabalho, sem a problematização de seu tecnodeterminismo, parece cada vez mais relegar uma compreensão das entranhas do que está por trás do funcionamento disso tudo a especialistas, seres de uma mítica casta oculta que vive uma outra ontologia, capaz de alcançar a subjetividade da máquina, sua anatomia neural, sua alma. A primeira coisa a se argumentar em direção a um melhor entendimento dos motivos políticos, éticos e ecológicos da defesa do software livre e do código aberto, mesmo antes de um entendimento mais aprofundado de seus canais de distribuição e colaboração, é o fato inegável de que sua existência aproxima esta suposta casta de especialistas em código das outras castas de produtores culturais e artistas e mantém acesa a chama de uma curiosidade lúdica por todas as camadas de abstração linguística e matemática que permitem a construção desta mediação de uma interação humana com as máquinas. Uma argumento comum dos que ainda mantêm-se alienados deste contexto é a reclamação de que o tempo de adaptação e demanda que terão com softwares livres equivalentes a softwares proprietários usados em seu cotidiano, como por exemplo, no ciclo de produção audiovisual, vai afastá-los de uma realidade imediata da demanda do mercado no seu nicho almejado e atrasar seu ritmo de produção objetiva. De fato, tem mostrado-se sempre ingrata a tarefa adotada por alguma corrente de desenvolvedores de software livre quando empenhada em criar soluções similares para determinado tipo de “usuário” e imitar o gestual de determinado design de aplicativo da moda ou canônico em algum tipo de segmento forjado pelos softwares proprietários. Assim obviamente sempre estaria um passo atrás, já que as liberdades criativas são sempre tomadas como desvio de uma interface proprietária já dada a priori 44

45

Por meio de palavras-chave, conhecidas pelo termo inglês “tag”. Esta pratica de etiquetamento de dados em redes sociais e seus métodos de busca e indexação deu origem a um ramo da cibernética chamado “Folksonomia”. Sigla em inglês para “Protocolo de Transferência de Hipertexto”. Todas páginas visualizadas em navegadores como Firefox, Chrome, Internet Exlorer, Safari são de alguma forma montadas automaticamente ou “hospedadas” quando estáticas em uma máquina remota, um servidor de serviços http.

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pela demanda do mercado e puxadas pela dinâmica de um modus operandi que condicionaria uma maior produtividade na indústria cultural. Por outro lado, é possível e fundamental fazer analogias desta produção de código aberto e suas vias mais radicais de produção libertária com o próprio fazer artístico em sua urgência de romper normalidades: o mesmo ímpeto que esta na essência da construção de uma imagem fotográfica e toda sua semiótica, da composição de uma canção e sua inserção em um imaginário geracional, ou a elaboração engenhosa de um conto ou poema é aquilo que move o princípio criativo e curioso do produtor de código aberto. A única maneira de não estar condicionado a uma interface é torná-la parte de seu processo criativo. O pragmatismo do software proprietário estaria mais próximo da produção criativa como peça publicitária ou como ferramental de comunicação, alienada no utilitarismo destes objetivos. Neste caso é importante pensar também que no software livre e no código aberto a figura do autor, como construção de uma reputação, de um ethos de criador, toma uma outra dimensão. Mais adiante faremos novamente este paralelo. A ecologia dos softwares livres e do código aberto está na essência do motor criativo da internet, basta perceber que sem esta possibilidade grande parte da internet nem funcionaria como hoje. Alguns exemplos: a linguagem PHP46 , centenas de bibliotecas javascript47 que facilitam animações e efeitos, os servidores web Apache48 e a atual padronização de navegadores para suportar elementos audiovisuais previstas na especificação HTML549 .

Paradigmas da partitura musical e o limite de escopo na sua representação digital Problematizar uma questão geral e mais abstrata sobre os limites da notação partitural é uma tarefa que tende ao infinito tanto no resgate histórico dos diferentes paradigmas documentados e comparados a cada novo revisionismo da musicologia sobre o tema, quanto em um exercício delirante e criativo de recombinações possíveis a partir de novas estéticas. Zampronha (2000) fundamenta algumas bases que podemos tomar como régua para uma especulação comparativa, tomando como objeto de comparação a interface atual do Musescore e possibilidades visivelmente próximas. Na sua tipologia das notações Zampronha (2000, pg. 55) inicialmente destaca uma nomenclatura proposta por Seeger (1977): os conceitos de notação prescritiva versus descritiva50 e de notação neumática versus alfabética.51 46 47 48 49 50

51

C.f. < > C.f. < > C.f. < > C.f. < > A notação prescritiva seria uma notação que detalha a maneira física como determinado som deve ser executado no instrumento, como por exemplo uma descrição de dedilhado. A notação descritiva é uma representação direta do som, sem especificação de como ele foi produzido, por exemplo o desenho de um contorno melódico em um gráfico de frequências no tempo ou num pentagrama de determinada sequencia melódica em colcheias de uma tonalidade diatônica. A notação neumática é aquela que apresenta graficamente por linhas e pontos um desenho melódico de um trecho musical mas não é precisa quantitativamente. A notação alfabética é algo que pode ser comparado diretamente com a notação que em geral no ocidente é considerada a notação “tradicional”.

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Zampronha também propõe uma tabela de tipificações cruzadas. A seguinte tabela exemplifica estes cruzamentos quanto a organização das alturas (contínua, discreta ou indeterminada) e duração (não-métrica, métrica, amétrica): Não-Métrico

Métrico

Amétrico

Notação neumática, como

Onde há uma especificação da

melódico

desenhos

duração métrica e melódica

rítmica, como em partituras de

quando colocados direta

de

não

glissando em função do tempo

sobre um texto, indicando

posicionada precisamente em

onde a definição não chega

melismas de uma voz.

masequencia prosódica.

a precisão de subdivisões de

Gráfico

Contínuo

de

melodias

um

motivo

mas

de

ornamento

sem

precisão

segundos. A notação

“ tradicional”

Notação aquitânica: onde

mais conhecida no ocidente.

Onde a notação cromática ou

há signos para ornamento

Sequência de figuras rítmicas

microtonal é precisa porém

mas o ritmo de leitura das

organizadas em tempo linear

os

palavras e livre.

em um pentagrama de linhas

sincronizados em blocos.

Discreto eventos

temporais

são

da escala cromática.

Indeterminado

Notações

livres

inventa-se

um

onde grafismo,

Notações como

a

“aproximadas”, notação

Sugestão

aproximada

de

proposta

ornamento e direção melódica

texto ou simbologia para um

por Shoenberg para o “canto

encadeada de forma temporal

controle melódico e rítmico

falado” ( Sprechgesang) atonal,

também aproximada ou livre.

aproximado,

funcionando

onde indica-se uma melodia

Partituras como “Áudio Game”

como um mapa contínuo de

aproximada e não obrigatória

de Koellreuter(1992) , ilustrada

sugestões concatenadas.

para a voz acompanhante.

na figura[1].

Zampronha (2000, pg.89) ainda especifica e cruza algumas outras situações: “envolver improvisação”, “representação visual”, “representação textual”, “possuir indicação precisa”. Divide também (ZAMPRONHA, 2000, pg. 97) , uma categorização baseada em funções: “partitura de escuta”, “partitura de realização”, “partitura de interpretação”, “partitura de registro” e “partitura de sonorização”. Com a canonização de dezenas de linguagens de programação especializadas em música algorítmica desde a popularização dos computadores pessoais, vale pensar que cada vez mais a interface de programação acaba funcionando também como um registro partitural da ação composicional. Casos ainda mais especializados já pensam por princípio a criação de partituras não-lineares e em várias camadas de sequencias, como o software livre “Iannix” (Figura 87), inspirado nas estruturas e massas em colisões comuns na obra de compositores como Iannis Xenakis. Retornando ao nosso estudo de caso específico - o Musescore e seu repertório possível no momento - parece até um tanto diletante considerar tantas opções de escritura, pois fica latente a situação de que o modelo está ainda bastante ancorado no repertório e gesto das partituras “tradicionais” daquilo que ainda é hoje chamado “repertório de prática comum”52 No entanto é importante lembrar que qualquer variação banal para a música do último século é imprevista neste tipo de notação e impossibilitada neste suporte de escrita digital. Como por exemplo: algum ornamento específico de instrumento, algum acompanhamento eletroacústico que demande gestos não partituráveis em pentagrama, alguma disposição espacial de execução dos sons instrumentais para além de sua referência estéreo. Mesmo que fossem previstas em algum acompanhamento gráfico ou textual suportados pela renderização dos arquivos partiturais imprimíveis em papel, em sua 52

C.f

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referência sonora seriam problemáticas para serem executadas em um sequenciamento ainda bastante pautado pelo legado gestual previsível para o padrão MIDI de bancos de samples. Zampronha (2000, p.24) aponta para uma questão que fica vaga mesmo na partitura que pode ser dita “tradicional” – as indicações simbólicas bastante usuais mas que não possuem uma equivalência numérica mais exata, como por exemplo, nomenclaturas de dinâmica como “Presto”, “Adagio” ou “Alegro com brio” 53 apresentam uma ambiguidade que podem levar a uma performance da partitura que descaracterize a música como algo sob controle de seu compositor. Goodman(1984) e Kivy(1984) divergem quanto a esta interpretação dos sinais de semântica mais aberta em uma notação. Para Goodman qualquer desvio da notação original, como por exemplo articular uma nota com um gesto improvisado “mordente” ou “pizzicato” não indicados na partitura caracterizariam um “erro” ou desvio da intenção original. Kivy sustenta a posição de que a notação é uma instrução aproximada, ela é uma obra independente da performance porém em sua essência sempre estaria em qualquer performance dela derivada. Esta relativização torna-se especialmente importante se considerarmos que em um software de notação partitural é preciso que o sinal gráfico representado visualmente tenha um método para modular um som que será correspondido durante a execução do seu sequenciamento, seja na forma de um som sampleado anteriormente de um instrumento referenciado na partitura ou um som modulado sinteticamente através de equivalências psicoacústicas calculadas por um algoritmo. O Musescore apresenta uma solução interessante que aponta para uma possibilidade de fornecer mais este dado essencial de referência para as novas performances de uma partitura: aproveitando a possibilidade de disponibilizar as partituras online na web a ferramenta sincroniza as partituras com um video que esteja disponível também online.54

Propriedade e intelectual e a transposição das licenças copyleft para o mundo das artes Simon Yuill em seu ensaio “Todos problemas de notação serão resolvidos pelas massas”(YUILL, 2008) traz uma série de paralelos interessantes para pensarmos relações entre o compartilhamento de código, o compartilhamento de partituras e o papel destas em práticas de improviso musical onde há grande liberdade e coletividade na relação entre intérpretes. Entre diversas e curiosas analogias, Yuill compara a prática de troca de partituras experimentais da Scratch Orchestra de Cornelius Cardew com a troca de códigos que era prática comum entre os entusiastas da linguagem de programação lúdica da tartaruguinha LOGO. Aqui esta comparação toma um sentido completo. 53

54

Na versão digital é possível, por exemplo, determinar que “Alegro com Brio” teria uma aceleração progressiva de 120 a 160 BPM e uma acentuação de dinâmicas em acordes mais abertos e cheios de notas, mas isso apesar de eficaz em certa medida, já seria metafórico e totalmente arbitrário quanto a uma intenção original. A limitação de ter de vincular este video a interface de outra rede, o Youtube, ainda parece uma solução incompleta, mas não deixa de ser uma sugestão interessante para que em breve uma plataforma web possa pensar o upload de vídeos junto com o upload de suas partituras equivalentes, solucionando assim esta questão da referência original e permitindo a sincronia referencial destas, destacando sugestões para ornamentos ambíguos ou sinais novos.

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Figura 86 – A partitura de “AudioGame”( Koellreuter, 1992).

Figura 87 – A interface do software livre “Iannix”, especializada em partituras nãolineares.

No caso do Musescore temos uma situação dupla para esta comparação: o código do software é aberto e distribuído por uma licença que permite derivações e modificações, mas também a grande potência deste software é o fomento a uma rede social de troca de partituras por uma plataforma web que permite também a renderização sonora destas utilizando uma tecnologia capaz de executar online arquivos MIDI convertidos a partir do formato original “*.mscx” do Musescore. Vale aqui então problematizarmos também esta transposição direta das práticas de compartilhamento comuns no universo do software livre e código aberto para a realidade da propriedade intelectual nas artes e a distribuição de bens culturais. O Musescore utiliza em seu escopo de publicação de partituras a possibilidade de publicação sobre licenças Creative Commons55 . Vale portanto aqui uma reflexão sobre a problematização do licenciamento em Creative Commons pelos especialistas em Copyleft que operam no mundo dos softwares. A crítica comum a este modelo é de que ao invés de facilitar a distribuição, como uma simples declaração de permissão da distribuição e derivação similar a licença GPL 55

C.f. < >

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poderia fomentar, ela acaba por confundir e em alguns casos tornar a distribuição ainda mais fechada em algumas de suas múltiplas licenças, como em casos onde não permite obras derivadas. A própria declaração de uso apenas para fins “não-lucrativos” é muito difícil de delimitar e mensurar – a partir de que momento está havendo um lucro onde o autor deveria estar tendo participação? Em qualquer simples menção ou compartilhamento online da obra ou repostagem que gere tráfego em um website? O argumento da viabilidade da licença GPL para softwares sempre gira em torno da prioridade por uma livre circulação de conhecimento notório, algo que gera uma economia de ambundância e permite que gire economicamente quaisquer produção derivada deste conhecimento, contanto que este continue aberto, mantendo o ciclo que é dependente apenas da compatibilidade dos hardwares em que é executado. O modelo Open Source (OSI)56 radicaliza ainda mais em busca de um discurso mais liberal e menos utópico, permitindo que haja casos em que um código antes aberto, passe a circular fechado em uma economia derivada e privada, onde volta a existir o segredo industrial. A aplicação direta desta diferença como uma analogia para o mundo de circulação de bens culturais gera alguns outros problemas, considerando que os bens culturais tem um contexto muito mais amplo que um código que é tecnicamente mais específico onde “a reputação de uma ideia” é um conceito muito mais imaterial do que uma simples propriedade de uma cópia. Além disso, a taxação de quaisquer movimento de circulação de qualquer arquivo digital (imagem, som ou texto) pela rede, considerando que estes sempre possuem um autor original, poderia levar a um estanque perigoso para a própria dinâmica de circulação de informação e vigilância na Internet.57 Hospedado nos Estados Unidos, o Musescore mantém uma página fornecendo instruções para denúncias por um mecanismo baseado na lei “Digital Millennium Copyright Act (DMCA)” norte-americana.58 Logo, é importante também aqui uma reflexão sobre os materiais disponibilizados nesta rede online do Musescore que não são autoria de seus usuários. Como pensar a circulação de obras conhecidas e consagradas no cânone do repertório de prática comum, considerando que este é um ambiente também de estudo e análise de partituras? Considerando que grande parte do repertório de prática comum é bastante antigo, uma das estratégias para garantir a isenção de problemas neste caso é o uso de trabalhos que já caíram em domínio publico. 59 56 57

58

59

C.f. . Acessado em 27 de outubro de 2014. Vale lembrar que esta possibilidade tem sido usada como desculpa para elaboração de brechas em leis de regulação da Internet que podem ser usadas para supressão de direitos à liberdade de expressão, funcionando como um mecanismo de censura automática e privada, considerando a natureza dos serviços de comunicação e telefonia por trás dos provedores de Internet. Em 2014 no Brasil, a sanção da lei do “Marco Civil” ( Lei 12.965/14 ) foi aprovada prometendo a privacidade e liberdade de expressão, no entanto o parágrafo que previa o mecanismo que é chamado em língua inglesa de “notice and take down” (algo como “tirar do ar imediatamente quando noticiado” ) foi questionado por ativistas, e acabou vitoriosamente sendo retirado, acusado de possibilitar de certa maneira um mecanismo de censura prévia, sem julgamento. C.f A DMCA é uma lei de direitos autorais dos Estados Unidos que fornece diretrizes de responsabilidade para provedores de serviços on-line em caso de violação de direitos autorais. C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014. Qualquer trabalho publicado antes de 1923 é considerado no domínio público nos Estados Unidos, o que em algumas vezes entra em conflito com o estado dos direitos autorais no país de origem.

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No entanto, na prática, é preciso haver uma melhor conscientização daquilo que no direito norte-americano é chamado “fair use” (“uso justo”) e a possibilidade de defender o uso e compartilhamento destas obras para critérios educacionais e nãolucrativos. Apesar de na prática não haver um debate explícito sobre isso no website, parece que a rede é permissiva neste sentido, sendo possível encontrar partituras de autores canônicos que não estão ainda em domínio público. Uma fiscalização mais severa deste aspecto inviabilizaria a atual dinâmica. Um modelo interessante para pensar-se este compartilhamento de partituras canônicas online é o IMSLP.60 A sigla significa, em inglês, International Music Score Library Project (Projeto de Biblioteca Internacional de Partituras Musicais). O modelo é um caso interessante de esforço no resgate e publicação de partituras que já estão em domínio público. A prática inspirou em 2012 um projeto de reedição das “Variações Goldberg” de J.S. Bach e não por acaso todo este trabalho foi editado com o software Musescore.61

Algumas questões técnicas Encontramos no Musescore a maioria das funcionalidades básicas disponíveis em softwares similares de licenças proprietárias como Finale e Sibelius. Estão ali a implementação de entrada em uma pauta gráfica (“WYSIWYG”62 ) inserção de notas via mouse, teclado alfanumérico e dispositivos MIDI. Exibição de texto, articulações e ornamentos que soam no sequenciamento sonoro, paginação, notação de percussão, elementos de notação antiga, inserção de imagens, colorização de notas, sinais de repetição e templates de instrumentação . Uma função especialmente interessante e original, já comentada anteriormente em seu escopo mais conceitual, é a possibilidade de interação do software que roda em sistema operacional local com a publicação de partituras online. É possível estar logado na rede social do Musescore63 e fazer uploads e downloads de conteúdos para e pelo website. Importante também destacar que o Musecore documenta e estimula o compartilhamento de plugins para automação de procedimentos e implementação de métodos de composição algorítmica. Os plugins possuem um menu específico e usam como linguagem base a sintaxe javascript. (Figura 89) A implementação documentada de plugins e a possibilidade de embutir um frame da partitura publicada online em um website qualquer, e também a possibilidade de sincronizar vídeos com a linha do tempo do sequenciador da partitura, tornam o Musescore uma opção interessante para publicação didática de algoritmos

60 61 62

63

Fora isso existe em vários países uma lei baseada no tempo corrido a partir da morte do autor, um mecanismo que garante um tempo de usufruto dos direitos por seus herdeiros. Este mecanismo varia entre os diferentes países, em geral valendo um período de 50 a 70 anos desde a morte do autor. No Brasil este princípio é regido pelo art.41 da Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 e é fixado em 70 anos. É preciso além disso considerar que qualquer reedição de uma partitura que contenha novos arranjos é considerada uma nova propriedade intelectual. C.f. < >. Acessado em 23 de outubro de 2014. < > < > Sigla que significa algo como “o que você vê é o que você tem”, que descreve situações onde você tem uma entrada gráfica próxima daquilo que terá impresso, podendo inserir elementos direto no layout. C.f. < http://musescore.com >. Acessado em 27 de outubro de 2014.

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Figura 88 – Interface de Busca e Publicação online do Musescore.

composicionais com partitura tradicional na Internet, com uma interface acessível via web browser. A utilização de um formato nativo próximo do padrão MusicXML64 e uma alta compatibilidade com este torna o software uma boa opção também como plataforma para conversão entre diferentes formatos de software de partitura, já que a grande maioria importa e exporta para este formato, garantindo maior fidelidade para elementos como ornamentos, articulações e formatações menos usuais.

Perspectivas possíveis Vale pensar aqui algumas tecnologias da partitura digital próximas que poderiam funcionar como complementares ou inspirar outros caminhos para o derivados do atual estágio do Musescore. Bibliotecas python como Abjad65 e Music2166 apostam na formatação de funções para manipulação de templates em formatos de arquivos especiais para impressão partitural como Lilypond67 e MusicXML. O caso do Music21 é interessante por estar preocupado com algumas questões de formatação para análise musicológica de partituras como inserção de graus de funcionalidade harmônica ou classificação baseada na “Teoria dos conjuntos das classes de alturas”, inspirada na taxonomia de acordes elaborada por Allen Forte (1973). A abordagem proposta por softwares como OpenMusic68 ou a interface de sequenciamento de eventos Inscore69 pode apontar algumas sugestões interessantes de manipulação não-linear de partituras interativas e estendidas baseadas na escrita tradicionais mas não totalmente amarrada em suas limitações. Com o avanço das possibilidades trazida pela especificação HTML5 poderão em breve ser também implementadas em web browsers e são uma opção para pensar estas interfaces interativas de redes sociais de partitura na Internet. Quanto a tecnologias que utilizem a tela de toque (“touchscreen”), como tablets e celulares, no momento há uma versão de um player de arquivos Musescore e navegação no website para Android, porém não esta licenciado de maneira livre ou open source. 64 65 66 67 68 69

C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014. C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014. C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014. C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014. C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014. C.f. < >. Acessado em 27 de outubro de 2014.

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1

//

Baseado em "Test plugin" de Werner Schweer and others Copyright (C)2008-2010

2

//

This program is free software; you can redistribute it and/or modify

3

//

it under the terms of the GNU General Public License version 2.

4 5

//algo a fazer antes de entrar na rotina do plugin

6

function init(){

7 8

print("iniciou o script"); };

9 10

//formata nota com duracao e posiciona no cursor

11

function addNote(cursor, pitch, duration){

12

var chord

13

chord.tickLen = duration;

14

var note

= new Note();

15

note.pitch

= pitch;

16

chord.addNote(note);

17

cursor.add(chord);

18 19

= new Chord();

cursor.next(); };

20 21

function run(){

22

var score

= new Score();

23

score.name

= "Teste"; //nomeando a partitura

24

score.title = "Teste";

25

score.appendPart("Piano");

// cria as duas pautas do piano

26

score.appendMeasures(5);

// abre 5 compassos vazios

27

var cursor = new Cursor(score); //rotina de posicionamento do cursor

28

cursor.staff = 0;

29

cursor.voice = 0;

30

cursor.rewind();

31

addNote(cursor, 60, 480); //adiciona nota com sua figura ritmica

32

addNote(cursor, 62, 480);

33

addNote(cursor, 64, 480);

34 35

addNote(cursor, 65, 480); };

36 37

// menu:

38

// na estrutura do menu e iniciando assim que selecionado

39

var mscorePlugin = {

definindo o lugar do plugin

40

menu: ’Plugins.Cria Score’,

41

init: init,

42

run:

run

43

};

44

mscorePlugin;

Figura 89 – Exemplo de uma implementação de uma rotina de inserção de quatro notas a partir de um script para plugin de Musescore.

11.4. "Musescore": estudo de caso de um software livre e sua interface colaborativa web para notação partitural

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Até o momento também não há uma funcionalidade de edição das partituras no aplicativo.

Conclusão O caso Musescore é interessante como síntese da problematização do uso didático dos editores de partitura aproveitando-se das vantagens e perspectivas que se abrem com o paradigma de licenciamento livre e open source. Também expõe a necessidade de trabalho com obras canônicas do repertório partiturado para o contexto de análise musical no estudo da música ocidental e com isso revela uma discussão bastante potencializada quando colocada sobre este contexto das licenças colaborativas e dentro da possibilidade facilitada de seu uso em uma rede social de troca de obras. O trabalho com código aberto também aproxima a prática de um cotidiano onde a música e a programação de computadores pode estar bastante próxima, sem necessariamente impor uma entrada automática na estética da computer music ou da música algorítmica, mas facilitando a adaptação de interfaces de partituras digitais sob demandas imediatas de colaboração. As tecnologias de web browsers cada vez mais adaptados a possibilidade de uso do legado de formatos derivados do lastro de tecnologias da música partiturada como MIDI, Lilypond e MusicXML e a possibilidade de sincronização e interação de conteúdos publicados na Internet apontam algumas direções de continuidade. Por outro lado, o campo aberto pela tendência dos hardwares de tecnologia móvel ainda são uma incógnita, não apresentando ainda opção livre e open source à altura do projeto.

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Capítulo 11. GT ANÁLISE MUSICAL E COMPOSIÇÃO ASSISTIDA POR COMPUTADOR

Form Performance, Free/Libre Open Source Software, and Distributive Practice. In FLOSS+Art: Free Libre Open Source Art. Poitiers, France: GOTO 10, in Association with OpenMute, 2008.

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