“MÚSICA DE BEIRADÃO”? REFLEXÕES A PARTIR DO CAMPO

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“MÚSICA DE BEIRADÃO”? REFLEXÕES A PARTIR DO CAMPO Rafael Branquinho Abdala Norberto [email protected] Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Resumo O objetivo deste trabalho é apresentar algumas reflexões de cunho etnomusicológico, a partir da etnografia em andamento, acerca dos imaginários amazonenses em relação aos usos da terminologia “Beiradão” aplicada à música. A temática proposta para esta comunicação é um recorte de algumas inquietações que vivenciei em anos anteriores e outras que experienciei durante o meu último trabalho de campo (entre 11.01.2015 e 03.03.2015). Para alcançar o objetivo explicitado acima, utilizo duas técnicas etnográficas, a observação participante e os diálogos registrados em campo. Trago como resultado deste trabalho a compreensão dos empregos da terminologia “beiradão” por parte da população amazonense e de como esta terminologia passou a ser utilizada na música a partir dos discursos e falas nativas dos músicos inseridos nesse universo musical (“Beiradão”). Ressalto a importância de não demonstrar verdades a priori acerca desse entendimento, nem afirmar o que realmente é ou não “música de Beiradão”, mas sim, a possibilidade de salientar as diversas construções que foram e ainda são feitas acerca dessa música. Essas construções situam-se em contextos socioculturais distintos que oportunizam a criação de diversas músicas de (pensadas como gênero musical) e nos (pensadas como a localização geográfica onde esses fenômenos musicais ocorrem) “beiradões”. Este trabalho contribui para os estudos etnomusicológicos de culturas populares envolvendo música na região amazônica, principalmente por refletir acerca dos imaginários amazonenses e usos da terminologia nativa “Beiradão” aplicada à música, buscando compreender as relações entre músicos e públicos amazonenses e seus desdobramentos socioculturais. Palavras-chave: “Música de Beiradão”; Cultura popular no Amazonas; Etnomusicologia. Abstract The aim of this work is to show some ethnomusicological thinking, from ethnography in progress, about the imaginary of people from Amazon state in the uses of “Beiradão” terminology applied to music. The proposed theme for this communication is a clipping some concerns that I experienced in previous years and others that I experienced during my last fieldwork (between 01.11.2015 and 03.03.2015). To achieve the aim set out above, I use two ethnographic techniques, participant observation and dialogues recorded in the field. I am bringing as a result of this work the understanding of terminology "beiradão" used by the people from Amazon state and how this terminology started to be used in music from the speeches and statements of native musicians included in this musical universe ("Beiradão"). I emphasize the importance of not demonstrate a priori truths about this understanding, nor say what it really is or not "music of Beiradão" but rather, the ability to point out the various constructions that were and still are made about this music. This work contributes to the ethnomusicological studies of popular culture involving music in the Amazonian region. Keywords: “Music of Beiradão”; Popular culture in Amazon state; Ethnomusicology.

O primeiro contato que tive com o termo “Beiradão”1 aplicado à música foi em um diálogo com o músico amazonense Ítalo Jimenez no ano de 2010. Durante essa conversa, quando falávamos sobre o jazz em Manaus, Jimenez (2010) afirmou que eu deveria estudar o “Instrumental Beiradão”, por ter sido um “movimento musical” por meio do qual despontaram músicos que, naquele momento, eram a sua principal inspiração e referência jazzística no saxofone. Esse diálogo causou-me diversas inquietações, sendo que, a primeira delas se resumia na seguinte questão: No que se constitui, de fato, o “Instrumental Beiradão”? Passei alguns anos refletindo acerca dessa questão a distância até ingressar no mestrado em etnomusicologia e ter a oportunidade de levar a cabo esta pesquisa através da convivência (etnografia) com os músicos e públicos amazonenses envolvidos com a música reconhecida por eles como “Beiradão”. Antes de mergulhar no campo propriamente dito, tive a oportunidade de realizar um pré-campo na cidade de Manaus entre os dias 28.07.2014 e 07.08.2014. Pautei-me, desde a primeira incursão, na reflexão feita por Timothy Rice quando diz que o campo funciona “não aparentemente como um lugar para testar e por em prática a teoria, como um lugar experimental em outras palavras, mas um lugar para tornar-se etnomusicólogo, um lugar empírico”2 (Rice, 2008, p. 46, tradução minha). Também entrei em campo imbuído de algumas

reflexões

teórico-metodológicas

utilizadas

nas

pesquisas

participativas

exemplificadas por Vincenzo Cambria e Ramón Pelinski. Cambria (2004, p. 3) sugere que adotemos “[...] uma postura reflexiva, dialógica e colaborativa [...]” com a rede de sujeitos ou colaboradores da pesquisa. Pelinski (2000, p. 294, tradução minha) sugere que a autoridade etnográfica pode ser dividida entre “[...] pesquisadores e informantes nativos, colaboradores ou amigos, para que eles tenham a possibilidade de controlar a interpretação de sua própria história”3. Apesar disso, Cambria (2004, p. 3) está criticando em seu texto o ideal dos antropólogos e etnomusicólogos que assumem essa postura reflexiva, dialógica e colaborativa dando voz aos nativos, porém, sem realizar pesquisa participativa. Cambria atribui a esses pesquisadores a qualidade de “compositores” e “solistas” de suas pesquisas. Em minha Eu utilizo “Beiradão” (com a inicial maiúscula) quando trato do termo empregado em música e “beiradão” (com a inicial minúscula) quando faço referência às beiras de rios, igarapés e paranás onde habitam diversas comunidades ribeirinhas. Utilizo ambas as terminologias (“Beiradão” e “beiradão”) entre aspas por tratarem-se de categorias êmicas. 2 “Not apparently as a place to test and work out theory, an experimental place in other words, but a place to become an ethnomusicologist, an experiential place”. 3 “[...] investigadores y autóctonos informantes, colaboradores o amigos, para que éstos tengan la posibilidad de controlar la interpretación de su propria historia”. 1

opinião, a busca por uma “relação social simétrica” (Latour, 1994) com os colaboradores da pesquisa é a principal forma de agirmos com ética, sem precisarmos necessariamente realizar pesquisa ação-participativa ou pesquisa participativa. Nós podemos realizar uma pesquisa interpretativa, baseada nos conceitos exemplificados por Geertz (1989) como, por exemplo, a “descrição densa”, e ainda sim realizarmos uma pesquisa reflexiva, dialógica e colaborativa, mesclando interpretações advindas do pesquisador e ao mesmo tempo possibilitando aos nativos “controlar e interpretar a sua própria história”. O que busco em minha pesquisa e apresentarei no decorrer deste trabalho é uma união dessas perspectivas exemplificadas acima, idealizando o meio termo entre as mesmas. Durante o pré-campo eu acompanhei um ensaio da Orquestra de Beiradão do Amazonas (OBA) no dia 29.07.2014, um show da própria OBA no Ginásio Amadeu Teixeira no dia 30.07.2014 e outro no evento de inauguração da Galeria Espírito Santo no dia 01.08.2014. Este evento de inauguração da Galeria Espírito Santo também contou com a participação do Cordão do Marambaia. Além disso, fui tendo os primeiros contatos com alguns dos músicos que se tornaram colaboradores desta pesquisa no trabalho de campo posterior. Ressalto que desde a primeira incursão em campo (pré-campo) eu utilizo os recursos técnicos da fotografia e da filmagem nas observações participantes que realizo durante as performances de “Beiradão” que tive e estou tendo a oportunidade de acompanhar. No trabalho de campo propriamente dito (entre janeiro e fevereiro de 2015), eu fiquei 52 dias em campo. Neste período, eu tive a oportunidade de registrar os diálogos com cerca de trinta músicos, sendo que esses músicos (colaboradores desta pesquisa) dividem-se em gerações musicais distintas, com ideologias divergentes envolvendo a “música de Beiradão”. Além de músicos, conversei com produtores e radialistas que viveram o auge do que ficou conhecido na década de 1980 como “movimento Beiradão” ou “Instrumental Beiradão”. Também acompanhei dois músicos (etnografei as performances através da observação participante) em “festejos de santo” (terminologia nativa) que ocorreram em “comunidades” rurais nos “beiradões” de fato. O primeiro deles foi o festejo de São Lázaro na Aldeia Piranha, que se localiza às margens do rio Igapó-Açu, na Terra Indígena Cunhã-Sapucaia, pertencente ao município de Borba (AM), onde Chico Cajú e Banda e Cheiro e Banda animaram a festa. O outro festejo (Nossa Senhora do Bom Parto) foi na “comunidade” Menino Deus do Curuça, às margens do rio Curuça, distrito de Massauari, pertencente ao município de Boa Vista do Ramos (AM), onde a Banda HM Som, Amarildo do Sax e Forró de Reis animaram o “baile dançante”. São nesses festejos em comunidades rurais nas beiras de rios, igarapés e paranás

que a “música de Beiradão” foi sendo construída ao longo dos anos e foi estabelecendo-se como tradição entre os nativos. Segue duas figuras com recortes de mapas feitos a partir da ferramenta Google Maps em que viso ressaltar os espaços geográficos percorridos por mim durante o trabalho de campo descrito acima:

LEGENDA Região aproximada dos trânsitos geográficos durante o trabalho de campo

Figura 1 - Recorte do mapa-múndi com ênfase no Estado do Amazonas (Brasil)

Paraná do Ramos

Menino Deus do Curuça

Rio Madeirinha Aldeia Piranha

LEGENDA Rios e Paraná por onde naveguei Manaus e localidades onde registrei as performances de “Beiradão”

Figura 2 - Recorte do mapa do Amazonas com ênfase nos espaços geográficos percorridos durante o trabalho de campo

Entretanto, O que é mesmo “beiradão”? Esta terminologia está presente no imaginário amazonense há muitos anos. O escritor, poeta, jornalista e político amazonense Álvaro Maia já traz esta terminologia em sua obra Beiradão, publicada pela primeira vez em 1958. Maia (1999, p. 23) discorre:

Intitula-se beiradão a margem dos rios principais, onde se fixaram os primeiros desbravadores e permaneceram os seus descendentes. Aí se encontram grandes seringais e castanhais, sem a riqueza e a fartura dos afluentes de águas-pretas, assim como povoados e sedes municipais. Navegável durante o ano inteiro, embora com pedras e baixios no verão, serve para distribuir mercadorias e armazenar a produção, conduzida em gaiolas e motores para os centros importadores.

A partir das minhas observações e experiências vivenciadas no campo, reflito que muitos dos imaginários amazonenses aos quais tive contato permanecem tendo a mesma ideia de “beiradão” trazida por Álvaro Maia. Por outro lado, tive contato com outras definições nativas de “beiradão”, por mais que o imaginário divulgado por Maia seja o mais comum entre essas pessoas que convivi. A maioria desses amazonenses (não músicos) explicitou que “beiradão” era a nomenclatura utilizada por eles quando se referiam às margens (“beiradas”) de rios, igarapés e paranás, principalmente, dos de águas brancas, pelo fato desses rios

estarem em áreas de várzea e não de igapós. Nessas áreas de várzea, nos rios de águas brancas, é muito comum as “comunidades” ficarem em barrancos altos, o mais distante possível da água, para defenderem-se das enchentes. Já os rios de águas negras, formam praias no verão (período de seca) e igapós no inverno (período das enchentes), sendo que normalmente os barrancos (“beiradas”) onde se localizam as comunidades ficam mais próximos dos rios, sem as características de serem barrancos muito altos. É devido à altura dos barrancos nos rios de águas brancas que os amazonenses, desde os tempos do Álvaro Maia, denominam essas localidades de “beiradões”, ou seja, uma beirada alta. Estas são algumas fotos do “beiradão” de águas brancas que capturei durante o campo na “Comunidade” de Cametá do Ramos (distrito de Barreirinha-AM):

Figura 3 – Passarela que dá acesso às escadas de Cametá do Ramos

Figura 4 – Vista do Paraná do Ramos observado a partir da “comunidade”

Apesar de muitos amazonenses corroborarem com Álvaro Maia dizendo que os “beiradões” situam-se nos rios de águas brancas, os músicos que tenho tido contato não fazem distinção entre rios de águas brancas, negras e claras, pois para eles todas essas localidades são “beiradões”. Os imaginários dos músicos amazonenses são muitos no que se refere às músicas tocadas nos “beiradões”. O primeiro diálogo que tive em que um músico definiu esses usos da terminologia “Beiradão” aplicada à música foi com o colaborador Eliberto Barroncas, que discorreu o seguinte:

O termo Beiradão começou a ser empregado em música quando os radialistas das emissoras (ondas curtas) de rádio anunciavam qualquer acontecimento, festivo ou não, nas localidades do Amazonas ("festa no beiradão”, “torneio de futebol lá no beiradão”, “música lá no beiradão” etc.). Portanto, era uma forma urbana (manauara) de se referir a tudo que acontecia no interior do estado, em uma alusão figurativa às margens dos rios. Esse termo não fazia parte do vocabulário das pessoas interioranas da região. Outro fator importante, para uma melhor compreensão do assunto, é o fato de que o acesso que se tinha a música se dava unicamente através das rádios Baré, Difusora e Rio Mar, que veiculavam a música popular brasileira que acontecia nas outras regiões do país, com ênfase aos segmentos mais voltados para o dito “povão” (marcha, frevo, bolero, samba, xote, baião,

entre outros). E era esse o repertório tocado de ouvido nas festas pelos músicos ribeirinhos. Isso quer dizer que a música de Beiradão não é um determinado ritmo como estão falando por aí, com certa influência do jazz (gênero que não era tocado nas rádios citadas). Porém, como é natural, essa música ganhou sotaques específicos que aparecem nos trabalhos autorais de compositores como: Teixeira de Manaus, Souza Caxias, Agnaldo do Amazonas, Chiquinho David, Chico Cajú, Manezinho do Sax, Rubens Bindá, Magalhães da Guitarra e tantos outros. Antes desses [músicos] citados muitos [outros] músicos, em todo Amazonas, tocavam nas festas com instrumentos como violino, clarinete e outros (Barroncas, 2014).

Eu experienciei, em parte, exatamente esse relato transcrito acima advindo da maioria dos músicos que foram residir em Manaus em busca de “profissionalização” na música e, a partir da vivência manauara, adotaram a terminologia “Beiradão” como sendo as músicas que eles executavam nos festejos nos interiores. Para alguns, era o forró, o frevo, a marchinha de carnaval, o samba, a valsa, o bolero, entre outras modalidades musicais. Entretanto, para outros, eram essas mesmas músicas, mas com “sotaques amazonenses”, ou seja, particularidades que só teriam quando tocadas por esses músicos nos “beiradões”. Além do que relatei acima, também presenciei outras realidades. Um exemplo é a experiência trazida por dois músicos que tive a oportunidade de dialogar que construíram as suas vivências a partir do modo de vida interiorano. Este é o caso dos saxofonistas “Cheiro” e João Simões4. O primeiro nunca tinha ouvido falar em “música de Beiradão”, nem mesmo reconhecia essa terminologia no meio musical. Para ele, a música tocada nos festejos era música, não tinha diferença se era feita no Amazonas ou no nordeste (Diniz, 2015). No entanto, João Simões reconhecia a música tocada nos festejos como “música do Beiradão”, sendo que, até mesmo explanou sua definição dessa música. A definição de “música do Beiradão” discorrida por João Simões foi:

Música do Beiradão é essas nossas músicas que a gente aprende sem ninguém ensinar, sabe, é..., a gente não estudou a música e a gente aprendeu pelo um dom que eu acho que Deus que deu pra gente, né. Então, a gente chama de música do Beiradão. Não é música profissional (Simões, 2015).

Essa foi uma definição totalmente diferente das outras explanadas pelos músicos que residem em Manaus, que possuem imaginários semelhantes ao que foi explanado por Ambos viveram a sua vida quase inteira em localidades de “beiradão”. João Simões chegou a residir durante 18 anos na área urbana de Barreirinha (AM), entretanto, atualmente, voltou a residir na “comunidade” Freguesia do Andirá (distrito de Barreirinha), às margens do Rio Andirá. Valter Diniz (“Cheiro”) chegou a residir em Manaus por nove meses, porém, voltou ao interior, que segundo ele, é o seu lugar. Ambos aprenderam o saxofone empiricamente. Atualmente, continuam trabalhando como agricultores e animando os festejos nos “beiradões” com o sax. 4

Barroncas. João Simões nos expõe uma especificidade dessa música que já havia sido relatada por Barroncas, que é o fato de ser uma música tocada de ouvido, acima de tudo, uma música empírica, passada de pai para filho muitas vezes e, em outras, sendo repassada empiricamente nos próprios festejos. Essa realidade está presente nos relatos da maioria dos músicos que conversei, entre eles, “Chico Cajú” 5, “André Amazonas”, “Agnaldo do Amazonas”, Eliberto Barroncas, Esomar Pacheco, Manuel Barroncas, “Chiquinho David”, Severino Alves, Hildo Maquiné, “Diquinho do Sax”, “Dominguinhos do Sax”, Valter Diniz (“Cheiro”), entre outros. Ambos relataram o seu primeiro contato com essa música (“Beiradão”) nas “comunidades” de interior (“beiradão”) onde nasceram quando músicos que já residiam em Manaus, como “Rafí do Sax” e Paulo Moisés, por exemplo, iam animar os festejos em suas respectivas “comunidades”. Esses músicos que citei acima nasceram entre as décadas de 1930 e 1950, ambos relataram que aprenderam a tocar banjo, cavaquinho, pandeiro, bateria e, posteriormente, guitarra (no caso do “André Amazonas”), percussão em geral (Manuel Barroncas), trombone (Severino Alves) e saxofone (todos os outros, sendo que o Eliberto Barroncas atua mais como percussionista). Notem a preferência pelo saxofone, por esse ser o instrumento mais solicitado nos “beiradões” amazonenses desde a década de 1950. Atualmente, ainda é muito comum os “presidentes” (terminologia nativa) dos festejos contratarem dois ou mesmo três saxofonistas para dividirem a tarefa de animar os bailes que ocorrem nesses festejos. Entretanto, muitos outros instrumentos já animaram (alguns ainda animam) os festejos nos “beiradões” amazonenses. Este é o caso da flauta de madeira artesanal, do violino, do clarinete, da guitarra e em localidades mais distantes de Manaus, principalmente em seringais, o acordeom. Depois do saxofone, a guitarra é o instrumento solista que ficou mais conhecido no Amazonas, muito disso devido às gravações na década de 1980 dos guitarristas “André Amazonas”, “Oseas da Guitarra” e “Magalhães da Guitarra”. Outro contexto sociocultural em que a terminologia “Beiradão” está sendo aplicada à música está relacionado às constantes invenções6 e reinvenções ocorridas na capital Manaus. Atualmente, diversos músicos manauaras de classe média afirmam em seus discursos que estão executando “Beiradão” (pensado como gênero musical). O músico Ênio Prieto lidera a OBA (Orquestra de Beiradão do Amazonas) e o músico Gonzaga Blantez7 lidera o Cordão do 5

Todos os nomes que trago entre aspas é concernente ao nome artístico desses músicos pelo qual são mais conhecidos. 6 Trago o conceito de “invenção” a partir das reflexões feitas por Hobsbawm; Ranger (2014) [1983] acerca da Invenção das tradições. 7 Blantez nasceu em Alenquer (PA), mas atualmente reside em Manaus.

Marambaia. Ambos, Prieto (2014) e Blantez (2014) dizem estar “resgatando o Beiradão”, como se o “Beiradão” fosse um produto musical específico que se extinguiu ao longo do tempo e está sendo “ressuscitado” por eles. Além disso, eles também dizem estar “resgatando a memória e identidade do povo amazonense”, sendo que nos “beiradões” de fato essa música nunca deixou de existir. Como expus no resumo deste trabalho, existem diversas construções envolvendo a “música de Beiradão” no Estado do Amazonas que foram sendo feitas ao longo do tempo e outras que estão ocorrendo recentemente em Manaus mais ligadas aos processos de invenções. Os músicos que, de uma forma geral, reivindicam o “Beiradão” entendido como gênero musical são esses mesmos músicos ligados às invenções atuais ocorridas em Manaus, como por exemplo, os já citados Ênio Prieto e Gonzaga Blantez. Estes consideram uma “música de Beiradão” ou simplesmente “Beiradão”, porém, em seus discursos e nas performances que observei eles utilizam as composições do “Teixeira de Manaus” como um símbolo e modelo para o que seria esse “Beiradão” pensado como gênero e no restante do tempo executam músicas próprias que se distinguem completamente do que eu presenciei nas performances que acompanhei nos festejos nos “beiradões”8, ou mesmo das próprias gravações realizadas nas décadas de 1980 e 1990 em que eles se baseiam. São diversos e conflitantes os discursos dos músicos amazonenses envolvendo a “música de Beiradão” e a “música nos beiradões”. Questões teórico-conceituais como origens, localismos, identidades regionais, autenticidade, imperialismos culturais, indústria musical e globalização perpassam as discussões acerca do que seria o “Beiradão”. Viso elaborar outro artigo focando esses questionamentos e problematizações a partir do diálogo com autores da etnomusicologia como Feld; Keil (1994), Bohlman; Radano (2000) e Ochoa (2003). Concluindo este texto e deixando em aberto os questionamentos referentes aos diversos imaginários e ideologias que constituem o universo musical envolvendo os usos da terminologia “Beiradão” aplicada à música, eu trago algumas reflexões em diálogo com Piedade (2005). Em seu texto, Piedade (2005, p. 198-200) reconhece o jazz brasileiro “[...] como um gênero musical em sua plenitude”, e este reconhecimento estaria intimamente ligado à busca dos músicos brasileiros por uma “musicalidade brasileira” que ressaltaria então a identidade de ser brasileiro em oposição à “musicalidade norte-americana” (identidade norteamericana). Devido a isso existiria então uma “fricção de musicalidades” “[...] na qual as Para ver alguns exemplos musicais do que presenciei nas performances musicais nos “beiradões” e dos trabalhos da OBA e do Cordão do Marambaia, bem como de músicos da geração que gravaram na década de 1980 como “Teixeira de Manaus”, “Chico Cajú”, “Agnaldo do Amazonas”, “André Amazonas”, entre outros, basta acessar o YouTube. 8

musicalidades dialogam mas não se misturam” (Piedade, 2005, p. 200). Na reivindicação do “Beiradão” como gênero musical entre alguns músicos manauaras ocorre algo semelhante ao que é exposto por Piedade (2005). Alguns músicos manauaras reivindicam que o samba, a lambada, a cúmbia, entre outras músicas, quando tocadas por eles, apresentam especificidades rítmicas e sonoras que seriam próprias do Amazonas (reivindicação de uma “musicalidade amazonense”). Fazendo um paralelo com a reflexão feita por Piedade (2005), quando os amazonenses tocam um “samba” nos “beiradões”, essa música seria diferente do que é feito no Rio de Janeiro, por exemplo, ou seja, as musicalidades dialogam, mas não se misturam. A problematização que faço é que não são os músicos que me apresentaram essas diferenciações (“fricções”) em campo que reivindicam o “Beiradão” como gênero. Estes, dizem para mim que o “Beiradão” é a forma com que os músicos amazonenses em geral passaram a se referir às diversas músicas que eram tocadas nos “beiradões”, porém, com alguns diferenciais que seriam o “sotaque amazonense”, as formações instrumentais distintas que não eram comuns a outras partes do país e a inserção de “leves toques vocais” em algumas músicas que eram concebidas para serem instrumentais (diferente do modelo encontrado nas canções e na música instrumental em geral). Estes são músicos da geração do “Teixeira de Manaus”, “Chico Cajú”, “Agnaldo do Amazonas” (nascidos na década de 1940) e outros da geração do Eliberto Barroncas (nascidos na década de 1950). Estes músicos não reivindicam o “Beiradão” como gênero musical, mas reconhecem que as músicas executadas nos “beiradões” assumem uma musicalidade/identidade “amazonense” 9. Acerca dos “leves toques vocais”, tem um detalhe importante advindo da indústria musical na década de 1980. Os músicos que costumavam animar os festejos nos “beiradões” passaram a incorporar pequenos versos em suas músicas que, conforme Teixeira (2015) relatou, foram dicas do seu amigo Pinduca para ele colocar “[...] umas letrinhas, uns refrãos bem populares, pois é o que vende [...]” quando o mesmo foi convidado para gravar uma música (Lambada pra dançar) em fita K7 pelo próprio Pinduca que, posteriormente, o levou para gravar o seu primeiro LP (Solista de sax - 1981) na gravadora Copacabana (estado de São Paulo). Teixeira me contou em um diálogo como começou o emprego desses refrãos na música criada por ele, sendo que atualmente é uma das principais especificidades que faz com que alguns músicos manauaras reivindiquem o “Beiradão” como gênero musical: “Fiz o Lambada pra dançar, que é um hino, aí botei um refrãozinho, que até naquela altura não tinha 9

Disponibilizo um exemplo no YouTube ( Acesso em: 20 abr. 2015) de um vídeo que fiz durante um diálogo em campo com Eliberto Barroncas e Esomar Pacheco em que os mesmos discorrem acerca do assunto e demonstram exemplos musicais dessas diferenciações “regionais” na “música de Beiradão”.

música com refrãos, era cantada ou instrumental. Aí eu acho que eu criei esse estilo aí de tocar tocar e soltar duas frases, um refrão” (Teixeira, 2015). Ao longo do tempo, no universo musical dos festejos nos “beiradões” amazonenses, redes foram sendo criadas com especificidades musicais que transitaram por diversos “beiradões” e foram sendo reconstruídas ao longo do tempo através da “interação continuada” (Piedade, 2005, p. 199) que foi se afirmando neste meio através de um mundo globalizado. O saxofone apresenta-se como símbolo de resistência através de saxofonistas como Chico Cajú (71 anos) e Souza Caxias (78 anos), que continuam animando festejos nos “beiradões” mantendo muito do que era feito por eles mesmos em décadas anteriores. Em contrapartida, outro “mundo musical” (Finnegan, 2002, p. 8)10 surge dentro desse universo do “Beiradão” (re)contextualizado na realidade metropolitana e cosmopolita de Manaus através das diversas invenções e (re)apropriações da terminologia “Beiradão” aplicada à música.

Referências

BARRONCAS, Eliberto de Souza. Diálogo registrado no pré-campo. Manaus (AM), 04 agosto. 2014. Diálogo concedido ao autor deste trabalho. BLANTEZ, Gonzaga. Diálogo registrado no pré-campo. Manaus (AM), 06 agosto. 2014. Diálogo concedido ao autor deste trabalho. BOHLMAN, Philip (Ed.); RADANO, Ronald (Ed.). Music and the racial imagination. Chicago: The University of Chicago Press, 2000. CAMBRIA, Vincenzo. Etnomusicologia aplicada e “pesquisa ação participativa”: reflexões teóricas iniciais para uma experiência de pesquisa comunitária no Rio de Janeiro. In: Congresso Latino-americano da International Association for the Study of Popular Music (IASPM), 5, 2004, Rio de Janeiro. Anais do V Congresso da IASPM. Disponível em: Acesso em: 28 fev. 2015. DINIZ, Valter Pinheiro. Diálogo registrado no campo. Aldeia Piranha (Terra Indígena Cunhã-Sapucaia, município de Borba-AM), 09 fevereiro. 2015. Diálogo concedido ao autor deste trabalho. FELD, Steven; KEIL, Charles. Music grooves: essays and dialogues. Chicago: The University of Chicago Press, 1994. FINNEGAN, Ruth. ¿Por qué estudiar la música? Reflexiones de uma antropóloga desde el campo. Trans: revista transcultural de música, [Barcelona], n. 6, 2002. Disponível em:

10

Para uma melhor compreensão acerca do conceito de “mundos musicais”, ver Finnegan (2002, p. 8).

Acesso em: 10 jun. 2014. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989. HOBSBAWM, Eric (Org.); RANGER, Terence (Org.). A invenção das tradições. 9. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014 [1983]. JIMENEZ, Ítalo Júlio Vicente. Diálogo registrado. Manaus (AM), 07 maio. 2010. Diálogo concedido ao autor deste trabalho. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. MAIA, Álvaro; TELLES, Tenório (Org.). “Beiradão”. 2. ed. Manaus: Editora Valer / Editora da Universidade do Amazonas, 1999. OCHOA, Ana María. Músicas locales en tiempos de globalización. Buenos Aires: Grupo Editorial Norma, 2003. PELINSKI, Ramón. Etnomusicología en la edad posmoderna. In: ______. Invitación a la etnomusicologia: quince fragmentos y un tango. Madrid: Ediciones Akal, 2000, p. 282-97. PIEDADE, Acácio Tadeu de Camargo. Jazz, música brasileira e fricção de musicalidades. OPUS: Revista da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música ANPPOM, Campinas (SP), ano 11, n. 11, p. 197-207, dez. 2005. PRIETO, Ênio. Diálogo registrado no pré-campo. Manaus, 06 agosto. 2014. Diálogo concedido ao autor deste trabalho. RICE, Timothy. Toward a mediation of field methods and field experience in ethnomusicology. In: BARZ, Gregory (Ed.); COOLEY, Timothy J (Ed.). Shadows in the field: new perspectives for fieldwork in ethnomusicology. 2. ed. New York: Oxford University Press, 2008, p. 42-61. SIMÕES, João Dutra. Diálogo registrado no campo. Freguesia do Andirá (distrito de Barreirinha-AM), 17 fevereiro. 2015. Diálogo concedido ao autor deste trabalho. TEIXEIRA, Rudeimar Soares. Diálogo registrado no campo. Manaus, 02 março. 2015. Diálogo concedido ao autor deste trabalho.

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