MUSEU-CASA DE RUI BARBOSA: PESQUISA DE RENOVAÇÃO DE ARTEFATOS TÊXTEIS

May 28, 2017 | Autor: Luz Neira García | Categoria: Textiles, Museologia, Museografia
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MUSEU-CASA DE RUI BARBOSA: PESQUISA1 DE RENOVAÇÃO DE ARTEFATOS TÊXTEIS

Luz García Neira FCRB-RJ/FAU-USP/Senac-SP Contato: [email protected]

Resumo Este artigo apresenta o processo e resultados da pesquisa de renovação de artefatos têxteis realizada para o Museu-Casa de Rui Barbosa no Rio de Janeiro no período agosto/2010-julho/2011. Palavras-chave: artefatos têxteis, museu-casa, museografia.

Introdução

Foi a partir do Projeto de Revisão Museográfica, desenvolvido no período 2009-2010 pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FRCB), que se identificou a necessidade de propor pesquisa específica que pudesse subsidiar a renovação da museografia do Museu-Casa de Rui Barbosa no que tange aos artefatos têxteis em suas diferentes espécies e tipologias. Segundo o relatório, a museografia dos interiores encontra-se empobrecida e a renovação dos têxteis poderá recuperar parte importante da “forma de viver” de Rui Barbosa e de sua família na passagem para o século XX. O plano de estímulo à produção científica mantido pela FRCB lançou, assim, edital de seleção de pesquisador-bolsista para trabalhar no projeto com duração inicial prevista

de doze meses (agosto/2010 a julho/2011).

A pesquisa realizada sob

coordenação da museóloga e chefe do Museu-Casa de Rui Barbosa Jurema Seckler (FCRB) e da Profa Dra Marize Malta (EBA-UFRJ) é subordinada ao Centro de Memória e Informação (CMI), dirigido pela pesquisadora Dra Ana Maria Pessoa dos Santos. Este artigo apresenta a colocação do problema, os recursos para a pesquisa e os resultados até o momento alcançados.

Os desafios da pesquisa A Casa onde Rui Barbosa viveu com sua família de 1895 a 1923, ano de sua morte, assumiu desde o início da década de 1930 a missão de salvaguardar sua memória na forma do primeiro Museu-Casa brasileiro. Localizada à Rua São Clemente, em um

lote de chácara no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro, a residência é um imóvel imponente, de arquitetura neoclássica. O seu interior é subdividido em áreas denominadas social, íntima, de trabalho e de serviço, segundo a função original de cada ambiente na Casa. Ainda que a Casa tenha sido adquirida pelo governo brasileiro logo após o falecimento de Rui Barbosa, devido ao grande interesse que a biblioteca particular de Rui despertava, nem todos os pertences da família estavam incluídos na negociação. Isso provocou a dispersão de parte dos móveis, objetos e artefatos em geral que originalmente compunham a residência, dificultando, mais tarde, a museografia da instituição. Após alguns anos, quando se optou por transformar a Casa num lugar de memória, o governo brasileiro, bem como as direções do Museu, empreendeu esforços para recuperar elementos decorativos diversos. A ação pode ser considerada vitoriosa já que os interiores, na atualidade, são bem representativos dos ambientes daquele momento (Scarpeline, 2009), conforme podem comprovar diferentes registros fotográficos que hoje pertencem aos arquivos da FCRB, especialmente os datados de 1923. Com grande esforço para a manutenção dos espaços interiores no Museu-Casa o mais próximo possível do que teria sido “original”, móveis, bronzes, cristais, pratas e outros objetos encontram-se íntegros; entretanto, os têxteis, devido às suas características materiais, foram bem mais prejudicados. Sendo uma espécie material altamente afetada pela ação do tempo em função dos agentes externos e também internos à sua matéria-prima e estrutura que aceleram a sua deterioração (Viana e Neira, 2010), a perda da visualidade e até mesmo da materialidade dos têxteis é bem mais notada se comparados a outras espécies materiais. Ao longo das últimas oito décadas, os têxteis e artefatos têxteis que teriam vestido e decorado os ambientes desapareceram ou foram desgastando-se, de forma que valiosas informações a eles atreladas perderam-se definitivamente ou foram substituídas por espécies que não mantinham fidelidade com o espaço considerado “original”, que foi o ponto de partida desta investigação. A tentativa de reincorporar aos espaços os têxteis comuns aos ambientes da época não é, contudo, só a de recuperar a visualidade dos ambientes, mas a de melhorar a museografia da Casa e potencializar o espaço de visitação como local de desenvolvimento de novos conhecimentos, tanto para pesquisadores quanto para os visitantes. Além da observação que dá destaque aos aspectos da decoração dos

interiores em si mesmos, a pesquisa e a sua divulgação permitem a exploração de temas como papéis dos gêneros, consumo, design, arte, distinção social, industrialização e economia, entre outros. Conforme anteriormente exposto, portanto, os desafios da pesquisa são os de reintegrar a cada um dos ambientes materiais têxteis similares aos daquela época em termos materiais (matéria-prima e tecimento), gráficos (composição e padrão cromático) e espaciais (cortinas, forrações, paninhos e outros com volumes e técnicas adequadas), destacando sua adequação funcional e estética naquele momento. Com a visualidade organizada, pretende-se que a contextualização dos sistemas de produção, uso e descarte dos têxteis expanda o conhecimento adquirido com a visitação da Casa para as dimensões sociais e econômicas do momento histórico no qual aqueles tecidos circularam.

Imagem 1 Fotografia de referência do quarto de vestir de Dona Maria Augusta, esposa de Rui Barbosa. Fonte: acervo da FRCB.

Imagem 2 Fotografia do cômodo em agosto/2010. Fonte: estudo realizado pela pesquisadora.

A realização da pesquisa A família residiu na casa durante 28 anos e, certamente, ao longo desse período, muitos têxteis foram substituídos por razões diversas, como o desgaste a partir do uso, oportunidades de troca ou simplesmente em razão da moda. Esse percurso dificilmente poderá ser recuperado; portanto, impôs-se a necessidade de estabelecer um ponto de referência para propor a renovação a partir de então (Halvorson, 2000). Na ocasião da morte de Rui Barbosa, a Revista Paratodos publicou uma série de fotografias de cada um dos principais ambientes da Casa, que serviu como importante documento para esta pesquisa, ainda que não tenha sido a única fonte consultada. Assim, ante a necessidade de estabelecer um ponto de referência para propor a renovação, optou-se por tomar o ano de 1923 como a datação da pesquisa, o

que permitiu investigar também referências acerca das décadas anteriores (pelo menos desde 1895, ano de retorno de Rui Barbosa do exílio), entendendo que se tratou do período de acúmulo de objetos que propiciou a composição do lar fotografado na década de 1920. As fotografias, como documento privilegiado, permitiram comprovar que a Casa correspondia ao padrão decorativo vigente na época, na qual proliferavam têxteis de diferentes espécies. Também possibilitaram apurar informações quantitativas sobre a saturação do espaço e a composição visual em cada ambiente e no todo da Casa, ou seja, a relação entre os cômodos. A organização desses artefatos e materiais diversos mantinha coerência com o esperado em termos de espaços interiores em casos similares, tanto nas suas funções práticas quanto nas simbólicas. Por isso, o acervo têxtil (potencial) daquela família em particular refletia a personalidade de seus proprietários, com ênfase no caráter intelectual de Rui Barbosa. A pesquisa, deste modo, voltou-se não só para a descrição tipológica dos artefatos, mas também para a compreensão da organização das diferentes espécies em cada situação funcional. Destacou as relações formais entre diferentes tipologias têxteis (materiais e padrões) em cada contexto de uso, bem como sua interpretação (individual e em conjunto) a partir das características das trajetórias dessas espécies (formas de produção, circulação e consumo) (Appadurai, 1996), que é o que definitivamente relaciona os objetos aos humanos, permitindo a sua interpretação para além da própria materialidade. Recursos para a pesquisa Diferentemente de grande parte das pesquisas que versam sobre os objetos e cultura material, este projeto de renovação museográfica parte de objetos ausentes (Halvorson, 2010) isto é, pretende-se alcançar objetos a partir das representações e descrições que foram feitas sobre eles em outros contextos. O objeto, contudo, como desafio desta investigação, é apenas um elemento de conexão ao qual o visitante do Museu-Casa poderá recorrer para remeter-se a Rui Barbosa, especialmente à sua forma de viver, como vem sendo dito pela instituição. Por essa razão, procurou-se explorar na pesquisa recursos que permitiram descobertas para além dos próprios artefatos, especialmente sobre aspectos de sua sociabilidade. Simultaneamente, a indagação acerca dos têxteis no Museu-Casa também foi uma questão permanente, sobretudo porque se entende que é ela que permitirá que se articule um discurso expositivo sólido, que atenda ao compromisso histórico da

renovação e, ao mesmo tempo, aos aspectos comunicativos da museografia, ou seja, de fazer-se entender ao público. Assim, o processo da pesquisa observou os têxteis como objetos, como discurso e como acervo de um Museu-Casa. Durante o primeiro semestre da pesquisa (agosto/2010 a janeiro/2011), as seguintes ações foram empreendidas: a) visitas a museus-casas da Inglaterra 2 , que contam com têxteis preservados do período ou com réplicas que correspondem às tipologias originais; b) consulta a acervos de têxteis e de documentos de referência técnica3, que serviu para a identificação e descrição da materialidade têxtil da casa. Exemplares e fragmentos têxteis, catálogos de venda de produtos de lojas de departamento e manuais de instruções para a elaboração de trabalhos manuais foram alguns dos documentos utilizados para o acesso ao padrão da época em termos de têxteis de interiores; c) pesquisas em revistas femininas, manuais de trabalhos artesanais, jornais e outros documentos similares que permitiram recuperar informações sobre técnicas, funções e nomenclaturas de alguns “paninhos” domésticos comuns naquele período em contextos similares. No segundo semestre da pesquisa (fevereiro/2011 a julho/2011), os dados apurados foram organizados para sua utilização e correta interpretação, levando-se em conta as fotografias e descrições da Casa e também a situação atual dos ambientes. O relatório produzido e apresentado traz, assim, resultados que permitem subsidiar a etapa de elaboração do memorial descritivo dos têxteis a serem reincorporados, do projeto executivo para a renovação dos têxteis, bem como contribuir para a produção de informações e comunicações acerca da pesquisa para visitantes e outros pesquisadores.

Principais resultados apresentados e perspectivas da aplicação da pesquisa a) A diversidade material dos têxteis dos interiores A pesquisa apontou a existência de grande variedade material, pautada pela definição a priori de sua forma de obtenção. Os têxteis industriais eram variedades que incluíam brocados, veludos, moires, chintz, damascos e outros, e tomavam parte de cortinas, estofamentos e algumas almofadas dos espaços sociais. Os têxteis artesanais ou domésticos eram encontrados nos diferentes paninhos que decoravam os ambientes íntimos e também os lugares onde a mulher-esposa era bem-vinda, como a sala de almoço e jantar. Esses artefatos, como objetos, configuravam caminhos de mesa, jogos de toucador, panos de bandeja e almofadas decorativas entre outros. Por fim, os têxteis

artísticos (ainda4 não estudados nesta pesquisa), eram vistos nas tapeçarias e tapetes da casa. b) A visualidade dos artefatos Além das características visuais decorrentes da composição e do ligamento dos tecidos e demais artefatos têxteis, seus padrões gráficos também os nomeiam. Nesse sentido, como as fontes consultadas demonstram, a Casa possuía grande diversidade, comprovando sua adequação à época. Diferentes florais, heráldicas e listrados dos tecidos industriais definiam os ambientes em organização própria, pois cada tipo de composição tinha a capacidade de conferir um caráter ao ambiente. No que tange aos aspectos cromáticos, tanto os fragmentos existentes no acervo, quanto as descrições do período ou o estado atual dos cômodos dão indícios, mais ou menos comprováveis, das cromias que definiam cada ambiente. Assim, na impossibilidade de comprovar todas as sugestões, a pesquisa apontou como solução museográfica a definição de padrões cromáticos5 conforme a função de cada ambiente. Essa projeção parte de outras pesquisas que definem as cores mais usadas em cada situação, manuais da dona de casa, normas de bom gosto etc. c) Os têxteis nos interiores finisseculares sob a perspectiva histórica e social A pesquisa realizada aponta que o consumo material de Rui Barbosa e de sua família estava intimamente associado à sua forma de viver, daí que a reintegração dessas e de outras espécies materiais à Casa permitirá ao visitante uma maior aproximação à personalidade do personagem da história do Museu. Além disso, a riqueza material têxtil que caracterizava as casas do período, com sua opulência e diversidade, proporcionará a exploração em detalhes dos espaços expositivos que devem ser conhecidos no todo e na particularidade de cada cômodo. Enquanto tecidos luxuosos dominavam os espaços sociais, o lugar de trabalho caracterizava-se pela sobriedade, e os espaços femininos, pelo charme e delicadeza conquistados pelo uso de muitos bordados, rendas e trabalhos manuais. As diferenças marcavam os espaços, que distinguiam os gêneros e seus papéis e, por fim, permitiam ou restringiam a sociabilidade. Os têxteis atendiam às necessidades de decoração, higiene e ostentação simultaneamente, de acordo com o conhecimento científico e o padrão moral da época. d) Os têxteis como recurso museográfico Uma vez que os artefatos têxteis são organizados segundo a função dos ambientes, a composição visual resultante contribui para a percepção da identidade dos

cômodos e das correntes estéticas vigentes, já que são espécies materiais mais sujeitas à moda.

Considerações finais O projeto de pesquisa procurou subsidiar a renovação dos os ambientes e não os têxteis em si mesmos, de maneira que os recursos, a metodologia e os resultados parciais devem ser avaliados sob essa ótica.

Ao mesmo tempo, o objetivo dessa

renovação é o de melhorar a museografia do Museu-Casa, de maneira que a reintegração material deve possibilitar a ampliação da potencialidade comunicativa com os visitantes da Casa e, como investigação, deve servir a outros pesquisadores envolvidos com problemas similares. Todos esses aspectos dessa espécie material podem ser explorados para fornecer ao visitante maior conhecimento histórico e socioeconômico, permitindo a comparação daquele momento com o contemporâneo. Do ponto de vista da execução do projeto de renovação, existem desafios a serem superados, sobretudo os de ordem da produção. Tecnologias e processos têxteis mudaram radicalmente, provocando alterações importantes na visualidade e na materialidade dos tecidos hoje comercializados. No que tange aos artefatos domésticos, aparentemente mais fáceis de reproduzir, o obstáculo também se concentra nas matérias-primas e na busca de mãos habilidosas, capazes de produzir determinadas peças. Assim, impondo limites e possibilidades para atender ao compromisso histórico ao qual o projeto se submete, haverá situações nas quais o projeto de renovação será também um ato de criação. Finalmente, o discurso expositivo deverá valorizar o investimento e a pesquisa realizados, justificando as aproximações necessárias e dando margem à utilização de meios diversos para identificar os ambientes por intermédio de seus artefatos têxteis.

Bibliografia APPADURAI, A. The social life of things. Commodities in cultural perspective. New York: Cambridge, 1986. CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história do design. 2 ed. São Paulo: Edgard Blücher, 2004. DESIGNS OF FURNITURE ILLUSTRATIVE OF CABINET FURNITURE AND INTERIOR DECORATION: specially designed for James Shoolbred & Compy.

Tottenham House, Tottenham Court Road, W. Cabinet furniture and upholstery, carpets, curtains, French and English paper hangings, interior decorations, &c. James Shoolbred & Co., London, 1876. FREITAS, Maria Vitorina. Artes e ofícios femininos. Tecnologia. São Paulo: Linográfica, 1948. HALVORSON, Bonnie. Modern Replacement Fabrics in Historic Interiors: Ethical and Practical Concerns. In: The conservation of heritage interiors: preprints of a conference symposium 2000, Ottawa, Canada, May 17 to 20, 2000. NEIRA, Luz García. Relatório final de atividades de pesquisa. Programa de renovação dos ambientes do Museu-Casa Rui Barbosa: artefatos têxteis. Rio de Janeiro: FCRB, 2011. SCARPELINE, Rosealeane. Lugar de morada como lugar de memória: a construção de uma casa-museu, a Casa de Rui Barbosa – RJ. Dissertação de Mestrado em História. Campinas: IFCH, 2009. SCHOESER, Mary. World textiles. London: Thames and Hudson, 2003. THE DEVELOPMENT OF VARIOUS DECORATIVE AND UPHOLSTERY FABRICS. F. Schumarcher & Co., New York, c1924. VIANA, Fausto e NEIRA, Luz García. Princípios gerais de conservação têxtil. Rev. CPC [online]. 2010, n.10, pp. 206-233. ISSN 1980-4466.

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Pesquisa subsidiada por bolsa concedida pela Fundação Casa de Rui Barbosa (FRCB) – Ministério da Cultura. 2 Leighton House Museum, John Wesley’s House, Sir John Soane’s Museum, 18 Stafford Terrace e o Geffrye Museum. 3 Acervos: MoDAMuseum – The Museum of Domestic Design & Architecture, Antique Textile Fair (Londres, setembro/2010), Victoria & Albert Museum, National Art Library, Biblioteca e Serviço de Objetos do Museu Paulista – USP, Museu Imperial (Petrópolis, RJ), Biblioteca São Clemente (FCRB, RJ) e Biblioteca Nacional (RJ). 4 A bolsa de pesquisa foi renovada e no período agosto/2011 a julho/2012 essas espécies também serão pesquisadas. 5 Sobre isso foi desenvolvido um estudo prévio, com testes preliminares a respeito da coloração de fotografias em preto-e-branco, utilizando softwares gráficos e princípios de contraste tonal.

Luz García Neira é Técnica Têxtil (Senai-SP), Técnica em Estilismo de Moda (Senac-SP), graduada em Artes Plásticas (Faculdade de Belas Artes de São Paulo) e mestre em Ciências da Comunicação (ECAUSP). Atualmente desenvolve pesquisa de doutorado (FAU-USP) sobre o desenvolvimento e consolidação do design de têxteis no Brasil. Pesquisadora-bolsista da FCRB (RJ), trabalha no projeto Estudo dos ambientes e acervos do Museu-Casa de Rui Barbosa.

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