Música Nova: ruído e a estética da informação infinita

August 10, 2017 | Autor: Christian Benvenuti | Categoria: Information Theory, Music Aesthetics, New Music, Musical Expectancy
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Instituto de Artes e Design Universidade Federal de Juiz de Fora

Anais do I Seminário de pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens

Realização PPG/ACL – Programa de Pós-Graduação em Artes, Cultura e Linguagens IAD/UFJF

Universidade Federal de Juiz de Fora Reitor: Júlio Maria Fonseca Chebli Vice-Reitor: Marcos Vinício Chein Feres Pró-Reitoria de Cultura Pró-Reitor de Cultura: Gerson Steves Guedes Instituto de Artes e Design Diretor: Prof. Dr. Ricardo de Cristofaro Vice-Diretor: Prof. Dr. Luiz Eduardo Castelões Pereira da Silva Mestrado em Artes, Cultura e Linguagens Coordenadora: Profa. Dra. Maria Lúcia Bueno Ramos Vice-Coordenador: Prof. Dr. Ricardo de Cristofaro Secretárias: Lara Lopes Velloso e Flaviana Polisseni Soares

Anais do I Seminário de pesquisas em Artes, Cultura e Linguagens. / Instituto de Artes e Design Universidade Federal de Juiz de Fora. – Brasil: Inclui bibliografia. Também disponível em versão online Comissão Organizadora: i) Rodrigo Souza; ii) Fernanda Bonizol; iii) Carmem Mattos; iv) Joviana Marques; Comitê Científico: i) Profa. Dra. Rosane Preciosa Sequeira; ii) Prof. Dr. Sérgio Puccini; iii) Carmem Mattos; iv) Deyse Pinto; v) Elisiana Candian; vi) Guilherme Lunhani; vii) Henrique Kopke; viii) Joviana Marques; ix) Nayse Ferreira; x) Pedro Carcereri; xi) Robert Anthony; xii) Ryan Brandão; xiii) Tálisson Melo; Identidade Visual: Nayse Ferreira; Editoração Eletrônica: Guilherme Martins Lunhani; ISSN 2359-6929.

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Música nova: ruído e a estética da informação in nita Christian Benvenuti 10

Resumo: Este estudo, com base em teorias da expectativa musical e na teoria da informação (TI), discute a música nova como um caso emblemático de desafio à expectativa, resultando na emergência de compositores cuja obra é marcada pela imprevisibilidade: geração de signos novos e negação de paradigmas estéticos. O impacto desse signo novo depende da expectativa gerada no processo de comunicação da mensagem musical. A TI proporciona um arcabouço teórico para o entendimento da natureza estatística da comunicação e da estética musical, constituindo uma abordagem valiosa ao entendimento da relação entre o aprendizado estatístico e a recepção de música. Este estudo propõe um entendimento da música nova sob uma perspectiva apoiada pela psicologia da expectativa e pela TI como alternativa às tradicionais óticas analítico-teóricas ou sócio-políticas. Palavras-chave:música nova,expectativa, teoria da informação, estética; É duro fazer previsões, especialmente sobre o futuro. Niels Bohr (1885-1962)

Expectativa Huron e Margulis destacam que, “[n]a última década, acumulou-se um volume considerável de pesquisa experimental corroborando [o] fenômeno do aprendizado estatístico” (2010: 578),11 segundo o qual a exposição a determinados signos musicais permitem a antecipação de sons em medida diretamente proporcional à frequência com que um indivíduo é exposto a esses signos. Dessa forma, o ouvinte se torna sensível à frequência dos signos e estabelece relacionamentos probabilísticos entre eles. Tais relacionamentos geram expectativas podem ser frustradas, confirmadas, antecipadas ou adiadas, em um processo que envolve criação de significados e emoções. “[T]odos os sentimentos de vontade, desejo, antecipação, ímpeto ou interesse (tais como sentimentos como fome ou curiosidade) são afetos orientados ao futuro, destinados a promover resultados específicos” (HURON e MARGULIS, 2010: 581). Se a memória pode ser considerada um banco de dados para a simulação de cenários futuros, o papel da expectativa então é crucial tanto para os processos composicionais envolvidos no planejamento (por exemplo) da forma e dos materiais musicais, quanto para os processos perceptuais. O fenômeno do aprendizado estatístico é explicado de forma elegante pela teoria da informação12 e implica, para todos os fins práticos, uma ênfase no caráter prospectivo da memória musical. De fato, a teoria da 10 11 12

Christian Benvenuti é compositor, doutor (PhD) em composição musical pela University of Surrey e pesquisador de pós-doutorado na Universidade Federal do Paraná.; Todas as traduções neste estudo são minhas. Para uma introdução à teoria da informação, ver PIERCE, John R. Symbols, Signals and Noise. 2nd Edition. New York: Dover Publications, 1980. Para uma abordagem introdutória à aplicação da teoria da informação à música sob o ponto de vista da criação e da complexidade musical, ver BENVENUTI, Christian. “A Entropia da Música: Teoria da Informação, Composição Musical e Complexidade.” In: XXI Congresso da ANPPOM, 2011, Uberlândia. Anais do XXI Congresso da ANPPOM, 2011.

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informação (TI), partindo da premissa básica de que a informação transmitida por uma mensagem é maior ou menor dependendo do potencial de surpresa que ela contém, encontra no fenômeno da expectativa um elemento essencial do binômio música e emoção. Como apontado por diversos autores (incluindo HAWKINS e BLAKESLEE, 2004; HURON, 2006; e SUDDENDORF, 2006), a capacidade humana de se formar expectativas é largamente considerada uma vantagem evolucionária. Isso se daria pela capacidade de utilizar a memória de forma prospectiva, e não apenas retrospectiva. Em outras palavras, mecanismos de predição só seriam possíveis graças à propriedade da memória em proporcionar a simulação de cenários futuros. “[P]redição não é apenas uma das coisas que seu cérebro faz, é a coisa básica (...) o córtex é um órgão de predição” (HAWKINS e BLAKESLEE, 2004: 89). Como enfatizam Huron e Margulis, esta noção sugere que as várias formas de memória “são melhor entendidas como diferentes formas de expectativa” (2010: 580). A expectativa também atua no mecanismo fisiológico de recompensa e parece disparar a produção de dopamina (hormônio e neurotransmissor) em experiências relacionadas à expectativa. A dopamina estaria presente na recompensa a “desejos ou expectativas, não à consumação[/saciedade]” (idem). Os trabalhos pioneiros de Leonard Meyer em emoção e significado colocaram a expectativa no centro da emoção musical, além de oferecerem parâmetros objetivos para se analisar fenômenos subjetivos (MEYER, 1957 e 1961). De acordo com o conhecimento de signos musicais de um indivíduo -– o que Werner Meyer-Eppler chama de idioleto, um termo emprestado da linguística (1968: 8) —, certos eventos musicais podem pressupor outros ou sugerir uma tendência. Este conhecimento, baseado em relacionamentos probabilísticos (cf. Figura 72), é dinâmico e ajustável, sendo formado não apenas das experiências musicais passadas de um indivíduo, mas também a partir da primeira nota de uma peça musical (BENVENUTI, 2010: 26). A inibição dessas tendências ou expectativas é, segundo Meyer, o que gera o afeto musical. “Esta visão permitiu que o afeto musical, um fenômeno notoriamente subjetivo, fosse investigado em relação à estrutura musical em vez das propensões idiossincráticas de ouvintes individuais” (HURON e MARGULIS, 2010: 584).

Figura 72 – Formação probabilística da expectativa

Informação In nita A TI define informação como algo mensurável e representativo da imprevisibilidade de uma mensagem. Por exemplo, uma cadência à tônica em uma sinfonia de Mozart transmite pouca informação, pois se constitui em uma mensagem esperada e, portanto, de pouco potencial de surpresa; uma cadência deceptiva, por outro lado, transmite mais informação por ser relativamente inesperada e comparativamente mais rara. Matematicamente, um evento totalmente esperado tem probabilidade 1 (ou seja, 100%), transmitindo, portanto, informação nula: se já sabemos o resultado de um evento, nenhuma comunicação de fato ocorre. Se hoje for domingo, amanhã será segunda-

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feira, com 100% de probabilidade — e 0% de surpresa. Eventos possíveis com algum grau de incerteza terão uma probabilidade maior que zero e menor que 1. Foge ao escopo deste estudo uma abordagem da TI sob o ponto de vista matemático (cf. Nota de rodapé 12 ao final deste texto), mas alguns conceitos básicos da teoria podem ser úteis. Desenvolvida por Claude Shannon inicialmente para aumentar a eficiência de telecomunicações pela otimização do sinal e da redução ou correção do ruído, a TI (também chamada de teoria matemática da comunicação) lida essencialmente com o conceito de entropia, que quantifica a complexidade (ou o grau de imprevisibilidade) informacional de um sistema. Tomando uma moeda não viciada, tem-se um sistema com dois estados igualmente prováveis: cara e coroa. A aplicação da equação da informação de Shannon (ver equação (11.1) abaixo) nos diz que a moeda, portanto, é um sistema com entropia de 1 bit.13 Um dado não viciado de seis lados tem entropia de 2,58 bits, o que significa que sua complexidade e, consequentemente, o grau de incerteza proporcionado são maiores que os da moeda: cada um de seus seis lados possui probabilidade de 1/6 (16,66%) de ficar voltado para cima após um lance. As 12 notas da escala cromática representam um sistema com entropia de 3,585 bits, mas assim como a moeda e o dado dos exemplos anteriores, essa medida só faz sentido quando há uma distribuição probabilística uniforme (ou seja, todos os estados/símbolos são igualmente prováveis), algo que geralmente não ocorre na música. No entanto, essa medida é uma referência do potencial de complexidade da escala cromática. Por exemplo, Metamorphosis One (1988) de Philip Glass pode ser descrita como uma mensagem com 1386 símbolos em sequência, incluindo todas as repetições indicadas pela partitura (BENVENUTI, 2010: 34). A entropia de Metamorphosis One, aplicando-se a equação da entropia H de Shannon, apropriada para distribuições probabilísticas não uniformes (cada símbolo pode ter uma probabilidade diferente), é de 2,033 bits por símbolo, indicando que, em comparação com a entropia máxima da escala cromática de 3,585 bits, a peça de Glass possui maior redundância. Joseph Youngblood define redundância como “uma medida da garantia de que a mensagem será recebida” (1958: 29). Em síntese: entropia agrega complexidade, redundância proporciona ordem e informação é o aspecto local, instantâneo, do par entropiaredundância.

A Teoria do Cisne Negro O poeta romano Juvenal (séc. I a II D.C.), nas suas “Sátiras”, fez uma menção às mulheres virtuosas: “Rara avis in terris nigroque simillima cycno” (Ave rara na terra, tal como um cisne negro). Como os romanos desconheciam o cisne negro, descoberto por europeus somente no séc. XVI na Austrália Ocidental, o cisne negro simbolizou durante milênios na literatura ocidental o impossível e o inexistente. Tal emblema parece ter inspirado o estatístico Nassim Nicholas Taleb na caracterização do que ele chamou de a teoria do Cisne Negro, segundo a qual certos eventos altamente improváveis possuem três atributos (TALEB, 2010: xxii): 1. São raros: Cisnes Negros historicamente significativos formam uma pequena quantidade de eventos; 2. Exercem um impacto profundo; 13

Outras unidades, porém, são utilizadas, como o nat e o hartley. A escolha depende da base logarítmica adotada, mas o bit ainda é a unidade mais utilizada, possivelmente por sua afinidade com sistemas digitais.

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3. Possuem previsibilidade retrospectiva. Previsibilidade retrospectiva significa que os Cisnes Negros não são previsíveis prospectivamente, mas são considerados explicáveis e previsíveis após o evento ter ocorrido. De fato, a descoberta do cisne negro14 provocou uma mudança na própria definição de cisne: “(u)ma única observação pode invalidar uma afirmação geral derivada de milênios de observações confirmatórias de milhões de cisnes brancos. Tudo o que você precisa é de um único (. . . ) pássaro preto.” (TALEB, 2010: xxi). Taleb aponta o advento do computador, da internet e do laser como exemplos comuns de Cisnes Negros (2010: 135), todos imprevistos, não planejados e discretos durante seu uso inicial, mas com profundo impacto cultural, social e econômico em relativamente médio prazo. Proponho que o Cisne Negro é equivalente na TI ao símbolo, transmitido em uma mensagem, que não pertence ao repertório (alfabeto). Isso não é o mesmo que um símbolo raro, pois este ainda faz parte do repertório; embora a presença de um símbolo raro cause surpresa, ele ainda é considerado “canônico” e é processado e assimilado como tal. O símbolo que não pertence ao repertório não tem baixa probabilidade — ele é simplesmente impossível.

Figura 73 – Signo Novo

O pico de informação na Figura 73 pode ser maior ou menor dependendo da raridade do segundo símbolo (fá#) em relação ao primeiro (dó). Em outras palavras, em um conjunto de apenas dois símbolos A e B, quanto maior for a redundância de A, menor será a probabilidade de B; consequentemente, quando B for introduzido à mensagem, irá gerar uma surpresa (estatística) muito maior do que A. Para os fins desta ilustração, o Fusca do exemplo acima deve ser considerado como o próprio automóvel, e não sua representação gráfica, podendo ser substituído por 14

A exemplo de Taleb, mantenho aqui a capitalização em Cisne Negro ao me referir aos eventos de alta improbabilidade, usando caixa baixa ao me referir ao pássaro.

Figura 74 – Informação Infinita

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qualquer outro símbolo absolutamente externo ao conjunto universo em questão (“cebola”, “dignidade”, um ideograma japonês... ou mesmo um cisne negro). A TI postula que um evento com 100% de probabilidade não irá transmitir nenhuma informação (tal como no exemplo acima, da segunda-feira sucedendo o domingo). Representado matematicamente: I (p) = log 1/p

(11.1)

onde I é a informação em bits relativa a um evento com probabilidade p.15 Desta equação decorrem algumas implicações importantes. Se p = 1 (100% de probabilidade), I = 0, isto é, eventos que sempre ocorrem não comunicam informação. Uma moeda com dois lados idênticos, por exemplo, se constitui no que Luciano Floridi descreve como um “dispositivo unário” (2014): transmite sempre a mesma mensagem e, dessa forma, lançá-la é um ato irrelevante do ponto de vista da expectativa. O corvo do poema The Raven de Edgar Allan Poe, com seu vocabulário restrito formado unicamente pela expressão nevermore, também pode ser considerado um dispositivo unário. No entanto, se a probabilidade do evento for nula (p=0), a informação I será infinita (1). O Fusca da Figura 74 é um Cisne Negro – ele representa um problema matemático especial, pois não há como processar (computacionalmente, por exemplo) uma variável com valor infinito: uma vez que o Cisne Negro apresenta, em princípio, probabilidade zero, há um crash no sistema de expectativa. O modernismo musical é um caso emblemático de desafio à expectativa, resultando na emergência de compositores cuja obra é marcada pela imprevisibilidade: geração de signos novos e negação de paradigmas estéticos. O impacto desse signo novo depende da expectativa gerada no processo de recepção da mensagem musical. Ao deliberadamente negarem certos construtos, compositores teriam estabelecido uma espécie de “psicologia reversa” (HURON, 2006: 343): Arnold Schoenberg negou a tonalidade ao organizar o atonalismo, de forma análoga à negação da cadência por Richard Wagner e à negação da métrica por Igor Stravinsky (como no trecho icônico de “Les Augures Printaniers” d’A Sagração da Primavera). Mais além, o impulso inventivo de diversos compositores ao longo do séc. XX foi motivado pela negação de outros elementos, como a narrativa e a variação/mudança (o minimalismo de Nova York), a simultaneidade (as técnicas polirrítmicas de Charles Ives e Elliott Carter, por exemplo) e mesmo elementos não necessariamente musicais, como a intenção (a busca pela não-intenção de John Cage). Décio Pignatari nos lembra que “o signo novo tende a produzir isolamento, é ‘ininteligível’ à primeira abordagem — por sua raridade e inesperado e pelo fato de ser mais ‘dispendioso’ (para o sistema nervoso, por exemplo)” (2002: 63). Diversos procedimentos experimentais confirmam que nosso aparato perceptual tende a processar mais rápido signos (notas, sons, músicas, etc.) com os quais temos mais familiaridade; inversamente, signos pouco familiares são processados mais lentamente (HURON, 2006). Esse é um fator importante no processamento de Cisnes Negros: se símbolos/signos que não fazem parte do repertório resultam em informação infinita, como visto acima, quais suas implicações para nosso aparato perceptual?

A estética da informação in nita’ Um elemento central na TI é o conceito de canal de comunicação, o meio que suporta a transmissão do sinal entre a origem e o destino. Estando sujeito a ruído, o canal tende a entregar no destino um sinal diferente do gerado na origem, um problema fundamental não apenas nas telecomunicações (a TI foi desenvolvida precisamente para aumentar 15

Tecnicamente, I indica a autoinformação, ou surprisal na terminologia em inglês.

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a eficiência da transmissão dos sinais), mas em toda comunicação humana. Como já discuti anteriormente em outro estudo, o canal de comunicação na comunicação musical pode constituir diferentes meios, tais como a partitura, os próprios intérpretes, instruções verbais, a memória do compositor, do intérprete e do ouvinte, e outros meios (BENVENUTI, 2010). Uma característica comum a todos os sistemas de comunicação é sua capacidade finita, resultante das capacidades finitas do emissor, do canal e do receptor. Isso significa que há limitações tanto à taxa de transmissão (bits/segundo) quanto à capacidade de armazenamento (memória, por exemplo). Existem diversas maneiras pelas quais a capacidade do canal de comunicação pode ser excedida. Sendo a música uma mensagem temporal e sequencial, ela tende a exceder nossos limites perceptuais de várias formas. De fato, Moles aponta que, “[e]mbora a informação semântica da obra possa ser esgotada e finalmente memorizada, a peculiaridade da obra de arte é que sua riqueza transcende a capacidade perceptual do indivíduo” (1966: 166). Contudo, o signo com probabilidade nula representa um desafio especial à comunicação pois, sendo totalmente imprevisível, e uma vez que a quantidade de informação transmitida por uma mensagem é proporcional a sua imprevisibilidade, sua assimilação exigiria capacidade infinita do canal de comunicação – na prática, algo irrealizável. Este estudo propõe que nosso aparato perceptual resolve o problema da informação infinita de uma maneira elegantemente compatível com a TI: o signo que não pertence ao repertório – o Cisne Negro – é assimilado em um primeiro momento como ruído. Do ponto de vista do compositor em relação à interpretação ou recepção de sua obra, o que diferencia ruído de sinal é a ausência de intento (isto é, o sinal recebido pode não ser igual ao sinal que se intentou transmitir), mas isso pode não estar claro do ponto de vista do ouvinte. Quando algo inesperado acontece durante uma performance, algo que promove tamanha violação do contexto a ponto de transcender sua categorização como signo novo e tender ao ruído, o ouvinte pode não ter certeza quanto ao significado desse evento ou do quão deliberadamente tal incerteza foi estabelecida pelo compositor. Em 1996, durante uma performance da peça Mutatis Mutandis #36 (1988) de Celso Loureiro Chaves, o público pôde ouvir um chiado semelhante à estática de rádio sendo transmitido de algum lugar do auditório. Algumas pessoas, com certo nervosismo, tentavam descobrir a origem do ruído, que era de fato produzido por um rádio sendo operado por alguém na quinta fileira. O drama criado pelo evento, combinado a suas características sonoras, era algo tão improvável que a resposta imediata do público inquieto foi considerar o evento como ruído (indesejado, portanto). De acordo com o compositor,16 a intencionalidade do ruído deveria finalmente se tornar aparente pela interação do pianista com o operador do rádio. O inesperado de um evento intencional que possa ser considerado ruído, o qual proponho seja chamado de ruído estético, é promovido pela transmissão de um signo novo, um pico altíssimo na informação (cf. Figura 73 e Figura 74), e não deve ser confundido com a “estética do ruído” dos futuristas. O ruído estético distorce o contexto e confunde as fronteiras que separam “música” (qualquer coisa gerada por dado repertório de símbolos) de “não-música” (qualquer coisa externa a esse repertório, não se limitando a eventos acústicos). Ruído estético, portanto, é: • Externo ao espaço sonoro da obra; • Um objeto sonoro Gestalt identificado inicialmente como interferência; • Assimilado a posteriori como parte do repertório. 16

Via carta pessoal enviada em 17 de julho de 2010

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Essa é uma das diferenças importantes entre a teoria clássica da informação e sua aplicação em um contexto criativo; embora a eficiência de codificação, digamos, na telegrafia seja tão importante quanto na composição musical, a eficiência da transmissão (isto é, permanecer sempre dentro dos limites da capacidade do canal e combater o ruído quando possível) pode ser mesmo indesejável para o compositor. A ocorrência de um evento impossível, apesar de ser um paradoxo lógico por definição, pode ser simbolizada em termos estéticos por uma probabilidade zero implícita se o evento é consistentemente negado pelo sistema de probabilidades – até o momento em que ele acontece e se torna o inesperado. Em 4’33” (1948), de John Cage, o impossível acontece: todos os intérpretes permanecem sem tocar seus instrumentos durante toda a duração da obra. Em primeira audição, a probabilidade zero implícita de isso acontecer é o que torna a obra um Cisne Negro. Na música nova – definida aqui em seu sentido mais literal, ou seja, a música em sua primeira audição –, a exploração expressiva do ruído estético tende a ser muito mais eficiente do que na música já assimilada pela exposição contínua.17 “Informação infinita”, portanto, é um output puramente teórico, já que o receptor jamais irá obter informação infinita em circunstâncias reais – a menos que a existência de um canal/receptor com capacidade infinita fosse concebível. Considerando que não apenas a entropia de uma única obra, mas também a entropia de um corpus de música tende à uniformidade devido à crescente familiaridade do ouvinte com seus signos e significados, compositores criam novos signos de modo a promoverem novos significados através do inesperado. Nós esperamos que violoncelistas toquem seus instrumentos no palco, mas se, em vez disso, eles os utilizarem para jogar tênis (podendo até mesmo contar com um percussionista fazendo as vezes de árbitro, como em Match (1964), de Mauricio Kagel), poderemos nos tornar cientes dessa expectativa e algum tipo de significado será criado. Embora normalmente não se espere que um violoncelista use seu instrumento como se fosse uma raquete, se isso acontecer durante um concerto de música barroca, a perturbação será tal que a impermeabilidade do sistema (os códigos inerentes à produção e recepção de música barroca) funcionará no sentido de transformar o evento em ruído. Como na Mutatis Mutandis #36 de Chaves, a comunicação da peça requer um processamento mais longo (cf. a seção A Teoria do Cisne Negro) para que o evento aparentemente improvável possa ser decodificado e para que significado possa ser atribuído a ele. Após o processamento do evento e da qualificação do significado, o sistema de probabilidades do receptor será confirmado – se o evento for qualificado como ruído – ou alterado e expandido – se a perturbação for qualificada como um signo novo. O fato de certas obras serem consideravelmente “abertas” (como as músicas aleatórias) não significa que admitam infinitas expansões de seu repertório. A impermeabilidade que é uma propriedade de qualquer música finalizada, independente do grau de abertura ou acaso, a torna um sistema estático: seu repertório completo de signos/símbolos pode não ser explícito, mas é sempre finito. O ruído é algo que desafia a impermeabilidade do sistema e expõe sua estrutura ao perturbar o sinal original. O fato de que um evento é caracterizado como ruído destaca a natureza do sinal original e do próprio evento, mas também revela algo sobre as propriedades do receptor, pois não há qualquer regra absoluta que possa impedir o ouvinte de perceber ruído como sinal (isto é, como parte do repertório da peça em questão). Para os fins da 17

No entanto, tendemos a continuar percebendo o inesperado como tal, mesmo após memorizá-lo. Isso remete ao famoso “enigma de Wittgenstein”: como pode uma cadência deceptiva continuar soando deceptiva após memorizarmos a música? A explicação para isso está nas características de nosso aparato perceptual, que envolve expectativas “esquemáticas” e expectativas “verídicas”. A questão é brevemente apresentada em BENVENUTI (2013).

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comunicação de uma mensagem musical, portanto, o único ruído que importa é, em última análise, não o ruído tal como transmitido, mas sim o ruído recebido. Sob essa perspectiva, pode-se pensar em ruído estético como manchas em testes de Rorschach: quer consistam de manchas sem sentido, quer evoquem borboletas, elas são abertas à interpretação, ao menos em algum ponto ao longo do processo de comunicação.

Considerações nais Eventos inesperados apontam para o estado entrópico de um sistema e para a natureza estatística da estética. A música apresenta propriedades estatísticas observáveis que podem pertencer a um corpus definido (obras ou estilos específicos, por exemplo) ou que são inerentes à música como um todo. Diversos autores reconhecem a natureza estatística da estética (ARNHEIM, 1974; HURON e MARGULIS, 2010; MOLES, 1966; TEMPERLEY, 2010) e este estudo parte da mesma premissa. Nesse âmbito, a capacidade de um compositor em controlar a originalidade estatística permite que os eventos mais improváveis em uma peça “assumam o controle” devido a seu potencial de surpresa, ou que desvaneçam no tempo através da ação de eventos mais frequentes e banais, já que o signo novo tende a ser mais sensível à passagem do tempo. Por outro lado, eventos banais têm mais chance de serem afetados pelo ruído, pois a “energia” necessária para se manter no primeiro plano é uma função direta da taxa de entropia. Em outras palavras, quanto mais entrópico é o estado, mas difícil é para os signos serem significativos. Vimos acima que uma característica do Cisne Negro é ser previsível/explicável retrospectivamente, e não prospectivamente. Como lembram Gould e Lewontin (1979), é relativamente fácil elaborar teorias post hoc, em contraste com teorias a priori, bastante mais complexas pois descrevem fenômenos antes de sua observação ou constatação. Por exemplo, é muito mais fácil hoje descrever o cisne em suas variações branco e negro (pois já as conhecemos) do que elaborar uma teoria a priori sobre o elefante branco (que desconhecemos – o chamado elefante branco é, na verdade, rosado). No processo de assimilação de uma mensagem musical, especialmente no que diz respeito à música modern(ist)a, deparamos com frequência com Cisnes Negros. No entanto, estatísticas não são leis imutáveis da natureza, são apenas tendências matemáticas. Não há nada que impeça um dado não viciado de pousar sobre um de seus oito vértices, exceto a grande probabilidade de que ele pousará sobre uma de suas seis faces. Mas um dado pousar sobre um vértice, apesar de improvável, é algo possível. De uma forma fundamental, compositores (e artistas em geral), ao desafiarem tendências entrópicas, fazem “dados pousarem sobre seus vértices” o tempo todo. Mais estudos são necessários para um aprofundamento do entendimento da música nova sob uma perspectiva apoiada pela psicologia da expectativa e pela TI como alternativa às tradicionais óticas analítico-teóricas ou sócio-políticas. Espera-se que o diálogo entre cognição musical, teorias da expectativa esquemática e verídica e a TI possibilite esse aprofundamento e promova maior discussão nessas áreas.

Referências Bibliográ cas ARNHEIM, R. Entropy and Art: An Essay on Disorder and Order. Berkeley: University of California Press, 1974. BENVENUTI, C. O Enigma de Wittgenstein: estética e estatística. In: Simpósio de Estética e Filosofia da Música, 2013, Porto Alegre. Anais do SEFiM, 2013: 690-692.

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