Museus da teoria à prática: análise dos implicadores econômicos e políticos na fundação do Museu Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense

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Museus da teoria à prática: análise dos implicadores econômicos e políticos na fundação do Museu Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense (1904) BARBIER, Daniel1; LEMOS, Diego Lemos2

INTRODUÇÃO Autores como Andreas Huyssen (2002), Walter Grasskamp (2007) e Paul Connerton(2008) apontam a predominância, na atualidade, do espetáculo (show) nas diversas expressões da cultura, mesmo nas exposições museológicas contrastando com a finalidade educativa e científica da instituição museu, resultado, esse, de um movimento global e gradual no tratamento da cultura como tecnologia de governo e como bem de mercado, haja visto o emprego corriqueiro de termos como “produto” cultural e “indústria” cultural na atualidade. Theodor Adorno (2009), Stuart Hall (2003), Eric Hobsbawm (1997), Guy Debord (1997), entre outros, têm demonstrado a forte influência exercida pelo sistema financeiro mundial sobre a cultura, especialmente em sua dimensão como meio de comunicação, propaganda, discurso, narrativa, estética, lugar, rotina, rito, tradição, representação e identidade do indivíduo ou de um grupo social. Nesse cenário, o patrimônio cultural, bem como o monumento e o museu, representa a síntese de um movimento coordenado e sistematizado, ao ponto da constatação de que “nenhum governo governa sem patrimônio” (FERREIRA, 2008, 39). O presente trabalho, inserido nessa problemática, visa a analisar a problemática da constituição, finalidades e usos dos museus partindo de uma reflexão sobre os fundamentos teóricos e conceituais de Patrimônio Cultural com fins de estabelecer uma análise dos processos que levaram ao seu surgimento aliado à gestão de governo e objeto de interesse do mercado.

GOVERNAR COM O PATRIMÔNIO A atualidade está cheia de fantasmas do passado. São espectros que aparecem repentina e repetidas vezes no horizonte da história da humanidade

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Mestrando Memória Social e Patrimônio Cultural; UFPEL. Doutor em Arqueologia; UFPEL.

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quando não mais deveriam estar lá. Contudo, estão. Esse movimento repentino de evocar “fantasmas” do passado e atualizá-los no presente é o que nos interessa como objeto de estudo. Se no passado, o Rei, no regime absolutista, representava o Estado,com o advento da Revolução Francesa, a Sociedade passa a compartilhar aos poucos essa representação, inaugurando a concepção de Estado-nação ou Estado Nacional. Porém, a Sociedade, ao longo dos séculos XIX e XX, passa de uma percepção unitária e homogênea para pluralizada, heterogênea e conflituosa. Conforme a compreensão de Stuart Hall (2003), ela transita, via fenômenos migratórios, em direção à globalização. A Europa que ora havia se expandido por todo globo terrestre passa a sofrer o reverso de seu movimento imperialista: as comunidades por ela influenciada voltam o seu olhar para o território europeu em busca do sucesso-felicidade propagandeados pelo mercado expansionista. Esses imigrantes, alienados pelo discurso da prosperidade, na sua maioria, se dispõem a compor os setores mais baixos da estratigrafia social dessas comunidades, situação análoga ou inferior às condições que lhe eram nativas. As elites, para se fortalecerem nesse processo de “invasão”, defendem sua posição social, entre outras maneiras, reforçando ou mesmo inventando tradições. Assim, ao olhar o transcorrer da modernidade, especialmente no que diz respeito à organização dos movimentos populares, como o feminismo, os homossexuais, os negros, os trabalhadores, as transformações sociais advindas a esse setor são, sim, resultados das inovações no modus operandi protagonizado pelos grupos de elite, categoria que detém o controle sobre a sociedade civil e a substitui na representação do Estado, e pelo mercado. Os grupos ou massas populares – categoria excluída do lugar elite – são os sujeitos que sofrem a ação do poder mesmo quando na vanguarda das reformas ou revoluções, estão envolvidos em laços invisíveis que os arrastam pela história, como o caso do anjo descrito por Walter Benjamin (1987). Do ponto de vista político, o patrimônio cultural pode ser ativado para legitimar as práticas de perpetuação do status quo e coagir os sujeitos da sociedade civil. Ao ser gerido verticalmente a partir do topo, tem garantido sua eficácia; isto é, tem reforçado o sentimento de superioridade das elites, dando consistência ao topo e a estrutura rígida e segregada da pirâmide social. Patrimônio é poder e serve para pensar o poder na contemporaneidade, do macro ao micro escala. É um dispositivo de afeto popular utilizado como recurso retórico de proteção as superestruturas.

A

partir

dos

estudos

desenvolvidos

por

Michel

Foucault

sobre

governabilidade, governo dos outros e governo de si, visualizamos com melhor facilidade os vínculos estabelecidos entre si pelos sujeitos de uma sociedade, a formação e desenvolvimento das estruturas de governo (poder soberano) e as relações econômicas estabelecidas nesse meio. Como ponto fundador de suas teses, Foucault (2008) aponta à sociedade civil o lugar de onde emana o poder. São os sujeitos organizados em sua coletividade de forma mais ou menos complexas que outorgam o direito de serem governados. Contudo, circunda e permeia a sociedade civil o sistema econômico, sustentado pela lógica de mercado, que integra e desintegra a sociedade, de acordo a sua vontade e a dirigindo para sua sobrevivência. Esse fator de associação e dissociação, de adesão e de repugnância, que surge entre os sujeitos é o que vai formatar o estilo das instituições civis, especialmente a aquelas que dizem respeito a governança dessa sociedade. A dinâmica estabelecida pelo fator econômico e a disputa pelo poder de governo tende a qualificar os mecanismos de arregimentação social e de perpetuação das estruturas políticas. Assim, o interesse em controlar os sujeitos criando entre eles processos desarmônicos têm sido a chave do sucesso do mercado, como percebe Foucault (2008, p. 410) ao concluir que “a análise do mercado prova que em toda a superfície do globo, afinal de contas, a multiplicação dos ganhos se fará pela síntese espontânea dos egoísmos”. Nessa interação tripartite – sociedade civil, mercado e governança – a harmonia dar-se-á na formulação de uma tecnologia de governo em que os vínculos econômicos não sejam prejudicados. Tal é a necessidade de promover essa lógica que, no imperativo de nutrir a economia em sua superestrutura global3, o controle sobre a sociedade civil é feito de forma arrojada e naturalizada culturalmente, de forma que sem o aprofundamento necessário, visualizar essas estruturas com o olhar comum é impossível. Ao pensar o patrimônio cultural como aparelho tecnológico de governo, encontra-se nele uma categoria com alto grau de negociação entre a tríade enunciada, um produto que surge de uma demanda estabelecida. Cabe lembrar que o substrato do patrimônio cultural, a saber, a legislação, função social, conservação, restauração, manutenção, sustentabilidade 3

“Não há localização, não há territorialidade, não há agrupamento singular no espaço total de mercado”. Foucault, 2008, p. 410.

econômica, mercado de trabalho, propaganda, entorno paisagístico, educação, cultura, entre outros, são elementos de disputa por serem geradores de controle, ou por simplesmente deter poder. Mais! Não pode-se perder de vista que patrimônio cultural, seja ele material ou imaterial, é um evocador de memória e a ela está intimamente ligado. Nesse ponto, a memória, atributo próprio do sujeito e que cujo compartilhamento social desencadeia a formação de uma rede, mesmo que invisível, de sujeitos entrelaçados entre si, possibilita também seu uso na qualidade política quando dentro da perspectiva do patrimônio cultural, como sugere Johann Michel (2010). Vale frisar que governar com o passado é mais eficiente por meio do uso da memória, por ela ligar afetivamente e sensivelmente o sujeito com o passado, do que com a história, cujo empirismo positivo gera uma felicidade fraca entre sujeito e passado (NORA, 1993, p. 27). Do campo do estudo sobre a memória vem a contribuição da compreensão que o patrimônio é originalmente um evocador e conservador de um passado no presente, isto é, são os fragmentos elegidos do passado permanentemente atualizados na vida e organização da sociedade civil atual. É um regime de valor e sentido contínuo de fácil legitimação e adesão popular. Na atualidade, a polarização de poder em múltiplos centros sem espaço geográfico determinado, esfarelado e sobreposto ao mesmo tempo, tensionado entre

Estados,

blocos

econômicos,

poderosas organizações

internacionais,

megacorporações econômicas, mídia e instituições religiosas, introduzem uma nova ordem mundial onde o patrimônio cultural orbita próximo. Como parte da cultura material, ele é a propaganda não-verbal assimilada, defendida e repercutida pelo sujeito. O monumento, os símbolos cívicos, as práticas, os saberes, etc, discursam, falam e dialogam com sujeitos funcionais programaticamente. Assim, ao confrontar a evolução da globalização às ideologias liberais e marxista e se deparar com o fenômeno contemporâneo de um provincialismo universalista, Stuart Hall (2003) evidencia a existência de um elemento que limita e expande o indivíduo de forma regulada, não espontânea: o governo pela alegoria. Nessa perspectiva o patrimônio, quanto símbolo, discurso, significado, etc., não precisa (e algumas vezes não deve) ser mencionado ou institucionalizado. Ele está lá, é evocado por dispositivos ocultos que produzem uma ação velada, cujo resultado é violento. Nesse sentido, o patrimônio cultural como é percebido não tem sua existência limitada à esfera oficial-institucional, seja ele material ou imaterial, mas ele é, antes de tudo, um simulacro daquele verdadeiro patrimônio – a categoria

de poder no lugar de categoria social – que não é facilmente visto, mas que desperta o mesmo sentimento no indivíduo que o patrimônio cultural institucionalizado. Há, portanto, um conjunto maior de patrimônios estabelecidos por relação afetiva, do que os inventariados ou mapeados de forma institucional. As novas tecnologias de governo dão conta dessa estratégia patrimonial e se inserem nessa nova ordem mundial de poder pulverizado, descentrado e global. Que ativam com um comando quase absoluto esses dispositivos de controle, coerção e coesão social. O importante é que ao ativar esses dispositivos através dessas novas tecnologias um discurso é enunciado e um efeito contrário é realizado, isto é, o discurso oficial de patrimônio cultural produz uma ordem contrária ao que ele propõe, na via contrária da ordem de um governo social. O entorno, nesse cenário, abrange mais o que supõem sua espacialidade. O entorno sugere toda a significância que a categoria patrimônio cultural sugere.

PATRIMÔNIO CULTURAL E MUSEUS Em linhas gerais, o que vimos sobre as relações sociais e patrimônio cultural também se aplicam ao estudo sobre museus. Da mesma forma que o Patrimônio Cultural, essencialmente, não nasce atribuído dessa prerrogativa, ela é sobretudo resultado das relações estabelecidas entre o sujeito e o bem, material ou não, os museus só possuem sentido quando assentados sobre a cultura material e as “pontes” de ligação entre o visível e o invisível sugeridos por Pomian (1984) cujo proponente principal é o sujeito. Apesar de todo museu existir por causa de sua coleção, ele só ganha sentido quando pensado no ente humano. Contudo, é o ordenamento intencional e a seleção da coleção que tornam cada uma dessas instituições únicas; além disso, a postura de comunicação de cada museu, para quem ele fala e com quem ele fala, ajuda-nos a identificar sua missão institucional e seu lugar na comunidade humana. O museu se compõe de um acervo constituído de coleções de objetos que deixam de ser utilitários e passam a ser documentos. Coleções essas que se configuram como a base onde se assenta o museu e no mesmo sentido como um dos seus maiores desafios. Se por um lado é a coleção que forma o museu, por outro ele assume outras tantas outras e diversas dimensões diante dos impactos que a instituição causa sobre esse acervo. Essa compreensão colabora na

compreensão do lugar-museu no século XIX, objeto de interesse desse trabalho, e a transformação de seus paradigmas durante o percorrer do séc. XX. A elaboração de ideias de diferenças existentes entre os homens levou-os a construírem uma sociedade estruturalmente organizada sobre esse conceito. A expansão e consolidação dessas ideias tornaram-se mais efetivas com o desenvolvimento das ideias iluministas do séc. XVIII para o campo social e a compreensão do lugar do homem no mundo. Com a decadência progressiva do teocentrismo, a ideia de pensar a humanidade integralmente abriu espaço para se pensar o indivíduo como um ser único e vinculado socialmente. Antes de ser uma possibilidade progressista de liberdades individuais, a tese apontava para uma diferenciação hierárquica de poderes, direitos e deveres num mundo que se expandia territorialmente com a escala das grandes navegações que tinham na América, África e Ásia seus principais destinos. A expansão territorial foi seguida do desenvolvimento e efetivação do sistema capitalista como ordem econômica mundial. A compreensão de uma humanidade homogênea, facilmente distinguida entre cristãos e pagãos, civilizados e bárbaros/selvagens, passou a ser percebida dentro de sua complexidade e classificada de modo a se compor uma estratificação social bastante rígida e conservadora, cujo fundamento basilar para essas teorias foi construída por analogia aos estudos das ciências naturais que ganhou força científica e cultural com a formulação da Teoria da Evolução de Charles Darwin, em 1859, e das teses positivista de August Comte. Schwarcz (2013, p. 120) realiza um levantamento para captar algumas das ideias repercutidas à época sobre a percepção das populações europeias sobre o continente americano. Reproduzo as seguintes: “seriam essas gentes homens ou bestas”,

“civilização

decadente”,

“debilidade

ou

imaturidade

do

continente

americano”, “continente infantil, retardado em seu desenvolvimento natural”, “noção de degeneração para designar o novo continente e suas gentes”. Dessa forma, a América serviu como destino que atraiu uma enormidade de cientistas que buscavam a evidência cabal para suas teorias evolucionistas e de que cujo resultado foi o enaltecimento de um tipo puro e, portanto, a miscigenação era vista como sinônimo de degeneração; e a busca pela predominância de uma grupo “racio-cultural” no comportamento do sujeito que, em última instância, pressupunha

o controle desse grupo sobre os demais e, em alguns casos, a eliminação de “raças inferiores” (SCHWARCZ, 2013, p. 124). O Brasil, devido ao longo histórico de imigrações, era considerado um laboratório racial ideal para se analisar os efeitos da miscigenação e, também, para se propor questões pertinentes ao desenvolvimento de políticas públicas alicerçadas no darwinismo social que despontava especialmente após o surgimento das primeiras leis abolicionistas. Nesse sentido, a partir da década de 1870 se percebe um fortalecimento das teses do evolucionismo social e uma especial dispersão nos veículos de comunicação. Coube aos museus, como principais centros científicos do Brasil oitocentista, dentro de uma ideia de Ciências Naturais, entender e classificar o povo residente no território nacional.

A PELOTAS DO SÉCULO XIX E A BIBLIOTHECA PÚBLICA PELOTENSE Se fosse possível falar de uma historiografia oficial de Pelotas/RS, cidade localizada no extremo sul brasileiro, perceberíamos nela uma exaltação demasiada a sua gênese, ao seu apogeu político e econômico na era imperial brasileira, seus vultos históricos, seus grandes feitos militares... enfim, um encadeamento de tópicos de purismos e heroísmos cuja força motriz é o ciclo do charque. Esquece-se ou silencia-se sobre quem o sistema econômico desenvolvido no entorno da salga da carne estava assentado: foram milhares de negros, sob o regime escravocrata, que durante décadas sustentaram o tão aclamado desenvolvimento local e dele não se favoreceram. Confundida dentro desse cenário está a história da Bibliotheca Pública Pelotense. Fundada em 1875, sua história está atrelada a uma sociedade com fortes contrastes sociais. A formação da cidade de Pelotas/RS confunde-se com a consolidação da fronteira sul - brasileira. Sua estrutura e posição geográfica despertaram o interesse para o povoamento na região, a instalação da empresa saladeril e o escoamento da produção. Em pouco tempo, viu-se o pequeno núcleo de povoamento se desenvolver rapidamente de forma que a população local teria passado de 2.419 habitantes4, em 1814, (OSORIO, 1997, p.80) para 41.591, em 1890 (MAGALHÃES,

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Esse número não representa uma informação totalizante da população da época, como sugere Peres (2002, p.47)

1993, p.108). Contudo, o crescimento demográfico favorecido pelo potencial econômico seguido ao ciclo do charque não criou uma sociedade harmoniosa ou igualitária, nem mesmo houve a preocupação na criação de mecanismos políticos de distribuição de renda e propriedades. Ao contrário, o regime escravocrata e os diversos movimentos imigratórios à região favoreceram o surgimento de uma sociedade de marginalizados (Monquelat, 2014). A modernização do espaço urbano, especialmente no fim do século XIX, conforme indica Monquelat (2012), de uma cidade que se reestruturava da crise econômica gerada pela Revolução Farroupilha e que mantinha na indústria saladeril e na sua posição estratégica entre a região da campanha e o porto de Rio Grande as bases fortes de sua economia, fomentou a criação de instituições culturais, artísticas, educacionais e de lazer5, entre elas a Bibliotheca Pública Pelotense, organizada e fundada por parte da elite pelotense6 em 14 de novembro de 1875. Em pouco tempo, esta instituição passou a realizar uma série de atividades junto à população onde estava inserida (RUBIRA, 2014). Assim, cursos noturnos de alfabetização foram organizados para os trabalhadores, conferências públicas repercutiam os ideais político-filosóficos da época e em 1904 inaugurava-se o Museu Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense, conforme Ata da sessão de Diretoria realizada a 18 de janeiro de 1904: “Acta da sessão de Diretoria realisada a 18 de janeiro de 1904. As 8 horas da noute presentes os Snrs. Drs. Presidente e vice-presidente, thesoureiro, diretores Lemos, Trapaga e Dr. Octacílio Pereira e 1º secretario, foi aberta a sessão. Lida e aprovada a acta da sessão anterior, passou-se ao expediente que contatou os seguintes officios [...] creação de um pequeno museu annexoá Biblioteca. Discutidos convenientemente estas ideas, resolveu-se: [...] nomear uma comissão para tratar da realisação de tão profícua iniciativa devida (a esta circumstancia e aqui é registrada por amor a verdade e como preceito de justiça) a feliz inspiração dos Sr. BaldomeroTrapaga, conforme o declara em seu relatório o diretor Sr. Dr. Octacilio. O Sr. Dr. presidente nomeou para comporem a mesma commissão os Srs. Carlos AndreLaquintine, Dr. Francisco José Rodrigues de Araujo e BaldomeroTrapaga”.

Seu acervo contemplava, entre outras, coleções de mineralogia, paleontologia, zoologia, numismática, filatelia, diversos artefatos históricos e ampla coleção de 5

Pelotas destaca-se por um movimento de associativismo intenso no passado. A maioria dos empreendimentos partia da iniciativa da sociedade civil, deixando ao poder público pequena participação na promoção do surgimento de novas instituições. Contudo, esses novos empreendimentos eram, na sua maioria, criados pela e para a elite local. Mais informações ver MONQUELAT, A.F; PINTO. G. Pelotas no tempo dos chafarizes. Pelotas: Editora Livraria Mundial, 2012. p.90. 6 Participaram da reunião de fundação da Bibliotheca Pública Pelotense 45 homens que elegeram José Vieira da Cunha e Saturnino Epaminondas de Arruda aos cargos de Presidente e VicePresidente, respectivamente.

jornais locais do período imperial e do período republicano, além de outros documentos que mais tarde deram origem ao Arquivo Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense, totalizando mil trezentos e dezoito documentos e uma coleção distribuídos da seguinte forma: Documento Animais Boletins Cédulas monetárias Coleção etenológica [sic] Documentos autografados e cartas Jornais Livros Mapas Medalhas Moedas Pedras mineirais [sic] Selos do Brasil

Quantidade 10 41 45 30 63 820 5 4 14 163 123 1 coleção

TABELA 1 – Primeiro acervo do Museu Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense Fonte: Acervo da BPP

Deste modo, é a partir da identificação do primeiro acervo reunido pelo MHBPP que lançamos a proposta de análise conjuntural deste em relação aos museus brasileiros desse período. OS SIGNIFICADOS POSSÍVEIS DO SURGIMENTO DOS MUSEUS ATRAVÉS DE SEUS ACERVOS Maria Margaret Lopes (1993, p.168 e 169) ao pesquisar a trajetória dos primeiros museus brasileiros, especialmente buscando compreender a “contribuição dos Museus de História Natural à institucionalização das ciências naturais no Brasil no século XIX” (Lopes, 1993, p. 1), percebe haver de forma comum nos mais proeminentes museus do período, a saber, Museu Nacional do Rio de Janeiro, Museu Paraense Emílio Goeldi e Museu Paulista: a) uma relação entre o desempenho dos museus com movimentos de “consolidação de elites locais”; b) “iniciativas científicas regionais”; c) “surto de desenvolvimento material do país”; d) integração ao “movimento de museus a nível internacional”; e) destaque às Ciências Naturais, que passava por uma “mudança de paradigmas” no final do século. Complementamos, com apoio de Lilia Schwarcz (1993, p.118 e 119): f) o movimento

museológico brasileiro ligado às Ciências Naturais serviu, para alguns grupos, e em níveis diferentes, de pretexto para sustentar teorias raciais, evolucionistas, deterministas e positivistas com fins de estabelecer um conceito de “darwinismo social” em um momento em que se dava a abolição da escravatura e o estabelecimento de imigrantes europeus no Brasil. Deste modo, a partir da caracterização tipológica do primeiro acervo reunido pelo MH-BPP percebemos na existência das coleções mineralógicas, zoológicas e etnológicas, por exemplo, que ele estava, em algum grau, inserido no contexto de museus de história natural do século XIX. Esse dado, por sua vez, nos chamou a atenção para um outro fato. Ao investigarmos as personalidades envolvidas no cenário museológico brasileiro no período, percebemos a presença do zoólogo Hermann von Ihering7 (1850-1930), diretor no Museu Paulista por 25 anos, no Rio Grande do Sul. Apesar de não encontrarmos registros documentais de sua passagem por Pelotas/RS, ao traçarmos um quadrilátero das localidades onde fixou residência (Taquara, 1880-1883; Guaíba1883-1884; Rio Grande, 1884-1885; e São Lourenço do Sul, 1885), parece-nos improvável que não tenha estabelecido trânsito em Pelotas/RS durante os cinco anos residentes na região. Contudo, suas ideias e influência serviram de mote para identificarmos a repercussão delas a nível local, como pode ser conferido na conferência pública realizada em 22 de maio de 1904 por Alberto Vieira Braga, na BPP, com título “O movimento scientifico no Rio Grande”. O teor, transcrito e publicado nos Annaes da Biblioteca Pública Pelotense, em 1905, traz informações do movimento relacionado a História Nacional no Brasil e seus principais expoentes, inclusive um verbete biográfico de Hermann von Ihering, como pode ser observado abaixo:

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Nascido em Kiel, Alemanha, em 1850, Hermann von Ihering foi médico, professor e importante ornitólogo. Veio para o Brasil em 1880 para se dedicar a pesquisas patrocinadas pelo governo Imperial. Foi nomeado naturalista viajante pelo Museu Nacional, estacionado no Rio Grande do Sul. Residiu nas cidades de Taquara, Guaíba, Rio Grande e São Lourenço do Sul. Mudou-se para São Paulo em 1892 a fim de fundar o Museu Paulista, dedicado a história natural. Foi, ali, diretor por 25 anos. Seu filho, Rodolpho von Ihering, manteve diversificada correspondência com Henrique Carlos de Morais, diretor do MH-BPP a partir da década de 1930.

FIGURA 2 – Verbete biográfico de Hermann von Ihering extraído do Volume 1 dos Annaes da Biblioteca Pública Pelotense, página 29. Fonte: Acervo da BPP

A repercussão a nível local pela busca por uma cientificidade ligada aos estudos das assim chamadas ciências naturais se expandia no campo da botânica. O mesmo Annaes e seu volume posterior apresentam um registro da “Flora Rio Grandense” assinada por Francisco de Araújo, um dos fundadores do Museu. Também se verifica uma conferência intitulada “Evolucionismo” proferida pelo padre Carlos Schilitz, sacerdote jesuíta, e outra “Ethnographia do Brasil no princípio do século XX”, que possibilitam a identificação do que Schwarcz (2013, 128) disse sobre o predomínio de “um saber evolucionista, positivo e católico, como se fosse possível adotar os modelos raciais de análise, mas prever um futuro branco e sem conflitos”. Esse contexto de divulgação de ideias debatidas no plano nacional e internacional sugere advir da integração pretendida pela Diretoria da Bibliotheca com outras instituições espalhadas pelo globo. Fato é que, no ano de 1904, das 519 correspondências expedidas e recebidas, várias delas tem destino e origem o exterior, especialmente a Europa e a América. São países como República da Guatemala, São Salvador, México e Cuba. Instituições como Universidades de Coimbra, Montevidéo [sic] e Santiago do Chile; Oficina Demográfica de Buenos Aires, Sociedade Geográfica de Madrid, Instituto Internacional de Bibliographia de Bruxelas, Sociedade de Geographia do Rio de Janeiro; Museu Nacional de Buenos

Aires, Smithsunion[sic] Institution de Washington, The American Geographical Society de Nova Iorque, Union Ibero Americana, de Madrid, entre outras8. Outro fator que chama atenção é a figura do proponente da fundação, em 1904, do MH-BPP, sr. Baldomero Trápaga y Zorilla, eleito vice-presidente da BPP em 1905 e presidente em 1906. Importante capitalista pelotense, foi também idealizador da Rádio Pelotense, fundada em 6 de junho de 1925, sociedade civil criada nos salões da Bibliotheca. A ideia de fundação de uma rádio em Pelotas/RS surge, conforme Ferraretto (2002), de dentro do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), de forte influência do positivismo de Auguste Comte, e tem como presidente honorário Augusto Simões Lopes, importante político do PRR gaúcho, prefeito de Pelotas (1824-1928) e filho caçula do Visconde da Graça, pessoa que cedeu o andar térreo de sua residência para a instalação, em 5 de março de 1876, da Bibliotheca Pública Pelotense. A relação de Trápaga y Zorrilla com membros proeminentes do PRR sugere que o positivismo tenha influenciado, como base filosófica, a criação do MH-BPP, cuja fundação se deu um ano depois do Museu Júlio de Castilhos, de iniciativa do governo Borges de Medeiros. Eliane Peres (2002), na mesma linha, sugere que o ideal positivista de um “novo espírito cultural” serviu como influência na condução dos cursos noturnos masculinos de instrução primária surgidos em 1878 na BPP. O próprio museu, apesar de não haver ainda amparos bibliográficos, poderia estar incluído nessa dimensão educacional pretendida pela Bibliotheca Pública Pelotense entre os séculos XIX e meados do XX. Por fim, com o advento da abolição da escravatura e o surgimento dos frigoríficos, o ciclo do charque entra em declínio ao ponto de no início do século XX existirem apenas 5 charqueadas em funcionamento. A mudança econômica se deu com a introdução da cultura do arroz na região incentivada pelo ex-charqueador Coronel Pedro Osório, em 1905 (ABUCHAIM, 2013). Esse fenômeno pode ter influenciado o surgimento de um “culto da saudade” entre a elite da época através da criação de um Museu. CONCLUSÃO Os museus representam a concretude das disputas de poder silenciosas entre grupos sociais ao mostrar a significância que um coletivo dispensa à construção de 8

Ver Annaes da Biblioteca Pública Pelotense – Volume 1, Ano 1904, pg. 116.

uma narrativa que o legitima globalmente a partir dos objetos que coleciona. Seu potencial de mídia de massas e “indústria” cultural de uma classe urbanamente estabelecida homologa os valores dessa classe que pretende ser globalizante. O sentido de “tudo classificar” revela, portanto, uma preocupação de, também, se estabelecer uma estratigrafia social de cultos e incultos, de civilizados e marginalizados. Assim, as mudanças na organização e na função social dessas instituições são tão profundas quanto as mudanças de paradigmas estabelecidos na história. Frutos do seu tempo, os museus brasileiros, inclusive o MH-BPP, repercutiram os dogmas propostos pelas ciências naturais e humanas que procuravam lançar à humanidade conceitos de evolucionismo e positivismo com fins de justificar e militar em prol de uma sociedade segmentada, hierárquica e “pura”, num momento em que a fronteira entre livre e escravo estava fragilizada. O museu, nesse sentido, aparecia como propaganda do progresso direcionado, imbuindo de afetividade a dimensão cognitiva e doutrinária dessas instituições. Dessa forma, mesmo ainda não tendo identificado o principal mote fundador do Museu Histórico da Bibliotheca Pública Pelotense, já percebemos, dada plausibilidade das possibilidades anunciadas neste caso, que os museus nascem sempre de uma necessidade política de estabelecimento ou manutenção de um status quo bastante definido.

REFERÊNCIAS

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