N.º 38 De mobilidades

June 12, 2017 | Autor: Alberto Vieira | Categoria: Emigração, Emigração Portuguesa, Emigração para o Brasil
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N.º 38

janeiro 2016

A Nona Ilha

Desde 2012 que as HISTÓRIAS DE VIDA

De acordo com o Padre António Vieira, “Os portugueses têm um pequeno país para berço e o mundo todo para morrerem.” Parafraseando-o, podemos afirmar que os madeirenses têm um pequeno país (arquipélago) para berço e o mundo todo para morrerem. Considera-se que, oficialmente, o arquipélago da Madeira tem oito ilhas (Madeira, Porto Santo, Deserta Grande, Bugio, Ilhéu Chão, Selvagem Grande, Selvagem Pequena e Ilhéu de Fora). Nós, porém, descobrimos uma nona ilha, composta por todos os madeirenses derramados pelo mundo, que são, hoje, avaliados em mais de um milhão; a que os madeirenses levam na mala, quando partem, a que todos os madeirenses que partiram construíram no mundo e trazem no coração. Temos dedicado a nossa atenção àqueles que permaneceram e estabeleceram os seus planos de vida nas ilhas geograficamente conhecidas, dando relativa atenção àqueles que compõem a nona ilha. Agora, pretendemos dar voz e protagonismo aos que partiram, de modo a que o seu discurso seja um testemunho do seu contributo para o desenvolvimento das ilhas que deixaram à sua espera, enquanto asseguravam a sua sobrevivência e a dos familiares que nelas permaneceram. É a História das mobilidades dos madeirenses desde o século XV até a atualidade, que será reunida em nove volumes. Alberto Vieira | CEHA dezembro 2015 - Memória das gentes que fazem a História

Já começamos…

fazem parte do nosso trabalho. Em 2016, mudamos de endereço na internet; abrimos as portas da rua das Mercês, n.º 8, abrimo-nos ao mundo: http://memoriadasgentes.ml/

De mobilidades 1

A deslocação traduz a realização de um movimento que é próprio da vida humana e que desde sempre teve lugar. À orientação tomada, à frequência que assume e ao ritmo que a caracteriza subjaz um conjunto de motivações relacionadas com o contexto em que ocorre e as condições em que se desenvolve. No fluir dos tempos foram possibilitadas novas formas de a realizar e a uma certa imprecisão inicial, foi-se seguindo o encaminhamento cada vez mais orientado dos percursos encetados. De tecnologias incipientes, adaptadas ao atingir dos propósitos que emergiram em cada época e em cada espaço e que progressivamente foram possibilitando descobrir novas terras e encontrar novas gentes, foi-se aprofundando um conhecimento cada vez mais alargado que permitiu mapear territórios e localizar populações diferenciadas, dando lugar a uma crescente interação. A multiplicidade e frequência das diferentes deslocações que passaram a ser possíveis e se foram intensificando é atualmente designada através de um conceito de grande abrangência – mobilidade – que consegue abrigar em toda a sua janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

M O B I L I D A D E – Extensão e Diversidade de um Conceito extensão uma indescritível diversidade de formas e de sentidos. Não sendo unívoco o seu significado pode incidir tanto sobre as deslocações que têm lugar num dado espaço físico como sobre a ascensão ou a despromoção social a que se refere. Para a designar existem diversas formas vocabulares. A mobilidade humana inclui, entre muitas outras configurações, os movimentos migratórios entre origem e destino e dentro deles alinham-se saídas e chegadas entre espaços territoriais que merecem referência precisa, tendo sido designada como emigração (ex migration) a deslocação referente

a saídas e como imigração (in migration), o que respeita às entradas. Migrar engloba um e outro dos movimentos mas a aplicação do conceito nem sempre se fez da mesma maneira e os que lhe correspondiam, feitos no âmbito de uma área administrativa delimitada estenderam-se a espaços políticos internacionais que se tornaram cada vez mais próximos. Emigrar implica deixar a terra própria ou a pátria que é sua para passar a viver temporariamente fora dela ou a estabelecer residência definitiva num outro local, passando os protagonistas a ser designados por migrantes. Se o movimento tivesse

lugar dentro das fronteiras administrativas que circunscrevem uma área oficialmente delimitada no interior de um mesmo país, seria designado como “migração interna”; se, pelo contrário, ultrapassasse os limites raianos preestabelecidos passava a designar-se como emigração. Origem e destino são, assim, indicadores decisivos para estabelecer essa diferença. A semelhança de condições em que passou a realizar-se com as que caracterizam as deslocações no interior do próprio país conduziu a que o vocábulo migrações, aplicado desta vez às migrações internacionais, passasse a substituir as designações acima referidas. A amplitude que encerra facilita referir o fenómeno por completo, permitindo no seu todo abrigar os movimentos que se processam num e noutro sentido tanto dentro do território nacional como fora dele. Quanto maior distância exista entre esses dois pontos referenciáveis, marcas decisivas no itinerário percorrido, mais difícil se apresenta a hipótese de um movimento quer sob forma temporária quer definitiva. Tal aconteceu quando os oceanos mediavam os contactos intercontinentais, deixando de o ser ao nível das migrações no interior de um mesmo continente, no tempo em que a intensificação da comunicação

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Não existe coincidência entre este alargamento de significado, que tange aspetos sociológicos e o contexto dos respetivos conteúdos legais ou regulamentares. De facto regista-se, quase sempre, um desfasamento temporal entre a evolução de um conceito no plano estritamente académico e a sua aplicação em termos jurídicos.

e a facilidade de transporte proporcionaram uma maior proximidade. Note-se, no entanto, que não existe coincidência entre este alargamento de significado, que tange aspetos sociológicos e o contexto dos respetivos conteúdos legais ou regulamentares. De facto regista-se, quase sempre, um desfasamento temporal entre a evolução de um conceito no plano estritamente académico e a sua aplicação em termos jurídicos. O Centro de Estudos de História do Atlântico, que sempre revelou um particular interesse pela História da Madeira no âmbito do seu posicionamento insular, pela população que nela residiu e atualmente a habita, pelos factos determinantes que caracterizam a sua economia e modelam a sociedade tem-se debruçado, de forma muito especial, sobre quem dela partiu e a ela permanece ligado, como um todo inseparável. janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Lembrar a existência e manter o relacionamento entre os que residem na Região e os que dela estão afastados por razões compulsivas ligadas à necessidade e desejo de melhor viver, constitui uma atitude de reconhecimento da história da mobilidade de uma população dispersa pelo mundo. Neste contexto, os muitos Encontros realizados anualmente no âmbito da atividade científica do CEHA, na dupla vertente que encerram investigação/pedagogia - têm prestado uma especial atenção ao tema mobilidade. São disso exemplo os títulos dos Colóquios que organizados de forma regular a partir de 2012 espelham, de forma inequívoca, o interesse que merece.1 A diluição da importância anteriormente imposta 1 Mobilidades Humanas – A Mulher e as Mobilidades (15/11/2012); Mobilidade e Identidades (21 e 22/10/2013); Mobilidades e Insularidades (3 e 4/11/2014); As Fronteiras da Mobilidade (12 e 13/11/2015).

pelas fronteiras físicas, substituída pela presença e solidariedade entre pessoas da mesma origem, vem sendo progressivamente implementada. Reconhecendo que as atuais condições de vida fizeram nascer uma nova ideologia que se rege pela aproximação de quem da mesma origem se reclama, outras formas de mobilidade continuarão a surgir. Esta ligação vai intensificar-se e irão ser encontradas novas estratégias que venham a contemplá-la, no sentido de contribuir para que o legado histórico continue a transmitir-se e os laços emocionais existentes mantenham a sua dinâmica. Maria Beatriz Rocha-Trindade CEMRI – UAb (Portugal)

A diluição da importância anteriormente imposta pelas fronteiras físicas, substituída pela presença e solidariedade entre pessoas da mesma origem, vem sendo progressivamente implementada. Reconhecendo que as atuais condições de vida fizeram nascer uma nova ideologia que se rege pela aproximação de quem da mesma origem se reclama, outras formas de mobilidade continuarão a surgir.

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encontros e publicações científicas de referência, conforme se comprova, nos últimos anos, por colóquios, seminários e publicações coletivas. O estudo das migrações madeirenses tem sido feito de modo parcelar, existindo, ainda, uma grande lacuna nesta que importa colmatar com novos estudos e análises. Na verdade, desde 1985, nos Colóquios de História realizados pelo CEHA, tivemos várias apresentações e contributos para o tema, inclusivamente com a participação do Prof. Joel Serrão que coordenou uma mesa redonda, no primeiro encontro. Em 2001, realizou-se um seminário sobre a Emigração e Imigração nas Ilhas. E desde 2006 temos mantido o Seminário anual sobre as Mobilidades. A isto podemos juntar estudos esparsos publicados em revistas e partes de livros. Acontece, porém, que não existe um estudo aprofundado sobre os fenómenos migratórios e

Estudos

Hoje, as temáticas da imigração e emigração ou, se quisermos, das migrações, ou ainda, e com mais propriedade no presente momento, das mobilidades humanas, revestem-se de um grande interesse e motivam o empenho das comunidades política e científica. Trata-se, na verdade, de um problema e de uma situação internacional e nacional. É por isso que, nos últimos anos, várias entidades têm promovido estudos alargados sobre estes fenómenos, com o intuito de entender os seus reflexos na sociedade portuguesa. A bibliografia é extensa e permanente a publicação e projetos de estudo, nos meios académico e institucional. Tenha-se, por exemplo, em conta o trabalho do Observatório da Imigração e de diversas estruturas oficiais, entretanto criadas. Devemos ainda considerar a dinâmica resultante da política de criação de museus da emigração que se refletiu em Portugal com a criação, em Fafe, janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

no ano de 2001, do Museu do Emigrante e das Comunidades, secundado por idêntico projeto para os Açores, em 2005. Ainda se aguarda por idêntica iniciativa na Madeira, já proposta há muito tempo, com estes debates sobre as Mobilidades Humanas, que se iniciaram em 2006. Portugal foi, por muito tempo, terra de emigrantes, pelo que a temática dominante foi quase sempre a da emigração. A obra de Joel Serrão foi e continua a ser uma referência para os estudos sobre o tema. Apenas no virar da centúria se descobriu a necessidade de voltar a atenção para o fenómeno da imigração, que assumiu uma importância primordial nestes primeiros anos do século XXI. Por outro lado, o estudo das temáticas das migrações implica, hoje, uma formulação diferente e co-participativa de todos os domínios das Ciências Sociais, tal como se tem postulado nos últimos anos e tem sido prática em muitos dos

por saber, de forma clara, qual o impacto deste fenómeno na demografia da ilha; ainda continua a ignorar-se a importância do retorno e as suas implicações na ilha. Algumas épocas, como o século XIX e alguns destinos, como o Brasil, América Central, Havai continuam a monopolizar a atenção dos especialistas, sendo pouca ou nenhuma atenção dada a destinos e comunidades como a Austrália, África do Sul, Venezuela, Estados Unidos da América e ex colónias, nomeadamente Moçambique e Angola. O estudo da emigração madeirense passa ainda por outras posturas científicas e institucionais que vão desde a necessidade de criação de um museu, um centro de documentação, a exemplo do que existe em Fafe e na Ribeira Grande, Açores, assim como a valorização dos contributos das chamadas Histórias de vida. Desde 1986, altura em que tivemos oportunidade

O estudo das migrações madeirenses tem sido feito de modo parcelar, existindo, ainda, uma grande lacuna nesta que importa colmatar com novos estudos e análises. o seu impacto na economia, na sociedade e na vida cultural madeirense. Faz ainda falta de uma História das Mobilidades dos madeirenses no mundo. E é isso que propomos desde este ano, com o projeto “Nona Ilha”, que pretendemos seja o colmatar desta lacuna e uma homenagem aos que partiram e regressaram ou não. Aliás, olhando retrospetivamente para tudo o que foi feito, podemos afirmar que ainda há muito para descobrir neste campo, pois ainda estamos no início e apostados em pesquisas preliminares. Assim, fazem falta estudos sistemáticos sobre o movimento da emigração madeirense para os quatro cantos do mundo e estudos que permitam mostrar o que foram e o que são essas comunidades madeirenses. Hoje continua a insistir-se no movimento estatístico e na ideia de sangria populacional que o fenómeno gerou na ilha. Ainda estamos

de estar em Toronto a convite da The Multicultural History Society of Ontário (http://mhso.ca/wp/) e depois na universidade de Colombia (http:// library.columbia.edu/locations/ccoh.html), temos insistido na necessidade de se apostar nas Histórias de vida através da História oral ou memórias biográficas, como repositório fundamental para reconstituir o quotidiano da emigração, de forma a possibilitar a construção da História do mesmo fenómeno, de forma abrangente e global. A oportunidade que nos foi dada de ter acesso a alguns registos sonoros sobre as peripécias vividas nos primórdios da emigração para o Canadá foi motivo suficiente para abalizarmos da importância desta técnica nos estudos sobre a emigração. Mais tarde, em 1991, o Museu da Pessoa em S. Paulo http://www.museudapessoa.net/pt/home onde podemos encontrar algumas memórias vivas de madeirenses, foi a prova de que necessitaríamos de

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a História das mobilidades é um caminho aberto a novas investigações e estudos. Uma área quase esquecida que, ao ser estudada, irá revelar outras facetas da definição da sociedade madeirense. Mas acima de tudo, devemos encarar este processo, como uma homenagem a todos os que tiveram a coragem de partir na busca de soluções melhores para si e para a sua família.

avançar por esta via, caso quisessemos preservar as memórias da emigração madeirense. Foi com base nestes resultados e na pertinência desta opção, que propusemos a António Abreu Xavier uma metodologia semelhante para o estudo da emigração madeirense para a Venezuela, de que resultou o projeto “Histórias de Vida do Correio da Venezuela”(http://correiodevenezuela.com/ portugues/category/especiais/historias-de-vida/). Da primeira colheita de 234 entrevistas feitas por António Abreu Xavier, resultou importante informação que foi condensada na tese de doutoramento defendida pelo mesmo, em 2007. Foi tendo em conta estas novas metodologias que, em 2013, começamos um projeto, com base na chamada História vista de baixo e na autobiografia, no sentido de ir ao encontro de uma outra História das Mobilidades dos Madeirenses no Mundo. Queremos ouvir todos madeirenses, através da entrevista presencial, de testemunhos de terceiros, ou de registos de cartas, diários e outra informação

manuscrita e publicada suscetíveis de reconstituir o quotidiano das mobilidades. Queremos revelar os problemas que sempre estiveram por detrás desta solução e evidência das sociedades insulares e, de forma especial, da madeirense. O tema da imigração foi, durante muito tempo, uma página em branco na produção científica madeirense. Foi quase sempre defendido que a Madeira era um mercado de origem de emigrantes e nunca um destino de imigrantes. Embora a palavra “imigração” não pareça constar da História madeirense, temos de dizer que este fenómeno foi uma constante na nossa História, não obstante a comunicação social e o universo político só se terem apercebido desta realidade, a partir de finais do século XX . As grandes obras especializadas para a construção do aeroporto e da rede viária obrigaram neces­ sariamente à entrada de mão-de-obra do con­ ti­ nente português e de outras origens, nomeadamente do Brasil e dos países de leste.

COLÓQUIO / CEHA

p. 8

Fevereiro / 2014

dias 3 e 4 de novembro 2014

Mobilidade e Insularidade janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Na verdade, ignora-se, frequentemente, que a sociedade madeirense foi fruto da imigração de gentes do reino e de outras proveniências europeias que se misturaram com escravos de Canárias, N. de África e Costa da Guiné. A etnogenia da sociedade madeirense despertou desde sempre o interesse da literatura, etnografia e História, mas não existem consensos sobre as origens daqueles que estiveram no princípio do povoamento da Madeira. Foi aqui que se manteve o debate, a partir de finais do século XX e durante muito tempo, esquecendo-se a multiplicidade de origens do fermento da sociedade madeirense. Esta permanente abertura do porto funchalense à entrada de passageiros com estadia passageira ou prolongada merece ser mais bem equacionada. Povoadores, escravos, funcionários, mercadores, foragidos da justiça, das perseguições religiosas e políticas, deportados, doentes em busca de cura e, finalmente, trabalhadores fazem parte desta mistura de raças, culturas e povos que identificam a sociedade madeirense na atualidade. Temos dados e informações sobre este movimento de permanente entrada de imigrantes, mas faltamnos estudos sobre a sua importância na sociedade e demografia madeirenses. A situação dos últimos decénios é uma realidade desconhecida e apenas temos informação em estudos de âmbito nacional. Falta, diga-se em boa razão, um estudo sobre as vagas de imigração dos últimos decénios. Devemos ainda considerar o retorno de madeirenses da Venezuela e África do Sul, que tem tido, nos últimos anos, um impacte

evidente na sociedade madeirense. Estamos perante uma realidade ainda não devidamente quantificada e quase desconhecida em termos de estudos sociodemográficos. Conhecemo-los e contactamos com gente que regressou desses países de acolhimento; identificamo-los através do seu modo de falar, mas temos, muitas vezes, dificuldades em aceitar o retorno, porque isso implica, de novo, a partilha do magro território, do poio, que os que ficaram consideram seu, não por herança, mas por usufruto. Neste sentido do discurso da intolerância face aos emigrantes, recordo aquilo que dizia Roberto Carneiro, na apresentação de um livro, quando assinalava o facto de sermos historicamente um pais gerador de emigrantes, os tais imigrantes, iguais ou certamente menos qualificados que os que hoje recebemos, pelo que o discurso da reciprocidade deve ser uma palavra de ordem das políticas e dos nossos comportamentos sociais, face a estes imigrantes. Em síntese, podemos afirmar que a História das mobilidades é um caminho aberto a novas investigações e estudos. Uma área quase esquecida que, ao ser estudada, irá revelar outras facetas da definição da sociedade madeirense. Mas acima de tudo, devemos encarar este processo, como uma homenagem a todos os que tiveram a coragem de partir na busca de soluções melhores para si e para a sua família. Queremos lavrar o memorial, em homenagem daqueles que morreram durante o percurso de ida para um sonho de Eldorado e terra prometida, que ficou enterrado no oceano, daqueles que o encontraram e que, no regresso, contribuíram para o engrandecimento da família e da ilha. Mas não podemos esquecer todos aqueles que ainda continuam na labuta, em todos os recantos do mundo, para que a ilha continue a ser o que é e a acalentar o sonho de um retorno a casa que tiveram que abandonar. Alberto Vieira

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OS MUSEUS/MEMÓRIA DOS E/(I)MIGRANTES

Rede Internacional de museus de emigração

A valorização patrimonial ligada ao fenómeno das mobilidades encontra valorização nas regiões de partida e de chegada, através de espaços museológicos e de memória que pretendem valorizar a ação dos emigrantes e imigrantes ao longo da História. As ilhas são, desde da sua ocupação europeia, espaços de mobilidade e nunca perderam essa caraterística. Daí a importância que assumem estes espaços museológicos e de memória dos insulares, como repositório desta realidade, complementando a informação oficial dos arquivos. O museu ou espaço de memória, físicos ou virtuais, são um ponto de encontro dos migrantes insulares e devem ser espaços onde estes se reveem na mobilidade dos seus antepassados. Não pode ser apenas um espaço onde se observam fotografias, documentos oficiais e cartas de emigrantes, mas um espaço de afirmação e de construção da memória das mobilidades. janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Cientes disso, propusemos, juntamente com a Dra. Carmo Santos, à altura Diretora do Centro Cultural John dos Passos na Ponta de Sol, a criação deste espaço, que ficou a aguardar melhor oportunidade. Vimos recentemente a aprovação pelo Governo Regional da ideia de criação de um espaço de interpretação sobre esta realidade. Ficamos a aguardar resultados e que se concretize esta dívida para com os madeirenses, que escolheram viver noutras ilhas que construiram do mundo para manter e valorizar a que deixaram para trás, perdida no meio do Atlântico. Mas entendemos este espaço museológico como um espaço vivo, de fixação da memória coletiva daqueles que partiram e do muito que contribuíram para alargar os horizontes da ilha, dentro e fora do arquipélago. Deste modo, em 2012, iniciamos um projeto sobre “A Memória das Gentes que Fazem a História”(http:// memoriadasgentes.ml), onde a saga dos emigrantes madeirenses assume um papel fundamental e, de forma virtual, através da web, temos contribuído para

construir a História da Mobilidade dos Madeirenses, através da História de Vida dos que tiveram a coragem ou necessidade de enfrentar o desafio dos mares e de novas terras. Agora, dentro do mesmo ideal, avançamos com outro projeto, “A nona Ilha”, que pretende reforçar essa memória e escrever a História da Emigração Madeirense que falta. A América do Norte e do Sul foram, durante muito tempo, o espaço de acolhimento das grandes levas da emigração europeia. E, no decurso do século XIX, à medida que se aboliu a escravatura, foram sendo criadas condições que favoreceram esta emigração de mão-de-obra branca. Surgiram no Brasil e Argentina as hospedarias do emigrante, que acolhiam temporariamente e encaminhavam estas pessoas. Hoje, são espaços de memória e musealização destas mobilidades. Na atualidade, temos, em todo mundo, uma diversidade de espaços museológicos que merecem ser tido em atenção:

http://www.migrationmuseum.org/

Ellis Island Immigration Museum –New York (Estados Unidos da América)

http://www.libertyellisfoundation. org/immigration-museum

Pier 21 National Immigration Museum – Halifax (Canadá)

http://www.pier21.ca/home

House of Emigrants - Våxjö, Smäland (Suécia)

http://www.kulturparkensmaland. se/1.0.1.0/14/2/

Norwegian Emigrant Museum – Hamar (Noruega)

http://www.emigrantmuseum.no/ info.html

Icelandic Emigration Centre – Skagafjörour (Islândia)

http://www.mcc.is/english/extra/ immigrate-to-iceland

Deutches Auswanderer Haus – Bremerhaven (Alemanha)

http://dah-bremerhaven.de

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Fundacion Archivo de Indianos-Museo de la Emigracion– Colombres, Asturias (Espanha)

No Brasil, temos ainda outros memoriais do emigrante em Curitiba (http://www. fundacaoculturaldecuritiba.com.br/espacosculturais/memorial-da-imigracao-polonesa/), o museu histórico da emigração japonesa (http://www.museubunkyo.org.br), Centro de memória da emigração da ilha das Flores-Rio de Janeiro (http://www.hospedariailhadasflores. com.br).

http://www.archivodeindianos.es obs.: desde 1986 por iniciativa del Principado de Asturias, Caja de Asturias y la Universidad de Oviedo, foi criada a Fundación Archivo de Indianos, no antigo palacete, construído em 1906, por um antigo imigrante regressado do México.

PORTUGAL.

IMMIGRATION MUSEUM (Austrália)

http://museumvictoria.com.au/ immigrationmuseum/ obs.: Foi criado na cidade Victoria.

Musée de l’histoire de l’immigration, Paris (Palais de la Porte Dorée):

http://www.histoire-immigration.fr/

obs.: O Musée de l’histoire de l’immigration, é a designação atribuída desde 1 de janeiro de 2012 ao antigo espaço Cité nationale de l’histoire de l’immigration  (CNHI), aberto ao público em Outubro de 2007em Paris no palais de la Porte Dorée.

O Museu das Migrações e das Comunidades

http://www.museu-emigrantes.org/



obs.: foi criado em 12/07/2001 por deliberação da Câmara Municipal de Fafe, como plataforma virtual, com a designação de Museu da Emigração e das Comunidades. Foi fundado por Miguel Monteiro e teve o apoio científico da Professora Doutora Maria Beatriz RochaTrindade.

Museu da emigração açoriana Museu da Imigração do Estado de S. Paulo:

http://www.memorialdoimigrante.sp.gov.br/

obs.: Designação atual do espaço museológico e de investigação criado em S. Paulo na antiga Hospedaria de Imigrantes (1887-1978). janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

http://mea.cm-ribeiragrande.pt obs.: da responsabilidade da câmara municipal da Ribeira Grande, inaugurado a 9 Setembro de 2005 nas antigas instalações do Barracão de Peixe.

Alguma bibliografia: CANNATO, Vincent J. American passage: the history of Ellis Island. Harper Perennial, 2009. Chaléard, Marie-Claude Blanc «Une Cité nationale pour l’histoire de l’immigration: genèses, enjeux, obstacles»,  Vingtième Siècle. Revue d’histoire (ISSN 0294-1759), no 92, octobre 2006  Delaplace, A. C. (2012). Um palácio para a imigração? Uma apresentação da Cité nationale de l’histoire de l’immigration na França.  Revista CPC, (14), 87-105. Disponivel on-line: http://www.revistas.usp.br/cpc/ article/view/45358 .Acesso em: 29.nov.2015. JOLY, Marie-Hélène. Une collection en devenir - La place de la Cité nationale dans le paysage muséal français. Hommes & Migrations, France, n. 1267, p. 68, mai/ juin, 2007. Disponível em: . Acesso em: 29.nov.2015. LEBLANC, J. P.; MITIC, Trudy D. Pier 21: the gateway that changed Canada. Hantsport, Nova Scotia: Lancelot Press, 1988. Murphy,  Maureen, Un palais pour une cité. Du musée des Colonies à la Cité nationale de l’histoire de l’immigration, Réunion des musées nationaux, Paris, 200 TAFFIN, Dominique. Du musée colonial, au musée des cultures du monde: [textes réunis par Dominique Taffin]Paris: Maisonneuve et Larose, 2000. REZNIK, L., & FERNANDES, R. A. N. (2014). Hospedarias de Imigrantes nas Américas: a criação da hospedaria da Ilha das Flores. História (São Paulo),33(1), 234-253. Rocha-Trindade, Maria Beatriz – Iniciação à Museologia, Lisboa, Universidade Aberta, 1993, 275p. “Musealizar as Migrações” in História (Por Terras Estrangeiras. Emigração e Imigração em Portugal), Lisboa, Fevereiro 2002, Ano XXIV (III Série) nº 42, pp.58-63, “Literature and Cinema in Migration Museums” in AEMI Journal, vol. 4, Aalborg, Danmark, 2006. Yans-McLaughlin, V., & Lightman, M. (1997).  Ellis Island and the Peopling of America: The Official Guide. The New Press, 450 West 41st Street, New York, NY 10036. Alberto Vieira

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Agora deste seu filho receba um beijo e um abraço com muitas saudades da minha querida mãe que só com o nosso encontro terão fim. Adeus, sua bênção e Deus a abençoe em todas as horas e assim toda a nossa família e o mundo inteiro. Adeus, deste seu filho José. (excerto: correspondência de emigrante madeirense em Toronto, 1970) A emigração é, desde há muito, uma realidade próxima dos madeirenses e das suas vivências afetando a sua realidade social, cultural, económica e política, praticamente, desde o tempo da colonização da ilha até à atualidade. É justamente esta convicção de que o fenómeno emigratório se liga, de forma substancial, às questões de identidade insular madeirense, que marca o ponto de partida para o surgimento do projeto que aqui se procurará expor. Que empenho e atenção têm sido dados ao estudo e investigação destas questões? Que salvaguarda dos vestígios materiais e imateriais que compõem e constroem a história e as estórias da emigração madeirense? Não obstante todo o trabalho já desenvolvido em diversas áreas científicas, crêse que haverá, ainda, um inestimado conjunto de testemunhos orais e materiais da emigração silenciados ou confinados à esfera privada, sujeitos ao esquecimento no esmorecer do tempo. Que fazer então? Aquilo que se propõe passa pela criação de um museu/centro de memória dedicado à emigração madeirense. Desta forma, atende-se à necessidade de estudar, preservar e acompanhar os percursos da saída de madeirenses da ilha, mas também, de os documentar, partilhar, comunicar e, de certa forma, de os homenagear. Sabe-se, no entanto, que a criação de um museu não é um gesto automático nem, tampouco, se confina, no contexto paradigmático contemporâneo, às funções custodiais (inventariar, conservar e expor). Fala-se, portanto, de um processo faseado, construído de forma reflexiva e participativa. No caso concreto, propõe-se o janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Para um Museu da Emigração Madeirense desenvolvimento de uma estrutura que articule os espaços museológicos mais recorrentes (áreas de exposição e reservas, serviços educativos, administração, etc.) com um centro de investigação (desejavelmente em diálogo próximo com outros centros do género, academias e museus relacionados com este campo de estudo) e ainda, com uma plataforma digital de armazenamento, sistematização e disponibilização/partilha de dados. Além destes, e com vista a uma maior sustentabilidade, crê-se ser relevante a associação de espaços e serviços que permitam algum retorno financeiro (por exemplo: cafetaria, loja, serviço de reprodução de documentos, entre outros). A hipótese de um Museu da Emigração Madeirense, centrado nas questões de memória sobre este fenómeno, encontra maior fundamento quando enquadrada no panorama museológico regional que aparece vulnerável nas representações da história do povo madeirense e da sua identidade. Julga-se que esta proposta possibilitará o

preenchimento de algum do espaço lacunar existente nas referidas questões de representação, ao explorar uma temática certamente interpelante e próxima da realidade pessoal de cada madeirense, residente dentro e fora da ilha, sem excluir, simultaneamente, os públicos de outros territórios que nos visitam. E o que se pretende para um museu da emigração? Espera-se, sobretudo, que este espaço possa promover o estudo, preservação e comunicação da história, memórias, fluxos, trajetos e especificidades da emigração madeirense através do seu património material e imaterial. Neste contexto, dão-se a conhecer alguns dos objetivos orientadores deste projeto: - Observar a continuidade desses fluxos acompanhando o curso e caraterísticas dos movimentos migratórios da RAM no decorrer dos tempos até à contemporaneidade;

- Explorar trajetos e narrativas pessoais, biografias, testemunhos, histórias de vida/ memórias dos emigrantes e dos seus familiares do Arquipélago da Madeira; - Adotar o conceito de museu enquanto espaço participativo, dialógico e envolvente, implicando os públicos no seu próprio processo de construção; - Promover uma programação dinâmica e interpelante, ajustada à diversidade de públicos (oficinas, conferências, concertos, tertúlias, visitas temáticas, etc.); - Estimular a aproximação entre os madeirenses residentes e os madeirenses da diáspora (e gerações descendentes), incitando a abordagem a questões como a tolerância, sentido de pertença, descriminação, preconceitos e estereótipos; - Incentivar reflexão e discussão sobre as questões de identidade madeirense, explorando impactos da emigração na construção identitária, cultural, social, política e económica no decorrer dos tempos; - Envolver comunidades locais e promover frequência dos públicos regionais a par dos fluxos das rotas turísticas; - Colmatar algumas das lacunas do panorama museológico regional no que respeita à representação da história, cultura e identidade regional; - Investir em projetos e serviços que auxiliem a própria sustentabilidade da instituição. Finalizando, reitera-se a convicção da importância e do interesse deste projeto para a Região Autónoma da Madeira, conscientes do impacto que a emigração teve, e continua a ter, no contexto insular madeirense. Todavia, para o garante da sua continuidade será fulcral estabelecer contacto com instituições e organismos que valorizem e reconheçam benéfica a proposta em causa e que se mostrem disponíveis para contribuir, dentro dos seus âmbitos de atuação, para o desenvolvimento, crescimento e concretização do mesmo. Elisa Freitas e Cristina Martins

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do inimigo na frente de batalha, no Norte de África ou no Índico.

A MADEIRA - terra de emigração e mobilidades As migrações humanas são resultado de um conjunto variado de fatores que, em diversos momentos, condicionaram a maior ou menor disponibilidade para as chegadas ou partidas.

violência da palavra e a intolerância do convívio entre adversários. Esta última manifesta-se através da prepotência dos regimes políticos que procuram apagar toda e qualquer reação ou obstáculo, através da perseguição e deportação dos adversários políticos.

Nem sempre é o mesmo princípio que reúne todos aqueles que se aproximam do cais. Há os que são obrigados a partir por força da violência, expressa na intolerância política, religiosa e desrespeito pela condição humana. São os que partem de forma forçada, na condição de escravo, ou quase escravo, como foi o caso da emigração oitocentista conhecida como escravatura branca, porque foram obrigados a entregar o seu destino nas mãos de outros. A estes juntam-se os perseguidos pelas suas opções religiosas e políticas. À força das convicções políticas junta-se a

Há os que partem de livre vontade, movidos pelo espírito de aventura, a possibilidade de encontrar novas e melhores condições de vida. O sonho que comanda a partida muitas vezes se desfaz mesmo aí à saída do cais, com um naufrágio, ataque de piratas ou qualquer outro acidente, pois nem todos chegam ao destino e conseguem lograr todas as suas expetativas. Todos eles partiram cheios de esperanças, mas nem todos chegaram a bom porto e, para muitos o lugar a terra de destino foi tão madrasta como aquela que os viu nascer. Outros, ainda, entregaram a sua vida pela possibilidade de títulos e honras e, por isso, partem ao encontro

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A partir do século XV, estavam criadas as condições para as migrações no espaço atlântico. Primeiro foram os técnicos experimentados na cultura dos canaviais e fabrico do açúcar que partiram da Madeira ao encontro de novos canaviais e engenhos nas ilhas e litoral brasileiro. Depois, foi a necessidade de firmar, de facto, a soberania através de uma ocupação do território com incentivos à saída de casais, que serão a nossa garantia de posse das terras brasileiras ou

Um cais ou um porto insular é sempre um local de partidas e chegadas. Este movimento é de todos os tempos. Os que partem poderão cruzar-se com os que chegam, sendo por vezes semelhantes os motivos que conduzem uns e outros. Mas quase sempre ambos os movimentos acontecem em momentos distintas pois quando as partidas acontecem, as perspetivas são pouco animadoras para propiciar essas chegadas. A conjuntura que alimenta as chegadas é distinta, pois alenta o ânimo e as esperanças para todos. Aos que chegam anima

século XXI, que se quer intercultural nos devem levar a refletir sobre a postura de cada um de nós sobre estes protagonistas das chegadas e partidas.

a mesma esperança e defrontam-se com as mesmas dificuldades do que os outros que partiram. Por vezes, estes imigrantes cruzam-se no mesmo cais de chegada com os que retornam de forma definitiva ou temporária. Aqui as posturas são muitas vezes semelhantes, uma vez que nem todos os que regressam assumem uma posição de afirmação social indicadora do sucesso. De novo, poderão ser confundidos como imigrantes sofrendo as mesmas humilhações e dificuldades de integração no meio que continua a rejeitá-los. São estas vivências complexas que dominam o movimento das migrações e que, na sociedade do

do mensageiro do governo, o ator Vergílio Teixeira, para que o processo que se iniciava pudesse contar com a colaboração de todos os madeirenses, residentes ou não no arquipélago. O encontro, Congresso do emigrante, Madeirem, teve lugar no Porto Santo e foi encerrado a 30 de junho pelo então Presidente da República, o General Ramalho Eanes. Entretanto, a 2 de julho de 1976, o Governo Regional havia decidido criar o Centro do Emigrante Madeirense, que passou a funcionar na Presidência. A partir de 1988, este centro passou para a alçada da então criada Secretaria Regional do Turismo Cultura e Emigração e, no mandato

Desde o início do processo autonómico que as autoridades regionais tiveram consciência da dimensão e importância das comunidades madeirenses es­ pa­lhadas por todo o mundo, nomea­ damente na Venezuela e África da do Sul. Deste modo, em 1977, o primeiro governo Regional, presidido pelo Engº Ornelas Camacho, reuniu no Porto Santo em 1977 diversos emigrantes chamados à ilha pela mão

Um cais ou um porto insular é sempre um local de partidas e chegadas. Este movimento é de todos os tempos. angolanas. Tudo isto gerava um rodopio permanente de homens ou de famílias. A todos estes aventureiros, perseguidos, deportados, deslocados junta-se um grupo em permanente mudança ligado com agentes e fatores do próprio movimento entre os locais de partida e de destino. Marinheiros em diversas posições têm o mar por casa e, por isso, estarão onde houver um porto de partidas e chegadas. Mercadores e seus agentes sustentam este movimento, através da circulação de mercadorias e fazem disso a sua principal motivação para aguardar no cais ou partir em busca de outros destinos mais prósperos.

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seguinte, em 1992, mudou para a tutela da Secretaria Regional dos Assuntos Parlamentares e Comunicações, hoje Secretaria Regional dos Recursos Humanos. Na década de oitenta, consolida-se a ideia das comunidades madeirenses alargada a todo o universo dos madeirenses residentes também no estrangeiro, ao mesmo tempo que estes passam a ser um referencial importante na política governamental. A homenagem e valorização destas comunidades estão expressas no monumento inaugurado em 1982, na Avenida do Mar e das Comunidades Madeirenses. Depois, foi a chamada dos mesmos para uma participação indireta na política local, através do Congresso das Comunidades Madeirenses, que teve o seu primeiro encontro em 1984, a que se associou a criação do Conselho das Comunidades Madeirenses pelo Decreto Regional nº6/84/M. Ainda, em 1989, o dia 1 de julho, oficialmente o dia da Região, foi declarado Dia da Região Autónoma da Madeira e das Comunidades Madeirenses. Entretanto, em 2006, foi criada a Convenção das Comunidades Madeirenses e o Conselho Permanente das Comunidades Madeirenses pelo decreto legislativo Regional 39/2006/M de 4 de agosto.

propicia mecanismos de aproximação mais fáceis entre os que partiram e os que ficaram. Assim sendo, sair da sua terra já não é uma aventura no desconhecido, como o era até então. Por outro lado, hoje em dia, o tema torna-se presente noutro sentido, pelo retorno de muitos que haviam partido e que as condições dos destinos de origem os obrigaram a retorno a casa. Nos últimos anos, o retorno acentuado de muitos emigrantes madeirenses na Venezuela e África do Sul obrigou a um reajustamento da política governamental, assumindo o centro do emigrante um papel fundamental de apoio ao regresso. Por outro lado, surgiram associações para apoiar e defender os interesses destes imigrantes de que se destaca o Clube Social das Comunidades Madeirenses, criado em 30 de maio de 2000. Entretanto, nos meses de verão, sucedem-se encontros e semanas culturais tendo como tema o emigrante.

faz através de ligação direta. Acresce ainda que as comunicações, com especial destaque para a Internet e a Televisão via satélite, permitiram esbater muitas fronteiras e manter relações de proximidade entre os que partiram e os que ficaram. Parece que tudo mudou, mas para quem transita pelos circuitos das migrações, a realidade é distinta, pois em pleno século XXI, continuam a manter-se os circuitos da emigração clandestina, marcados por uma exploração dos que se sujeitam a tal condição, por comportamentos racistas e xenófobos das sociedades de acolhimento, muitas delas também com história marcada pela emigração. A condição do emigrante ou imigrante, dependendo da perspetiva como se veja este homem que parte ou que chega em busca de melhores condições de vida, ainda apresenta situações pouco claras e merecedoras da recriminação de todos.

Não podemos esquecer as grandes transformações ocorridas nas últimas décadas que conduziram a profundas transformações nos fluxos migratórios. O transporte melhorou de forma apreciável, passando-se a usufruir de melhores condições para a viagem por via aérea, que, em alguns casos, como sucedeu com a Inglaterra e Venezuela se

Alberto Vieira

A emigração passou já a sua fase negra e difícil. A emigração definitiva deixou de ser uma constante da nossa sociedade e a sociedade do século XXI

Parece que tu

do mudou, m as para quem tr ansita pelos circuitos das migrações, a realidade é distinta, pois em pleno século XXI, continu am a manter-se os circuitos da emigração cl andestina

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Território e identidade O que faz um madeirense? O sotaque? A permanência no arquipélago? As raízes da família? O sangue? A ideia tem-me acompanhado ao longo da vida, emigrante que tenho sido desde bebé, quando saí da ilha aos 7 meses de idade, levado pelos meus pais rumo ao sonho venezuelano como tantos outros. Lá fora somos sempre portugueses, mesmo que alguns dos nossos tenham nascido em solo estrangeiro, e desde logo percebemos - muito antes da globalização ‘mediática’ de hoje - que a Madeira era muito maior do que as ilhas que desafiam o Atlântico. Talvez por isso tenha herdado com tanta facilidade o amor pela terra onde acabaria por viver tão pouco tempo, ‘emigrado’ como estou há quase 25 anos no Continente, tão longe e tão perto. Por isso mesmo tenho procurado “vender” a ideia desta identidade construída entre partidas e chegadas, encontros e desencontros, diálogos e conflitos com o conhecido e o desconhecido. Quando comecei a acompanhar mais de janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

perto o projeto que dois irmãos fizeram nascer, “Memórias de S. Roque do FaialAs vozes dos emigrantes”, intensificouse esta paixão por partilhar vivências, tradições e valores. Nem sempre é fácil explicar a alguém que uma pessoa pode ser da sua terra sem nunca lá ter vivido. Que uma freguesia a milhares de quilómetros de distância pode ser a referência do coração, do pensamento, da cultura, da culinária, da religião. Hoje, com a chegada de tantos refugiados, talvez seja mais fácil entender como é que crianças que vão crescer em Portugal nunca deixarão de ser síria, por exemplo. Com as riquezas e desafios que todas estas situações trazem. Pessoalmente, nunca esquecerei o regresso à Madeira, em 1987, ao local onde nasci e do qual não tinha qualquer memória efetiva, apesar de trazer muitas afetivas. Ser um estranho na própria terra é invulgar, difícil de compreender e de explicar. Aquilo que conhecia da ilha era o que os muitos emigrantes na Venezuela me tinham transmitido, tendo testemunhado a forma como estes se sentem identificados com a Região, estabelecendo assim uma ligação temporal entre passado, presente e

futuro na minha própria vida. Se eu ‘regressei’ sem nunca ter estado verdadeiramente na Madeira (o que podia saber um bebé sobre territórios e identidades?), outros há que regressam sem nunca ter partido. O que encontram, no entanto, já não corresponde à imagem que carregavam consigo, vivendo o drama de conciliar a lembrança construída com a imagem real do território. Mais ainda, como é que se relacionam todos os que partiram e regressam com os que ficaram, muitos dos quais não conheceram o mundo em que os primeiros viveram? Sou um madeirense sem sotaque (ou melhor, com o meu sotaque, ainda assim mais condicionado pela infância na Venezuela do que pelas raízes familiares), mas isso não me impede de trazer a ilha dentro de mim, de reconhecer e respeitar profundamente todos aqueles que vivem da mesma maneira as voltas e reviravoltas da vida, que muitas vezes os afastaram das montanhas, dos poios e das ribeiras que são, na verdade, o seu ‘El Dorado’. Octávio Carmo

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Rubim, um estudo particular do senhor Eleutério Gouveia Souza (natural do Lombo dos Marinheiros na Fajã da Ovelha) que, depois de passar por Santos e São Paulo, vive hoje no Paraná onde colabora com o jornal da cidade de Cambará. O estudo genealógico cujo título é: “A presença e a ação dos madeirenses no Brasil, contributo para o povoamento,” expõe, em detalhado trabalho de 46 páginas, a formação de famílias brasileiras com “ramos” madeirenses, ajudando a reconhecer essa presença desde as primeiras iniciativas de D. João e contribuindo para desmistificar uma ideia circulante entre os menos avisados de que vieram para o Brasil apenas os degredados.

Estivador no Porto de Santos - SP mostrando sua capacidade máxima Disponível em http://www.blogcaicara.com/2010/06/trabalhador-portuario-estivador-cais.html

Imigração Madeirense no Brasil

- vivências Folclore Etnografia Região Autônoma da Madeira Grupo Folclórico Casa Ilha da Madeira infanto-juvenil No Brasil, a imigração portuguesa fica escondida sob o estigma da colonização e a imigração madeirense mais escondida ainda, sendo retratada em sua generalidade como imigração portuguesa, dificultando a sua investigação.

Nos livros didáticos antigos aprendíamos que a Madeira era a primeira descoberta dos portugueses e alguns professores acrescentavam que a Madeira funcionou como uma espécie de “plano piloto” para o Brasil. Em conversas recentes com professores, inclusive de História, confirmamos que existe um processo de “desconstrução” da História do Brasil. Independentemente do conhecimento ou da janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

convicção dos docentes, os professores já recebem a programação do que será ensinado e a referência da Europa está, cada vez mais, a ser colocada à parte, num processo de “negação” que está ligada a uma supremacia atual dos Estados Unidos. Quando estudávamos as invasões holandesas, por exemplo, mencionavam o Libertador de Pernambuco, sem falar que ele era madeirense e das inúmeras famílias que vieram da Madeira para povoar e defender nossas fronteiras. Desde sempre, os madeirenses tiveram uma grande importância na formação do Brasil que conhecemos hoje, porém tal ancestralidade não costuma ser lembrada fora dos espaços acadêmicos ou das comunidades madeirenses. No dia 25 de julho de 2015 foi postado, informalmente, pela paróquia Nossa Senhora Aparecida de Vila

Tal estudo, ainda que informal, confirma a ideia de que os madeirenses eram e foram importantes para o desenvolvimento do Brasil. Outros exemplos, presentes na história documentada do Estado de São Paulo e encontrados no Museu do Ipiranga (em exposição permanente) são a reprodução de um cartaz antigo de marketing em que se ofereciam: “trabalhadores madeirenses e açorianos para os interessados”, assim como imagens das docas com homens transportando “uma montanha” de sacas de café nas costas de uma só vez; muitas pessoas, que tem acesso a essa exposição, passam por essas imagens sem se aperceberem que essa carga seria inimaginável para um homem durante o dia de trabalho. O museu, contudo, se encontra fechado para obras há dois anos e sem data para reinaugurar. Atualmente (2015) em nossa comunidade os imigrantes mais velhos são na maioria aqueles que nasceram na década de 20 e 30 e vieram para o Brasil na década de 50 e 60 em navios como o Jenny, Vera Cruz, Serpa Pinto, Castel Verde, Eugenio C, Anna C, North King, navios que chegavam à Madeira já com outros imigrantes. Embora todos fossem imigrantes, ali mesmo já se iniciava alguma hostilidade . Entre os que estavam e os que chegavam, os madeirenses eram tratados muito bem pela tripulação, mas com alguma “reserva” pelos outros passageiros que os julgavam “diferentes”. Vinham com carta de Chamada de

um dos familiares ou de um amigo, alguns já com proposta da possibilidade de emprego, outros apenas como um favor e alguns ainda ficaram mesmo escravos e cativos até poderem pagar suas contas. O fato de trabalhar para um familiar não era sinônimo de moleza, muitos eram explorados ao máximo. Os madeirenses já tinham fama de fortes e trabalhadores e quando vinham sozinhos logo arranjavam aonde trabalhar a custa de moradia e alimentação. Acostumados a sobreviver com “milho cozido”, tudo o mais era lucro; Economizavam bastante para terem seu próprio negócio e também sua casa própria, bem como para mandar buscar a esposa e os filhos ou até mesmo os pais. Quando estamos representando a Madeira somos procurados por pessoas em busca de sua origem, através de saberes, sabores, histórias e memórias da infância, alguns tem os avós velhinhos e não sabem ao certo de onde vieram, ou só sabem que o avô ou o bisavô eram madeirenses ou portugueses sem saberem a região.Pessoas humildes que chegam a dizer que o” avó era de uma ilha e que vivia atrás dos Montes” e pedem nossa ajuda para identificar de onde ela é... gratificante e triste! A sociedade brasileira nos acostumou a negar essa ligação com a ilusão de que isso nos tornaria mais brasileiros, porém essa mesma sociedade está aberta a manifestações culturais norte americanas. Muitos foram para o comércio exatamente por essa inquietação, constatavam as necessidades e ao invés de estagnarem, seguiam em busca de soluções, desenvolvendo trajetórias exemplares: daqueles que não tinham onde morar, para construtores, arquitetos e empreendedores do Governo Federal em moradia; de Padaria 24 horas com três turnos de funcionários, que no inicio eram vendedores de pão numa carroça; de grandes restaurantes saídos de pequenos botecos onde se faziam pequenas refeições para trabalhadores; de distribuidores renomados de Materiais de Construção e Pedras; de outros que partiram de

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do trabalho, nos lutaremos, alcançaremos, seu bem estar e glória. Uma segunda que era muito estudo e trabalho para não sofrer como os pais, nesta categoria estão todas as profissões imagináveis, concursados, doutorados, jornalistas, radialistas, profissionais liberais, empresários, sempre com a característica da excelência; Transformaram a Saudade portuguesa em Esperança brasileira. A terceira que se identifica e reconhece que sem os valores de seus antepassados não terá futuro, trabalham, estudam e querem a nacionalidade portuguesa como uma porta de entrada para a Europa e para isso voltam as suas origens. E “Alem fronteiras de ti se mostram orgulhosos”. Como nos diz o Hino da Madeira. Alguns famosos do Brasil possuem ascendência madeirense pouco divulgada, entre eles o ator Reginaldo Faria; a atriz e cantora Bibi Ferreira, filha do reconhecido dramaturgo e realizador: Procópio Ferreira; o humorista e apresentador Carlos Alberto de Nóbrega, filho do também apresentador Manuel da Nóbrega, natural da Camacha, sitio dos Salgados. E muito ainda há por identificar.

Presença da Ilha da Madeira com o FERAM na 19ª Festa do Imigrante -SP- em 2014 foto por Ricardo José Lourenço - integrante do FERAM

dedos em cada mão”, como a minha mãe dizia. Constam atualmente na comunidade imigrante do Brasil: uma primeira geração que era “só trabalho”, para criar e educar os filhos; Pessoas humildes e tão importantes, com méritos reconhecidos por toda a comunidade local, que ensinaram a familiares, amigos e até desconhecidos, que com fé, trabalho e respeito pode-se chegar onde quiser confirmando o trecho do Hino da região Autónoma da Madeira onde diz: “Por esse mundo além Madeira honraremos sua história, na senda janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Ressalva-se, porém que, devido a uma hostilização sofrida no Brasil por alguns imigrantes de primeira e segunda geração, nas décadas de 50, 60, 70 e 80, algumas crianças portuguesas não aguentavam as provocações e se naturalizavam quando atingiam idades que permitisse, para fugir desse preconceito. Contudo, ainda assim em algumas localidades onde esta imigração portuguesa ficou escondida, há atualmente uma busca por valores de identificação e uma retomada saudosista, as quais tem possibilitado o reconhecimento dessa identidade e multiplicado ações que permeiam ações culturais, sociais e até mesmo comerciais. Maria Vieira Sardinha Gonçalves - Secretaria do Conselho Deliberativo da Casa Ilha da Madeira em São Paulo e responsável pelo Folclore e Etnografia Região Autônoma da Madeira- Grupo Folclórico Casa Ilha da Madeira (Infanto Juvenil).

A saudade Saudades tantas saudades, Da nossa terra distante, Saudades que não têm fim, Na vida do emigrante NEVES, Tiago Batista, 2008, Canto à Madeira, Funchal, p. 80.

Na fronteira das mobilidades, naquele lugar exato onde o partir e o chegar se encontram, num tempo presente, com representações do passado e uma vontade imensa de futuro, mora a saudade. Tratase de um lugar de resguardo, um lugar que não é nem o que se deixou, nem aquele para onde se foi, um lugar onde o tempo não segue o seu caminho, um lugar onde o presente toma o passado nas mãos para, com ele, imaginar o que há de vir. A palavra – que alguns afirmam existir apenas em português - representa um conceito que é, do nosso ponto de vista, necessariamente universal e que encerra uma multiplicidade de sentidos, uma diversidade de “regressos a casa”, aqui entendida como um tempo original, um universo povoado por um “eu” e por um “tu” a que(m) se dá maior valor na distância: uma memória, uma pessoa, um tempo, um lugar geograficamente identificável, muitas vezes recriado, muitas vezes imaginado, muitas vezes, sem correspondência com a verdade. A saudade é “a lembrança de alguma coisa com desejo dela” – terá escrito Duarte Nunes de Leão,

ilustração de Irene Lucília Andrade, in Ilha que é gente

“vendas” de secos e molhados e hoje detêm Redes de Supermercado e Hipercenters; de sequestrado pela ditadura militar até líder do governo; de analfabetos a professores universitários; Igrejas, Lar de idosos, Centro Cultural e Orfanatos construídos por iniciativa e apoio direto de madeirenses; de provedores anônimos do bem estar do povo brasileiro que o acolheu e alguns até reconhecidos com nomes em praças e ruas; do vizinho que ajudava a todos, sem esquecer de enviar o dinheiro para a Festa de Santo Antonio na Madeira,; das rezas e benzeduras até a Direção de Hospitais e Serviço de Saúde; Todos aqui indiretamente ou diretamente citados, existem com nome e endereço, chegaram ao Brasil com “5

no século XVII. Ou de alguém. Ou de alguém em nós. Aponta para uma eternidade meta-temporal, um tempo e um lugar petrificados na memória, um tempo e um lugar que já não existem, um desejo do presente que sonha reencontrar-se com o passado, no futuro, um sentimento que só a ausência [e a distância] produz. Como se escreve a saudade? De que matéria é feita a escrita da ausência? Que palavras são usadas para dizer da distância, da impossibilidade de esquecer, do desejo de voltar? O discurso da saudade reveste-se, assim, de uma condição ontológica de ambiguidade: os emigrantes, por exemplo, falam da dor de já não ter quem tinham, mas juntam-se para aprofundar essa dor: falam da terra, reveem fotografias, ouvem as cantigas antigas, narram episódios do tempo em que (ainda) estavam em casa, reproduzem, nos países de acolhimento, os cenários velhos, na

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forma como decoram a casa, na maneira como cozinham, nas festas, nos encontros, nas conversas: O madeirense constrói ilhas em continentes, com o sabor das noites natalícias, com o despertar das manhãs habitadas de sonhos e de saudades (…) Faz do seu novo mundo o prolongamento da Madeira inserido na sociedade nova onde vive, levando os costumes e as tradições madeirenses.

A correspondência Por entre recados e saudades, por entre notícia da fazenda e dos que ficaram à espera, Maria da Conceição escreve versos ao seu marido ausente no Curaçau. São cartas cheias de ilha e da vida que se vive na Ponta de Sol de 1930. São cartas de amor e de mobilidade.

ABREU, João Carlos, 1960, O Turismo das Culturas, pp. 50-60.

A lembrança – solitária ou partilhada – tem, deste modo, a função de manter acesa essa memória, um ato de lucidez que lhes permitirá, talvez, ausentar-se de si e do seu presente e concentrar-se num passado, nem sempre real e num futuro onde esperam poder reencontrar o paraíso perdido, o lugar original. Esperamos o que lembramos. A saudade é uma dor procurada, alimentada, que mantém acesa a esperança do reencontro, do retorno. É uma palavra-ação que junta o passado ao futuro, na tentativa – sempre vã – de esquecer o presente e a solidão. É sentida como um desejo sem posse e imortaliza uma imagem-memória da terra e do passado, uma imagem necessariamente desatualizada, uma ideia (quase) mítica de um regresso às origens. Escrever a saudade faz parte da poética das mobilidades, um xadrez de ambiguidades, de contradições, de sonhos e de esperanças, intercalados com a verdade da vida de cada um, com os medos de cada um, com as impossibilidades de cada um. Graça Alves | CEHA janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Neste contexto, enviar e receber cartas alimenta a ilusão dos que partiram e dos que ficaram: enganam a saudade e fazem pensar que o outro está presente, “de saúde, que, quanto a mim, vou bem , graças a Deus”.

trabalho, de trabalho e de trabalho. E escreve-se: que é a “melhor coisa que se pode receber da pessoa que se ama” (14/3/1974), que “ao menos tenho o consolo que estás a pensar em mim, já que estás a ler uma carta minha” (18/5/1974).

Receber correspondência é acreditar que o outro vive, que está bem, que não esqueceu quem deixou, que há de voltar. Nestas escritas da mobilidade, há o dito e o nãodito. São prosopografias da história dos signatários, das famílias ou dos sentimentos, na medida em que, através do que se diz e do que se cala, se compreende a vida, a perceção do mundo, a compreensão das coisas e das pessoas. Estes pequenos nadas cruzam os mares dentro de sobrescritos selados, no verso de um postal ilustrado ou na legenda que se escreve atrás dos retratos.

Receber carta é ter o outro em presença, porque “traz” de volta o ausente, a voz do ausente, o perfume do ausente, a presença do ausente: “eu parecia que estava a falar contigo”.

As cartas da mobilidade são lidas e relidas muitas vezes. São bálsamos de alegria em dias negros de

As cartas vêm renovar a saudade. Como os retratos. Como a voz de quem (já) não está. São esperadas na ansiedade de notícias e revelam-se uma forma de consolar o coração: “a mim me gusta ter carta daí”, escreve Maria, da Venezuela, em 1980, mesmo que, nesta altura, os telefones já permitissem perfeitamente os contactos. Como será, agora, com o skype? Há ausências? Há saudade? Onde ficam as palavras? Graça Alves | CEHA

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Ei-los que partem, novos e velhos, buscar a sorte noutras paragens.. Manuel Freire Nestas coisas das migrações, quase sempre o foco está nos que partem, nos que se aventuram por esse mundo fora, numa tentativa de se descobrir o que faz estes homens e mulheres virar costas ao ninho, ao colo e procurar outras sortes. Que sonho é este que os faz partir? Que vontade é esta que os faz engolir a saudade e seguir em frente? Tendo em conta que a Ilha da Madeira é uma região na qual o fenómemo da migração e da mobilidade está fortemente presente, não temos qualquer dúvida em dizer que não haverá familia que não esteja direta ou indiretamente ligada à emigração, já que, ao longo dos tempos, e repetidamente, os filhos da terra se têm visto forçados a sair, buscando melhores condições de vida noutras paragens. Todavia, do outro lado, ou mais concretamente ao lado dos que partem, estão os que ficam. Quem são estes, os que continuam a viver o dia a dia, esperando o regresso do pai, do irmão, do namorado, do marido, dos tios, dos primos? Que relação se estabelece entre estes dois eixos? Serão opostos ou complementares? Serão variáveis distintas e separavéis, quando se estuda o fenómeno das migrações ou serão unas e indissociáveis? São estas algumas das guidelines que nos orientam na reflexão que aqui apresentamos. Não fomos em busca de nenhuma base teórica. Somos apenas guiados pelas conversas que temos tido com vários emigrantes que têm partilhado a sua janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

história de vida, no âmbito do projeto da Memoria das Gentes que fazem a História. Ao ouvirmos o contar da partida, das peripécias, das alegrias e das tristezas, demos connosco a pensar nos outros – nos familiares e amigos que, por vontade própria ou por contingências várias, ficam na sua terra, assistindo ao debandar dos “corajosos”, dos “sonhadores”. O que sentem estes que ficam? Como reagem aos preparativos, à partida? Como se lida com a alteração do perfil, uma vez que

aquele que está de saída, ganha automaticamente um estatuto diferente (quase explicável) oposto, por inerência, ao daquele que fica. Como se lida com o sentimento de inveja que cresce tal como erva daninha perante a evidência de que o outro vai e eu fico? Como se digere esta falta de sorte? E como se vivem o resto dos dias, imaginando futuros que nunca chegarão, empregos bem pagos, cidades bonitas, casas confortáveis, vidas belas e sobretudo bem sucedidas? Ou seja, como

se lida com todo um imaginário que então se cria quase automaticamente na mente dos que ficam e veem os outros partir? Como se recebem as notícias dos que estão fora? Como se recebe esta gente quando à terra decide regressar, temporaria ou permanentente, ostentando sinais de riqueza, como que para garantir a todos que o seu sucesso é de verdade. Serão estas marcas de sucesso bem recebidas ou serão feridas abertas, cicatrizes que ficam para sempre nesta relação entre caminhantes e estantes? E as prendas? Como se recebem estes presentes, vindos do outro lado do mundo, ora estranhos, ora há tanto cobiçados e que de repente, se materializam saídos de dentro de malas enormes que ficam pousadas no chão de quartos de dormir minúsculos algures pela ilha dentro? Como se gere esta enorme alegria de ver chegar os nossos [sim, porque são sempre nossos] que partiram, o entusiasmo de saber [vendo] das suas vidas, de olhar nos olhos e reconhecer o que sempre ali esteve, e o desconforto, e a perturbação e o medo ante a possibilidade de nada disto ainda ser? E como se ajusta este novo modo de viver, roupas vistosas, objetos de decoração “chiques”, comeres esquisitos que se colocam na mesa de Natal, numa mistura quase espontânea embora desconcertante? Como são apreendidos estes novos mundos? Como se recebem estas novidades – uma estranha forma de vida – aqui, onde se ficou? Como se funde a vida que sempre foi com aquela que passou a ser? O aqui de um dia igual ao outro, do lá, diferente, e por isso forçosamente mais encantador e apetecível? Como se ajusta a vida real (a nossa) com o sonho ( a dos outros)?

Virão um dia ricos ou não contando histórias … Manuel Freire E os que ficam? Que histórias contarão? Cláudia Faria | CEHA

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Spectacular Progressive Rock Ice Capades and the Cultural Memory of the 1970s.’ Perhaps more impressive experience than getting lost in a vast conference was the city itself, with Frenchmen Street’s endless nights with blues, jazz and walking from club to club, St. Louis Cemetery No. 1 and the tomb(s) of Voodoo Queen Marie Laveau, and, as the most impressive place, the Congo Square, where the local Indians and later slaves used to dance and sing – the birthplace of blues…

Sempre na estrada Nestes últimos tempos, o meu objetivo tem sido combinar a minha profissão como antropólogo e músico. Em 2015, participei em duas conferências nos Estados Unidos da América. A primeira – Eletric Guitar in Popular Culture foi onde, pela primeira vez, abordei a minha relação como músico e investigador com uma apresentação intitulada: Solid Guitar Autoethnografy, e na segunda, tive a oportunidade de tocar para todos os participantes. Depois de Ohio, seguiuse New Orleans onde abordei a temática da Memória cultural dos anos 70, e onde me embrenhei na atmosfera desta cidade. Inesquecível. Ainda no mesmo mês de abril, estive no Reino Unido, em Falmouth onde me debrucei sobre a temática do Facismo no álbum “ The Wall” dos Pink Floyd. No mês seguinte, vim dar à Madeira e ao Centro de Estudos de História do Atlântico que acolheu o encontro IABA Europe – Dialogical Dimensions in Narrating Lives and Life Writing. Neste colóquio, dei seguimento à minha abordagem autoetnográfica e apresentei uma comunicação intitulada Life writing through Guitar Playing acompanhada de uma atuação. Em julho, depois de uma conferência em Berlim, atuei com a minha banda – Lord Vicar – em Paris. Enquanto tocávamos num palco algures em Tilbug, o Bataclan estava debaixo de fogo. Foi com algum alívio que descolamos de Charles de Gualle. Estou convicto de que, em 2016, poderei continuar nesta aventura de combinar o meu trabalho académico com a música. Portugal, Suiça, Itália, Austria são já destinos marcados. Outros se seguirão com certeza…por essa estrada fora… janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Always on the run Dr Claudia Faria kindly asked me to give the Centre newsletter a short testimonial about my 2015 mobility activities. As I am both an academic and a musician I accepted the challenge to write something a bit more informal. And as one of the activities happened there in Funchal, it was an extra delight to contribute. My goal in the recent years has been to combine my activities as a popular culture researcher – I wrote my Cultural History PhD on the history and stage designing of stadium rock – and a musician. I have been playing guitar and writing songs in a variety of styles such as heavy metal, acoustic singer-songwriter folk, ambient, and progressive rock. And released about 30 records both in Finland and foreign record labels, touring both in Europe and the USA. My 2015 travels abroad started with two conferences in the USA. First one was in the Bowling Green State University 27–28 March, called Electric Guitar in Popular Culture. This conference was actually the first one where I

spoke directly about my own performing, this time in relation to my trusty guitar. The title ‘Solid Guitar Autoethnography: Gibson SG as a Touring Companion’ should reveal the essentials. In the second evening I had the great pleasure to play for the conference attendees, as the conference included also special gigs. The really cool thing was to share the stage with legendary Skip McDonald, alias Little Axe. With a little help from a friend, Professor Russell Reising from University of Toledo, I was also able to pay a quick visit to the location of Motown Studios in the outer skirts of Detroit. Let me assure you I desperately tried to breathe in the magic! From Ohio to New Orleans, and the Popular Culture Association/American Culture Association 2015 conference which took place 1–4 April. After the intimate guitar conference this 4000+ attendee event felt a bit much. We basically took over a Marriott Hotel next to the French Quarter. This time I gave a paper on 1970 progressive rock performance: ‘Skating for Grail? Rick Wakeman’s

At the end of the same month I had the pleasure to travel to Cornwall in the UK. Dark Sound conference took place at Falmouth University 23– 25 April 2015. My paper was on totalitarianism and music, with the title ‘Hammer, Hammer, Hammer!’ Audio-visual Fascism in Pink Floyd’s The Wall album (1979), concerts (1980–1981), and film (1982).’ This time I did not perform, however, even if there was a substantial amount of concerts to enjoy as part of the event. I especially loved the touching tribute to late Jason Molina and his band Songs: Ohia. About a month later I found myself and my wife Maarit Leskelä-Kärki at Funchal, Madeira. My wife is a colleague at the department of Cultural History, and this was her primary field, having specialised on the history of autobiographical writing. Dialogical Dimensions in Narrating Lives and Life Writing. IABA Europe Conference 2015 took place, as many of the readers of this newsletter probably know at the Centre for Atlantic Studies (CEHA) 27–29 May. I again continued my explorations on playing and narrating with a paper titiled ‘Electric and Acoustic Autoethnography: Life Writing Through Guitar Playing.’ Claudia’s son borrowed me a fine acoustic guitar, as I played two songs as part of my conference paper, the first one being Leonard Cohen’s semi-confessional ‘Famous Blue Raincoat’ (New Skin for the Old Ceremony, Columbia Records 1974): https://www.youtube.com/watch?v=kkSERbdl39Q And the second one my own song ‘I Am Aries’ (The Bone of My Bones, Svart Records 2013), which deals with the refugee situation – at the time of

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In Search of an Identity: Two Young African Writers in Sweden

writing I was thinking about the ‘Festung Europa’ and the boats coming from Africa across the Mediterranean – and partially the climate change in relation to population explosion and raising of the sea levels. https://www.youtube.com/watch?v=ziW8nTWLU8k Luckily we had some time to see the island outside Funchal as well, and I have to say that those who have both the ocean and the mountains in their sights every morning should feel truly blessed. After the wonderful Madeira experience my next international stop was in Berlin, where we organised the 4th European Popular Culture Association conference EUPOP 2015, at the Humboldt University, July 29–31. As the secretary of the association I hadn’t much time for anything music related, but at least my paper, titled ‘Timelapse! Analysing the power-relations and temporalities of the Computer Game GTA V’ had a nice audiovisual ambient timelapse moment in between all the analysed violence and satire. The last journey of 2015 was with my metal band Lord Vicar. We started the small three gig tour from Paris in 11th November, continued to Zweibrücken janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

in Germany, Tilburg in the Nethelands, and finally back to France, in Lille. The Paris terrorist attacks at Bataclan club and elsewhere took place while we were onstage in Tilburg, and this caused some anxiety both within the band and with our French support band Barabbas. We were, however, able to get back in France and play the last show without problems. But I have to say I was happy when the plane finally took off from Charles de Gaulle airport. I hope and think 2016 will bring me new academic and music related adventures. Perhaps a little bit less exciting than in France last time. Ther was already a festival gig at Portugal, and this week gigs in Switzerland, Italy and Austria. A rolling stone gathers no moss… Dr Kimi Kärki University Teacher International Institute for Popular Culture (IIPC) & Master’s Degree Programme on European Heritage, Digital Media and the Information Society (EurHeri) School of History, Culture and Arts Studies, FI-20014 University of Turku, Finland http://users.utu.fi/kierka/; [email protected]

Nesta última metade do século, a Súecia transformouse. Passou de uma sociedade mono-cultural para uma sociedade multicultural. De um total de dez milhoes de população, cerca de meio milhão é imigrante, pelo que se tem apostado numa politica de integração. É neste sentido que as obras literárias dos filhos de emigrantes têm sido bem recebidas. Temos dois bons exemplos de dois jovens Afro-Suecos: Sami Said e Johannes Anyuru. No primeiro caso, o autor conta a história de Noha que, tal como ele, nasceu em Eritrea abordando as dificuldades de adaptação a uma cultura diferente. No segundo exemplo, o jovem escritor relata a história de vida do seu pai, um refugiado do Uganda. Ambas as obras, embora distintas em estilo e linguagem, centram-se no problema fundamental da busca pela identidade.

Over the last half a century, Sweden turned from a substantially mono-cultural society to a veritable melting pot of nationalities and cultures – on a total population of less than ten million, the number of first-generation immigrants borders on one and a half million. Unlike many other European countries, though, Sweden has been pursuing a policy of inclusion and integration – with free language courses for adults, mother-tongue lessons for their children and relative ease in obtaining a residence permit, for instance – that allowed the rapid development of a Swedish-language literary production by immigrant writers, often addressing questions of identity, estrangement and difficult integration. An example is offered by the novels of two young African-Swedish authors, both published in 2012: Väldigt sällan fin by Sami Said, who was born in Eritrea in 1979 and settled in Sweden at ten, and En storm kom från paradiset by Johannes Anyuru, born in Sweden in 1979 to a Ugandan father and a Swedish mother. The young protagonist of Väldigt sällan fin, Noha, has a lot in common with his author: he was born in Eritrea, he lives in Gothenburg with his family and seems to suffer from some kind of relationship problem. A problem that a problem that worsens when he decides, against his family’s will, to move to Linköping to study religious studies. Once there, despite his efforts to cling to the outsider’s life he has always lived, he finds himself torn between

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the opposite poles of Fredrik, a Swedish convert to Islam, much warmer and keener in his faith than Noha himself, and Anna, an art student subject to bouts of enthusiasm and sudden depressions (like most Swedes, according to Noha). The two of them try to turn him into something different from what he is, the first a better Muslim, the second a better Swede. But when his grandfather suddenly dies, Noha follows his father and younger brother to Eritrea to take care of the family’s inheritance. There too, however, he is a fish out of water: he does not recognize the country of his childhood, nor the one he imagined thanks to his extended reading of Eritrean history. He tries to keep at a distance his aunt and cousins, like he did with his Swedish friends, but with them it is more difficult: the aunt, who has an open conflict with her expatriate brother, imposes her customs and opinions on the temporarily reunited family; the older cousin, a model engineering student in Saudi Arabia, soon develops a fierce rivalry with the “westernised” Noha; and the younger cousin, a girl in search for a husband, sets her sights on Noha’s brother. Even in Eritrea, then, the protagonist’s inertia causes him to be tossed between personalities stronger than his own, who would like to mould him into their own image and likeness. At the end of the book the reader is thus left in doubt: to what extent is this a novel about roots, about the difficulties of adapting to a different country and a different culture? Or is it rather a reflection about identity in a deeper and more personal meaning? Noha in fact is afraid of people regardless of where they come from, and dreads physical contact to the point that one almost suspects Asperger’s syndrome. He definitely does not know who he is, but how much is this due to his being an immigrant, and how much to his own peculiar personality, so different, for example, from his brother’s, who has janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

lived though the same experiences?

“In the passage from reality to paper, life came forth, and that fascinated me. To see my nothing becoming a something. And yet remaining myself.”

The same question, even if modulated in completely different ways, lies at the heart of Anyuru’s second novel, En storm kom från paradiset, where he tells his father’s story before he came to Sweden as a Ugandan refugee. The book opens in a dreary interrogation room in an unspecified country in central Africa. It is the early Seventies, in the middle of the civil war that ravaged Uganda soon after Idi Amin Dada came to power. Young P. (Anuyru’s father is always referred to by his initial) is questioned by two fierce Tanzanian soldiers, who want to know why he has come back to Africa. “I wanted to fly”, is his only, obsessive answer. Indeed, he is a pilot of the Ugandan air forces, who deserted from the Greek military camp where he and his mates did their training, in order not to be sent to bomb his own people, once the civil war broke out. After a short period in Italy, however, he accepted a job as an agricultural pilot in Zambia, so strong was his desire to fly. His explanation does not convince the Tanzanian authorities, who suspect him to be a spy sent by Amin. The novel swings between the brutal reality of the interrogations and the memories of the training period in Greece, surely the best in P.’s life, who was then happy and as handsome as a god in his white uniform. After some time P. is sent to a refugee camp in northern Tanzania, where his memories revolve around his difficult childhood in Uganda, with a destitute family and a violent older brother who hit him on a daily basis. After a hazardous escape from the camp, P. ends up first in Nairobi, then in Sweden, married to a young aid worker who fell in love with him. Of his life in the new country we know very little, apart from the conclusion, told by the author in first person, P.’s son, who undertakes the challenge of writing

of a man swept up by the storm that was his life: the portrait of a loser, divorced, jobless, lonely and seriously ill, miles away from the handsome, whiteuniformed pilot of the past, but still with the same deep dignity. What links these two novels, apparently so different in style and language – Anyuru’s a terse and limpid Swedish, interrupted now and then by sudden bursts of poetry, Said’s a freakish, flippant invention that defies usage and syntax – is the theme of identity. Before coming to Sweden, while fleeing war-struck Eritrea, Noha and his family had to hide in a caravan of a local nomadic people, pretending to be what they weren’t. No wonder, then, that later he is incapable of knowing who he is is, finding an identity only in writing: “In the passage from reality to paper, life came forth, and that fascinated me. To see my nothing becoming a something. And yet remaining myself.” The same reflections also cross P.’s mind when he is doing his training in Greece: “He was struck by the thought that he could have been one of them, that he could have lived in another country, and have another body, another name, another life.” Identity – ethnic, historical, personal identity – is therefore clearly at the heart of these two novels; and how could it be otherwise, given the experiences of uprooting and estrangement that both authors lived, Said at first hand, Anuyru through his father? Sami Said, Väldigt sällan fin (Extremely seldom good), Natur och Kultur, 2012 Johannes Anyuru, En storm kom från paradiset (A storm came from paradise), Norstedts, 2012 by Catia De Marco, PhD student, University of Milano

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A mulher com a oportunidade de se deslocar para o mercado, a feira e a festa experimentava a mobilidade em percursos até cerca de cinco léguas, num dia, o equivalente a 25 km, a meados de oitocentos. Para além desta distância, era exigido um passaporte interno aos viandantes. Estes documentos de controlo de circulação foram extintos em 1863. Além da deslocação micro para espaços profanos e sagrados (feira e festa), as migrações estacionais associadas às actividades agrícolas punham em movimento ambos os sexos, embora

século XIX, ela ficava com o ónus de administrar os bens da casa, tomando a liderança das dinâmicas domésticas. Assumindo decisões, era senhora da própria vida. Neste contexto, elas afirmam-se, administrando o património, na ausência do cônjuge. Se homem permanecia longe de casa durante anos, também arcava com a

o contacto físico e o domínio presencial sobre o lar e a companheira, que passava a intervir directamente nas soluções da economia doméstica. No momento da partida, a esposa libertava-se do quadro de servidão imemorável, que a remetia para o quarto, para as funções biológicas da reprodução. Novas oportunidades de mobilidade

IMAGENS DA MOBILIDADE FEMININA NA CORRESPONDÊNCIA DE OITOCENTOS ENVIADA PELOS MARIDOS elas fossem mais discretas ou quase invisíveis. As imagens da mulher migrante são formadas em função das deslocações masculinas. O certo é que as migrações femininas dependem de condições sociais, económicas, demográficas, acesso ao matrimónio e património, cuja decisão de partir estava dependente do contexto, mas também do homem, não sendo uma decisão tomada individualmente. A própria lei e até o quadro de afectos dificultavam as saídas femininas interregionais. Sem grande visibilidade nas dinâmicas transatlânticas, a mulher estava condicionada à permissão dada pelo pai/tutor ou marido. Remetida para um plano secundário nestes movimentos, viajava, muitas vezes, averbada em passaportes colectivos, indo na companhia de parentes. Quando o consorte seguia para a América, no

educação dos filhos. O envolvimento da mulher nestas dinâmicas, sendo quase invisível, não deixa de ter expressão, ao autorizar a requisição da passagem dos descendentes menores e quando o consorte necessitava de hipotecar casas ou campos para obter a passagem. A esposa era chamada a interferir neste mesmo processo, avocando uma participação concreta, com responsabilidades directas no embarque do marido, por quem respondia face aos credores em caso de incumprimento, porque a consorte assinava a hipoteca dos bens sobre os quais o homem obtinha verba para se ausentar. A ida do marido para a América abria um novo ciclo na vida da mulher, quebrando com o ritmo de procriação anual, pois o tempo de ausência era de alguns anos. Assim, o emigrante perdia

janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

ocorriam no contexto das ocupações rurais, levando-a à procura de serviços urbanos, emancipando-se. A liberdade torna-se mais visível com a migração de massas, no contexto da crise financeira de finais de oitocentos, conjunturas impeditivas para os consortes regressarem a Portugal. Desta forma, elas não ficavam eternamente à espera dos homens; decidem partir para junto deles com ou sem anuência, demonstrando personalidade na decisão, na conquista pela independência, emigrando por vezes contra a vontade do marido. A demora na troca de correio tornava mais frágeis as correntes de tinta, havendo mesmo interregnos de anos sem correspondência, o que propiciava mais tempo à esposa na toma das rédeas da domesticidade. Os silêncios, não respondendo à carta do marido, anunciavam sinais de liberdade,

fazendo-se ouvir com voz própria, por vezes confrontando o homem com opções profissionais que propiciavam autonomia financeira, trabalhando por conta própria, emancipando-se.

Motivar esposa para a emigração O afastamento da casa, por um período de vários anos, criava estados de saudade, especialmente em quem estava desenraizado, longe da família. O próprio consorte dava nota da necessidade de ter a esposa junto ele, na terra de

acolhimento. Perante dificuldades financeiras, nem sempre conseguia regressar ao lar. Não raras vezes, emerge da escrita o gesto autoritário, exigindo que ela fosse para a sua companhia. Noutras situações são mais determinados, informando que «… é o fim desta para te comunicar a resolução que tomei… de te apresentares e embarcares com destino a esta terra para a minha companhia o mais breve que possas». O recurso a uma comunicação afectuosa também era usado para atrair a esposa. Todavia, nem sempre elas se decidiam a deixar a paróquia de imediato, porque tinham conquistado

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o estatuto de esposas do “brasileiro”. Com o marido afastado de casa, a decisão final cabia à mulher, acelerando ou retardando o processo de mobilidade, fazendo jus à autonomia alcançada, porque o emigrante, estando ausente, não tinha o controlo dos movimentos da consorte, a vigilância sobre ela não deixara de ser permanente. Frequentemente eram expressos sentimentos de desagrado face à indecisão da esposa, que não se decidia a deixar a casa e família. Os discursos ganham outra força com o envio de «sessenta mil réis e [quando] aí ele chegar venha já». As ameaças

Doc.1

Requerimento de reembarque de Maria Rosa Gonçalves Pinto, de Monserrate viúva, costureira, instruída. AGC, processo referente ao passaporte nº 402, LP. 46, f.180.

de romper com o casamento também eram uma alternativa, porque «não peço mais», diziam outros maridos. Tais gestos deixam perceber a hesitação das esposas, colocadas perante o dilema: optar entre a liberdade proporcionada pela ausência do marido ou ir para junto deles, perdendo a autonomia experimentada enquanto gestoras da própria vida e da liberdade. A saudade e a necessidade de apoio afectivo produziam alterações de comportamento, perante as formas de transmitir o desejo de ter a companhia da esposa e mesmo dos descendentes. Descrito como um «grande peso que

Doc. 2

Requerimento de Maria Nazaré Pereira, de Monserrate, doméstica, analfabeta, leva cinco meninas para junto do marido. AGC, processo referente ao passaporte nº 386, LP. 49, f.145.

tenho na alma por ver-me tão longe da minha pátria», afastado dos filhos que «são as prendas que mais adoro», sente-se este desconsolo nas cartas da emigração. A solidão satura, o afastamento provoca dor, o sofrimento tor­na-se insuportável, quadros enun­ciados bem sublinhados na correspondência, através da expressão: «estou farto de estar só». A separação ao longo de vários anos conduzia a um outro tipo de postura para com a esposa, a quem era pedido que deixasse tudo, a casa, a família e a aldeia, dirigindo-se à terra prometida, porque o afastamento podia prolongar-se durante vários anos, porque «só cá estou há três

Doc. 3

anos e tenho de estar mais outros três anos que é que hei-de fazer».

um novo ciclo de vida, reagrupando a família nuclear.

O isolamento e as carências amorosas, destacando o amparo nos momentos de doença e o apoio aos serviços domésticos, o asseio da casa, especialmente a área da cozinha, que continuava a ser espaço para o sexo feminino, atormentavam estes desterrados no Brasil. É fácil depreendermos que o novo modo de vida oferecido à família emerge com numa paleta idílica e paradisíaca, «pois a minha vida aqui leva-se melhor do que aí». Todos juntos beneficiariam de novas oportunidades, por isso desejavam reorganizar o lar no Brasil, iniciando

Os Estados de alma e saudade apresentados pelos maridos como um sofrimento insuportável pretendiam convencer as mulheres a fazerem as malas, pois elas também tinham dado sinais de enfermidade. Consciente dos sintomas, um emigrante responde, dizendo que o médico «… não me deu remédio nenhum e a tua doença há-de ser saudades de mim», porque não havia receita para tais doenças. Só a ida da esposa para junto dele seria capaz de dar novo lenitivo ao casal a morrer de saudades. Os problemas de ambos eram recíprocos, mas elas nem sempre davam resposta imediata à solução apresentada pelo homem, se considerarmos que, neste caso, a esposa deixou passar cerca de dois anos para requerer passaporte, após a recepção da carta entretanto usada para preparar a viagem, tendo sido depositada no Governo Civil de Viana do Castelo, ao requerer licença de saída.

Extracto de carta de Domingos José Araújo à esposa, Rosa Maria Araujo, casada, comerciante, analfabeta, de Arcozelo, Ponte de Lima. AGC, processo referente ao passaporte nº 446, LP. 48, f.167v.

A impossibilidade de deixar o Brasil decorria de problemas financeiros, contrariando os projectos iniciais, e propiciava novas relações amorosas, com o reforço de afectos à margem dos compromissos matrimoniais, como as cartas deixam perceber. Conscientes destas situações, eles mesmos rogavam à mulher que não os abandonassem, que lhes fossem fiéis. Eram angústias de quem sentia o futuro afectivo hipotecado, vendo-se impedido de ter vida conjugal, de coabitar com a mulher e a prol. O desconforto da separação está patenteado em epístolas carregadas de sofrimento, acompanhadas de choro e dor de quem estava longe e necessitava janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

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da família unida, para minimizar os problemas que a emigração provocava, especialmente dos afectos quando a saúde o exigia. Um problema! Por um lado a mulher acorrentada aos bens da terra e aos parentes mais próximos, por outro ao marido que tinha uma vida de “divorciado”, forçado pelas circunstâncias a um afastamento de anos, ameaçando a separação definitiva. A consorte jogava um futuro arriscado, estava na eminência de perder o contacto com o cônjuge e mesmo o próprio rasto, por iniciativa do emigrante, imputando responsabilidades à esposa pelas consequências que adviessem desta

Doc. 4

Extracto de carta de Maria do Carmo Pereira Rocha, mãe solteira, embarcada em 1895, dona de casa, chamando os filhos vão para sua companhia. AGC, processo referente ao passaporte nº 776, LP. 50, f.38v.

teimosia, porque a senhora continuava a prometer que embarcava para o Brasil e não cumpria, sentindo-se um homem enganado. Quando a resposta à vontade dos maridos não era satisfeita, também ameaçavam com a ruptura conjugal, o fim da escrita, das mesadas e do matrimónio, quebrando as ligações escritas e refazendo a vida marital na terra de acolhimento. Noutras situações, a consciência de que a opção pela via da diáspora, para resolver problemas de natureza económica, provocava uma separação dolorosa, como ficou registada numa das missivas de Joaquim António Pinto,

Doc. 5 Passaporte colectivo em nome de António Barreiro, natural de Paredes de Coura, negociante, leva em companhia esposa, filhos e sobrinhas. AGC, processo referente ao passaporte nº 711, LP. 51, f.81.

a quem a jovem esposa responde com celeridade, embarcando logo que recebeu a carta que a autorizava a deixar a paróquia. No caso dos homens a viverem sem apoio para as lides domésticas, a presença das esposas era útil, substituindo a mão-de-obra de outras mulheres. Melhor argumento parece não haver para convencer o sexo feminino a fazer as malas, proporcionando liberdade à esposa e usufruto de uma remuneração elevada, substituindo os serviços de outras trabalhadoras a quem o marido tinha de pagar. Assim se tentava convencer a consorte a juntar-se ao

Doc. 6

Passaporte de regresso em nome de Gonçalo Barros Aguiar, usado pela esposa depois de enviuvar, que sabia escrever. AGC, processo referente ao passaporte nº 88LP. 53, f.40.

projecto migratório, com benefícios para a família, dispensando os serviços de outras colaboradoras, substituídas por parentes mais próximos, se possível do próprio lar. Este cenário é reforçado com o espectro dos problemas familiares vividos pela esposa, a quem a sogra e a mãe maltrataram fisicamente por questões de «dinheiro». O marido aproveita tais acontecimentos e apresenta-os como argumentos favoráveis ao abandono da paróquia, levando a mulher a embarcar. A produção de café, na década de noventa, propiciava o trabalho a lares completos, dando oportunidade à reunião da família, porque «…hoje dá mais ganho e em três ou quatro anos não posso lá ir (...) que aqui se ganha bom dinheiro principalmente vindo famílias inteiras». Outra forma de convencer o elemento feminino, sem exibirem autoritarismo, observa-se na referência persistente às boas condições de vida no Brasil, ou através da repetida e insistente lembrança em «saber se tu tens vontade de vir para minha companhia», logo seguida de um ultimato, sublinhando que se tratava da derradeira oportunidade. Estes gestos, anunciando ruptura matrimonial decorrente da falta de cooperação da esposa, que não cede às pressões do marido, aparecem descritos em vários documentos. Eles insistiam sublinhadamente, para saber se ela anuía a juntar-se ou não ao projecto de vida, porque «eu já vos mandei para aí duas ou três cartas e não tive resposta e agora escrevo-te esta para vires cá para o Brasil, para a minha companhia (...) sem falta nenhuma.» Ela, por vezes, desejava mais o retorno do marido do que seguir para o Brasil, informando o homem que estava a preparar-se para recebê-lo. Neste caso,

janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

o emigrante é mais pragmático e adia o retorno ao assumir compromissos por mais dez anos de fixação no Brasil, motivo que leva a “cara-metade” a obter imediatamente o passaporte. Neste caso, o consorte encontrava-se estabelecido com uma oficina e tinha casa própria para acolher a família. Noutras situações, justificavam a permanência em terras de Vera Cruz devido aos compromissos assumidos e à estabilidade profissional. A existência de condições ímpares, a perspectiva de conseguir trabalho por conta própria, casa capaz de albergar a família, além de encontrar outros parentes, como primos, compadres e o próprio filho naquela terra, poucas alternativas deixavam à mulher: ou ficava em liberdade na aldeia, mas sozinha, privada do conforto de uma vida junto do marido, agora proprietário, ou não perdia tempo e fazia a viagem. Este quadro da emigração definitiva com a presença feminina contrapõe-se à imagem do “brasileiro” com o imaginário de retorno e sucesso exibido. Mas, para demover a consorte, o emigrante também esgrime argu­ mentos consagrados no matrimónio, sublinhando o dever da mulher na constituição de uma nova família, devendo seguir para junto dele. Mostrando compreender a postura da mulher, embora fique incomodado pela falta de decisão, pede-lhe que reflicta nos comportamentos e atitudes tomadas, para não se arrepender das consequências resultantes de tal teimosia. Se mulher não pretende deixar a paróquia e implora o regresso do varão, este, face à falta de perspectivas de emprego em Portugal, responde

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que não retornará a casa para passear, optando por um emprego por conta própria, sem o «desaforo do patrão», com autonomia e independência, mantendo-se longe de casa, na outra margem. A insistência feminina, com o objectivo de atrair o companheiro, pretendendo fazê-lo regressar, perante conjunturas de sucesso e capacidade física para o trabalho, levam o marido a responder com lisura, e a sublinhar: «…sou franco a desenganar-te, que por ora não posso ir». Sem a intenção de aceder ao pedido da esposa, enquanto a saúde o possibilita, opta por aproveitar os benefícios resultantes da emigração. Com respostas deste teor, elas solicitavam a passagem, depois de uma espera prolongada, usando a carta onde o cônjuge sublinhava não ter intenções de vir para Portugal no curto prazo. Noutras situações elas mesmas pressionavam a mobilidade, usando cartas recebidas da outra margem, sem consentimento do marido, sem nunca deixarem de ter voz própria e momentos de emancipação e liberdade de decisão. Há mulheres que ficam e mulheres que partem de todas as idades, solteiras, casadas e viúvas, e também há mulheres instruídas que emigram. Henrique Rodrigues, Professor -Adjunto do Instituto Politécnico de Viana do Castelo

Eugénio Tavares: Um Cabo-verdiano apóstolo da República em Cabo Verde e nos EUA Ao revisitarmos a actividade de Cabo-verdianos em inícios de novecentos, duas constatações ocorrem: a porosidade cultural e a socialização do saber, suportada até pela criação artística, ajudaram a preservar a memória difusa das várias figuras culturais; porém, nem isso evita a tendência para o apagamento da memória dessas gerações que não triunfaram no plano político. A outro nível, ao arrepio de uma dada “romantização” de certos vultos de elevada craveira cultural, instilou-se a dúvida acerca do fio ligava esses “proto-nacionalistas” aos nacionalistas que chegaram à independência.

janeiro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Independentemente das razões con­ ceptuais para não incluir impen­ sadamente aqueles cabo-verdianos na filogénese do nacionalismo cabo-verdiano, importa sopesar, por exemplo, o lugar de Eugénio Tavares na construção da identidade caboverdiana. Por exemplo, como enquadrar o seu denodo no arvorar de valores políticos, que, tendo sido relevantes para a defesa da República (1910-1926), o poderão ter sido também para a defesa dos cabo-verdianos? E desses valores, quais se poderiam considerar actuais? Referidos ao ano de 1912, os apontamentos que se seguem centramse na posição cívica e política de Eugénio Tavares, mormente na sua contribuição para a aceitação da República nas colónias de emigrantes nos Estados Unidos da América. A República potenciou as aspirações dos naturais das colónias, mas estas colidiram com a sobranceria dos europeus, tidos por genuínos representantes do veio lusitano e tocados pelo racismo emergente e pela difusão do nacionalismo imperial. Acicatado pelas rivalidades entre as nações, este nacionalismo imperial sobrepôs-se ao republicanismo. Curiosamente – nos tempos monárquicos, quando os republicanos eram poucos mas de convicções –, o ideário republicano medrara por conta das denúncias da má administração das colónias, granjeando também a simpatia das respectivas populações. Com a República, num movimento divergente do etnocentrismo dos portugueses, os ideais republicanos foram tomados à letra pelas elites nas colónias, que neles assentaram

as críticas a leis desse tempo, como, por exemplo, as famigeradas leis de excepção, que cristalizaram a distinção entre europeus de indígenas. Em particular, em Cabo Verde, fosse por via da afirmação dos valores da raça negra e do pan-africanismo, fosse dos tons libertários do republicanismo, a República foi uma época de consciencialização política baseada no sentimento de valia dos Africanos, sem deixar de ter sido, ao menos episodicamente, uma época de afirmação de portuguesismo, devida, justamente, aos horizontes abertos pela República No arquipélago, a politização do quotidiano e a clivagem ideológica atinham-se aos combates políticopartidários na metrópole. Porém, era difícil eleger um senador ou deputado que não fosse cabo-verdiano. Existiram centros republicanos mas não agremiações de defesa dos interesses dos da terra similares às das outras colónias, indício de que o horizonte da elite cabo-verdiana era o da equiparação inequívoca da terra e das gentes com a metrópole, mormente pela participação nas instituições da nação. Por isso, apesar do fosso entre os ideais republicanos e a incapacidade de mudar a realidade económica e social, em Cabo Verde houve disputa pela reivindicação de um património de valores republicanos e pela apropriação da celebração do 5 de Outubro. Tendo-a saudado através do poema “Salvé, Lusitania”, datado da Praia, de 5 de Novembro de 1910, Eugénio Tavares foi um dos maiores apóstolos da República nos EUA, junto dos portugueses, do continente, das ilhas e, decerto, de Cabo Verde.

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A crença na República Republicano, Eugénio Tavares recusou por insustentável a teoria da degenerescência dos povos ou das raças, na circunstância, da lusitana, durante tempos abastardada por monárquicos. Para ele, Salisbury, que não lera Camões, para quem um rei fraco fazia fraca a gente forte, e que não podia deixar de atribuir ao povo português as taras degenerativas da desqualificada família brigantina, acabara, como outros, desmentido pelo 5 de Outubro. De resto, não eram as raças que morriam, eram as agremiações na sua organização política que desapareciam. Portugal quase se desagregava com os últimos bandalhos monárquicos. Porém, ao tempo reconstituía-se. Alardeando uma ligação a Portugal, decerto avivada pela República, a fé republicana de Eugénio Tavares seria maior do que a de muitos republicanos na metrópole. Em consonância com o espírito da época, na defesa da República, a alusão à alma popular tornou-se um constante recurso de várias exortações políticas. Também Eugénio Tavares se mostrava confiante em que a ninguém faria perecer a República porque ela tinha as suas melhores raízes na alma popular. Todavia, a celebrada alma popular carecia de ser robustecida pela instrução. Este desígnio republicano da instrução era reclamado pela sociedade cabo-verdiana, que o entendia como um crucial mecanismo de ascensão social. Eugénio Tavares citou as instâncias de um velho republicano da Brava, que clamava criem escolas e o resto virá. Tal evocação derivava do apreço pela instrução, como se disse, um aspecto caro à elite cabo-verdiana, não só por

causa da emigração mas também da liberdade alcançável pelo progresso das luzes. A defesa da República em Cabo Verde Ao longo de 1912, em A Voz de Cabo Verde, nem o propósito de defesa da República empecia a contestação acesa aos funcionários coloniais, atávica ou interesseiramente apostados em calcar os povos e, dessa forma, denegrir aos olhos destes o regime republicano. Para Eugénio Tavares, se a República não devia destituir funcionários só por serem monárquicos, cumpria-lhe, contudo, não confiar postos a serventuários desleais que, disfarçados de patriotas, urdiriam comodamente a traição. Eugénio Tavares comparou o 1 de Dezembro de 1640 ao 5 de Outubro de 1910. Como então, também com a implantação da República se tinham mantido nos altos cargos os monárquicos de vísceras empeçonhadas que anteriormente preparavam as galés para os corifeus democráticos. Isto é, a República acolhia no seu seio maternal as víboras da traição, não se acautelando para defender a Liberdade atacada por aqueles que simulavam aceitá-la para melhor a apunhalar. Mas o povo salvaria a República. Eugénio Tavares perfilhou um argumento comum nas primeiras décadas de novecentos, a saber, o de que a melhor defesa do património colonial consistia na integração política e social das populações coloniais. Ponderadas as ameaças à “integridade da Pátria portuguesa” tanto no ultramar como na península, Eugénio Tavares asseverou que a agressão contra Portugal concitaria o protesto das populações coloniais. A República

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Portuguesa tinha nas colónias dez milhões de portugueses, cumprindolhe, tal como fazia a França, instruílos e interessá-los na comunidade da vida nacional. Todos somos irmãos!, tal a expressão da fraternidade e da valorização do contingente africano de portugueses. Portanto, para Eugénio Tavares, a inclusão dos Africanos na nacionalidade era indissociável do futuro de Portugal, futuro localizado nas colónias, não resumíveis a um repositório de riquezas. Era preciso cultivar não só cacau e cana, mas também a inteligência, o carácter e as admiráveis qualidades do indígena. Urgia que as populações coloniais comparticipassem de todos os direitos e deveres do cidadão português, sendo, para isso, necessário acabar com as leis de excepção e realizar a confraternização e a efectiva solidariedade de todos os elementos da nacionalidade, necessidade iniludível da democracia. Noutros termos, como para muitos outros africanos ilustres destas décadas, a adesão afectiva à pátria-mãe e a preservação do património colonial intacto dependiam da autonomia concedida e das possibilidades de desenvolvimento. A advocacia da República nos EUA Em 1912, quando veio a lume a questão do alcance em que se achou envolvido, Eugénio Tavares viajara (ou aprestava-se a viajar) para os EUA, onde o novo regime não era benquisto entre os Portugueses. Por exemplo, só a 2 de Junho de 1912 a Sociedade Portuguesa do Monte Pio arvorara a bandeira republicana, o que, parecendo incrível, era verdade. Foi, aliás, com sátira que se noticiou a presença de bandeira da Monarquia

ostentada numa procissão do “senhor Espírito Santo (sic)”, perguntandose como é que Paiva Couceiro não se lembrara de ali ir recrutar bravos patriotas! Nos EUA, debatendo-se com a hostilidade para com a República, Eugénio Tavares prosseguiu na divulgação e defesa do novo regime. Com pertinácia, o poeta e pensador cabo-verdiano devotou-se a desmentir boatos reaccionários acerca da República em jornais publicados em português nos EUA. Eugénio Tavares proferiu conferências em vários clubes republicanos para contraminar os trabalhos da reacção nesta colónia. No Congresso Evangélico Português, reunido de 31 de Agosto a 2 de Setembro, em Taunton, Massachussetts, Eugénio Tavares realizou uma conferência sobre liberdade de consciência na República Portuguesa. Ainda na América, fundouse um Centro Escolar Almirante Reis. O projecto de estatutos, apresentado por Eugénio Tavares, foi aprovado com emendas. Pelos valores republicanos ou de uma ética política cosmopolita Em 1912, Eugénio Tavares ausentouse da sua terra durante cerca de seis meses. Como se escreveu, Cabo Verde, onde a ofensiva talassa se fazia sentir, terá perdido com a sua ausência. Fosse como fosse, a República ganhara, pois Eugénio Tavares não se poupou a incómodos na propaganda a favor da República contra a reacção. Não deixa de ser interessante este balanço, porquanto, ao cabo de pouco tempo, já não sobrava réstia de dúvida aos Cabo-verdianos republicanos de

que, em Cabo Verde, a República se quedava muito aquém do que teriam idealizado. Todavia, se materialmente não produzira os benefícios almejados, moralmente iluminara-se a consciência dos Cabo-verdianos, fortalecera-se ideais e a nítida compreensão dos seus deveres cívicos. Por isso se clamou Viva a Pátria, Viva a República. Ao tempo, a defesa da República e dos democráticos no jornal A Voz de Cabo Verde não colidiu nem se sobrepôs aos interesses de Cabo Verde. A de Eugénio Tavares foi tenaz e, certamente, eloquente. Mesmo que objectivamente as consequências tenham sido menores, o seu contributo em prol da República, norteado pelo portuguesismo, não terá sido inócuo para Cabo Verde, mormente pelo contributo para a politização do pensamento e para a consciencialização da relação dos Cabo-verdianos com o mundo. Justamente, realcem-se os valores de Eugénio Tavares da perspectiva da relação com o mundo – de que o já longo historial migratório dos cabo-verdianos era um esteio –, a qual, decerto, muito ajudou a sedimentá-los. Os valores de uma ética republicana – entre eles, a igualdade, a liberdade e a fraternidade – pelos quais, por causa da República em Portugal e em Cabo Verde, ele pugnou, eram (e, segundo alguns, são) os valores de uma ética política cosmopolita e aberta, quiçá aplicável ao mundo actual, mesmo se este parece querer apartar-se dela. Augusto Nascimento Universidade de Lisboa, Centro de História Alameda da Universidade 1600-214 Lisboa

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