MÚSICA NA INSIGNE E REAL COLEGIADA DE GUIMARÃES

June 7, 2017 | Autor: Eduardo Magalhaes | Categoria: Musicology
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MÚSICA NA INSIGNE E REAL COLEGIADA DE GUIMARÃES Eduardo Magalhães - Musicólogo

1.

A Fundação Eivados de um frenesim de santidade, os cristãos dos primeiros tempos tudo

tentavam para garantir, com certezas absolutas, um lugar privilegiado junto do Deus que veneravam. Particularmente a partir do movimento encetado por S. Bento, no século VI, de uma forma quantitativamente significativa, alguns crentes começaram a demonstrar um interesse especial pela vida comunitária em que os objectivos dessa vida apontassem para a maior glorificação de Deus e para a prática de devoções, assentes num ascetismo conducente a uma vida que os guiasse nessa senda de santidade. Floresceram, a partir desse século, numerosos conventos e mosteiros, onde o «exemplo-guia» da conduta a seguir era o de um santo com virtudes consideradas essenciais para a conquista desse lugar especial na outra vida. Bento de Núrsia, no mosteiro do Monte Cassino, de quem foi primeiro abade (529), transformou o dia dos seus monges em momentos de oração, meditação e de trabalho, numa rotina diária movida por esse ideal da perfeição, atingida através destes meios. Chamava-lhe o «trabalho de Deus». No século IX, a dinastia Carolíngia incentivou os monges a seguirem a regra de S. Bento e, no dealbar do século XI, mosteiros beneditinos já se espalhavam por toda a Europa ocidental. Mas este movimento perfeccionista de «trabalhar» a santidade na terra através de vidas isoladas do mundo «normal» é bastante anterior e já se conhecem seguidores na Península Ibérica, referidos em pelo menos três concílios peninsulares do século IV: Elvira (304/6), I Concílio de Saragoça (380) e I Concílio de Toledo (400). Mencionam «virgens consagradas a Deus» e os dois últimos já falam em «monges».1 Para não falar da peregrina Egeria que, neste mesmo século, descreve com entusiasmo a sua viagem à Terra Santa, dirigindo o seu Itinerarium a um convento de monjas, quase de certeza, do noroeste hispânico, provavelmente do conventus de Bracara2. Deste período, sobressaem dois nomes importantes para a «regulamentação» destas comunidades: S. Martinho mas, principalmente, S. Frutuoso, ambos em Dume e na Sé de Braga, como bispos, nos séculos VI (meados) e VII (primeira metade). A S. Frutuoso é atribuída a Regula Communis que, para além de prever uma espécie de Pacto 1

Jorge, Ana Maria C. M. – «As instituições e o elemento humano», História Religiosa de Portugal (1º vol.). Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p. 203 2 Egéria: Viagem. Ed. de Alexandra B. Mariano e Aires A. Nascimento. Lisboa: Edições Colibri, p.12

entre o monge e a vida que vai escolher, tem também a particularidade de legislar sobre a vida nos mosteiros dúplices (ou mistos), como viria a ser o caso do Mosteiro de Santa Maria de Guimarães. Mumadona mandou erigir o seu mosteiro dúplice na primeira metade do século X. A regra que adoptaram para a vida comunitária não suscita consenso. Cuidadoso, Gaspar Estaço escreve3: «De que Ordem fosse este da Condessa eu o não acho expressamente: só consta do seu testamento onde refere os livros, que ela lhe deu, entrar no numerário deles a Regra do santo Abade Pacómio (…) Entrava também naquele número um Livro que continha estas três Regras: a de São Bento, e a de Santo Isidoro, e a de São Fructuoso (…) Morales é de parecer que estes Mosteiros antigos de Frades e Freiras eram da Ordem de São Bento por estar já muito extendida por Espanha e por toda a Europa.»

O insuspeito Mattoso direcciona, com alguma certeza, para a já citada Regula Communis.4 O Padre Caldas afirma, no entanto, que é quase certo ter adoptado a regra beneditina, mas sem citar fonte que sustente esta afirmação5. A Regra a que os monges se submetiam tem importância musical na prática litúrgica do dia-a-dia da vida dos mosteiros, que assentava sobre os dois principais ritos cristãos: A Missa e o Ofício das Horas Canónicas. Dentro da mesma Regra, encontravase mais exuberância musical nuns mosteiros que noutros, como é o caso dos beneditinos de Cluny e os de Cister, particularmente depois da reforma levada a cabo por S. Bernardo de Claraval. Este abade, parente da primeira nobreza portuguesa, esforçou-se por restituir o cantochão à sua pureza primitiva, privando-o, em muitas situações, de algum brilho melódico que os tempos de prática lhe foram acrescentando. Por outro lado, o calendário religioso difere em importância, particularmente, no que se refere a alguns santos festejados, mais «queridos» da Ordem uns do que outros. A admitir que Guimarães fosse um mosteiro «frutuoso», realça-se deste facto que o Ofício era constituído por cerca de 15 horas canónicas6 «abundantemente preenchidas pela entoação de cânticos de antífonas, hinos, responsos e salmos (…) O dia do monge hispânico dos séculos X e XI era, pois, bastante preenchido pela oração e

3

Estaço, Gaspar – Várias Antiguidades de Portugal. Lisboa: 1714 (cap. III, p. 18 e 19) – ortografia actualizada 4 Mattoso, José – Religião e Cultura na Idade Média. Lisboa: Círculo de Leitores, 2002, pp 12 e ss.; e Gomes, Saul António – «A Religião dos Clérigos», História Religiosa de Portugal (1º vol). Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p.351 5 Caldas, Padre António José Ferreira – Guimarães, apontamentos para a sua história. Guimarães: Câmara Municipal de Guimarães/Sociedade Martins Sarmento, 1996, pp. 29 e 30 6 Quase o dobro das beneditinas, que são oito.

pelo cântico (cem salmos por dia, doze lições, vinte e quatro hinos, seis credos, nove cânticos e onze responsos».7 Esta necessidade musical obrigou, desde muito cedo, primeiro, ao ensino da leitura do latim e, segundo, à memorização das melodias, pondo-se como «quase» certeza que os monges as cantariam de cor, ensinadas por cantores «profissionais» designados para este ensino. Um dos grandes teóricos musicais do século XI, Guido d’Arezzo, faz uma curiosa distinção entre os que simplesmente cantam (de cor) e os que também são músicos. Citado por Moreira de Sá8, diz ele, na sua obra Micrologus: «musicorum et cantorum magna est distantia, isti dicunt, illi sciunt quae componit musica. Nam qui facit, quod non sapit diffinitur bestia». Aliás, ainda citado pelo mesmo autor, não arreda desta opinião: «… estes mestres cantores e os seus discípulos cantarão todos os dias durante cem anos, e todavia nunca ficarão habilitados a cantar a mais pequena antifona desconhecida sem previa instrução; de maneira que desperdiçam um tempo que bastaria para aprender todos os livros d’este mundo»9.

A importância musical na vida diária dos religiosos colocava o Chantre10, na escala hierárquica dos mosteiros, imediatamente a seguir à dignidade do Prior. Era a ele, ou a quem delegasse, que competia este ensino, para além da responsabilidade por toda a música praticada na comunidade monacal. A partir da homogeneização dos textos e melodias levadas a cabo na reforma particularmente empenhada do papa Gregório, o Magno, aliando-se ao facto da escrita musical, gradualmente, ir aparecendo e se ir desenvolvendo, essas melodias começaram a lançar-se em livros, preparados em scriptoria dos mosteiros, copiados e distribuídos pelo mundo cristão, com texto e música do seu repertório ritual.

7

Gomes, Saul António – «A Religião dos Clérigos», História Religiosa de Portugal (1º vol). Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p.352 8 Sá, Bernardo Valentim Moreira de – História da Música, Tomo I. Porto: Casa Moreira de Sá, 1920, p. 170. «Grande é a distância que vai dos cantores aos músicos; uns só repetem e os outros sabem o que é a Música. Com efeito aquele que faz o que não entende, pode definir-se como uma besta» (tradução de Eduardo Magalhães) (História da Música, Tomo I desde os tempos mais remotos até ao século XVI. Porto: Casa Moreira de Sá, 1920.) 9 Ibidem 10 Corruptela da palavra latina «Cantor»

2.

Música e património documental

A música praticada em Portugal, pelo menos até quase ao final do século XIV, foi exclusivamente monódica, conhecida como cantochão (vulgarizada, posteriormente, como gregoriana). Antes da imposição do rito romano ao cristianismo do ocidente por influência do império carolíngio, coexistiam diferentes práticas músico-litúrgicas na Europa: o galicano, o sarum ou anglicano, o romano antigo, o ambrosiano ou milanês e o beneventano, no sul de Itália. O concílio de Toledo de 633, após a instauração do domínio visigótico na península, conseguiu uma uniformização na prática litúrgica no que se refere à sua forma, aos textos e às melodias. Juntava-se assim aos demais ritos europeus o rito hispânico, também conhecido por visigótico e moçárabe. Resistiu na península até à imposição do romano, no último quartel do século XI11. Assim, em Guimarães, a monodia praticada até esta altura, pertencia a este rito praticado em toda a província. O desenvolvimento da polifonia, especialmente a partir do século XIV, poderá ter tido reflexos também na Colegiada, protegida especial do rei D. João I. Este rei era conhecedor do movimento musical da Escola de Nôtre-Dame, em Paris, bem como do seu principal representante, Guillaume de Machaut, a quem chamava pelo nome português de Guilherme de Machado, como se lê no Livro da Montaria, a propósito dos sons que faziam os cães a ladrar e os monteiros a tocar.12 Aliás, na corte do antecessor, seu meio-irmão D. Fernando, serviu um músico franco-flamengo Jehan Simon de Haspre, compositor de um tipo de polifonia conhecida como ars subtilior.13 De qualquer maneira, e de toda a documentação musical deste período medievo, «guardada» em Guimarães, não se conhece nenhum exemplo polifónico que comprove a sua prática, o que não invalida a suposição da sua existência. A polifonia mais antiga que se conhece, dos documentos musicais vimaranenses, pertence ao Passionário da Sociedade Martins Sarmento, para além de uma Salve Regina, em estilo «fabordão»,

11

Nery, Rui Vieira e Castro, Paulo Ferreira de – História da Música. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1991 (pp. 11 e 12) 12 Pereira, Francisco Maria Esteves – Livro da Montaria. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1918 «Guilherme de Machado nom fez tam fermosa concordança de melodia, nem que tam bem pareça, como a fazem os caães quando bem correm. Ainda mais o tanger das bozinas, e o falar dos moços quando falam aos caães. .. (p.19) 13 Nery, Rui Vieira – obra citada (p. 19)

interpolada num Livro miscelânio, do Museu Alberto Sampaio, ambos os exemplares, mais ou menos, do mesmo período quinhentista.14 Nos primórdios do cristianismo e na sua vida ao longo da Idade Média, um pouco na tradição helénica e judaica, o culto era solenizado através do canto, sem quaisquer apoios instrumentais. Os gregos sempre preferiram a voz humana a qualquer instrumento. Tanto Aristóteles como Platão se manifestaram a este propósito. Platão, inclusivamente, bania os instrumentos da sua cidade-ideal. Aristóteles classificou os instrumentos em animados (voz) e inanimados (outros), legitimando estes últimos como a imitação dos primeiros.15 No prolongamento cultural helénico, até ao século XVIII, a palavra música teve a conotação de música vocal. A importância da música em «ambiente» sagrado, com ou sem acompanhamento instrumental, pode sintetizar-se nesta afirmação de Solange Corbin16: «A acção da música (através do trabalho do chantre e do organista) torna o homem mais sensível aos ensinamentos (…) Facilita o contacto com um outro universo, acentua a expressão de sentimentos latentes no coração humano, predispõe a alma a abandonar-se a um poder superior. Deste modo, o chantre e o organista, quando respeitam os limites das suas funções, colocam o crente no caminho da oração.”

A documentação musical depositada nas instituições de Guimarães, e que serviu o culto religioso da Real Colegiada, pode agrupar-se em três grandes períodos distintos: séculos XII a XIV (em fragmentos); séculos XVI e XVII (livros de Cantochão: de coro e outros); séculos XVIII e XIX (Cantochão e Música polifónica). As instituições depositárias deste espólio são, principalmente, quatro: Cartório da Paróquia de Nossa Senhora da Oliveira, Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, Sociedade Martins Sarmento e Museu Alberto Sampaio.

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Antifonário, Gradual, Hinário e Saltério: P-Gas LC-14 (1059), fólio 125v Kartomi, Margaret J. – Concepts and Classifications of Musical Instruments. Chicago: University of Chicago Press, s/d (pp. 108 e 109) 16 Corbin, Solange – L’église à la conquête de sa musique. Paris: Gallimard, 1960. (pp. 268 e 269) 15

A. Séculos XII a XIV ´

Pode afirmar-se que a totalidade da documentação musical mais antiga

conhecida e guardada na cidade pertence ao conjunto de alguns Fragmentos Musicais que encapam maços notariais (na sua maioria) no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta e Livros de Contas na Santa Casa da Misericórdia. A sua identificação total continua por fazer. Assim como, para melhor preservação actual e futura, se deveriam separar da documentação que encapam. Neste conjunto existem fragmentos que, pela sua deterioração, já não permitem qualquer possibilidade de saber o conteúdo, parcialmente que fosse, apagado que está pela consulta dos maços. Uma pequena parte deste conjunto já foi, no entanto, estudada ou identificada. Recentemente, Manuel Pedro Ferreira, da Universidade Nova de Lisboa, identificou sete do Arquivo Municipal e um da Santa Casa da Misericórdia, publicados no Catálogo que resultou da Exposição «Harmonias do Céu e da Terra», em 2012.17 Antes disso, onze destes fragmentos mais antigos foram objecto de estudo pelo australiano W. D. Jordan, publicados no Boletim de Trabalhos Históricos nº 37, de 1986. Segundo este musicólogo, para além da particularidade da escrita aquitana dos fragmentos que estudou, têm outra característica específica: o uso do seculorum amen abreviado em euouae (vogais das duas palavras). Para Jordan, esta abreviatura foi utilizada num período posterior de notação «quadrada» e não se encontra, vulgarmente, nos manuscritos da notação aquitana e portuguesa. Pioneiro na busca destas preciosidades medievais, o padre Avelino Jesus da Costa18 encontrou, em Guimarães, 13 fragmentos na Santa Casa da Misericórdia (em capas de maços de contas) e 134 no Arquivo Municipal. Este padre, referência portuguesa paleográfica, através duma bolsa do Instituto para a Alta Cultura, atribuída em 1944, percorreu o país em busca de vestígios musicais antigos, «perdidos» em capas de outra documentação. Como curiosidade histórica, a Biblioteca Nacional de Lisboa foi a única Instituição onde não conseguiu permissão, apesar de munido da credencial do referido instituto. Estes fragmentos, na sua variedade, indiciam documentalmente uma parte da vida musical religiosa entre os séculos XII e XVI. O seu conteúdo engloba a variedade 17

Edição da CESEM (Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa 18 Costa, Avelino Jesus da – Fragmentos Preciosos de Códices Medievais. Braga: Edições Bracara Augusta, 1949.

cultual contida neste tipo de livros cristãos: missais, antifonários, graduais, breviários, etc.. Os fragmentos mais antigos, do século XII, testemunham uma notação musical sobre uma linha vermelha, de origem francesa, conhecida como «notação aquitana» e que, por uma figura losangular, ou uma vírgula, indica o sítio do meio-tom. Especialmente por esta característica, a paleógrafa francesa Solange Corbin denominoua «notação portuguesa», criada, segundo ela, nos finais do século XII19.

Imagem 1 - Fragmento de GRADUAL Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (cota N-93)

B. Séculos XVI e XVII

1. Livros de Coro (Cantochão) Este período está profusamente documentado, particularmente em livros de coro, em cantochão (simples e figurado). Podem encontrar-se nos quatro arquivos atrás mencionados, com relevância para o conjunto do Museu Alberto Sampaio e menor número nas três outras instituições da cidade. Objecto de uma dissertação de mestrado do autor20, o conjunto do Museu Alberto Sampaio pertence às primeiras metades dos séculos XVI (c.1540) e XVII (1610 19

Corbin, Solange – Essai sur la musique réligieuse portuguaise au moyen âge. Paris: Société d’édition «Les Belles Lettres», 1952 (p. 251). Esta paleógrafa, bolseira do governo francês, percorreu Portugal em busca de documentos musicais medievais. Em Guimarães, só esteve no Arquivo Municipal, de onde retirou 3 exemplos dos fragmentos que apresentou em quadro, nesta obra: dois de notação portuguesa e um de notação aquitana. (p. 182 e ss.) 20 Magalhães, Eduardo: Os Livros de Cantochão dos séculos XVI e XVII do Museu Alberto Sampaio. Dissertação de Mestrado: Coimbra, Faculdade de Letras, 2001

a 1614). Engloba livros de coro pertencentes aos dois centros religiosos mais antigos da cidade: Real Colegiada e Mosteiro de S. Marinha da Costa21. Pela sua importância no segundo quartel do século XVI, quando foi elevado a Colégio de Estudos Gerais, e para onde D. João III enviou seu filho bastardo, D. Duarte e seu sobrinho, D. António, futuro prior do Crato, não é de estranhar que o conjunto de livros que serviu este Mosteiro seja mais cuidado, mais bem decorado e em pergaminho mais bem tratado do que os da Colegiada da Oliveira. Em 1537, S. Marinha da Costa já funcionava como colégio, não se conhecendo data precisa do seu início. Obedecendo, desde a sua fundação, à ordem dos cónegos regulares de Santo Agostinho, em Janeiro de 1528, passou a mosteiro Jerónimo.22 Em 1550, a pedido de D. Diogo de Murça, que deixara Guimarães e se mudara para Santa Cruz, em Novembro de 1543, expôs ao rei as vantagens de unir o Colégio de S. Marinha da Costa ao de Santa Cruz.23 Numa lista que também faz dos livros mudados para Coimbra, Brásio menciona «saltérios» e outros livros, mas sem qualquer referência a conteúdos musicais. Deste conjunto, o códice mais antigo remonta a 1533, guardado na Sociedade Martins Sarmento, um Antifonário com a cota ET 596. Neste livro é possível identificar o seu autor e o seu iluminador, respectivamente frei António de Coimbra24 e frei Jorge de Santarém. O copista, professo no mosteiro de S. Marcos, em Tentúgal, é autor de outros livros deste conjunto de S. Marinha da Costa. Frei Jorge foi prior do Mosteiro. Os livros do Museu Alberto Sampaio foram entregues, em 1944, pelo pároco de então, Padre António Teixeira de Carvalho, comprovado por carta que enviou ao primeiro director deste Museu, Alfredo Guimarães, a 3 de Novembro desse ano. Nela, menciona especificamente, nove livros, exactamente os identificados pelo autor na sua dissertação de mestrado.25 O conjunto dos livros, atribuídos à Colegiada de Guimarães, foram «descobertos» também por Alfredo Guimarães, relatado numa carta que escreveu ao Director-geral da Fazenda Pública, em Dezembro de 1945. Nela menciona tê-los 21

E um, bastante deteriorado, dos finais do século XVII, da Ordem de S. Francisco Revista de Guimarães Nº 3 (2) Abr.-Jun. 1886, p. 109 (sem autor); Brásio, António – “O Colégio da Costa e seus Estatutos Universitários”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada. Actas, vol. III. Guimarães, 1981, pp. 555 e 556 23 Sá, Artur Moreira de – “A Universidade vimaranense do século XVI (1537-1550)”. Congresso Histórico de Guimarães e sua Colegiada. Actas, vol. III. Guimarães: Câmara Municipal, 1981 (p. 579) 24 Noutros colofons, escreve «Antonio Pays de Coimbra». 25 «Acuso recebidos neste Museu Regional nove volumes de canto-chão [sic], desenhados em pergaminho e com as maiúsculas iluminadas, que vossa Reverendíssima teve a bondade de nos ofertar…» Magalhães, Eduardo – obra citada (p. 19) 22

encontrado numa parede falsa da antiga casa do Cabido, juntamente com alguns quadros. Mas já dez anos antes, se lhes refere no projecto para o ano económico do biénio 1934-35: «Também o Arquivo do mesmo Museu possui (…) e livros iluminados de canto coral [sic]...» 26 Todos estes livros são datados do início do século XVII (1610, 1613 e 1614). Como existe conteúdo litúrgico impossível de «armazenar» num só livro, é vulgar este conteúdo distribuir-se por mais do que um volume. No caso de um Gradual, são quatro volumes: 1º, 2 e 4º no Museu Alberto Sampaio (LC-01, 02 e 13) e o 3º no Arquivo Municipal.27 Pela quantidade de livros que constitui este acervo, achou-se pertinente apresentar, em quadro, a sua especificidade, comparando as duas instituições: Graduais Antifonários Hinários Kirial Saltério

S. Marinha da Costa 2 4 1 1 misto 1 misto

Real Colegiada da Oliveira 4 2 1

Enquanto no conjunto da Colegiada a notação musical utilizada é sempre a quadrada negra, também de origem francesa, no de S. Marinha da Costa apresenta-se com três especificidades rítmicas: notação quadrada para todo o texto; notação quadrada para sílabas prolongadas (tónicas e finais) e losangular para sílabas mais breves; cantochão figurado (mensural). No Arquivo da Sociedade Martins Sarmento existem três exemplares: Um Antifonário/Saltério para o tríduo Pascal, e dois outros Antifonários santorais. O mais antigo, com a cota de arquivo «Et-586», datado de 1533, identifica o copista e o iluminador (frei António de Coimbra e padre frei Jorge de Santarém). Um deles, é representativo de duas comemorações «jerónimas» do Mosteiro: os ofícios de S. Jerónimo e de Santa Marinha. No Cartório da Paróquia de Nossa Senhora da Oliveira, encontram-se, deste período, um Passionário em cantochão, com as 4 Paixões da Semana Santa, alguns exemplares de Processionários (em tamanho «individual») e um antigo Kirial, do qual 26

27

Ibidem Ibidem

restam o 1º e o último fólio; os restantes fólios contêm, interpolado, o Ofício para exéquias de sacerdotes ou clérigos. Em nenhum destes exemplares foi possível encontrar colofons de copistas que pudessem, de qualquer forma, identificar o scriptorium de proveniência: poderão ter saído de Sta. Cruz de Coimbra, um dos scriptoria importantes deste período. Comparados com o conjunto que serviu o mosteiro de Santa Marinha da Costa, são livros mais modestos quer no que se refere ao pergaminho utilizado quer também no que respeita à decoração das capitais, seja nas antífonas seja nas maiúsculas dos versículos. Nos livros de S. Marinha da Costa, estas maiúsculas, conhecidas como «vespasianas»,28 rivalizam (quando não ultrapassam) em beleza às capitais coloridas, pelos seus arabescos elegantes e artísticos. A maior «pobreza» nestes livros da Colegiada pode atribuir-se a um certo interregno nos privilégios reais, motivado pelo domínio filipino em Portugal. Toda a colectânea de Santa Marinha é anterior à ocupação espanhola, para além de reflectirem o facto de este mosteiro ter sido escolhido por D. João III para os estudos do seu filho (bastardo) D. Duarte29 e de seu sobrinho, D. António, depois prior do Crato e candidato à sucessão.

Imagem 4 – Exemplos de Vespasianas de um Gradual do Museu Alberto Sampaio (cota LC 03)

2. Passionários da Sociedade Martins Sarmento

28

Corbin, 1952 (p. 264). Em 1554, em Veneza, Vespasiano codificou, com muito sucesso, um alfabeto com este tipo de maiúsculas e que foi utilizado durante muito tempo. Segundo esta autora, em Portugal já eram utilizadas anteriormente a esta data. 29 D. Duarte viria a ser também, embora por pouco tempo, arcebispo de Braga.

Do espólio deste período quinhentista, releva-se a existência de dois Passionários quinhentistas: um Passionário, manuscrito, datado aproximadamente de 1580, revelador de uma forma particular do canto da Paixão, em Portugal. E indicador também da ligação de Guimarães ao Mosteiro de Santa Cruz onde este livro foi elaborado. Encontrado no valioso acervo bibliográfico da Sociedade Martins Sarmento pelo professor José Maria Pedrosa Cardoso, conhecedor profundo do panorama musical português, chamou-lhe a atenção a especificidade da monodia e da polifonia das falas de Cristo, bem como a riqueza ornamental do exemplar. Transformado em objecto de estudo, resultou este trabalho numa tese doutoral apresentada na Faculdade de Letras de Coimbra em 1998 e, posteriormente, editada em livro pela Imprensa da Universidade de Coimbra, com o patrocínio da Fundação para a Ciência e Tecnologia, sob o título O Canto da Paixão nos séculos XVI e XVII: a singularidade portuguesa, em 2006. Foi apresentado à CEC 2012 um projecto para a sua transcrição e edição facsimilada tendo o professor José Maria Pedrosa Cardoso como responsável pela transcrição e revisão e o autor deste texto como musicógrafo. A edição foi apresentada na Sociedade Martins Sarmento no dia 5 de Julho de 3013. Para além de uma já citada Salve Regina, em «fabordão», num livro de coro, no Museu Alberto Sampaio, este Passionário é o único exemplar deste período, em Guimarães, com trechos polifónicos. Decorrente do projecto em fase de conclusão da publicação do espécime facsimilado, foram interpretadas, em 23 de Março de 2013, na Igreja de S. Francisco, as Paixões de S. Mateus e S. João, pelo grupo Voces Coelestes, de Lisboa, com a colaboração do Coro da Academia Valentim Moreira de Sá, para a interpretação das Turbas30, e de que se editará o concerto em DVD, com outros elementos relevantes para este acontecimento musical31. Para além deste exemplar de «luxo, existe ainda no acervo da Sociedade Martins Sarmento outro Passionário, de 1543, outra preciosidade, de que até hoje só se conhecem três exemplares no país: Évora, Lisboa e Guimarães. É o primeiro Passionário impresso em Portugal e o terceiro, de música. Para além da raridade, está o seu conteúdo característico. Depois das 4 Paixões de Cristo, contém as Lamentações de Jeremias do tríduo pascal, seguidas do «Exultet» e 30

Executaram, em vez da Monodia original do Passionário, as Turbas de D. Pedro de Cristo, dentro do mesmo estilo polifónico 31 O DVD fará parte integrante da Edição do Passionário.

finalizando com as «Intonationes» dos hinos do ofício diurno e nocturno de todo o ano. Sem página de rosto, reporta-se a de Évora, a única que a contém: Passionarium secundum ritum capelle regis Lusitanie. Contenta in hoc volumine sequens pagela indicabit.32. Porque perdida a primeira página deste livro, o que comprova a sua frequente utilização, alguém, zeloso, a copiou, embora do Passionário de Frei Estêvão de Cristo, impresso em 1595. Uma anotação na contracapa inicial, também manuscrita, indica que este volume foi encadernado de novo em 1726, uma prova suplementar do seu uso.

Imagem 3 - Passionário: Página da Paixão de Mt. Sociedade Martins Sarmento (Arq. 380)

Imagem 4 - Passionário: Página da Paixão de Mt. Imagem 5 – Passionário: Entoações dos Hinos Sociedade Martins Sarmento (Arq. 379)

C – Séculos XVIII e XIX A documentação musical polifónica dos séculos XVIII e XIX, referente à Colegiada, reparte-se na sua grande maioria pelo Arquivo Municipal e Sociedade Martins Sarmento, neste último, como legado do último organista da Colegiada, João Lopes Faria. Destes séculos, sobressaem obras polifónicas nos Arquivos Municipal e Martins Sarmento. Do repertório impresso do Arquivo da Colegiada, em monodia, podem destacarse: um Antifonário Romano santoral e temporal, de 1739, dois Saltérios para os dias feriais (hebdomadário) de 1724 e 1759, um Canticum Ecclesiasticum (Ofício de 32

Cardoso, José Maria Pedrosa – O Canto da Paixão nos Séculos XVI e XVII: a singularidade portuguesa. Coimbra: Imprensa da Universidade, 2006. (p. 134): «Passionário segundo o rito da capela real Portuguesa. A página seguinte indicará o conteúdo deste volume.»

defuntos, de 1768 e um Kirial (segundo a Regra de Santa Cruz de Coimbra), de 1747. Existem várias partes dos bradados e turbas (polifónicas) de Paixões, com capa dura, e manuscritas. O conjunto que se encontra no Arquivo Municipal pertenceu ao arquivo da Colegiada, mas outro, aliás «uma boa parte veio do antigo convento de santa Marinha da Costa», no testemunho de Vieira Braga.33 O conjunto destes repertórios ilustra a grandeza da vida musical na Colegiada neste período. Comprovam-na o número dos melhores compositores da época que aí se encontram. Compositores contratados de Itália pelos reis D. João V e seu filho D. José, como Domenico Scarlatti, David Perez, Dom João Jorge, ou seus alunos na principal escola de música do país, o Seminário da Sé Patriarcal: Leal Moreira, Marcos Portugal, Joaquim José dos Santos, Luciano Xavier dos Santos, etc. De David Perez, por exemplo, existem na Sociedade Martins Sarmento umas Matinas de Defuntos impressas, sob encomenda de D. José. Mas encontram-se também obras de compositores bracarenses e vimaranenses. É o caso de frei Inácio de Almeida, nascido em Guimarães, em 1760, e mestre capela da Sé de Braga; ou o padre Eugénio Araújo Mota, falecido em 1 de Agosto de 1904, cónego da Colegiada e excelente músico, quer religioso quer «profano». Possuía uma Capela Musical que tanto abrilhantava o cerimonial religioso como saraus dançantes em casas nobres ou na Sociedade Martins Sarmento. Pela sua importância na vida musical da cidade, no final do século XIX, transcreve-se a nota «necrológica» de João Lopes Faria34: «Em uma casa da Rua Nova do Comércio, onde residia, faleceu repentinamente às 5 e meia horas da tarde, o meu falecido professor de canto e orgão padre Eugénio da Costa Araújo Mota. Era natural de Braga, filho de um tesoureiro-mor da sé, residia em Guimarães quase desde que se ordenou, talvez desde 1868, onde teve uma desregradíssima vida resultando-lhe, nos últimos anos da existência, ter necessidade, dizendo-se que morreu de fome devido a que mandando a uma taberna buscar jantar, não lhe foi fornecido por falta de pagamento. Era bom músico, com especial ouvido e distinta batuta; deixou bastantes composições quase todas para vozes e orgão.» São de realçar também quatro obras do grande músico João Pedro Almeida Mota, em Braga pelo período de 10 anos (1761-1771) e que, posteriormente, faria uma carreira de sucesso no país vizinho.35 Encontra-se ainda, na Sociedade Martins

33

Braga, Alberto Vieira – obra citada. Revista de Guimarães, nº 67 (3-4) Jul.-Dez. 1957, p. 327 Faria, João Lopes – Efemérides Vimaranenses (3º vol.) 35 Ávila, Humberto d’ – Almeida Mota, compositor português em Espanha. Lisboa: Assírio Bacelar, 1996 (pp. 20 a 26) 34

Sarmento, uma Missa de Francisco Sá de Noronha, grande violinista e compositor de sucesso e que viveu em Guimarães até aos 15 anos de idade. A maior parte do repertório destes compositores, e de outros não referidos, é repertório vocal com acompanhamento orquestral, o que implicava meios económicos e técnicos consideráveis para a sua execução. São de realçar também quatro obras do grande músico João Pedro Almeida Mota, em Braga pelo período de 10 anos (1761-1771) e que, posteriormente, faria uma carreira de sucesso no país vizinho.36 Encontra-se ainda, na Sociedade Martins Sarmento, uma Missa de Francisco Sá de Noronha, grande violinista e compositor de sucesso e que viveu em Guimarães até aos 15 anos de idade. O Fidalgo do Toural, uma figura incontornável do final do século XIX, em Guimarães, mereceu de um muito conhecido compositor portuense (embora «basco» de nascimento), José Francisco Arroyo, uma composição para 4 vozes mistas e grande orquestra do salmo «Laudate Pueri», feita propositadamente para o funeral da filha deste vimaranense ilustre. Oferecida à Sociedade Martins Sarmento por João Lopes Faria, este escreveu na folha de rosto: «executado no enterro de uma menina, filha do último morgado do Toural (composto ad hoc), realizado com a maior pompa na Igreja de S. Francisco de Guimarães em 21-12-1872» A maior parte do repertório destes compositores, e de outros não referidos, é repertório vocal com acompanhamento orquestral, o que implicava meios económicos e técnicos consideráveis para a sua execução. Para abreviar este tema, propício a um tamanho que aqui se não permite, Alberto Vieira Braga37, num extenso parágrafo e no seu estilo prosódico-poético, compendia assim: “ (…) ver os curiosos contratos musicais, que nos indicam a valia numérica, variada e prolixa de cantoristas de solfa, habilitados e associados, que existia, numa verdadeira febre coral, nesta pequeneira terra de Guimarães, nutridamente entregue, em nome das Divindades e dos princípios tradicionais, beatíficos e devotos, às festividades pomposas de grande instrumental e de eminência religiosa, na fidelidade de todo o classicismo dos actos irrepreensíveis e solenes.”

36

Ávila, Humberto d’ – Almeida Mota, compositor português em Espanha. Lisboa: Assírio Bacelar, 1996 (pp. 20 a 26) 37 Braga, Aberto Vieira – Curiosidades de Guimarães in Revista de Guimarães, nº 67 (1-2), 1957 (p. 160)

3.

O Tangedor dos Órgãos

Até ao século XV, em Guimarães, não há notícias contratuais de organistas na Colegiada. O primeiro nome que surge da lista dos «tangedores dos órgãos» remonta a 1452, conhecido como Pero Gonçalves Castelhano. Contemporâneo deste Pero, ambos com o mesmo ofício, e no mesmo período, aparece Johan Alvarez «mestre dos horgoons» que, e como curiosidade, foi trabalhar como escrivão para a Câmara, obrigando o Cabido a requisitá-lo para um trabalho exclusivo como organista.38 Antes deste século XV, segundo autores, como Manuel Valença, o instrumento limitar-se-ia «a dobrar as vozes ou a antecipar o que ia ser cantado, dando o tom (…)»39. Macário Santiago Kastner40, na sua Musica Hispanica, elenca um repertório de música para teclado utilizada em Portugal até meados do século XV. A que se refere ao órgão, é a seguinte: 1. Prelúdios para dar o Tom aos cantores durante os Ofícios litúrgicos; 2. Glosas ou transcrições ornamentadas de música vocal para uso litúrgico; 3. Glosas de Motetos Ainda segundo Manuel Valença, o órgão atinge a sua idade adulta somente no século XV. No país vizinho, onde os costumes musicais não diferiam substancialmente dos portugueses, os primeiros nomes de organistas não andam muito longe da data dos da Colegiada. Samuel Rubio, autor do 2º volume da História da Música Espanhola (Da «Ars Nova» até 1600), menciona a renúncia do organista Antonio Fernández e a sua substituição por Sanchez de Buitrago, em León, em 142441. Avança também com a informação que, no século XVI, por vezes, se contratariam dois organistas: um para o dia-a-dia, menos exigente no que se refere à «virtuosidade» e outro para outros dias especiais, em que a exigência a nível artístico era maior. O primeiro, segundo Rubio e apoiado na «Orden y Constituciones» de León (século XVI), tinha como função acompanhar a salmodia e preencher algum vazio. O segundo tinha uma função mais em evidência, com o órgão a ser reclamado para funções de solista.42 Na Colegiada não há dados que comprovem este hábito. Cabiam a um único «tangedor» todas as tarefas

38

Faria, João Lopes – Velharias da Colegiada Vimaranense (vol. 3, p. 12) Valença, Manuel – A Arte Organística em Portugal. Braga: Editorial Franciscana, 1990 (p. 32) 40 Kastner, Macário Santiago – Musica Hispanica. Lisboa: Atica, 1936 (p. 13) 41 Rubio, Samuel – Historia de la Música Española. Madrid: Alianza Editorial, 1983 (p. 39) 42 Rubio, Samuel – obra citada (p. 40) 39

inerentes a esse «carrego», que não eram poucas. Segundo Alberto Vieira Braga43, as provas que tinham que prestar eram presididas por monges do Mosteiro da Costa, que examinavam os candidatos em concurso. Este mosteiro possuía uma Capela Musical bem organizada com elementos de excelente qualidade. Como o «tangedor» era da responsabilidade do Chantre, este, ou o subchantre, teria naturalmente uma opinião a dar na altura das provas. Os ordenados variaram, ao longo do período inicial até ao último organista, João Lopes Faria, entre 11$000 e 80$000 mil réis44. Sobre as suas capacidades musicais, o Padre Manuel Valença realça o aspecto de improvisador: «Até aos nossos dias a função de acompanhador do organista permaneceu simultaneamente com a de improvisador e concertista. Ele tem de possuir o domínio da harmonia modal e tonal, harmonizando e realizando contraponto à primeira vista.»45 E sobre a sua importância na liturgia escreve: «A tarefa do tangedor de órgãos era elevar as almas à contemplação e jamais perturbar a oração da assembleia cristã.»46

Imagem 5 – Parte com o «Baixo cifrado» sobre a qual o organista acompanhava o coro. Sociedade Martins Sarmento (Arquivo 330)

Os contratos falam em «tangedor dos órgãos», o que pode remeter para a existência de dois instrumentos musicais, embora se utilize o termo no plural para designar a profissão. Mas era absolutamente normal que existissem o «positivo» (órgão 43

Braga, Aberto Vieira – obra citada (pp. 156 e 157) Estes vencimentos não têm em conta quando o cargo de organista era acumulado com o de Mestre Capela, como foi, entre outros, o caso de João Lopes Faria. 45 Valença, Manuel – obra citada (p. 34) 46 Idem (p. 62) 44

fixo) e o «portativo» (órgão portátil, móvel). Uma das utilizações deste último era para o ensaio da «capella» que poderia ser fora da igreja. Também só assim se compreenderá, de vez em quando, a utilização deste instrumento em procissões solenes. Embora não se tenha encontrado referência a este costume na Colegiada, Samuel Rubio fala dele no capítulo sobre o «tangedor»: «Sabemos lo que el organista tenia que tocar en la processión del Corpus; por supuesto, que se trata del organo portátil que había en casi todas las catedrales par estas y otras ocasiones.»47 A corroborar esta suposição da existência de 2 órgãos na Colegiada neste período, na «obrigação que fez o tangedor dos órgãos, Antonio da Fonseca», em 4 de Abril de 1630, pode ler-se: «… vinte mil reis da parte do dito sñr D. Prior e os outros vinte da parte do dito Cabido (…) pelos quaes será obrigado elle Antonio da Fonseca a cumprir com a obrigação de tangedor dos ditos órgãos na dita egreja, por sua própria pessoa em todos os dias contheudos e declarados no regimento que para isso o subchantre da dita egreja Collegiada lhe der…»48

Em alvará de 26 de Setembro de 1586, que nomeia «Dimião Mendes» para substituir «Paulo António» que cegou, também se pode ler: «… dar a Paulo Antonio tangedor que foi enquanto elle viver e elle Dimião Mendes tanger os órgãos…»49 Um último documento, este referente à conservação e afinação dos instrumentos contratam um «organista» do Porto50, em 16 de Março de 1587: «Salvador Rebello sera obrigado cada um anno a vir a esta villa alimpar os órgãos que estão na dita egreja de N. Sª. Da Oliveira nos termos em que estiverem de pó e os afinar … »51. Alguns dos organistas que serviram na Real Colegiada acumularam o cargo com o de Subchantre ou Mestre Capela. João Lopes Faria, o último na lista dos «tangedores», ocupou este duplo cargo. Mesmo já na linha descendente do brilho que a vida musical teve nesta insigne instituição vimaranense, é apreciável a quantidade de tarefas musicais que cabiam à capela, ao seu mestre e ao organista. No contrato que assinou com o Cabido, esta grande figura da cultura de Guimarães descreve, com algum pormenor, as funções a que se comprometeu. Aliás, o seu propósito era repor o brilho perdido da vida musical. São dele as palavras: «Declaro que desejo ser encarregado de fornecer a musica para as solemnidades pagas pela Collegiada, simplesmente para ver 47

Rubio, Samuel – obra citada (p. 40) Faria, João Lopes – obra citada (vol. 6, p. 417) 49 Faria, João Lopes – obra citada (vol. 5, p. 33v) 50 Observação: hoje chamar-se-lhe-ia «organeiro» 51 Faria, João Lopes – obra citada (vol. 6, p. 62v) 48

se as levanto ao seu esplendor antigo …». Nove anos após a assinatura deste contrato, a Colegiada, que resistiu ao anticlericalismo liberal, não resistiria ao da República e foi extinta em 1911.

Nota final

Não desejaria concluir esta viagem, um pouco ziguezagueante, pela música da «Insigne e Real Colegiada da Nossa Senhora da Oliveira» sem referir que, aos poucos, os espólios musicais depositados nas instituições vimaranenses vão saindo, ainda que devagar, do desconhecimento profundo em que jazeram durante muito tempo. O interesse musicológico por parte de trabalhos académicos ou outros está em crescendo, constituindo uma mais-valia para a cultura local, mas também um contributo grande para que a História da Música Portuguesa vá conseguindo estrutura documental bastante que lhe consiga tornear e preencher os diferentes períodos que viveu. A Capital Europeia da Cultura, em Guimarães, permitiu alguns apoios económicos em diferentes áreas musicais. Particularizando com dois projectos a que o autor se ligou, foi transcrito o Passionário da Sociedade Martins Sarmento e inventariado e catalogado, para disponibilização de consulta online, o espólio da antiga Banda dos Guises, agora Sociedade Musical de Guimarães52. Para a ideia de muitos, Lisboa, Porto e Coimbra serão os destinos base de trabalho de investigação desta área. São depósitos importantes de património, sem dúvidas. Mas relembrem-se os exemplos da francesa Solange Corbin (em 1942) e do português Padre Avelino Jesus da Costa (1944), citados neste texto, que percorreram o país em busca de fontes musicais e que as trouxeram ao de cima do pó onde adormeceram anos ou séculos. Felizmente que de há alguns anos até ao presente se têm formado muitos musicólogos que, dispersos pelo país, vão cumprindo a tarefa de «descobrir» e preservar esta parte da história patrimonial portuguesa. Sobre este tema, transcreve-se a pergunta que faz o musicólogo professor José Maria Pedrosa Cardoso53: «Mas será que a música, que no pó dos arquivos aguarda o termo do seu compasso de espera, merece o esforço da sua releitura na ressurreição da festa ou do concerto? A resposta não pode ser diferente da que se dá para mandar restaurar monumentos. Mas será que o

52 53

Projecto MUSICAVE (portal online) Revista VEREDAS, nº 3 II. Porto, 2000 (p. 452)

património musical português é verdadeiramente significativo? E a resposta, mais uma vez, é o seu estudo e a sua re-audição. As surpresas são muitas e insuspeitas.»

E porque o propósito deste texto foi o órgão da Colegiada, remata-se com uma frase do Padre Manuel Valença54 ainda sobre o organista: «ao sentar-se em frente da consola do órgão é tomado pela sensação exaltante de estar perante um desafio à sua perícia e ao seu saber a fim de criar beleza».

54

Valença, Manuel – obra citada (p. 34)

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