Música, Patriotismo e Sebastianismo: Espírito autonomista na música portuguesa sob reinado filipino

June 2, 2017 | Autor: N. Mendonça Raimundo | Categoria: Musicology, Historical Musicology, Villancicos, Sebastianismo, Iberian renaissance music
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Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa Mestrado em Ciências Musicais

Nuno de Mendonça Raimundo

Música, Patriotismo e Sebastianismo Espírito autonomista na música portuguesa sob reinado filipino

21 de Junho de 2015

ÍNDICE Introdução ....................................................................................................................................................... 2 1.

2.

3.

4.

Panorama cultural e musical em Portugal no período filipino 1.1.

Os Filipes e a cultura portuguesa .................................................................................................. 3

1.2.

A “idade de ouro” da polifonia portuguesa................................................................................... 3

As mensagens da Missa Filipina 2.1.

Manuel Cardoso e a política........................................................................................................... 5

2.2.

A Missa Filipina: conjecturas e realidades................................................................................... 7

Manifestações do espírito independentista 3.1.

Anticastelhanismo ........................................................................................................................ 10

3.2.

O sebastianismo como movimento religioso e político ............................................................. 11

3.3.

Anticastelhanismo e sebastianismo na literatura ......................................................................12

A música autonomista portuguesa 4.1.

Anticastelhanismo e sebastianismo nos vilancicos ....................................................................13

4.2.

Nos vilancicos de Santa Cruz de Coimbra, em Portugal ...........................................................14

4.3.

Nos vilancicos de Gaspar Fernandes ........................................................................................... 15

4.4.

Nos vilancicos de Filipe da Madre de Deus ............................................................................... 20

Conclusão ........................................................................................................................................................21 Bibliografia .................................................................................................................................................... 23

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Introdução Nem sempre é fácil abordar com isenção as épocas históricas em que estão em jogo valores tão profundos e simbólicos como a identidade nacional. Em diferentes épocas, consoante as ideologias em vigor, os acontecimentos históricos são tendencialmente interpretados à luz ora dessa corrente, ora da contracorrente, dando origem à «história de partido».1 Essa dificuldade verifica-se especialmente na historiografia portuguesa que trata o período da União Ibérica, ou do domínio filipino – denominações que contêm já em si todo um programa de intenções. No século XIX e início do XX este tema foi tratado com ardente nacionalismo, sendo amiúde classificado como época negra da história portuguesa. Depois, durante o período do Estado Novo, a história da Restauração foi usada como símbolo ideológico-político dos princípios nacionalistas, sociais e corporativistas do regime. Só mais perto do último quartel do século XX, com a consolidação de uma postura histórico-crítica, abordagens mais desinteressadas procuraram traçar um cenário mais objectivo. A verdade, porém, é que ainda actualmente existem facções entre os historiadores, sendo uns mais iberistas e outros mais tradicionalistas, o que os leva a salientar determinados acontecimentos e «linhas caracterizadoras», perpetuando, mais ou menos conscientemente, a ideologia que as definiu.2 Ao lidarmos com um aspecto particular desta história e desta historiografia, dentro do âmbito cultural, sobretudo quando o associamos a questões políticas, estamos conscientes de trilharmos terreno resvaladio, pelo que procuraremos sempre considerar as fontes com prudente distanciamento crítico e extrair delas as referências que mais alicerçadas estiverem em documentos com autoridade. O nosso trabalho vem precisamente explorar as relações entre a sociedade e a situação de perda de autonomia entre 1580 e 1640, para tentar compreender melhor o papel que a música desempenhou nessas relações. De facto, vários estudos tem havido sobre a oposição antifilipina e o espírito de autonomia na sociedade e na cultura literária, mas a questão tem sido pouco abordada no campo musical. Como se manifesta o sentimento antifilipino na música? Como se colocaram os compositores face a esta questão política, e como lidaram com ela? Que tipo de mensagem política ou sentimento autonomista transmitem através da sua música, e qual a importância desta na sua divulgação? Com este estudo procuraremos dar um contributo para uma discussão mais aprofundada destas questões, nomeadamente através da análise de alguns exemplos musicais concretos, devidamente enquadrados no contexto histórico e social da sua composição e dos seus autores. Nomeadamente, faremos uma síntese do que já foi escrito sobre a Missa Filipina de Manuel Cardoso e as suas diversas camadas de significado; e apresentaremos análises originais aos textos e à música de alguns vilancicos de Santa Cruz de Coimbra, de Gaspar Fernandes e de Filipe da Madre de Deus, com o intuito de destacar as mensagens de cariz patriótico e autonomista que neles transparecem.

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Luís Reis Torgal, «A Restauração», in Revista de História das Ideias, vol. 1, 1977, p. 23. Idem, p. 30.

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1.

Panorama cultural e musical em Portugal no período filipino

1.1. Os Filipes e a cultura portuguesa Ao tomar a coroa portuguesa, Filipe II de Espanha nunca teve intenção de reduzir Portugal a uma mera província submetida às vontades do governo central de Madrid. É conhecida, pelo contrário, a maneira como este rei manteve a autonomia de Portugal, tanto no comércio e na economia, como nas leis e no governo, como na cultura e na língua.3 De facto, longe de querer oprimir a cultura portuguesa, Filipe II teve pelo contrário um papel activo na sua preservação, quer através da manutenção do estatuto oficial da língua portuguesa, quer através do incentivo à publicação de obras literárias importantes, mesmo as que glorificavam Portugal e os seus feitos – deu impulso, por exemplo, à conclusão da edição das Décadas de João de Barros. A sua tolerância abrangia também manifestações mais abertamente reactivas ao domínio castelhano, tendo consentido a publicação e divulgação de diversas profecias sobre a restauração do reino, e não censurando os que se manifestavam com violência verbal contra a ocupação espanhola.4 No campo musical, Filipe II dotou a Capela Real portuguesa do seu primeiro regimento, em 1592, sistematizando finalmente, ao fim de dois séculos de existência desta instituição, uma série de práticas mantidas apenas por tradição oral; e fixou a sua composição em 24 cantores (6 por voz) e 5 instrumentistas,5 colocando-a ao nível das suas congéneres europeias.6 De resto, basta assinalar que houve pelo menos 486 publicações impressas durante o período filipino, contra 182 desde sempre até então, para demonstrar que os espanhóis não tinham particulares intenções de abafar a cultura portuguesa.7 Refira-se ainda que, daquelas quase cinco centenas, incluemse 36 edições de Camões,8 sendo 11 de Os Lusíadas,9 naturalmente a obra que mais perfeitamente exaltava as glórias dos Portugueses e a primeira a que recorriam os que estavam determinados em manter viva essa memória e identidade nacionais. Este clima de tolerância para com os valores e a cultura portuguesa terá ajudado, enquanto durou, à manutenção de uma certa estabilidade governativa, ao manter apaziguadas as camadas cultas e poderosas da sociedade.

1.2. A “idade de ouro” da polifonia portuguesa No campo musical, o período de domínio filipino corresponde à chamada “idade de ouro” da polifonia portuguesa.10 Não se pode dizer, no entanto, que haja uma relação de causalidade directa entre

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História de Portugal, 1933, pp. 239-240; A. Oliveira Marques, História de Portugal, 1974, p. 427. Hernâni Cidade, A literatura autonomista, 1950, pp. 50-51. 5 Michel’angelo Lambertini, «Portugal», in Encyclopédie de la musique et dictionnaire du conservatoire, 1920, p. 2416. 6 Hugo Porto, Os cantores na administração nos reinados de D. Manuel I e de D. João III, 2014, pp. 63-68. 7 Cidade, op. cit., p. 49. 8 Idem, ibidem. 9 Jacqueline Hermann, No reino do desejado, 1998, p. 184. 10 Manuel Carlos de Brito e Luísa Cymbron, História da Música Portuguesa, 1992, p. 83. 4

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uma coisa e outra. A música portuguesa sacra tinha vindo a conhecer um crescente desenvolvimento nos maiores centros de produção do país – a Sé de Évora e o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra – graças ao esforço dos cónegos destas instituições ao longo do último século no desenvolvimento da sua actividade musical relativamente independente das questões políticas. No caso de Évora, por exemplo, o grande apogeu da sua “escola de composição” terá sido atingido graças à acção pedagógica de Manuel Mendes (†1605), compositor e fundador da Escola de Évora, mestre de uma série de músicos que deveriam tornar-se nos maiores nomes da música pré-barroca portuguesa e alguns dos maiores a nível europeu: Filipe de Magalhães, Duarte Lobo e Manuel Cardoso.11 O primeiro (1571-1652), o preferido do seu mestre, publicaria o seu livro de missas e de cânticos à virgem em 1636; Lobo (c.1565-1646) seria louvado pelos seus contemporâneos como excelente compositor e teórico, tendo publicado as suas obras em Antuérpia, que tiveram ampla circulação na Europa e América Latina, e prosseguiu o trabalho de ensinamento do seu mestre; e Manuel Cardoso (1566-1650), mestre de capela do Convento do Carmo de Lisboa a maior parte da sua vida, levou a linguagem polifónica aos seus limites de expressividade, com uma ímpar emotividade transmitida por cromatismos e intervalos inusitados.12 Em Coimbra, pela mesma época, encontrava-se outro pólo de formação e produção musical de excelência: o mosteiro de agostinhos de Santa Cruz de Coimbra, onde não só se levavam aos padrões mais inovadores e exigentes o serviço e o ensino, desde pelo menos meados do século XVI, como se construíam os próprios instrumentos nele utilizados, e se procurava transmitir todo este conhecimento aos cenóbios dependentes da casa-mãe coimbrã. A «perfeição» do canto neste mosteiro era célebre, tendo sido considerado, segundo a crónica da Ordem, o melhor de toda a cristandade pelo bispo D. Jorge de Ataíde ao serviço de Filipe II.13

Assim podemos constatar que, tanto em Évora como em Coimbra, o apogeu da produção musical se deu após décadas de empreendimentos formativos, e que a concorrência temporal de uma idade de ouro da música portuguesa com o período de domínio filipino é, acima de tudo, uma coincidência. Em todo o caso, não haja dúvidas de que a união ibérica terá tido certamente alguma contribuição para a manutenção desse período de auge, ao facilitar o diálogo formativo e o intercâmbio de recursos humanos que já existia entre as instituições religiosas dos dois países, de que são exemplos ilustrativos os casos, entre outros, de Estêvão Lopes Morago (1575-1630), espanhol que estudou na Universidade de Évora e foi mestre de capela da Sé de Viseu; e de Estêvão de Brito (†1641), português que foi mestre de capela das catedrais de Badajoz e Málaga; ambos considerados nomes de topo na história da música portuguesa. Aliás, a Restauração e a animosidade que ela causou no campo

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Rui Vieira Nery e Paulo Ferreira de Castro, História da Música, 1991, p. 53. Idem, pp. 54-57. 13 Ernesto Pinho, Santa Cruz de Coimbra: centro de actividade musical nos séculos XVI e XVII, 1981, pp. 45-46. 12

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castelhano terá obrigado alguns músicos ao serviço das catedrais e da corte de Espanha a retornarem não premeditadamente ao seu país de origem, como aconteceu com os compositores Filipe da Madre de Deus e Filipe da Cruz.14 Tampouco houve da parte de Espanha, durante o período filipino, uma tentativa activa de coarctar a produção musical do país e, por outro lado, os compositores portugueses não tinham pruridos em dedicar-lhes as suas obras: Filipe de Magalhães homenageia Filipe III de Espanha com o seu livro de missas; Manuel Rodrigues Coelho faz o mesmo em 1620 com as suas Flores de Música; Manuel Cardoso, que se desloca por sua iniciativa à corte de Madrid, em 1631, é recebido com todas as honrarias por Filipe IV, que para além de o convidar a dirigir a capela real espanhola aquando da sua estadia, lhe oferece o dinheiro para a viagem de regresso.15 Certamente agradado com o tratamento que obtivera por parte do rei, Cardoso dedica-lhe o seu terceiro livro de missas, publicado cinco anos depois da visita, e na qual inclui uma missa de homenagem ao mesmo, de que trataremos mais aprofundadamente no capítulo seguinte.

2. As mensagens da Missa Filipina 2.1. Manuel Cardoso e a política Manuel Cardoso é uma figura incontornável da história da música e da cultura portuguesas. Compositor de excelência precocemente manifesta, teria cerca de 23 anos quando assumiu a regência dos músicos da Sé de Évora na ausência do mestre de capela Cosme Delgado. Cedo lidou com as questões políticas e nomeadamente com a crise na sucessão dinástica. De facto, a Sé de Évora estava ligada ao movimento independentista de D. António, Prior do Crato: o deão da sé juntou-se a este em Santarém após a batalha de Alcântara, e Cosme Delgado foi preso em Lisboa, por um período entre 1584 e 1585, pela sua actividade antifilipina, sancionada pela sé visto que continuou a receber os seus honorários durante a detenção.16 Em 1588, ano em que Cardoso é admitido no convento do Carmo, em Lisboa, há nessa instituição uma inspecção devido a suspeitas de actividades anticastelhanistas, nomeadamente de que os frades hospedariam entre os seus muros um capitão fiel ao Prior do Crato, juntamente com o seu arsenal. Oficialmente, a vistoria não deu por nada, mas o convento, para não avivar rumores, suspendeu as romarias ao túmulo de D. Nuno Álvares Pereira que nessa altura eram frequentes.17 É evidente, portanto, que Cardoso não passou ao lado do clima de tensão política que se vivia nessa altura no país e, com a sua formação na sé de Évora e a sua tomada de hábito num convento sob égide de Nuno Álvares Pereira, não é inverosímil presumir que Cardoso tomava um partido na

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Robert Stevenson (ed), Vilancicos Portugueses, 1976, pp. XXIX-XXX. José Augusto Alegria, Frei Manuel Cardoso, compositor português, 1983, p. 58. 16 Idem, pp. 17-18. 17 Idem, p. 22. 15

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contenda, ainda que o seu dever de austeridade e dedicação ao culto divino o impedisse de o expressar mais activamente. Ainda assim, em 1613, Cardoso não se coibiu de dedicar o seu primeiro livro de composições ao condestável, «a quem se refere em termos repassados de admiração a um tempo religiosa e patriótica»;18 e em 1625, para além de deixar clara a sua nacionalidade no frontispício, dedica o primeiro livro de missas a D. João da Casa de Bragança, candidato preferido ao trono português, na altura com 21 anos. Desde cedo, aliás, Cardoso manteve boas relações com a Casa de Bragança, e nomeadamente com o futuro rei D. João IV (Cardoso era carmelita, ordem religiosa fundada por Nuno Álvares Pereira, igualmente fundador da Casa de Bragança). O compositor deslocou-se mais do que uma vez a Vila Viçosa e o Duque de Bragança acompanhava a elaboração das suas missas, sugerindo-lhe temas19. Cardoso dedicou três dos cinco livros de música a D. João; este, já rei, mandou fazer o retrato de Manuel Cardoso, em vida, para colocar na sua Livraria de Música. Por estes factos pode dizer-se que os dois homens mantinham uma relação próxima, possivelmente de amizade, colocando alguns a hipótese de que tenha sido Cardoso o professor de música do futuro monarca.20 Face a estes dados, é plausível avançar a hipótese de que Cardoso, se procurou de alguma maneira expressar a sua dedicação à causa autonomista através dos prefácios às suas publicações musicais, tê-lo-ia também feito através da sua música. O P.e José Augusto Alegria explorou esta linha, tendo sugerido que Cardoso poderia ter escolhido as antífonas que serviram de base às suas missas pelo segundo sentido que tomariam no contexto do domínio filipino. Assim, segundo o cónego musicólogo, a missa Puer qui natus est referir-se-ia ao primogénito de D. Teodósio II; Hic est discipulus ille, como referência a S. João, seria uma alusão a D. João; Tradent enim vos um aviso à perfídia castelhana; e até Miserere mihi Domine poderia ser vista como «invocação feita a Deus para cobrir todo um Povo que se sente diminuído por lhe faltar o Rei natural.» Não havendo documento que sugira mais seguramente esta intenção de Cardoso, estas conjecturas não poderão passar de especulações, certamente curiosas mas praticamente impossíveis de fundamentar, posto que se pode estabelecer em qualquer frase suficientemente vaga ligações artificiais com o que se desejar.21 Mas o facto de Cardoso continuar a expressar os seus laços com a casa de Bragança (o segundo livro de missas, de 1636, é dedicado novamente a D. João) não deixa dúvidas sobre onde, havendo-a, se encontrava a sua preferência política. E, de facto, no seu último livro de música publicado, o Livro de motetes (1648), já com a autonomia portuguesa restaurada, Manuel Cardoso manifesta o seu contentamento por poder dedicá-

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Idem, pp. 22 e 39. Idem, p. 42. 20 Nery e Castro, op. cit., p. 55. Esta possibilidade é rejeitada por Alegria (op. cit., p. 50). 21 Se até Miserere mihi Domine pode ser um apelo pela libertação de Portugal, também as restantes missas do primeiro livro de Cardoso podem ter interpretações históricas: Tui sunt caeli et tua est terra pode ser uma maneira de dizer a D João que tanto as terras de Portugal como o céu sobre elas lhe pertencem; e até Veni sponsa Christi pode configurar um chamamento a uma potencial noiva do duque. Serve este exercício apenas para relativizar os alvitres de Augusto Alegria e mostrar como somos facilmente levados a descobrir significados que à partida já queremos descobrir. 19

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-lo a D. João IV numa altura em que este «vai desterrando as espessas trevas, que por espaço de sessenta anos tanto tinham escurecido a glória desta sua monarquia lusitana.»22 Contudo, como já referimos, o terceiro livro de missas, publicado uma década antes (1636) não foi dedicado a D. João, mas a Filipe IV de Espanha, sendo que nesse livro está incluída uma missa dedicada ao mesmo monarca – a chamada Missa Filipina, que ao longo de toda a sua extensão invoca o nome do rei. Como se poderá explicar este aparente interregno na causa autonomista de Cardoso?

2.2. A Missa Filipina: conjecturas e realidades Quando passou por Madrid, em 1631, Cardoso conheceu o mestre da Capela Real de Espanha, Mateus Romero, que lhe lançou um desafio: a composição de uma missa em louvor a Filipe IV, nos moldes do que Josquin des Près já tinha feito com o seu patrono Hércules I de Este, e Philippe Rogier com Filipe II de Espanha.23 Cardoso aceitou. Assim foi composta a Missa Filipina, publicada em 1636 e dedicada ao monarca espanhol, que tem a particularidade de ter sido composta sobre um cantus firmus que consiste num pequeno motivo melódico com o texto «Philippus Quartus». Este motivo é repetido ad nauseam ao longo de toda a missa – noventa e duas vezes, mais concretamente, por vezes na sua forma inversa ou retrógrada – revezando-se as quatro vozes na sua execução (mas nunca cantado por duas vozes em simultâneo). À primeira vista, a obra pode parecer um infame acto de bajulação ao monarca espanhol, surpreendente tanto mais dadas as relações de Cardoso com a família de Bragança – foi essa, por exemplo, a interpretação de Ernesto Vieira.24 É necessário ter em conta, no entanto, o objectivo da viagem que o compositor empreendeu em 1631: fazer uso da reputação e respeitabilidade que granjeara para apelar ao rei que concedesse o cargo de desembargador ao seu irmão, que a ele aspirava. Pelo irmão, Cardoso estaria pronto a suspender as suas convicções patrióticas e mostrar o respeito devido por quem tinha o destino dele em seu poder. Para além disso, se é desafiado a provar as suas capacidades de composição, essa é a sua obrigação como compositor com uma reputação a manter. Acusar Cardoso de “jogar nas duas equipas” é fácil, mas a verdade é que ele não se deslocou a Madrid por interesses próprios, senão por apoio fraterno – e, a partir daí, todas as formalidades perante o monarca castelhano se impunham. Não seria só a vida profissional e o prestígio de Cardoso que estaria em risco se ele decidisse ostentar o seu espírito autonomista, mas a carreira do próprio irmão. De resto, a viagem de Cardoso foi bem-sucedida; Filipe IV concedeu o cargo ao irmão e deste modo se compreende que, em sinal de gratidão, patriotismos à parte, Cardoso lhe tenha dedicado o seu terceiro livro de missas.

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Manuel Cardoso, apud Alegria, op. cit., p. 78. José Pedrosa Cardoso, «A Missa Filipina de Fr. Manuel Cardoso», in Revista Portuguesa de Musicologia, vol. 1, 1991, pp. 93-194. 24 Idem, p. 198. 23

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Se a sua atitude pragmática é perfeitamente justificável a esta luz, então ainda mais compreensível foi a opção de Cardoso quando sabemos que nem sequer partiu dele a iniciativa de homenagear o monarca espanhol com uma missa; ele limitou-se a executar o programa que lhe foi proposto da melhor maneira que pôde. Foi muito provavelmente um exercício de técnica, um desafio a si próprio, muito mais do que uma obra composta por gratidão ao rei.25 Em todo o caso, ainda que justificáveis de um ponto de vista realista, os extremos a que Cardoso leva a verve laudatória fazem na verdade desconfiar se o carmelita não terá até aproveitado para deixar uma mensagem velada contra o soberano. Pedrosa Cardoso, referindo-se a uma observação já feita por Ernesto Vieira, nota que a repetição incessante do nome «Philippus Quartus» em simultâneo com o texto litúrgico implica, necessariamente, que se concretizem algumas «relações músico-textuais ostensivamente heréticas.»26 Veja-se o exemplo 1: «[Gloria in excelsis Deo,] Philippus Quartus»; «[Credo in unum Deum,] Pater omnipotentem Philippus Quartus»; «Sanctus Philippus Quartus». A tradição mandava interromper o uso do cantus firmus em algumas destas partes,27 mas Cardoso não se coibiu de agir ao arrepio dessa prática. Terá sido propositada a vontade de ver o público agravado pela divinização de um homem através da profana justaposição do texto sagrado com o nome do rei?

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Para Alegria, Cardoso «limitou-se por mero condicionalismo ocasional a aceitar uma encomenda na qual se jogava o prestígio artístico dum português na Corte de Madrid» (Alegria, op. cit., p. 71). 26 Pedrosa Cardoso, op. cit., p. 196. 27 Idem, ibidem.

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Exemplo 1. Primeiros compassos do Gloria, Credo e Sanctus da Missa Filipina28

Esta eventual intenção de levar ao exagero a adulação até que ela se torne irónica e ofensiva pode talvez ser confirmada pela mensagem oculta que Cardoso deixou na última parte da sua obra, o Agnus Dei II. Esta é a única parte da missa em que não é cantado o texto «Philippus Quartus», sendo substituído por um versículo adaptado do Evangelho segundo São João: «Ostende nobis patrem; Philippe qui videt me, videt et patrem». Refere-se a uma passagem em que São Filipe pede a Jesus que mostre o Pai aos apóstolos, ao que Cristo responde «Tanto tempore vobiscum sum, et non cognovistis me? Philippe, qui videt me, videt et Patrem», isto é, «Há tanto tempo que estou convosco e ainda não me reconheces? Filipe, quem me vê a mim, vê também o Pai» (João 14:9). O significado oculto deste versículo só estaria ao alcance de alguns, mas a verdade é que, como Alegria esclarece, esta frase foi proferida num sermão de uma missa no dia de S. Filipe, em Évora, perante o rei Filipe II. O facto de ter sido o orago do rei a proferir esta frase era a parábola perfeita para ser usada num sermão, em que os clérigos tanto gostavam de associar eventos mundanos aos episódios dos santos com o mesmo nome (veremos mais adiante como a mesma estratégia é usada para difundir a mensagem sebastianista). Mas ainda mais elucidativo é o sermão dado por Fr. Luís de Sá em Coimbra, quinze dias após a restauração da independência, que, mais uma vez citando a mesma passagem, fala sobre como aos Filipes tanto tempo tiveram e não viram nem em Teodósio nem em João «o Pai», ou seja, a ascendência que os legitimava como sucessores do trono português29. Para rematar o simbolismo, trata-se de uma frase no evangelho de São João. Se a pretensão de ver uma acometida patriótica na inclusão deste verseto não contasse com mais nenhuma pista, talvez ela fosse demasiado especulativa; face a estes documentos históricos, fica dissipada qualquer dúvida que pudesse haver da intenção de Cardoso em deixar pelo menos uma mensagem política oculta nesta obra. Podemos portanto constatar que o carmelita não só soube estar à altura das expectativas e consolidar o seu nome como compositor de grande mestria, ao dar impecável cumprimento ao desafio de Romero, como soube ainda reverter o seu significado aparente, transformando um pedido que o

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in Cardoso, Liber tertius missarum, 1973, pp. 183, 186, e 192. Alegria, op. cit., pp. 73-74.

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obrigava a bajular o nome de Filipe IV numa expressão de autonomismo subtil e velada, que passaria ao lado da corte espanhola e seria apenas compreendida em Portugal e por quem a deveria compreender, que a sua lealdade continuava com o duque de Bragança e com a causa autonomista. Ainda assim, talvez para que não fosse injustamente acusado de jogo duplo no futuro, Cardoso escreveu, depois de 1640, uma missa intitulada Joannes Quartus Portugaliae Rex30 que, a nove vozes, provavelmente excederia a breve Missa Filipina em pompa, majestade e grandeza. Infelizmente, não o podemos saber com certeza, pois esta perdeu-se com o terramoto de 1755.

3. Manifestações do espírito independentista 3.1. Anticastelhanismo O anticastelhanismo não era um sentimento novo em 1580, mas nessa época manifestava-se quase exclusivamente entre as classes baixas da sociedade. Efectivamente, no seio da corte e da academia, no período anterior à crise de sucessão dinástica, assistia-se a uma corrente de castelhanização que determinava toda a vida e produção culturais, artísticas e científicas. De facto, o bilinguismo estabelecera-se na corte desde o último quartel do século XV, sendo o castelhano a língua preferida para a poesia;31 e os académicos procuravam o prestígio da Universidade de Salamanca em detrimento da de Coimbra.32 Num primeiro instante, ao ver-se sem rei natural e sob a alçada da coroa do reino vizinho, o anticastelhanismo popular foi crescendo33 e até o adjectivo «castelhano» passou a ser sinónimo de “vil, pérfido”. Sabemos que este sentimento existia porque os partidários do domínio espanhol o mencionaram algumas vezes: um deles tinha receio de ser conhecido como «castelhano», «a maior infâmia que pode ter um fidalgo português» e Cristóvão de Moura refere o «natural e envelhecido ódio que o povo tem para com Castelhanos.»34 Ainda assim, os primeiros anos de dependência da coroa espanhola terão sido bem aceites, de uma maneira geral, e mantiveram os sentimentos anticastelhanistas relativamente apaziguados, graças às garantias de autonomia que Filipe II concedera ao reino e à visível estabilidade que a sua administração veio trazer a um país até então sujeito a alguns actos de governação irreflectidos.35 Também o clero, acomodado, não se mostrou particularmente descontente com a nova ordem política.36 Algumas excepções se encontravam em algumas altas figuras que se assumiam claramente

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Cardoso, op. cit., 1973, p. X. Marques, p. 437. 32 Cidade, op. cit., p. 26. 33 Hernâni Cidade fala em «anti-castelhanismo visceral» (idem, p. 42). 34 Idem, pp 42-43. 35 Marques, pp. 427-428. 36 Cidade, op. cit., p. 43. 31

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antifilipinas – por exemplo, o deão da Sé de Évora que, como já vimos, era partidário do Prior do Crato. Porém, ao confiar a regência do reino aos bispos e arcebispos das principais cidades do país, Espanha assegurou um apoio generalizado do clero português, pelo menos até 1617. A partir daí, cessaram as nomeações portuguesas, despertando finalmente sentimentos de insatisfação e descontentamento no clero.37 Nos anos seguintes, diversos eventos de conflitualidade e crescente animosidade entre o governo filipino e os grupos religiosos fizeram crescer um sentimento de revolta também nas camadas mais baixas do clero, particularmente nas ordens jesuíta e dominicana, que passaram a apoiar as revoltas populares contra a ocupação castelhana.38 De igual modo, numa primeira fase, grande parte dos membros da nobreza, incluindo os duques de Bragança, ao verem mantidos, ou substituídos por outros de igual valor, os seus privilégios, cargos e regalias, não sentiram propriamente um chamamento patriótico. Aliás, como vimos, Filipe II foi simultaneamente um estratega sagaz e um protector da autonomia portuguesa, sabendo que ao manter os privilégios dos nobres e mantendo-os em cargos de poder sobre a administração política e económica do reino, mantinha o reino português sob seu domínio. Todavia, com a morte d’O Prudente, iniciou-se um processo progressivo de castração da autonomia portuguesa com o objectivo de incorporar o país definitivamente no reino espanhol.39 A nobreza, ao ver desta feita os seus privilégios cada vez mais limitados, começou a mostrar genuíno descontentamento e aos poucos foi-se juntando ao povo e ao clero no seu anticastelhanismo e desejo de autonomia. Sucessivas decisões políticas em desfavor de Portugal e da manutenção do seu território ultramarino levaram ao recrudescimento do ódio contra o domínio filipino40. Na década de 30, já os nobres estavam assumidamente do lado independentista, começando a preparar planos de sublevação e deposição do governo espanhol.41

3.2. O sebastianismo como movimento religioso e político O sebastianismo foi a forma que tomou uma crença, inicialmente de origem popular e burguesa, na vinda de uma figura que salvaria Portugal da opressão, o chamado Encoberto, que teve origem nas Trovas que Gonçalo Anes, dito «o Bandarra», escrevera por volta de 1530. Os sebastianistas identificaram D. Sebastião com esse lendário Encoberto, recusando a sua morte na batalha de Alcácer Quibir e crendo que haveria de regressar para libertar os Portugueses do jugo espanhol. O sebastianismo assentou igualmente numa profecia sobre o rei D. Afonso Henriques, surgida no século XV mas sistematizada no século XVII, segundo a qual Cristo teria aparecido em sonhos ao fundador do reino antes da batalha de Ourique, assegurando-lhe de que o país que estava prestes a

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História de Portugal, 1933, p. 266. Cidade, op. cit., pp. 173-176. 39 História de Portugal, 1933, p. 263. 40 Idem, p. 265. 41 Idem, p. 278. 38

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fundar seria o país de eleição de Deus, e o seu povo seria o seu povo escolhido para difundir a fé cristã pelo mundo.42 De facto, um dos aspectos caracterizadores do sebastianismo é a crença no povo português como “povo eleito”, com uma missão de evangelização confiada por Deus, o que levará, nas manifestações culturais desta convicção, à frequente associação de figuras bíblicas a figuras do sebastianismo. Juntavam-se, assim, duas referências que mimetizavam as crenças judaicas e inserem esta crença numa linhagem messiânica: a ideia do povo eleito de Deus, oprimido pelos gentios, e a figura do Messias – neste caso, o Encoberto – que viria salvá-lo dessa opressão para que pudesse cumprir a sua missão divina. O domínio filipino teria sido um mal necessário para que a profecia se cumprisse. A crença sebastianista, com este cariz altamente místico e religioso, foi-se disseminando ao longo do período filipino por todo o país e territórios coloniais, e de tal maneira ganhou presença que alguns acontecimentos banais começaram a ser vistos como sinais do cumprimento da profecia e as interpretações oportunas brotavam dos mais inusitados domínios. Uma simples convicção religiosa de alguns tornara-se numa corrente ideológica e política a nível nacional, o que ao mesmo tempo nos mostra como o sentimento antifilipino era comum a todo o território português.43 Para dar corpo político concreto ao sebastianismo, apenas foi necessário substituir D. Sebastião como Encoberto por uma figura viva e que realisticamente tivesse probabilidades de tomar o trono português: D. João, duque de Bragança, neto de D.ª Catarina de Bragança que, em 1580, tentara sem sucesso fazer valer os seus direitos sobre o trono contra Filipe II de Espanha.44 Um dos mais hábeis artesãos da retórica sebastianista foi o P.e António Vieira, simultaneamente o principal responsável pela divulgação da crença no Brasil. Num dos seus sermões, perto da Bahia, em 1634, Vieira usou a figura de São Sebastião para se referir ao rei D. Sebastião, estabelecendo uma associação directa entre o santo e o Encoberto («Ó divino bem-aventurado! Ó divino encoberto!»).45 Mais tarde, já depois da Restauração, Vieira volta a recorrer a uma parábola de referência bíblica, traçando uma analogia entre a perda e restauração da independência de Portugal, e a morte e ressurreição de Cristo, identificando D. João IV como o Encoberto e comparando-o a Jesus ressuscitado, no sentido em que ambos, antes de se revelarem, andavam entre os homens sem serem reconhecidos.46 3.3. Anticastelhanismo e sebastianismo na literatura Os sentimentos anticastelhanistas e sebastianistas transparecem intensamente na literatura da época, oral, manuscrita e impressa, nos mais variados géneros – incluindo poemas épicos, textos historiográficos, estudos teológicos, sátiras clandestinas, romances, entre outros.47

42

Cidade, op. cit., pp. 162-165. Idem, pp. 251-257. 44 História de Portugal, 1933, p. 273. 45 Cidade, op. cit., pp. 267-268. 46 Idem, pp. 275-281. 47 Idem, pp. 57-160; António José Saraiva, História da literatura portuguesa, 1973, p. 483). 43

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Uma das características mais evidentes nesta literatura autonomista é o uso predominante da língua portuguesa, numa altura em que, como já referimos, o idioma poético de eleição era o castelhano. No contexto de bilinguismo da cultura nacional, a rejeição do castelhano não pode ser vista senão como mais uma declaração de lealdade à pátria e nomeadamente a uma independência cultural. E mesmo num caso raro de um poema épico de louvor às glórias portuguesas escrito na língua de Cervantes (España libertada, 1618, de Bernarda Ferreira de Lacerda), a sua autora sente necessidade de pedir perdão e justificar-se, alegando que se escreve em espanhol é para que a sua mensagem chegue mais longe e a mais gente.48 Frequentemente, os textos líricos recorrem à história partilhada das duas nações para destacar os confrontos em que Portugal saiu vitorioso e para fazer passar as suas mensagens anticastelhanistas pela voz de figuras históricas, como por exemplo o condestável D. Nuno Álvares Pereira, não só general de Aljubarrota como fundador da Casa de Bragança.49 Também a historiografia, sem pretensões de isenção e recorrendo até ao sobrenatural, transparecia as mesmas convicções e era «escrita para alimentar o mesmo orgulho.»50 Ao mesmo tempo, esforços eram empreendidos para generalizar a ideia de que D. João IV era o natural sucessor ao trono de Portugal: houve mesmo quem ousasse acrescentar ao poema d’Os Lusíadas estrofes laudatórias das conquistas dos duques de Vila Viçosa, na tentativa de dotar as mensagens pró-joaninas da autoridade literária de Luís de Camões.51 Toda esta literatura procurava, quando não apelar a uma mobilização activa, pelo menos manter vivo na sociedade portuguesa um sentimento de identidade nacional, de superioridade do povo português em relação ao espanhol e, consequentemente, um descontentamento com a situação política de se ver governado por um povo em todos os aspectos inferior, plantando «sementes de espírito revolucionário»52 com a esperança que frutificassem no futuro.

4. A música autonomista portuguesa 4.1. Anticastelhanismo e sebastianismo nos vilancicos Ainda que a cultura e, em especial, a música, como vimos, não tenha sofrido particularmente com a mudança de coroa, os sentimentos anticastelhanistas e sebastianistas vão manifestar-se com significativa frequência e vigor neste meio. Se na música sacra e solene de Cardoso as manifestações patrióticas e autonomistas, cuja existência real se pode fundamentar convincentemente, se revelam ainda assim dissimuladas, o vilancico assumir-se-á, no século XVII, como o meio privilegiado para veicular estes sentimentos com

48

Cidade, op. cit., pp. 59-60. Idem, p. 75. 50 Idem, p. 86. 51 Idem, pp. 239-242. 52 Idem, p. 75. 49

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a maior eficácia possível. De facto, o vilancico tinha características fundamentais que lhe permitiam atacar os costumes instalados com relativa impunidade – sobretudo pelo seu carácter teatral, onde contracenam personagens-tipo – frequentemente, entre outros, «um português» e «um espanhol»; pelo seu tom festivo e bem-humorado, que permite “dizer as verdades” por trás do entretenimento; e pela sua natureza religiosa que se apropria dos mais inventivos estratagemas da retórica litúrgica, a de estabelecer parábolas e paralelismos, mais ou menos evidentes consoante os casos, entre as figuras do texto sagrado cristão e as figuras do misticismo sebastianista, que eram políticos da época.

4.2. Nos vilancicos de Santa Cruz de Coimbra, em Portugal Os vilancicos do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra contêm várias referências que são reveladoras da rivalidade entre Portugal e Espanha, que se prolongou para além de 1640, ao mesmo tempo que alimenta a ideia de o povo português ser descendente de Jesus Cristo, que partilharia a mesma nacionalidade. Um exemplo que podemos citar é o do vilancico Ola hau quien está ahy, de 1648, em que um português e um castelhano quase chegam a um confronto físico porque este não quer aceitar que o menino Jesus é português:

[CASTELHANO] [NEGRO] [CASTELHANO] [NEGRO] [PORTUGUÊS] [CASTELHANO] [PORTUGUÊS]

[…] Andad moreno dahi que no es de buestra pelle. Nem [castellano]53 sár elle. Pués quien es? Sár portugués. Daquilo não duvideis, castellano, que assim hé. No hay tal, ni tal se cré. Pois crede ou levareis. […] falar milhor nos comecem, qu’elle naceo en Belem aonde se poem o sol. […]54

Estamos aqui, portanto, perante um reforçar da crença na portugalidade de Jesus Cristo, e na crença do povo português como o seu povo protegido. Para argumentar, o português lembra ao castelhano que o menino nasceu em Belém «onde se põe o sol», fazendo clara referência à localidade de Belém (hoje freguesia de Belém, em Lisboa).

53

A transcrição de Jorge Matta refere “castaño”, o que não faz sentido neste contexto. O espanhol afasta o negro porque o menino Jesus não é «da pele dele»; ora, não faz sentido que o negro responda, contra si próprio, «nem castanho será ele», mas sim, naturalmente, «nem castelhano será ele» – ao que o espanhol retorque «pois então quem é (de onde é)?» e o negro finalmente exclama «Sár portugues» (“será/é português!”). Nem de um ponto de vista métrico a palavra «castanho» tem sentido: tornaria este verso num hexassílabo, enquanto todos os outros são heptassílabos. Tudo isto é de resto confirmado pelo próprio texto musical: a frase melódica que o negro canta, em solo, tem oito notas, exactamente as mesmas sílabas que «nem cas-te-lla-no sár ell’», ao passo que o verso com «castanho» obriga à repetição de uma das sílabas para encaixar a frase na música (cf. Jorge Matta, Manuscrito 50, 2008, p. 52). 54 Idem, pp. 48-56.

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Um outro vilancico, neste caso sem festejo associado e infelizmente sem data, conta a história de São João, a «águia divina», que voa em direcção ao sol – a Deus – enquanto a alvorada o tenta impedir para continuar a ser estrela: Hay una aquila divina, pisa la region del cielo […] ni los peligros rezela de tan alto atrevimiento; No, qu’es de Juan el intento y es Dios el sol a quien buela. O que bien buela Juan, Y en las alas del sol se aserca, Qu’hurtar os quiere el alba los rayos negros para quedars’estrella.55

Ainda que seja frequente, como já vimos, a associação de figuras políticas concretas aos santos homónimos, a ligação contém sempre uma elevada dose de especulação quando não acompanhada de outros indícios. No entanto, a referência à alvorada como antítese do sol não é única, e encontrá-la-emos novamente no vilancico de Madre de Deus que analisamos adiante (cf. §4.4): Não choreis, meu belo mano, Não choreis meu bem, calai, Que o chorar não é do sol Deixai a aurora chorar.

Nesse vilancico, o sol refere-se ao menino Jesus, por sua vez representação do rei D. João IV. A aurora é aqui representada como a estrela oposta ao sol – é ela que deve chorar, e não o sol. Se o sol é o rei português, a aurora representaria o poderio espanhol. A esta luz, é mais plausível ver no vilancico crúzio uma referência a D. João IV, qual águia de São João, alcançando o sol – o trono de Portugal, o país eleito de Deus – enquanto Espanha – simbolizada pela aurora – o tenta impedir, para que possa continuar a ser a principal estrela do céu, protagonismo que perderá face à superior glória do astro-rei. Correndo o risco de entrar novamente no campo especulativo, podemos até interrogar-nos se este paralelismo entre Espanha e a aurora («el alba») não será mesmo uma alusão ao duque de Alba, que foi vice-rei de Portugal ao serviço de Filipe II, e que se teria assim convertido, através da sua designação nobiliárquica, no símbolo do jugo espanhol.

4.3. Nos vilancicos de Gaspar Fernandes Os vilancicos de Gaspar Fernandes (1566-1629), compositor português emigrado em Puebla, no México, são férteis em referências a Portugal, por vezes associadas a um vigoroso anticastelhanismo, demonstrando com invulgar clareza o seu sentimento patriótico. Como veremos, o compositor levou 55

Idem, pp. 121-125.

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consigo um forte misticismo sebastianista até às Américas onde, longe dos peninsulares, pôde expressar com bastante liberdade o seu espírito autonómico através da sua música, de uma maneira invulgarmente inequívoca e eloquente. Fernandes compôs um significativo número de vilancicos em língua portuguesa56, que pela maior parte contêm uma mensagem messiânica ou sebastianista em relação aos Portugueses e a Portugal. De facto, as personagens portuguesas dos seus vilancicos apresentam-se frequentemente com grande fervor patriótico, enaltecendo e defendendo a nacionalidade portuguesa de Jesus, não raras vezes contra castelhanos, retratados como usurpadores e falsos cristãos57. Analisemos alguns exemplos dos seus vilancicos onde se podem observar mais claramente estas características.

O anticastelhanismo expressa-se com algum vigor no vilancico de Corpo de Deus Não deixeis correr o pão (1611), em que Fernandes exorta a que não se dê a hóstia sagrada aos Castelhanos, acusados de serem judeus que «querem mal a Deus»: Não deixeis correr ho Pão donde esta Corpo de Deus a estes Castelhãos judeus, olhay que se afogarão. A noso Pão çelestial guarday destes Castelhãos que como judeus marrãos queron a Deus muyto mal.58

A inimizade para com o povo vizinho manifesta-se também no vilancico de Natal O minino que Deus es (1611), que festeja o nascimento do menino Jesus em Lisboa, entre os portugueses, “facto” apregoado com grande jactância perante os espanhóis: O minino que Deus es oje naçeo en Lisboa; ele sera coysa boa pois he fino portugues. “Verbum caro factum es” o çeos dizen en sua loa; ele sera coysa boa pois he fino portugues.

56

Stevenson, op. cit., p. XXV. Sobre estes vilancicos, diz Omar Abril: «Los villancicos “en portugués” pintan a los lusitanos como personas vanidosas y excesivamente orgullosas de su nación, costumbres y talento musical, que desprecian a los castellanos y llegan a asociar eventos y personajes bíblicos con su tierra natal […]. La aversión hacia los españoles puede llegar a ser muy incisiva, acusándolos de judíos que no merecen el Cuerpo de Dios» (Omar Morales Abril, «Villancicos de remedo en Nueva España», in Humor, pericia y devoción: villancicos en la Nueva España, 2013, pp. 25-26). A formulação de Abril («…pintan a los lusitanos…») deixa implícito que, na opinião do autor, o «excessivo orgulho» nacionalista destes textos é uma simples representação na figura e discurso da personagem-tipo d’“o português”, dando a entender que pode não traduzir o sentimento de Fernandes. No entanto, nos vilancicos Botay fora e Pois con tanta graça, por exemplo, não há diálogo entre personagens; é sim a voz do compositor que profere o discurso patriótico e sebastianista. 58 Idem, p. 26. 57

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[…] Coplas Olhay, olhay, Castelaõs, não cuideis que he zombaria, que oje naçeo de Maria Deus entre nossos irmãos.59

Ao reclamar para Lisboa o local de nascimento do menino Jesus – reivindicação que já tínhamos visto, aliás, no primeiro vilancico de Santa Cruz de Coimbra que apresentámos – Gaspar Fernandes reforça a teoria de que os Portugueses são o povo eleito de Deus e da cristandade. Nesse mesmo sentido, no vilancico Botay fora (1615), Fernandes exalta as qualidades dos músicos portugueses (onde ele se incluiria, naturalmente), os únicos que considera mandatados para cantar ao menino Jesus – se os Portugueses são o “povo eleito”, então naturalmente os «músicos de Deus têm de ser de Portugal» – com prioridade até sobre os anjos. Cada estribilho termina com um plangente «Ay Portugal!», que parece um lamento pela situação política do país, e em que todas as vozes se detêm numa nota longa para suspirar («Ay») e prosseguem lentamente, em perfeita e total homofonia e a uma nota por sílaba, a entoar o nome da pátria de Fernandes, em tom de louvor do divino, técnicas compositivas que nos motetes correspondiam habitualmente à menção de Jesus Cristo (ver exemplo 2).

Botay fora do portal, pastores não canteis vos, que os musicos de Deus tem de ser de Portugal Ay Portugal! Coplas […] Fasey mi niño calarvos os angeles corteses; quando cantão portugueses não tem eles que cantar.60

Exemplo 2. Últimos compassos do estribilho do vilancico Botay fora61

Já no vilancico Negriño tiray vos la (1610)62, aproveitando a temática natalícia, Gaspar usa a figura dos reis magos para fazer uma subtil referência a um “rei português”, que estará para vir:

59

Idem, pp. 25-26. Stevenson, op. cit., pp. 45-48. 61 in Stevenson, op. cit., p. 46. 62 Abril, «El esclavo negro Juan de Vera: cantor, arpista y compositor de la catedral de Puebla, 1575-1617», in Historia de la musica en Puebla, 2010 60

17

Negriño, tiray vos la que hum de hos Reyes tres voto a Deus que he Portugués […]63

Poderia até pensar-se demasiado especulativa esta observação, não fosse o facto de Gaspar Fernandes ter deixado explícita e sem margem para dúvidas a sua veia sebastianista no vilancico Pois con tanta graça: Pois con tanta graça a naçido o belo niño tocay voso pandeiriño batista sua churumbela toca afonso a guitarrela afora, fora ratiño follijay portuguesiño Estribilho Fufurrufu, fufurrufu seja bem venido nosso deus a se folgar ay que estos fidalguiños folgão de o festejar Ay que me morro ay que me fino de amores da may donsela e seu belo fidalguiño.64

Aquilo que à primeira vista aparenta ser um banal vilancico de louvor ao nascimento do menino vai revelando aos poucos ser um sacralizado manifesto pela independência do reino português, impregnado de sebastianismo e de crença no favor divino especialmente dedicado aos Portugueses. De facto, as coplas deste vilancico não permitem outra interpretação: Gaspar Fernandes associa a figura do putativo salvador e futuro rei de Portugal – o Encoberto – ao salvador do mundo, o menino Jesus; e chega mesmo ao ponto de afirmar a nacionalidade portuguesa de Deus: Coplas E minino tão fermoso que se semeja a sua may e todo porque seu pay e portugues muy honrroso. Ainda que no portal naçe o minino chorando, pode ser que tempo andando seja rey de Portugal.65

63

Abril, «Villancicos de remedo…», p. 30 (sublinhados nossos). Stevenson, op. cit., pp. 35 e ss. 65 Idem, ibidem. 64

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Podemos até possivelmente associar estas referências ao futuro D. João IV que, neste ano, teria completado 10 anos – era um «fidalguinho», portanto – e, como primeiro neto de D. Catarina de Bragança, seria o favorito para a tomada do trono português. Nesse caso, o seu pai «muy honrroso» seria D. Teodósio II, duque de Bragança, que efectivamente gozava de grande prestígio à época. Depois destas coplas, o estribilho ganha todo um novo significado: o «menino», «portuguesinho» e «fidalguinho», refere-se ao futuro rei de Portugal, possivelmente D. João. Mas para além do texto, esta interpretação é reforçada pela própria música. De facto, numa obra globalmente no 2.º tom (equivalente à tonalidade moderna de sol menor), as únicas cadências que, no estribilho, Fernandes faz a um acorde de sol maior são precisamente nas palavras «niño», «portuguesiño» e «fidalguiño», criando uma rima musical entre as palavras que se referem duplamente ao menino Jesus e ao Encoberto. Já nas coplas, momento em que se faz a referência mais explícita à portugalidade de Deus e ao destino do menino na família real portuguesa, todas as cadências são feitas a sol maior, provavelmente para sublinhar a mensagem do texto. Haja ou não uma associação premeditada à figura de D. João, é impossível não ver aqui uma inequívoca mensagem político-ideológica e uma expressão loquaz do espírito autonomista de Gaspar Fernandes, que vem confirmar as observações feitas em relação aos outros vilancicos de sua autoria. Note-se ainda como Fernandes, emigrado num país de língua castelhana e com cerca de duzentos vilancicos nessa língua, usa a língua portuguesa (naturalmente contaminada por alguns castelhanismos, mais inevitável para quem vivia numa cidade mexicana) nestes vilancicos de cariz patriótico, tal como os escritores na metrópole (cf. §3.3).

Por que razão Fernandes terá composto tantos vilancicos em torno da questão autonomista e em defesa da restauração da independência de Portugal? Segundo Stevenson, Puebla contava com uma significativa comunidade de emigrantes portugueses no início do século XVII;66 esta comunidade incluiria, muito possivelmente, pessoas que haviam assistido em Portugal à tomada do poder castelhano e que partilhariam um forte sentido de identidade nacional associado a uma convicção sebastianista. Mas o facto de se encontrar num local afastado do “teatro das operações” pode justamente explicar a clareza e a frontalidade com que Fernandes tratava este assunto: como a maior parte do seu público não compreenderia o alcance da letra – e, mesmo que percebesse, estava alheado do problema – o compositor português gozava de uma certa liberdade para expressar o seu orgulho patriótico através da sua música, que qualquer compatriota seu presente facilmente entenderia.

66

«[…] numerosos portugueses residentes em Puebla nos inícios do século dezassete» (Idem, p. XXV).

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4.4. Nos vilancicos de Filipe da Madre de Deus Também Filipe da Madre de Deus expressou tão ou mais veementemente o seu anticastelhanismo e o seu sebastianismo no seu vilancico Valentão dos meus olhos. Não é conhecida a data de composição deste vilancico, pelo que não sabemos se terá sido composto antes ou depois de ter regressado a Lisboa, em cerca de 1649, depois de ter sido compositor em Sevilha. Sabemos, no entanto, que as relações entre instituições espanholas e músicos portugueses “arrefeceram” após a Restauração67, o que poderá ter precipitado o regresso de Madre de Deus à sua cidade natal, e que o rei D. João IV tinha este compositor em alta consideração. Estes dois factores podem ter motivado a composição deste longo vilancico de grande exaltação patriótica: Valentão dos meus olhos que a todo o mundo venceis; inda que seja de forte, não choreis, meu bem. […] Não choreis, mas se chorais por amores, chorai muito embora, pois sois português. Coplas Portuguesinho dos céus, graça de todas as graças, elevação dos sentidos, doce pasmo da minh’alma. Eu não sei como tremeis nascendo em nossa campanha, que ser fidalgo e ter medo nem em Castela isto passa. […] Porque chorais por Castela? Qu’inda que festas vos faça vos podem lá comer vivo; Sim, pela hóstia sagrada. […] Vós sempre fostes fidalgo De conhecida prosápia; Não choreis por castelhanos, chorai por gente fidalga. […] Olhai Senhor que em Lisboa Quem tem mais graça vos ama E vos tem a cama feita De rosas, e não de palhas.

[…] Coplas 2 Venham todas as violas as que houver em Portugal, que esta noite ao menino [iremos] todos bailar. Que de lá sol ré, ai, que de lá sol fá, Viva a dança de Portugal! […] Venham Duques e Marqueses ao menino a festejar, pois que é muito mais fidalgo que o rei Dom Sebastião. […] Não choreis, meu belo mano, Não choreis meu bem, calai, Que o chorar não é do sol Deixai a aurora chorar. E pois que nasceis tao lindo, Filho de tao bela mãe, Não é rei quem não vos serve, Não é cristão quem vos quer mal. Não tenhais medo de Herodes inda que vos quer buscar, que eu trarei de [Aljubarrota]68 a forneira com a pá. E inda que faltara ela, não vos podiam faltar as barbatas em Castela, valentia em Portugal.

67

Idem, p. XXIX. Stevenson transcreve “aleibarrota”, evidentemente um erro tolerável visto o musicólogo norte-americano não ter a referência do episódio lendário da padeira de Aljubarrota. 68

20

Está bem patente neste texto o forte sentimento de desprezo pelos Castelhanos e de forte patriotismo sebastianista, que toma para si os favores do menino Jesus. De facto, a caracterização do “castelhano” dificilmente poderia ser mais hostil: cobarde, falso, pérfido, capaz de comer crianças vivas;69 e para mais fundo levar a humilhação, Filipe da Madre de Deus faz mesmo referência ao episódio lendário da padeira de Aljubarrota («a forneira com a pá»). Por outro lado, é evidente a correspondência que a figura de Cristo recém-nascido tem com o rei D. João IV recém-aclamado; e, neste âmbito, salientam-se mais duas originalidades do texto de Madre de Deus: um paralelismo entre as figuras de Herodes e Filipe IV, e uma referência explícita ao rei D. Sebastião. Assim, Filipe da Madre de Deus apela à vinda de toda a nobreza aclamar o menino – D. João IV – por ser «muito mais fidalgo que o rei Dom Sebastião». Ao colocar D. João IV, na figura do menino Jesus, num patamar superior ao d’O Desejado, o compositor reforça a corrente sebastianista de que o Encoberto que viria salvar o país não era o monarca perdido em Marrocos mas sim o duque de Bragança. E este não deveria temer Herodes – que não pode aludir a outro senão a Filipe IV – pois estava protegido pelo espírito heróico que já outrora gorara as pretensões castelhanas ao trono português. E, por fim, ao afirmar que «Não é rei quem não vos serve / não é cristão quem vos quer mal», Madre de Deus deslegitima Filipe IV da sua coroa e da sua cristandade por não servir D. João IV.

Conclusão Ao longo dos tempos, a música, como manifestação de uma cultura específica num determinado período histórico, para além dos seus valores “puramente artísticos”, assume uma natural função de representação social e cultural. É especialmente nos momentos de crise que as manifestações artísticas e culturais adquirem uma importância na expressão de um sentimento comum subjacente a toda uma comunidade sujeita aos efeitos dessa crise – nestas alturas, também o papel social da música como elemento de coesão cultural e de união social se torna mais relevante. Recentemente, por exemplo, na época do Estado Novo, a música disseminou, pela voz de intérpretes como José Afonso e José Mário Branco, através de letras e poemas de significado mais ou menos duplo, mensagens democráticas e antiregime que representavam o desejo da generalidade da população de um país. No período do reinado filipino, como vimos, a música também não se afastou desse seu papel natural. Quer através de mensagens dissimuladas, como no caso da missa de Cardoso, quer através da seriedade disfarçada de entretenimento dos vilancicos, a música ajudou na divulgação de manifestos e sentimentos que apelavam à rivalidade contra Castela e à esperança na figura de D. João, duque de Bragança, como cumpridor da profecia que garantia a salvação de Portugal.

69

Assinale-se, en passant, a semelhança destes estereótipos com os que viriam a ser imputados aos judeus ou aos comunistas no século XX.

21

Apesar de produzidos nos mais diversos locais do mundo ibérico, é detectável, nos exemplos musicais analisados, uma linha ideológica que se manifesta na repetição dos mesmos paralelismos e das mesmas ideias fundamentais: Jesus Cristo é português, cabendo aos Portugueses defendê-lo da perfídia dos Castelhanos; D. João IV, investido do papel de Messias que as profecias sebastianistas previram que chegaria um dia para libertar o “povo eleito” de Deus, é fundido com a figura do menino Jesus. Esta constância e coerência nos temas é uma prova indiscutível não só da presença de uma ideologia sebastianista presente nas mais espalhadas comunidades portuguesas no império ibérico, mas sobretudo da sua surpreendente uniformidade. E se os vilancicos demonstram a «atitude etnocêntrica e até megalómana e agressiva» que caracterizam os ideais messiânicos de se pertencer a um «povo eleito», de que fala Besselaar,70 não se lhes pode negar o poder que tiveram na consolidação de um sentimento de identidade nacional colectivo. A música era, deste modo, mais uma expressão cultural inevitável de um sentimento de identidade nacional que perpassava toda a sociedade portuguesa, desde as classes mais baixas às mais altas esferas do clero e da nobreza, desde os locais aos emigrados. Era música que, para além dos seus propósitos estéticos fundamentais, tinha por objectivo intervir na situação sociopolítica do seu tempo. Se a literatura da época era «de resistência»,71 a música di-la-íamos de intervenção. E se, por um lado, Manuel Cardoso foi cauteloso na divulgação da sua ideologia, é de assinalar o notável facto de Gaspar Fernandes e Madre de Deus terem sido livres de expressar as suas posições patrióticas, não se conhecendo alguma vez que tenham sido censurados nessa sua vontade. De facto, ambos foram emigrados em territórios de Espanha, onde se estabeleceram durante largos anos e foram acolhidos por um povo que tão acirradamente votavam ao mais profundo desprezo nas suas canções. Não cremos, no entanto, que se possa falar em ingratidão ou em hipocrisia, de que alguns quiseram acusar Cardoso no seu comportamento perante Filipe IV. Apesar das suas ideologias e convicções do domínio do arracional, como o são todas as manifestações de fé, sejam elas sancionadas por uma instituição como a Igreja, ou organicamente desenvolvidas como o caso do sebastianismo, estes compositores tinham obrigações, responsabilidades e uma carreira profissional a que estava directamente associada a sua reputação. No equilíbrio entre os valores patrióticos e o pragmatismo da vida real, nem sempre aqueles podem levar este de vencida.

70 71

José van de Besselaar, O Sebastianismo, 1987, p. 11. Cidade, op. cit., p. 47.

22

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