MÚSICA: O FUNK DA OSTENTAÇÃO COMO SUPERAÇÃO DA TRAGÉDIA OU FETICHE DA INDÚSTRIA CULTURAL

May 23, 2017 | Autor: William Ruiz | Categoria: Theodor Adorno, Friedrich Nietzsche, Funk, Filosofía, Música
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MÚSICA: O FUNK DA OSTENTAÇÃO COMO SUPERAÇÃO DA TRAGÉDIA OU FETICHE DA INDÚSTRIA CULTURAL? William Ruiz Patrício de Lima* RESUMO: Este artigo tem como objetivo considerar a importância de Nietzsche na discussão sobre a arte como afirmação da vida. Tal premissa manifesta-se pelo confronto vital entre os mitos de Apolo e Dioniso. São duas as pulsões que norteiam o homem, a dionisíaca (embriaguez) e a apolínea (sonho), que se manifestam na música. O mascaramento da realidade advém da música, pois nesta o indivíduo consegue superar a tragédia, aliviar seus sofrimentos e viver num êxtase vital. A arte é a expressão que eleva, fortalece e dá sentido a vida, na qual, também, a vida torna-se uma bela aparência. Para o filósofo, a aparência é de extrema importância, pois o homem encara a realidade como se estivesse sonhando. A música traz alegria, porém, ilusória, com isso, ela pode ser apenas mais um produto da indústria cultural. Este conceito trabalhado por Theodor Adorno ajuda-nos a compreender que alguns estilos de música, como o funk da ostentação, faz com que o indivíduo permaneça na tragédia e fuja da realidade. Diante do fetiche produzido pela sociedade do espetáculo, o pensamento crítico, a reflexão e o esclarecimento são valores que podem corroborar para a não dissimulação da realidade. PALAVRAS-CHAVE: Apolíneo; Dionisíaco; Tragédia; Música; Fetiche; Crítica; Esclarecimento;

ABSTRACT: This article aims to consider the importance of Nietzsche in the discussion about art as life affirming. This assumption is manifested by the vital clash between the myths: Apollo and Dionysus. There are two drives that guide the man, the Dionysian (drunkenness) and Apollonian (dream), manifested in music. The masking of reality comes from the music, because the individual can overcome this tragedy, relieve their suffering and live a vital ecstasy. Art is the expression that elevates, strengthens and gives meaning to life, in which, also, life becomes a beautiful appearance. For the philosopher appearance is extremely important, because man sees the reality as if dreaming. Music brings joy, but sometimes illusory, therefore, it may be just a product of cultural industry. This concept worked by Theodor Adorno helps us understand that some styles of music, such as funk of ostentation, causes the individual to remain in the tragedy and escape from reality The fetish produced by society that strives for show, and that critical thinking, reflection and enlightenment are values that can not corroborate for the dissimulation of reality. KEY WORDS: Apollonian; Dionysian; Tragedy; Music; Fetish; Criticism; Enlightenment; *

Graduado em Filosofia – UNISAL - (2013). Faz Bacharelado em Teologia – UNISAL – Pontifícia Salesiana de Roma. Pesquisa sobre Juventudes.

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INTRODUÇÃO Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um filósofo com ideias pertinentes para o seu tempo, e que se estende até os dias de hoje. Por este motivo, é considerado como um homem extemporâneo, uma vez que este promoveu mudanças radicais no aspecto da moral, psicologia, antropologia, entre outras. Tal filósofo de Röcken situa-se entre os séculos XIX e XX, contudo, neste século em que vivemos, o seus aforismos tornam-se atuais, de maneira que muitas pessoas aprofundam no entendimento de suas obras, e outras, considerando-o como um autor influente, fazem as devidas críticas ao seu pensamento. Assim, exigem-se aprimoramentos e esclarecimentos de conceitos Nietzschianos, bem como das posturas contrárias a este autor. Seu pensamento é como um labirinto que aos poucos percebemos aonde o mesmo quer chegar, por isso, a essência de sua proposta é o questionamento e a transmutação dos valores, pois entende que os valores vigentes, a partir do pressuposto idealista não afirmam a vida. A afirmação da vida, para Nietzsche, passa irremediavelmente pela arte. A arte é o movimento, o valor, o êxtase, o sonho e a embriaguez que tornam o indivíduo livre e capaz de encarar a vida como ela é, porém, com todos os seus sofrimentos e dores, amenizadas. O equilíbrio entre a arte dionisíaca e apolínea confere à vida humana, um alívio aparente, no qual, a regra e a embriaguez confrontam-se constantemente, pois são pulsões instintivas do homem. Tal realidade, parte do interior humano, no qual predomina o desejo por uma só coisa, a vontade de poder. Será essa vontade que não deixará o homem considerar-se menor que os demais, mas, sim, afirmar-se diante de todos, pois quanto mais estiver acima, melhor. O aluno da Universidade de Leipzig, que se torna um professor para a civilização de sua época, bem como, para a da atualidade, apresenta a possibilidade de uma cultura superior, nesta que reavaliará a razão que se tornou um instrumento e não mais a guardiã da verdade. Decorrente disto, percebe-se que a arte, especificamente a música, será o instrumento mais eficaz para a afirmação da vida. Pela música o homem consegue superar a tragédia da vida e encarar tudo como é de fato, suprindo a dor com a alegria e o sonho. A arte trágica favorece eminentemente a experiência humana, pois com a música, que proporciona leveza, festa, engrandecimento e fortaleza, a vida torna-se mais bela.

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O ser humano, pela música, entra em contato com o uno primordial que é caracterizado pela oposição entre Apolo e Dioniso, no qual se vai ao cume do sofrimento e do prazer. A vida tem sentido e se renova a cada manifestação artística. Tais expressões artistas correspondem a uma determinada época, e será nesta, que cada um conseguirá encontrar um horizonte para dar sentido à vida. Hoje, o funk, toma uma nova face e passa de todas as suas características passadas, de critica social, prostituição, de exaltação das armas, para o funk da ostentação. Uma sugestão desafiadora para os nossos tempos, pede de nós pensamento crítico, mas dita para parte da sociedade a maneira de comportar-se. A problemática está lançada. Será que este novo estilo de produção musical alivia a dor e propicia alegria? Proporciona uma aparente sofisticação alegre que muitos não podem desfrutar, e assim, continuam na tragédia da vida? Ou ainda, o funk da ostentação é um fetiche musical que mostra uma vida exuberante, mas que não passa de uma dissimulação ilusória de uma vida melhor, fazendo com que estes se fechem em si e não reflitam sobre a influência trágica que a música pode gerar? Para estas reflexões usaremos as obras Nietzschianas, principalmente, “O nascimento da tragédia” (1872), porém, para nosso encaminhamento final delinearemos nossas reflexões confrontando Nietzsche com Theodor Adorno, um filósofo contemporâneo, expoente marcante da Escola de Frankfurt que nos ajudará a compreender essa dimensão musical como um mascaramento da realidade, que quiça, é produzido pela indústria cultural.

1. A FORÇA APOLÍNEA E DIONISÍACA COMO SUPERAÇÃO DA TRAGÉDIA PELA MÚSICA A afirmação da vida, ou, da tragédia, na perspectiva de Nietzsche perpassa incondicionalmente pela concepção destes dois personagens da mitologia grega: Apolo e Dioniso. Tal mitologia apresenta os mesmos como forças da natureza que agem no homem, uma vez que estas orientam o indivíduo para um horizonte, no qual, o homem supera de forma aparente a realidade trágica. São forças que duelam em busca de um equilíbrio na vida. Na obra “O Nascimento da Tragédia”, Dioniso representa a vida transbordante e exuberante, a sensualidade, o desfrutar a vida da melhor forma, porém, esta leva para a destruição, pois não há regras a serem seguidas nessa via. Também é símbolo do lúdico, do espetáculo, da festa, contudo, o deus do vinho e da embriaguez. Por outro lado, Apolo, 3

simboliza aquilo que é nítido, claro, ordenado. O sonho e a ilusão. A bela aparência do mundo. A arte plástica e a música. Esta é uma força esquematizada, bem regrada. A vida no sentido apolíneo é uma vida concebida, ou seja, aquilo que todos devem seguir, porém, mais do que isso, viver. No sentido dionisíaco, o que o filósofo prefere, é uma vida de festa, da embriaguez que camufla toda a tragédia e alivia a dor da mesma. (NIETZSCHE, 2007) A origem da arte está vinculada, nesta linha filosófica, a estas duas dimensões: apolínea (arte plástica) e dionisíaca (música). Na perspectiva da música, constata-se que ela liga o homem temporariamente à natureza, uma vez que ele sai de si, passa de um agir racional para a emoção. São sentimentos difíceis de compreensão, mas que elevam o ser do homem. (DIAS, 2005). No mundo grego estes deuses eram responsáveis por deixar o olimpo diferente, no qual o apolíneo se manifestava com a beleza, que poderia ser vislumbrada num espelho, por outro lado, o dionisíaco apresentava-se como a contradição, ou seja, a dor e a tragédia da existência. Foi neste ponto conflituoso, que Nietzsche impulsionou seu pensamento voltado, também, para a música, o qual tem como centro “[...] o desenvolvimento dos aspectos dionisíacos e apolíneos na arte grega, considerados como impulsos antagônicos, como duas faculdades fundamentais do homem: a imaginação figurativa [...] e a potência emocional, que encontrava sua voz na linguagem musical.” (DIAS, 2005, p. 24) Sempre terão estes dois lados na obra de Nietzsche, porém, o que predominará será o símbolo de Dioniso. Neste viés trágico, propõe-se a verdadeira realidade, a vida como ela é. O estético adquire um papel fundamental, no qual as expressões artísticas, como a música, abrem um horizonte que amplia a visão de mundo. Por esse motivo, o filósofo de Röcken, tende para o lado dionisíaco, pois este vive numa embriaguez que alivia a tragédia, porém, ao mesmo tempo em que enxerga o prazer, percebe o mundo da aparência que se liga a uma vida equilibrada e ilusória. Com isso, sempre estarão correlacionados estes dois mundos míticos, o sonho apolíneo e a embriaguez dionisíaca, pois estes são pressupostos que levam o homem a negação e a afirmação do principium individuationes. (NIETZSCHE, 2007). Portanto, no momento que o individuo vive uma vida prazerosa, ele mascara a realidade trágica, cujo fator decisivo remete a destruição desta. Neste sentido a arte, como imitação da natureza ou de reprodução das aparências, torna-se um movimento intrínseco do homem. Volta-se de maneira inconsciente a origem imagética do mundo, e por isso, perde-se a consciência de si e de sua particularidade, vivendo em um mundo de êxtase. (STERN, 1978). Ante esta realidade a música será uma forma de expressão dionisíaca que supera a tragédia, encarando a vida como ela é, porém, suprimindo 4

toda a dor. Através disso, a arte proporciona o alívio daquilo que asfixia o ser humano. A representação artística manifesta e, leva o indivíduo a pensar, que o poético e o simbólico exprimem uma vontade, que para Nietzsche não deixa de ser vontade de poder, ou seja, um desejo interno como potência. Tal aspecto desemboca numa realidade de senhores que dissimulam e pensam sobre o trágico, proporcionando a vida trágica. O homem é constantemente questionado pela desmesura e sensualidade, bem como, pela regra e pelo sonho. São dois polos distintos, porém tende a prevalecer a dimensão dionisíaca, pois nesta,

[...] a massa atinge a excitação estática: o instinto se expressa imediatamente: violência desmedida do impulso primaveril. Esquecimento da individualidade, apresentado da autorrenúncia ascético através da dor e do pavor. A natureza em sua força prodigiosa ata os indivíduos friamente e os faz sentir-se como um, de tal modo que o princípio de individuação, aparece, ao mesmo tempo, como um puramente estado de fraqueza da natureza. (NIETZSCHE, 2006, p. 46-47)

A vida é amenizada, ao passo que o elemento dionisíaco supera a tragédia, passando da dor a alegria, do pessimismo ao otimismo trágico, da tragédia ao sonho. Assim, quando o homem é tomado pelo mito de Dioniso, manifesta-se livremente pela música. Decorrente disto, a arte trágica vai além da ficção, pois constitui a experiência humana em sua ambivalência e contradição. Não tem intenção moralizadora, o povo é colocado em dúvida e aparecem-lhes problemas que não são resolvidos. São coexistências de pulsões artísticas, que estão em interrelação na vida do povo grego. A alegria musical é como um antídoto contra todo o sofrimento da tragédia. (JUNIOR, 2006). Entretanto, a vida é vista como um pêndulo que oscila entre a reflexão e o trágico, mas que nenhum perde sua posição nesta obra, pois o pensar encontra o coro ditirâmbico que não é um indivíduo, mas uma liga de sensibilidade. O coro estende-se sobre toda a realidade do ser humano, para apresentar-lhes os maiores resultados da vida de forma fantasiosa e sentimental na harmonia da música. Contudo, “[...] a tragédia é o coro dionisíaco que incessantemente se descarrega num mundo apolíneo de imagens [...]” (NIETZSCHE, 2007, p. 50), optando-se assim, pela arte trágica e eliminando toda a racionalidade científica, o qual não é elemento emancipador do modelo socrático. Para Nietzsche, a arte é um elemento emancipador e avaliador da vida, porque na ciência predomina o espírito científico, este que é considerado como fenômeno de superfície. A arte é profunda e expressa à intensidade das pulsões dionisíacas e, por conseguinte,

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encontra no meio de todo sofrimento e da dor, na superfície da consciência, um elemento inacessível à razão, a música. (JUNIOR, 2006) A incapacidade racional frente ao instinto dionisíaco, quando este deixa o indivíduo num estado letárgico, faz com que o êxtase ofusque a realidade, proporcionando através da música um efeito de negação, mas ao encerrar esta experiência, na qual conhece a verdade da natureza, o homem compreende a ilusão que vivia, e ao deparar-se com a beleza do mundo apolíneo, mascara novamente a verdade. Contudo, a vida trágica proporciona uma vivência de sofrimento, mas, ao mesmo tempo, alimenta o sonho ilusório, porém, permanece na tragédia. A música então, para Nietzsche, alivia a dor aparentemente, pois vida é a aparência de um belo sonho. A vontade que se manifesta obscuramente, leva o homem a encarar a vida como uma fantasia e, ao deparar-se com Apolo transforma o fenômeno natural em fenômeno estático. (NIETZSCHE, 2007) Enfim, a arte tem o objetivo de revelar o ser, enquanto um sentimento alegre, apresentando o destino e disfarçando a dor. O trágico não foi superado pela verdade, mas pela crença nesta, a qual é um engano metafísico. São dois mitos que perpassam todas as realidades da vida, colocando nela um véu que ofusca a visão, o pensamento e a consciência. Porém, com a música a existência recebe uma conotação quimérica de mundo. Portanto, o homem continua a afirmar que tudo isso, “[...] não passa de um sonho! Não quero que termine! Quero sonha-lo ainda!” (NIETZSCHE, 2007, p. 43)

2. APARÊNCIA E ESPETÁCULO: O FUNK DA OSTENTAÇÃO COMO FUGA DA TRAGÉDIA Segundo Nietzsche, a arte ajuda-nos a viver melhor. Ela eleva o ser humano a um grau de harmonia, no qual todos os problemas, dificuldades e sofrimentos são colocados à margem. É uma alegria contagiante, na qual a dor, quando compreendida como arte, traz prazer, por isso, a música é indispensável nessa realidade. Por meio dela chega-se a lugares mais próximos da natureza. Sem a música a vida torna-se monótona e não se encontra sentido na mesma. Assim, há um entrelaçamento entre a arte e a vida, de forma que aquela carrega em si, um sentido metafísico. A música posta ao lado do mundo nos dá uma ideia de fenômeno estético. (NIETZSCHE, 2007). Na filosofia Nietzschiana a estética é primordial, esta que abre um horizonte de possibilidades de realização e de vivência pessoal muito satisfatória. 6

Quando se fala em arte, compreende-se nesta discussão Nietzschiana, como música. Esta manifestação artística é profunda, proporciona uma liberdade de espírito e de expressão. Na sociedade e na cultura atual, percebe-se um novo fenômeno musical que vem ganhando visibilidade e representação social. Este novo estilo, chama-se “Funk da ostentação”. (PINO, 2012). Os jovens MCs (Music Command) transformaram o funk criado no Rio de Janeiro em exaltação a riqueza. Depois do funk romântico, do consciente, do pornográfico e do proibidão, a ostentação é a primeira vertente do ritmo que nasceu fora daquela cidade. A alusão a riqueza é alimentada por estes cantores de maneira exacerbada. Tal música é predominante na chamada „classe C emergente‟, porém que se estende em todas as outras realidades sociais. (PINO, 2012) Como afirma Nietzsche, a música tem o poder de modificar a vida, o comportamento, a moral, o pensamento e a razão, na qual,

[...] não se trata aí de recusar a razão em bloco, mas de reavaliá-la [...], ela deixa de ser essa instância que, um tanto secretamente, se alojou num sujeito transcendental ou se desenrolou de modo misterioso na história à busca de sua realização, e se torna um instrumento que funcionou ao longo do tempo para lograr certos resultados. Ela perde, assim, o estatuto de guardiã da verdade, produtora de certezas ou guia infalível [...]. (BRANDÃO, s/d, p. 41)

Com este novo estilo musical, a proposta não é diferente, pois quer apresentar uma nova proposta de vida, uma afirmação da vida pela ostentação. Não se pode contentar-se com o pouco, deve-se buscar tudo aquilo, materialmente falando, que exalte o homem. É um desejo de conquista por aquilo que define o indivíduo. Perde-se aí o princípio de individuação, e o homem encontra-se com o uno primordial. “É importante ostentar o „kit‟, expressão que define os acessórios do vestuário: tênis, bermuda, camiseta, anéis e colares, óculos escuros e boné” (PINO, 2012, p. 113). As roupas de marcas famosas são as mais citadas nas letras das músicas. É uma característica dissimuladora da realidade, na qual que se vive nessas periferias pobres. Tal assunto é pertinente, porque a pessoa que puder ter um desses aparatos midiáticos poderá considerar-se como um membro do sucesso e do espetáculo, do momentâneo. É uma produção cultural artística, que para Nietzsche fortalece a vida do ser humano, e com isso, o mesmo afirma-se como senhor dotado de poder diante da sociedade. Com esta nova característica do funk, muitos jovens e pessoas de idades diversas, aderiram e consentiram com este estilo, porque podem ter uma vida aparentemente 7

satisfatória. É algo que confere liberdade valorativa e de poder diante de outros. O fato de os MCs saírem de realidades pobres e chegarem onde estão, é motivo de outros verem nestes a possibilidade de mudança de vida e de sobressaírem-se. A ideologia que está no plano de fundo do funk, faz com que a singularidade essencial do ser humano se esvaneça e amenize o cotidiano da vida, encarando a vida como ela é, porém, sendo incisivo na afirmação e proteção da mesma, com isso, percebe-se o reflexo nítido dessa produção musical na vivência de muitos. (PINO, 2012) Pode-se interrelacionar o funk da ostentação com a arte dionisíaca, pois não exige um percurso retilíneo, mas a superação da tragédia. O fundamento dessa ideia é não contentar-se com o pouco. Porém, um questionamento é certo: como conseguir todos esses aparatos para estar na vanguarda dos tempos? A reposta que, supostamente, Nietzsche daria é saber que a música ajuda-nos a viver, por isso viva esta música como uma realidade concreta. A ilusão e a aparência são fatores que permitem desfrutar-nos de um bom sonho. A vida é aparência e dissimulação, não se pode prender em pré-conceitos estabelecidos pelos antepassados. Os cantores deste gênero reconhecem sua condição, como: “[...] nasci na comunidade, sei que lá ninguém quer cantar a pobreza e a miséria” (PINO, 2012, p. 113). Embora percebam a vida trágica, na qual vivem, querem permanecer na ilusão que os tire desta condição medíocre. O funk da ostentação atraiu muitos fãs, estes que querem possuir e usufruir de tudo aquilo que os MCs possuem. Agora, “[...] vida é ter um Hyundai e uma Hornet, 10 mil pra gastar, Rolex e Juliet, canta o paulista MC Danado no funk „top do momento‟ [...]” (PINO, 2012, p. 112). São carros, motos, acessórios que avaliados chegam a um valor muito alto. É um show diante dos olhos daqueles que veem a vida como dor, mas com essa premissa supracitada tudo pode modificar-se, desde que não se queira sentir-se pequeno, ou como Nietzsche discorre, consentir com uma moral de escravos. A música é a essência que manifesta o ser do homem, o contraste entre o mundo apolíneo e dionisíaco, um confronto vital entre a aparência e a realidade, bem e mal, vida e morte, alegria e sofrimento, ostentação e modéstia. Contudo, o mais importante é a afirmação da vida. Ante este estilo musical, percebe-se um sim à vida, de forma autêntica; uma aproximação do uno primordial; um refúgio e espírito consolador; uma música do „sim, eu posso‟; uma vontade de potência que emana do interior humano e estende-se na realidade dos senhores que se impõe. Os artistas justificam este novo estilo por suas próprias experiências pessoais: “[...] enxergo o mundo, como meu público enxerga [...]” (PINO, 2012, p. 113), nada de falar em 8

pobreza. Nietzsche ratifica que a vida sem a música seria um movimento cansativo ou uma prisão. É preciso liberdade e sonho. A música é o fim último, superior a todas as construções científica, na qual se decantam todos os fatos contraditórios e trágicos. (NIETZSCHE, 2007). É uma produção atual e válida, porém, quem a produz pode ser que esteja consciente ou não que esta música ostenta uma vida trágica, fazendo com que muitos indivíduos vivam uma vida ilusória e aparente de valores efêmeros e que mascarem a verdadeira realidade. Assim, o funk da ostentação é uma superação ilusória da tragédia, pode ser um mero instrumento da indústria cultural, usado como fetiche para atrair muitas pessoas e determinar o valor de cada uma delas, ou, pode ser um meio dissimulador da vida, o qual mostra um bem-estar momentâneo, mas que se converte em frustração e desolação. Tais termos citados são de uma escola posterior chamada “Escola de Frankfurt”, mais especificamente por Theodor Adorno. A partir daqui seguimos na busca por corroborações de críticas construtivas na compreensão do funk da ostentação.

3. APARÊNCIA E ESPETÁCULO: O ESCLARECIMENTO NA MÚSICA E A CRÍTICA AO FUNK DA OSTENTAÇÃO COMO FETICHE DA INDÚSTRIA CULTURAL Um novo caminho se abre à afirmação da vida, uma vez que esta, nem sempre é favorecida como Nietzsche afirma, pela música. O estilo musical apresentado acima propõe um novo arquétipo de vivência pessoal e social. O funk da ostentação vem traçando um percurso que para muitas pessoas parece ser belo, de um „mundo‟ harmônico que não se deve cantar a pobreza, mas superá-la, ilusoriamente ou linguisticamente. A música é contraditória quando ostenta uma realidade, a qual muitos não conseguirão viver, ou melhor, possuir. Os indivíduos quando imersos nessa realidade não conseguem desobstruir a visão e vislumbrar um horizonte esclarecido, ou até mesmo, buscar uma emancipação racional. Tal esclarecimento orienta a ter um pensamento crítico de tudo e do todo. Perceber-se imerso no todo, porém, que nem sempre é fácil de compreender e entender tudo. São fatos antagônicos que colocam os homens em „xeque‟, pois os mesmos estão confusos, desorientados, e perdidos no meio da produção misteriosa da indústria cultural. Continuarão sonhando, mas vivendo na mesma tragédia.

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Segundo Theodor Adorno, dois pressupostos são necessários para que os homens não se percam: a inteligência e a emoção. Tais conceitos trabalhados por este filósofo agem no julgamento do que é certo e errado. A ação dos homens está intrinsecamente ligada a estes dois fatores citados, para que os mesmos ajam moralmente. Diferentemente, o filósofo Prussiano quer promover uma mudança radical da civilização, da moral, da razão. A razão tornou-se um mero instrumento, sem valor algum. O homem precisa desempenhar-se bem na vida e ser senhor daqueles que não tem capacidade para ter o poder nas mãos, ou que possuem a moral dos escravos. É uma vontade de potência que age no homem de forma instintiva. Depois, outra força humana interna, são as pulsões apolíneas e dionisíacas, as quais são dois mitos que circundam o homem, ora impondo regras, ora levando-os a embriaguez. O pensador de Frankfurt traça outro método que possa favorecer todas as pessoas, cujo conceito chave, é o esclarecimento. Na obra “Dialética do esclarecimento” (Dialektik der Aufklärung, 1981), de Adorno, juntamente com Horkheimer, discorre sobre este assunto como um caminho a ser percorrido no mundo contemporâneo. O funk da ostentação não alivia o peso trágico, mas causa um sofrimento interno de incapacidade de vida, também racional, por não obter tais acessórios. Assim, esclarecer para estes dois pensadores,

[...] significa que através da razão e dos aparatos a ela ligados, o homem pode ter maior domínio em vários âmbitos, tais como o domínio de classes sociais, o conhecimento lógico dando em novas explicações e novas descobertas, domínio do homem sobre a natureza, domínio ideológico da mídia sobre as massas etc. O esclarecimento do que é desconhecido, utilizando-se a razão, pode ser visto também como esclarecimento acerca do medo que emerge do desconhecido. Desse modo, o homem tenta, por um lado, explicar logicamente questões de vários campos [...]. (CARDOSO, 2012, p. 73)

Atualmente, o ritmo musical ostentativo é um atrativo para muitas pessoas, porém, estas não conseguem perceber que o fetiche está presente na música e pode negligenciar muitos valores humanos, em vista de um produto cultural. A música é uma manifestação imediata das pulsões internas, apaziguadora, mas pode colocar o indivíduo num patamar acima de suas forças e possibilidades. Deve-se assim focar na essência e no fundamento que entrelaça a vida e a arte, como fatores promotores autênticos da vida. (ADORNO, 1999). A música é um produto da indústria cultural, na qual os valores, pensamentos, intenções estão engendrados e nem sempre são claros. Pode ocorrer que um indivíduo ingênuo ou conscientemente está nesse meio e não compreende que no produto oferecido há uma ideologia mitológica e não emancipadora. O fato de gostar ou não da música não 10

interfere tanto no questionamento, mas, o critério está no reconhecimento deste sucesso como um meio que se torna o mesmo que o homem. Passa de um gosto pessoal para o comportamento, da razão para o sentimento, da razão à permanência no mito. Com isso,

[...] tal indivíduo já não consegue subtrair se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lhe oferece é tão semelhante ou idêntico que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo à situação concreta em que a música é ouvida. (ADORNO, 1999, p. 66)

Há uma fusão entre o titânico e o bárbaro, estes que embrutecem o ser humano e a realidade. Nietzsche percebe que o indivíduo “[...] submergiu no esquecimento de si dos estados dionisíacos e esquecem os preceitos apolíneos.” (NIETZSCHE, 2007, p. 45). As forças que eram antagônicas agora estão coesas, porém, a dionisíaca se eleva proporcionando o sonho desmedido. A arte dionisíaca que era para aliviar a dor, proporciona um sonho sofrido, uma mascara ante a realidade. São forças que imperam hoje. Uma sociedade que ao longo dos tempos cultivou o mito de Apolo, mas que incentiva, aparentemente, o mito de Dioniso. A arte que se transforma em realidade; de alegria em tragédia, de ilusão ao fato real. O jovem que vai ao espetáculo ostentativo ao voltar para a casa depara-se com a mesma realidade que sempre viveu. Advindo de um canto de exaltação à riqueza, percebe que a pobreza e a miséria, e a superficialidade cultural continuam a reger sua vida como uma orquestra harmoniosa. Para Nietzsche a subjetividade artística era mal, e a objetividade na produção artista era realmente arte, porém, isto acaba num vazio existencial, no qual a vida e a música partem de uma subjetividade ilusória e aparente, ofuscando a verdade. (NIETZSCHE, 2007) O pensamento Adorniano aponta o esclarecimento como uma forma de abertura à compreensão racional da música. Esta pode favorecer uma cultura fantasiosa e regressiva, permitindo a imposição do fetiche. Os efeitos são perceptíveis, quando a aparência e a imediaticidade são tão reais que o indivíduo não consegue mais pensar e “[...] apodera-se do que na realidade não passa de um objeto de mediação do próprio valor de troca [...]” (ADORNO, 1999, p. 78), o qual assume o valor de uso. O caráter fetichista da música tem um poder dissimulador, dado que o funk da ostentação cria uma imagem bela de mundo, cantada pelos MCs, mas é um produto subversivo da indústria cultural. Este novo ritmo mostra uma alegria musical coisificada, que

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parece „transcender‟ terrenamente o homem, mas o coloca na situação real, ou seja, a vida como é de fato e não mitológica. (ADORNO, 1999). Anacreonte, um poeta grego, que acreditando nos deuses mitológicos escreve sua poesia dizendo: “      ”

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, nesta, expressa

analogamente, o que a música, enquanto dionisíaca, pode causar. O interesse de Nietzsche é este, basta os sofrimentos da vida, vivamos „embriagados‟, no sonho perpétuo da mistura entre a música e o mito que,

[...] são de igual maneira expressão da capacidade dionisíaca de um povo e são inseparáveis. Ambos emanam de uma esfera da arte situada além do apolíneo; ambos transfiguram uma região de harmonias alegres em que deliciosamente se extingue a dissonância, bem como a horrível imagem de mundo; ambos brincam com o aguilhão do desgosto, confiando no poder infinito de suas artes mágicas; ambos justificam por esse jogo a existência do próprio „pior dos mundos‟. (NIETZSCHE, 2007, p. 171)

Assim, é de suma importância o esclarecimento nessa realidade supracitada. Quando o homem perceber-se numa corrente que o puxa para um abismo incontrolável, no qual a natureza dominou-o, ainda assim, será possível o retorno, porque a firmeza do „eu‟ superou a sensibilidade instintiva e precisou da razão. (BUCKINGHAM, BURNHAM, et al., 2011). A crítica ao pensamento Nietzschiano fundamenta-se no princípio do esclarecimento, no qual Adorno propõe um “[...] processo de racionalização em que o pensamento se distancia cada vez mais da natureza para dominá-la [...]” (FREITAS, 2009, p. 96), e não aproximar-se da natureza e ser dominado pela mesma. A necessidade do esclarecimento (Aufklärung) é primordial na cultura contemporânea, principalmente no funk da ostentação, dado que este não permite uma emancipação, ou de fato, a afirmação da vida, mas propicia uma aparente sofisticação alegre que muitos não podem desfrutar e, acima de tudo, é um fetiche musical que apresenta uma vida exuberante, mas que não passa de uma dissimulação ilusória de uma suposta superação da tragédia, gerando o fechamento ao uso da razão. A proposta do filósofo e músico Frankfurtiano faz nos pensar na importância da música, contudo, de uma música, que seja capaz de despojar-nos do fetichismo criado pela indústria cultural e proporcionar alegria, mas não uma vida ilusória e de aparências.

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Tradução: “Quando bebo vinho dormem as preocupações”. .

Anacreônticas

45.

Fonte:

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CONCLUSÃO

Considera-se que para Nietzsche a arte está intimamente ligada à afirmação da vida, ou seja, da tragédia. Tal realidade perpassa pelos mitos de Apolo e Dioniso, que está vinculada as pulsões internas de sonho e embriaguez. A arte, enquanto música coloca o homem numa esfera metafísica que expressa à profundidade do ser em conformidade com a natureza. Pela música, o homem identifica-se com seus sentimentos e valores reais, pois ela proporciona uma liberdade interior que o alivia de tudo aquilo que o asfixia. Nesta produção artística, busca-se um equilíbrio entre a aparência e a vida como ela é de fato, uma sustentação do poder humano, pois se superando o homem poderá estar acima dos outros e não permitir para si uma moral de escravos. Baseado na perspectiva filosófica Nietzschiana, o funk da ostentação ajuda o indivíduo a superar a tragédia, pois buscando uma vida que não cante a pobreza, nem a miséria, ele conseguirá suprir suas dores com a „encarnação‟ da música de exaltação em si. O contexto social, das pessoas que consentem com este estilo musical, muitas vezes é pobre e precário, porém, a alegria ostentativa da vida pode atribuir um êxtase dissimulador desta realidade, proporcionando a ilusão de uma tragédia sem dor. Quando o homem vai em direção do esclarecimento, percebe que não superou a tragédia e negligenciou a vida com valores efêmeros. De fato, na proposta de Nietzsche sobre a música, o funk da ostentação não ameniza a vida trágica, pelo contrário, faz com que o homem permaneça na mesma e não tenha esperança de mudança. Com isso, este ritmo musical, envolvente, é um fetiche da indústria cultual, termo aprofundado por Theodor Adorno, que exige de nós uma crítica construtiva e avaliadora, o qual também aponta como proposta o esclarecimento emancipador. O pensamento filosófico requer que sejamos audaciosos e perspicazes, promotores da vida real e não, aparente e ilusória. O esclarecimento abre um horizonte de possibilidades reais e de esperança, para que não só a emoção, mas com a razão, juntas orientem a vida para um caminho verdadeiro. Buscar a mudança é não querer permanecer no sonho da embriaguez, muito menos na dissimulação e na fuga da tragédia.

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