Música, cinema e o limite da sanidade: Análise da canção na trilha sonora do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky

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II SEMIC - Seminário Mídia e Cultura Processos midiáticos e narrativas culturais 11 e 12 de novembro de 2010 Universidade Federal de Goiás – Goiânia - GO

Música, cinema e o limite da sanidade: Análise da canção na trilha sonora do filme Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanzky1 Geórgia Cynara Coelho de Souza SANTANA2 Lisandro Magalhães NOGUEIRA3 Universidade Federal de Goiás / Universidade Estadual de Goiás, Goiânia, Goiás Resumo O presente artigo propõe a análise da trilha sonora do filme brasileiro Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodanzky, 2001), tendo como foco o uso da canção popular no filme. O trabalho tem por objetivo demonstrar a indissociabilidade entre som/música e imagem no discurso cinematográfico e o valor dramático, afetivo e narrativo da canção no cinema brasileiro, inserindo a obra no atual contexto dos estudos do som em produções audiovisuais nacionais. Fundamentam o estudo pesquisas sobre história e estética da trilha sonora em cinema e a música na comunicação audiovisual. Palavras-chave: cinema brasileiro; trilha sonora; canção popular; Bicho de Sete Cabeças Abstract This article brings an analysis of the Brazilian movie Bicho de Sete Cabeças’ soundtrack (Laís Bodanzky, 2001), by focusing on the use of popular songs in the film. This study has the purpose to demonstrate the sound/image inseparability in the audio-visual and cinematographic discourse and dramatic, affective and narrative values of the songs in nacional movies, by placing the film in the current Brazilian movie sound studies’ context. Researches about movie soundtrack’s history and aesthetics and music in audio-visual communication substantiate this article. Keywords: Brazilian movies; soundtrack; popular song; Bicho de Sete Cabeças

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Trabalho apresentado no GT2 – Representações sociais do II SEMIC – Seminário Mídia e Cultura, realizado em 11 e 12 de novembro de 2010, em Goiânia – GO. 2 Mestranda em Mídia e Cultura pela Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás (Facomb/UFG); docente das disciplinas de Som e Teorias da Comunicação do curso de Comunicação Social – Habilitação:Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás (UEG); graduada em Comunicação Social – Habilitação: Jornalismo pela Facomb/UFG, e-mail: [email protected] 3 Orientador do trabalho. Professor do programa de pós-graduação da Facomb/UFG, linha de pesquisa Mídia e Cultura, email: [email protected] 1

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EM BUSCA DA SANIDADE Bicho de Sete Cabeças é um filme urbano em suas cores e sons. A densidade e a

agressividade das texturas visuais e sonoras da cidade evidenciam uma relação íntima do protagonista Neto (Rodrigo Santoro) com as ruas por onde corre, os prédios que picha, o beco onde encontra seus amigos, o quarto onde constrói seu mundo adolescente, lugares em que ele se refugia e busca sua identidade. Tal intimidade com a crueza do ambiente urbano marginal constrasta com a distante relação do personagem com a mãe, Meire (Cássia Kiss) – que, apesar de buscar compreender o filho e amenizar o conflito em casa, mantém-se impotente –, e com o pai, Wilson (Othon Bastos) – figura conservadora, autoritária e ausente, grande responsável pela falta de diálogo na famíla e pelos traumas de Neto ao longo da trama. Ao descobrir que o filho é usuário de drogas, Wilson o interna, à força, num hospital psiquiátrico. O desespero e a resistência de Neto, que quer resgatar sua liberdade, são interpretados pelos enfermeiros como comportamento agressivo típico de dependentes químicos. A equipe do hospital encobre o desinteresse do doutor Cintra (Altair Lima) e os maus tratos aos internos ante às famílias engordando-os e acalmando-os com remédios, o que gera ainda mais indignação em Neto e a adoção de procedimentos cada vez mais agressivos pelos enfermeiros. A fotografia, a cenografia, a montagem, a interpretação dos atores, a utilização não realista do som no filme, entre outras escolhas da diretora Laís Bodansky, demonstram, por meio da linguagem cinematográfica, o processo de enlouquecimento de Neto, separado da família e de si mesmo por um abismo irreversível. Na trilha sonora de Bicho de Sete Cabeças, a música original de André Abujamra e as canções de Arnaldo Antunes e outros artistas mantém uma relação de complementaridade. Ambas são utilizadas com economia e cautela em benefício da polifonia audiovisual, de modo a se contrapor aos momentos de “silêncio” (prevalência do som ambiente em detrimento da fala) e, assim, valorizar, organicamente, sua inserção na trama. Dentro ou fora da diegese, música instrumental, canção e silêncio respondem tanto pela intensificação do desespero quanto pela evidência da loucura/apatia desenvolvida gradativamente por Neto, cujo vão esforço de conhecer a si mesmo e experimentar a adolescência dá lugar a uma delirante e quase perdida luta – porém repleta de poesia – contra a apatia provocada por um estado vegetativo forçado.

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MÚSICA, SOM E CANÇÃO NO CINEMA De acordo com Máximo (2003) e Gorbman (1987), a linguagem musical sempre

esteve presente no discurso cinematográfico, antes mesmo do advento do som no cinema – herança dos dramas musicados (melodramas), óperas e operetas, gêneros musicais de grande sucesso entre os séculos XVI e XIX. Com o advento do som no cinema, no final da década de 1920, o cinema pode reformular sua linguagem, descobrindo novas possibilidades estéticas, de acordo com Prendergast (1992). No entanto, havia incompatibilidade entre as câmeras pesadas, obsoletas e ruidosas da época – que impediam os movimentos de câmera, a agilidade da cena e a captação de som – e as exigências de cada vez mais ritmo e velocidade da banda sonora. Acrescente-se que a novidade era temida por alguns artistas e teóricos receosos de que o som diminuísse a força poética da banda visual e desmontasse o complexo de códigos nãoverbais do cinema, fazendo dele um ‘teatro filmado’, conforme explica Carrasco (2003)4. 2.1

Os musicais: a canção sob holofotes A febre dos musicais em Hollywood data de meados da década de 1930 e vigorou por

cerca de 20 anos. A pesquisadora em tango-canção Heloísa Valente (2003) atribui o sucesso desse gênero cinematográfico, entre outros aspectos, à boa receptividade do público às operetas e outros tipos de dramas musicais que o antecederam5. A autora, citando o compositor e musicógrafo Michel Chion (1995), destaca a predominância de protagonistas e vozes masculinos – como os cantores Bing Crosby, Fred Astaire, Frank Sinatra –, dada a estridência das vozes femininas, devido às deficiências da tecnologia de fonocaptação de então para a gravação de sons de alta frequência (agudos). Playback e dublagem passaram a ser adotados para solucionar um outro problema, desta vez de ordem estética: a falta de segurança ou de afinação dos atores-cantores. Outra 4

Enquanto em 1926 William Fox testava o Movietone – método criado por alemães e suíços em que o som era gravado no próprio filme –, os irmãos Warner a Bell Telephone e a Western Electric já vinham trabalhando no Vitaphone: o som era gravado em disco de 40 cm de diâmetro e sincronizado com o filme por meio da conexão dos motores da vitrola com o do projetor. Esse processo foi usado pela primeira vez no filme Don Juan (1926), de Alan Crosland. Historiadores do som no cinema atribuem a The Jazz Singer (EUA, 1927), também dirigido por Crosland, o título de primeiro filme totalmente cantado do cinema, após o fracasso total ou parcial de experiências anteriores, como em Don Juan. Em 1928, foi exibido o primeiro filme inteiramente falado, Lights of New York, dirigido por Bryan Foy. Um ano depois, a Fox aperfeiçoou o Movietone, possibilitando a gravação sonora na própria película de celuloide. 5 Valente explica que, desde o surgimento do cinema sonoro, os cantores são convidados a encenarem papéis principais ou coadjuvantes. “O mero sucesso de um cantor é suficiente para que protagonize um filme, mesmo se não revela talento dramático” (VALENTE, 2003, p. 119). 3

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característica interessante dos musicais levantada por Valente é o envolvimento da dança e da coordenação coletiva dos atores-figurantes-bailarinos e a sincronização de suas performances com a música. Rio Rita (Luther Reed, 1929), The Vagabond Lover (Marshall Neilan, 1929) e The Rogue Song (Lionel Barrymore, 1930) figuram entre os primeiros musicais de sucesso; Cantando na chuva (Stanley Donen, 1952) representa a segunda fase de auge do gênero. Entre as fases dos musicais de 1930 e 1950, a trilha sonora para cinema era comparada aos poemas sinfônicos de Richard Strauss, tal a sua grandiloquência e seu caráter épico. O fim dos anos de 1940 foi marcado pelo uso da música em função do gênero: os filmes noir, os suspenses e os romances eram ambientados pela música conforme suas peculiaridades estéticas e narrativas, com o objetivo de gerar determinados efeitos sensoriais no público. Na década de 1960, a música popular é plenamente incorporada à trilha sonora cinematográfica, quando a música orquestral recua para funções subjacentes. Trata-se da fase aurea dos cancionistas no cinema, como Burt Bacharach, Lalo Schifrin e Henry Mancini. As canções ora substituíam a música sinfônica e a trilha sonora original – movimento que fez explodir, em 1970, musicais como Jesus Christ Superstar (Norman Jewison, 1973) e Hair (Milos Forman, 1979) que usavam a música pop e o rock’n’roll para pontuar cenas de ação na trama – ora, compostas para o filme, eram lançadas como canções-tema “a serem vendidas em singles, em partituras (hoje muito raramente)” (VALENTE, 2003, p. 119). Chion (1995) revela que a concepção de uma canção-tema vem desde os anos de 1950, quando eram lançados compactos de 45 rpm6 – como por exemplo, As Time Goes By, de Max Steiner, canção-tema do filme Casablanca (Michael Curtiz, 1943). Constata-se, assim, que desde o início de seu uso, a canção original já é composta para ser comercializada como um desdobramento da produção cinematográfica7. Nas décadas seguintes, a música pop foi intensamente explorada, até que filmes como ET (Steven Spielberg, 1982) e Amadeus (Milos Forman, 1984) devolveram a partitura orquestral à narrativa cinematográfica. Assim, a partir da década de 1990, a música orquestrada passou a conviver com a música pop e as canções-tema nos filmes. 2.2

Som, música e canção no cinema brasileiro

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Rotações por minuto. Uma alternativa comercial à ausência de uma canção-tema, é a retomada da trilha de abertura do filme e sua transformação em canção e disco, como no caso de Laura, composta por David Raskin para o filme Laura (Otto Preminger, 1944). Já filmes mais recentes, como O guarda-costas (Mick Jackson, 1992) – protagonizado por Whitney Houston, intérprete da canção I Will Always Love You (música emblemática da película) – e The Doors (Oliver Stone, 1990) – que narra a vida do grupo homônimo, – aproveita-se de canções de sucesso do passado, em nova versão, conforme analisado por Valente (2003). 7

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De acordo com a radialista e pesquisadora Marcia Carvalho (2008), o cinema brasileiro, mesmo em sua fase não falada, sempre foi acompanhado de música popular. Embasada nos escritos do historiador José Ramos Tinhorão (1972), a autora relata a participação de músicos e compositores como Ernesto Nazaré, Pixinguinha e Ari Barroso na execução de peças musicais nas salas escuras de projeção ou nas salas de espera dos cinemas, aproximando-os dos músicos eruditos: “(…) a própria barreira entre músicos eruditos e populares desapareceu, permitindo ouvir num cinema o flautista José do Cavaquinho (...), e no outro o futuro maestro Villa-Lobos manejando um violoncelo” (TINHORÃO, 1972, p. 229). Na primeira década do século XX, surgiram os filmes cantantes, geralmente de curta duração, nos quais músicos populares – estratégia para a conquista de público – interpretavam personagens que dublavam o som da própria voz cantada no momento da exibição, atrás da tela. Nhô Anastácio chegou de viagem (1908) é considerado a primeira película do gênero8, marcado pela apresentação de canções ou apropriação de espetáculos teatrais e trechos de dramas musicais. Carvalho aponta o filme Paz e amor (1910) como um exemplo de “evolução” estética na utilização som no cinema brasileiro, com a presença de ruídos e diálogos. Apenas na década seguinte haveria a seleção ou composição de “temas musicais articulados ao desenrolar das estórias dos filmes” (CARVALHO, 2008, artigo publicado no nº 0 da Revista Universitária do Audiovisual-Unicamp) – como em Barro Humano (Adhemar Gonzaga, 1927) e Limite (Mário Peixoto, 1930). Segundo Viany (1959), o primeiro longa-metragem brasileiro com cenas sonorizadas foi Enquanto São Paulo dorme (Francisco Madrigano, 1929), e Acabaram-se os otários (Luís de Barros, 1929), o primeiro filme totalmente sonorizado e sincronizado do cinema nacional. Em 1931, Coisas nossas, dirigido pelo norteamericano Wallace Downey, seria consagrado como o primeiro sucesso do cinema falado9 brasileiro, principalmente devido à presença de estrelas do rádio, como Paraguassu, Batista Júnior, Jararaca e Ratinho. Fica evidente, a partir de então, a influência dos musicais de Hollywood no cinema nacional, como analisa o jornalista e crítico João Máximo (2003):

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De acordo com o crítico Alex Viany (1959). Viany relata o grande volume de argumentos contra o cinema falado por parte da imprensa brasileira, para a qual a essência do cinema estava apenas na instância imagética. 9

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[o gosto pelos musicais] é mantido durante as duas décadas subsequentes pelas chanchadas da Atlântida e a partir de 1960 pelas “comédias montadas em torno da popularidade da Jovem Guarda, dos humoristas de TV e das apresentadoras de programa infantil” (MÁXIMO, 2003, v. 02: 121).

Com a esperança de que o cinema sonoro impulsionaria a indústria cinematográfica nacional, o produtor mineiro Adhemar Gonzaga funda a Cinédia, responsável pela implantação do sistema Movietone (gravação do som na película) no país, em 1932. O som traz novos custos para filmes e exibidores e reforça a dependência tecnológica em relação à indústria norteamericana, ao mesmo tempo que estimula a produção de comédias, muitas com temática carnavalesca, compostas por vários números musicais. A imagem icônica de Carmem Miranda se destaca nesse período, em filmes como A voz do carnaval (Adhemar Gonzaga e Wallace Downey, 1933) e Alô, alô Brasil (idem, 1935), assim como as figuras de Lamartine Babo, Noel Rosa, entre outros artistas do rádio. Também nessa época, é composta a primeira trilha musical original do cinema brasileiro – por Villa-Lobos, para O descobrimento do Brasil (1937). A Atlântida, criada em 1941 por Moacyr Fenelon e parceiros, consolidou a relação entre música, rádio e cinema no Brasil, seguindo a linha da maior parte das produções da Cinédia – a comédia musical popularesca – que deu origem à chanchada, gênero de grande aceitação que perdurou até a década de 1950 – quando foi absorvido pela televisão – e foi retomado em 1960, em São Paulo, por Amacio Mazzaropi. Nos anos de 1950, a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, fundada por Franco Zampari e Assis Chateaubriand, em São Paulo, tentou implantar no país um sistema efetivamente industrial de produção cinematográfica, por meio da realização de “dramas universais com produções luxuosas e caras, de forte apelo comercial e conservador, no melhor estilo hollywoodiano e com forte investimento norte-americano” (CARVALHO, 2008, ibid) – projetos para os quais a companhia contava com uma equipe técnica estrangeira. Compositores como Radamés Gnattali, Francisco Mignone, Gabriel Migliori, Guerra Peixe e Enrico Simonetti eram contratados para criar as trilhas musicais dos filmes da Vera Cruz, que seguia o método tradicional hollywoodiano do uso dramático dos temas. Em oposição às produções de estúdio influenciadas por Hollywood surge o Cinema Novo, caracterizado por produções inspiradas nas vanguardas europeias dos anos de 1960 e realizadas por críticos e cineastas independentes, como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha. Sobre a música utilizada nesses filmes, Carvalho (2008) frisa a presença constante do samba de Zé Kéti e de canções de protesto. 6

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Máximo (2003) aponta a influência francesa no uso de canções em filmes brasileiros não enquadrados no gênero musical. De acordo com o autor, as canções parecem oscilar entre um recurso gratuito, sem função em trilha incidental, e um elemento funcional: [a maioria dos nossos cineastas] não sabem o que querem musicalmente; acham que qualquer coisa serve desde que consigam colocar música num filme, seja esta ouvida ou não (MÁXIMO, 2003, v. 02: 142). 3 3.1

A MÚSICA EM BICHO DE SETE CABEÇAS A marca sonora da loucura De acordo com Caznok (2003), a música, por si só, já aponta a necessidade de

indiferenciação, uma vez que ela é, ao mesmo tempo, melodia (audição), textura (tato) e movimento (visão). Desse modo, quanto maior a indiferenciação de sentidos ao assistir ao filme, maior a fruição. Como dissemos, a inserção da música no filme é marcada pela economia, opção que valoriza as ocorrências musicais, o silêncio, os diálogos, enfim, a instância sonora como um todo – o que, para Michel Chion (1993), contribui para o valor agregado pelo som à imagem. O conceito de valor agregado proposto pelo autor refere-se a um valor expressivo e informativo com o qual o som imprime significado à imagem, de modo a dar a impressão de que tal informação já estava contida nela. Sequências de fuga, maus tratos e algazarra, em Bicho de Sete Cabeças, “tornam-se mais reais” com a presença do som sincronizado e da música, que, assim como a correria dos personagens na imagem, imprime ritmo e agilidade às cenas. A trilha musical original do compositor e músico André Abujamra revela toda a violência psicológica de que trata o filme, ainda nos créditos iniciais. O correr de Neto pela cidade, seja depois de uma discussão com o pai, seja tentando fugir da polícia após a pichação de edifícios, tem sua dimensão ampliada pelo predomínio de frequências graves, pelas batidas eletrônicas em alta velocidade e pela presença da guitarra distorcida, cuja melodia sombria remete à relação de Neto com o ambiente urbano, duro e cruel. As composições de Abujamra oscilam entre o tonalismo e o atonalismo, dada a combinação ou sequenciação de linhas melódicas simples com texturas sonoras densas e de origem não convencional. Sons metálicos e intermitentes sugerem atritos ao mesmo tempo 7

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irregulares e constantes e geram desconforto ao espectador, cuja audição é culturalmente marcada pela tradição tonal ocidental. Grande pesquisador de sons orientais e world music, Abujamra tem seu trabalho marcado pela experimentação proporcionada pela tecnologia digital, de infinitas possibilidades de manipulação, ângulos e superfícies irregulares. Essa é a marca sonora dos delírios de Neto e de sua relação com o ambiente do hospital psiquiátrico e as pessoas que ali vivem. Em algumas sequências em especial essa utilização subjetiva do som e sua integração com a música original se fazem evidentes: quando Neto é capturado após uma tentativa de fuga e levado pelos enfermeiros para a sala de choque, a respiração ofegante, o debater-se e o choro do protagonista constrastam com a frieza dos enfermeiros e do médico – o que é sublinhado pela ausência de música. No instante do choque, uma nova gama de sons metálicos e graves da trilha original vêm à tona e acompanham Neto até o final da película, como uma “cicatriz sonora” deixada por toda a violência a que ele havia sido submetido. Pequenos fragmentos da composição original – desta vez, em frequências agudas – passam, então, a substituir as vozes dos personagens que se relacionam com Neto após sua primeira saída do hospital – o que é percebido pela sincronia entre o movimento das bocas dos personagens e a ocorrência do som distorcido. Isso ocorre apesar de o som ambiente prosseguir audível. Fragmentos sonoros dialogam com fragmentos de imagem, os movimentos de câmera na mão e os jumpcuts10, sobretudo quando da lembrança do pai, reforçando a ideia de que a experiência do choque e tudo o que a precedeu deixaram marcas irreparáveis na vida do rapaz. Por meio da audição sinestésica do filme, é possível perceber o processo de desumanização do personagem, que vai se tornando mais um ser apático a vagar pelo hospital. 3.2

A canção no filme As canções de Bicho de Sete Cabeças referem-se aos delírios de Neto, aos lugares

frequentados por ele, às companhias de que desfruta11. Em sua maioria composições de Arnaldo Antunes, essas peças musicais surgem em momentos estratégicos do filme e convidam o espectador a uma experiência sinestésica.

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Tipo de corte que promove a desestabilização e a descontinuidade de uma cena, ao serem excluídos alguns de seus frames. Para ambientar o lugar em que Neto encontra os amigos e caracterizar esse universo adolescente urbano, são utilizadas canções de rap (O Caminho das Pedras – banda Zona Proibida) e punk rock nacional (Satélites – banda Infierno). 11

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No único momento de leveza entre Neto e Wilson, durante um jogo do Bragantino, a canção Fora de si, de Arnaldo Antunes, dá o tom do jogo, tanto pontuando a vibração da torcida e a paixão do brasileiro pelo futebol quanto anunciando, sutilmente, tudo o que acontecerá com Neto: “Eu fico louco / eu fico fora de si / eu fica assim / eu fica fora de mim”. Quando Neto viaja com um amigo para Santos, a ambientação da praia ganha novos contornos com a canção Dinheiro (Arnaldo Antunes e Jorge Benjor), que tem um ritmo semelhante ao reggae. Quando Neto está na casa de Leninha, mulher que conhecera num bar, no momento em que os dois personagens começam a trocar olhares a fotografia de cores quentes se une à canção O Seu Olhar (Paulo Tatit e Arnaldo Antunes) para revelar a visão subjetiva de Neto, que volta de ônibus para casa mirando o céu, entrecortada pelas lembranças daquela noite de amor: “O seu olhar lá fora / O seu olhar no céu / O seu olhar demora / O seu olhar no meu”. A canção, em mi maior, é marcada por um ritmo de balada e pela presença oitavada de uma voz masculina (extremamente grave) e outra feminina (extremamente aguda). Esse dueto revela a distância entre Neto e Leninha, cuja relação, apesar daquele contato, não pode ser duradoura. Curiosamente, a voz feminina, quase infantil, se remete ao Neto adolescente, enquanto a masculina se remete à experiência de Leninha, mulher madura que passa a habitar os pensamentos do rapaz a partir de então. O tom profético do uso da canção no filme também está na música cantada interpretada pela voz trêmula de um louco, sem acompanhamento instrumental, dentro da diegese – Quem vem pra beira do mar, de Dorival Caymmi: “Quem vem pra beira da praia, meu bem, não volta nunca mais / A onda do mar leva / A onda do mar traz”. A canção sintetiza a ideia de que a experiência no manicômio faria com que Neto nunca mais “voltasse para casa” – alusão à apatia e à loucura demonstradas pelo personagem a partir do internato. Esse sentimento de ausência, presente em cada interno do hospital, tem seu correspondente, na imagem, nas distorções do quadro, desfoques e movimentos irregulares de câmera, e, no universo das canções da trilha, em músicas como Carnaval (Arnaldo Antunes), que se inicia no filme com a cena do médico bebendo despreocupadamente seu whisky e termina com os loucos, que simultaneamente circulam pelo pátio: “árvore / pode ser chamada de / pássaro / pode ser chamado de / máquina / pode ser chamada de / carnaval / carnaval / carnaval”. 9

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Um dos momentos mais marcantes da canção no filme, no entanto, ocorre quando um dos internos mais velhos do hospital diz: “A gente até precisa fingir que é louco sendo louco, fingir que é poeta sendo poeta”. Ele convida Neto a ler as palavras gravadas na parede, que correspondem à letra da canção O Buraco do Espelho (Edgard Scandurra e Arnaldo Antunes). A câmera passeia pelas palavras, enquanto a música, “recitada” por Antunes num ritmo compatível com o movimento da imagem, revela a prisão definitiva de Neto no universo da loucura e o perigo iminente da morte: “o buraco do espelho está fechado / agora eu tenho que ficar aqui / com um olho aberto, outro acordado / no lado de lá onde eu caí”. A fala de Antunes por meio da canção, acompanhada do dedilhado da guitarra e da linha harmônica dos teclados, revela;se uma extensão da fala do personagem. As imagens distorcidas da parede se misturam às imagens fixas e em preto e branco da mãe de Neto, em casa, sofrendo com a ausência do filho. Depois de voltar para casa carregando suas marcas, o personagem, após perder o controle em uma festa, é novamente internado, desta vez em outro hospital psiquiátrico, onde é constantemente desafiado pela agressividade do chefe dos enfermeiros. O som é importante para externar a sensação de prisão de Neto na solitária, cubículo escuro para onde é levado, devido a seu “mau comportamento”. Da segunda vez que ele é preso na solitária, ele tenta se suicidar incendiando o lugar, para o desespero do interno Bil. Quando a porta se abre e Neto, enfim, consegue respirar, pode-se ouvir, então, a canção que dá nome ao filme – Bicho de Sete Cabeças (Zé Ramalho, Geraldo Azevedo e Renato Rocha), cantada por Zeca Baleiro –, que marca o renascimento do personagem, a possibilidade de recomeço, apesar das cicatrizes e da lembrança negativa do pai: “Não dá pé / Não tem pé, nem cabeça / Não tem ninguém que mereça / Não tem coração que esqueça / Não tem jeito mesmo / Não tem dó no peito / Não tem nem talvez ter feito / O que você me fez desapareça / Cresça e desapareça... ”. A canção embala a saída de Neto do hospício, paralela à cena do pai que, em lágrimas, lê a carta do filho – a mesma da cena inicial do filme. A sequência descendente de notas do refrão, repetida e superposta às estrofes da canção, remete ao triste final do personagem e conclue o ciclo narrativo com o lirismo e a melancolia de uma resignada aceitação do destino. 4

CONSIDERAÇÕES FINAIS

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Utilizando-se outro conceito de Chion (1993), podemos dizer que a trilha musical de Bicho de Sete Cabeças é fundamentalmente empática: ela participa da cena, imprime ritmo à imagem, delimita espaços diferentes, é interpretada por personagens, exprime o estágio psicológico deles. Em relação aos diálogos e ruídos, a economia na inserção da trilha evidencia todas as ocorrências de som, de modo que a música avança ou recua à medida em que alguma outra situação sonora torna-se importante. A música não só fornece pistas narrativas ao espectador – seja por meio das letras das canções, seja por meio das composições atonais associadas à loucura –, por exemplo – como conduz a história e promove a continuidade rítmica entre planos e cenas, seguindo os princípios estéticos propostos por Giorgetti em seu artigo Da Natureza e Possíveis Funções da Música no Cinema (2008). Todo uso que se faz dela é funcional, totalmente relacionado à narrativa, evitando excessos e o consequente desgaste do recurso musical. Destaque para a ampla utilização do som subjetivo – análogo à câmera subjetiva, cuja ocorrência vai da audição fragmentada da música que toca no fone de ouvido de Neto aos delírios do personagem, sobretudo após o choque. A utilização de soundbridge – técnica pela qual o som antecipa a cena seguinte – também é marcante na obra, sobretudo por meio da música. As canções de Arnaldo Antunes e composições originais de Abujamra convivem e dialogam entre si e com a imagem, sendo usadas também como substrato do soundbridge. A fragmentação da montagem vai ao encontro do concretismo poético de Antunes e do ritmo frenético do ambiente urbano frequentado por Neto, sublinhado pela trilha musical original. Especialmente em se tratando da canção-tema – que, por sinal, só é ouvida ao final do filme –, a música configura-se também como um significante independente de emoções, uma vez que, independentemente da existência da obra cinematográfica, o espectador-ouvinte nutre sentimentos e interpretações prévias em relação à canção, ressignificada por Laís Bodansky para uma finalidade específica. A estratégia adotada para a música em Bicho de Sete Cabeças converge para o mercado universo das produções nacionais, em que a trilha sonora, via de regra, promove e é promovida pelos filmes, por meio da relação com a forte indústria fonográfica do país. O que se espera com a inovação no uso dos recursos musicais – sobretudo no caso da canção – trazida pelo filme aqui analisado é que haja estudos mais aprofundados sobre o tema no Brasil, cuja cultura é riquíssima em termos de música popular. Espera-se também que o cinema brasileiro faça um uso orgânico dessas canções, aproveitando o potencial narrativo 11

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inerente a elas, e que, desse modo, possa-se falar, com categoria, em funcionalidade da música popular na produção cinematográfica nacional. REFERÊNCIAS CARRASCO, Ney. Sygkhronos: a formação da poética musical do cinema. São Paulo: Via Lettera: Fapesp, 2003. CARVALHO, Marcia. A canção popular no cinema brasileiro: os filmes cantantes, as comédias musicais e as aventuras industriais da Cinédia, Atlântida e Vera Cruz. Revista Universitária do Audiovisual, v. 00, p. 01-03. Campinas: Unicamp, 2008. CAZNOK, Yara Borges. Música – Entre o audível e o visível. São Paulo: Editora Unesp, 2003. CHION, Michel. La audiovisión – Introducción a un análisis conjunto de la imagen y el sonido. Barcelona: Ediciones Paidos, 1993. ______. La musique au cinéma. Paris: Nathan, 1995. GIORGETTI, Mauro. Da natureza e possíveis funções da Música no Cinema (2008).«http://www.mnemocine.art.br/index.php?option=com_content&view=article&id=117:funcoes -musica-cinema&catid=53:somcinema&Itemid=67». Acesso em 03/02/2010, 21h. GORBMAN, Claudia. Unheard Melodies: Narrative Film Music. Bloomington: Indiana University Press, 1987. MÁXIMO, João. A música do cinema: os 100 primeiros anos. V. 2. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. PRENDERGAST, Roy M. Film Music – A neglected art: a critical study of music in films. 2nd ed. London: W. W. Norton & Company, 1992. SEVERIANO, J. e MELLO, Z. H. A canção no tempo – 85 anos de músicas brasileiras. V. 2. São Paulo: Editora 34, 1998. TINHORÃO, J. R. Música popular: teatro e cinema. Petrópolis: Vozes, 1972. VALENTE, Heloísa de A. D. As Vozes da Canção na Mídia. São Paulo: Via Lettera/Fapesp, 2003. VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: MEC/Instituto Nacional do Livro, 1959.

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